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2.

Saneamento e saúde pública: conceitos e visão geral

Introdução

A Organização das Nações Unidas (ONU) estimou que para cada dólar investido
globalmente em saneamento, haveria a economia de cerca de quatro dólares nos custos com
saúde curativa. No entanto, esse número pode ser ainda maior se considerado investimentos
em áreas prioritárias, como em áreas periféricas dos grandes centros urbanos, por exemplo,
onde não há fornecimento de água tratada e afastamento das dejeções humanas.

Saneamento ambiental é o conjunto de ações socioeconômicas que têm por objetivo


alcançar salubridade ambiental, por meio de abastecimento de água potável, coleta e
disposição de resíduos sólidos, líquidos e gasosos, promoção da disciplina sanitária de uso do
solo, drenagem urbana, controle de doenças transmissíveis e demais serviços, com a finalidade
de proteger e melhorar as condições de vida (Brasil, 2004). Dentre essas ações, saneamento
básico compreende o conjunto de serviços, infraestruturas e instalações operacionais de
serviços de abastecimento de água potável, coleta e tratamento de esgotos, limpeza urbana e
manejo de resíduos sólidos e drenagem e manejo de águas pluviais (Brasil, 2007).

Saúde, segundo a definição da Organização Mundial de Saúde (OMS), é o estado de


completo bem-estar físico, mental e social, e não somente a ausência de doenças.
Complementarmente, a saúde pública pode ser definida como a ciência e a arte de promover,
proteger e recuperar a saúde por meio de medidas de alcance coletivo e de motivação da
população.

Dessa forma, nota-se a intrínseca relação entre as duas temáticas, sendo o saneamento
adequado considerado como fator-base para a saúde pública.

O presente texto tem o objetivo de discorrer sobre saneamento e saúde pública:


conceitos e visão geral. Na primeira parte, aborda-se a conceituação sobre saneamento e
saúde pública, assim como a sua interrelação e interveniências em fatores sociais, ambientais e
econômicos na perspectiva teórica aplicada a realidade nacional. De forma complementar, a
segunda parte apresenta uma reflexão sobre o seu ensino a nível de graduação, assim como
das possibilidades de pesquisa e/ou extensão.

1. Explanação teórica

Práticas sanitárias remontam a antiguidade em diversas civilizações, como os


aquedutos e latrinas coletivas em Roma, os banhos termais e a relação de miasmas e maus
odores com a transmissão das doenças. O próprio termo sanear, com origem no Latim, tem
como significado tornar saudável, higienizar, limpar.

De forma mais específica, o entendimento da saúde como o completo estado de bem-


estar físico, social e mental pressupõe condições ambientais equilibradas, sendo o saneamento
ambiental a barreira de proteção entre as pessoas e os efeitos do meio, como infecções, por
exemplo. Segundo Brasil (2004), a maioria dos problemas sanitários que afetam a população
mundial são intrinsecamente relacionados ao meio ambiente, como a diarreia, que tem as
condições inadequadas de saneamento como efeito promotor.

Constituído de quatro eixos que se interrelacionam: abastecimento de água, coleta e


tratamento de esgotos, limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e drenagem e manejo de
águas pluviais, o saneamento básico possui relação direta com o ciclo da água no meio urbano.
Cumpre destacar que estes também apresentam interface nas doenças relacionadas à falta de
saneamento, também denominadas doenças de veiculação hídrica. No Brasil, estima-se que
cerca de 65% das internações hospitalares são provenientes de doenças de veiculação hídrica.
Em função da participação da água em seu ciclo, essas doenças podem ser classificadas em: i)
doenças com fonte na água; ii) doenças devido à falta de higiene; e iii) doenças relacionadas à
água.

Nas doenças com fonte na água, a transmissão ocorre pela água, ou seja, utilizando-a
como veículo passivo de transporte do agente, como cólera, salmonela, diarreia, leptospirose.

Por outro lado, nas doenças devido à falta de higiene há carência de educação para
práticas de higiene e/ou disponibilidade de água com condições seguras. Pode-se mencionar
infecções de ouvido e alergias de pele e olhos.

Por fim, nas doenças relacionadas à água o agente infeccioso utiliza a água para se
desenvolver, por exemplo a malária, esquistossomose e a febre hemorrágica.

Segundo Daniel (2013), a disponibilização de melhores condições de saneamento e a


prática de boa higiene pessoal auxiliam no rompimento do ciclo da contaminação fecal-oral de
patogênicos veiculados pela água, resultando em benefício à saúde, redução da pobreza,
promoção de bem-estar e desenvolvimento econômico.

Apesar dessa intrínseca interrelação, a seguir são apresentadas algumas questões mais
específicas de cada um desse quatro principais eixos.

Abastecimento de água e saúde pública

O abastecimento de água potável para consumo humano representa o fornecimento


de água de forma contínua em condições que atendam ao padrão de potabilidade descrito na
legislação (Portaria GM/MS nº 888/2021 – anexo XX) em quantidade, qualidade e pressão
adequadas aos usuários.

O principal benefício que a água tratada proporciona à saúde pública é a prevenção de


doenças infecciosas intestinais e helmintíases (causadas por helmintos). Estudos identificaram
redução de quase 80% nos casos de acometimento por essas infecções no período de um ano
após implantação de sistema de abastecimento de água em comunidades rurais do interior de
São Paulo (Heller e Pádua, 2016).

Essas doenças são de baixa letalidade, porém, de alta endemicidade, notadamente em


regiões mais pobres. Atingem, principalmente, crianças de até cinco anos, afetando o
crescimento e desenvolvimento de aptidões, uma vez que levam à desnutrição e à situação de
fragilidade. O indicador que permite avaliar o impacto do sistema de abastecimento de água
nessas doenças é a morbidade, por causa do grande contingente de pacientes que procura o
serviço de saúde. Dessa forma, a contribuição da disponibilização de água de boa qualidade e
em condições sanitárias seguras à melhoria da saúde pública está consubstanciada na redução
dessas consultas médicas por atuar diretamente na eliminação do fator de risco. Outros
benefícios do acesso à água tratada são:

- melhoria da qualidade de vida e consequente aumento de sua expectativa;


- impacto positivo no setor produtivo, pela redução do número de dias não
trabalhados, e aproveitamento escolar;

- alívio orçamentário aos setores de saúde e previdenciário.

Cabe pontuar que a universalização do saneamento prevista na Lei nº 14.026/2020 que


atualizou o marco nacional do saneamento estabelece como meta a ser atingida até 2033 o
percentual de 99% da população atendida com água potável, sendo que atualmente se tem
cerca de 84%.

Águas residuárias e saúde pública

As águas residuárias representam águas que foram utilizadas anteriormente e contém


características que inviabilizam um novo uso sem que haja tratamento prévio específico;
incluem os efluentes (esgotos) domésticos, efluentes industriais e agropecuários.

O lançamento de águas residuárias em corpos hídricos sem o devido tratamento pode


representar a sua poluição, definida como “adição de substância ou de forma de energia que,
direta ou indiretamente, alterem a natureza do corpo d’água de maneira que prejudique os
seus legítimos usos”.

Em alguns cenários, a ausência da coleta e afastamento dos esgotos domésticos


resultam na poluição local e viabilização do contágio direto com vetores de doenças. Por outro
lado, a sua coleta e disposição sem tratamento em corpo d’água pode representar, além da sua
poluição, a sua contaminação por microrganismos patogênicos, limitando seus usos e/ou
disseminando enfermidades. Isso posto, fica evidente a necessidade de se avançar com coleta,
transporte e tratamento, aspectos considerados na universalização prevista na atualização do
marco do saneamento (lei nº 14.026/2020), na qual se prevê 90% de coleta e tratamento de
esgotos até 2033.

Para além dos esgotos domésticos, as águas residuárias industriais apresentam grande
potencial poluidor, em função dos volumes gerados e a presença de substâncias tóxicas,
aumentando significativamente o risco de agravo à saúde pública na ausência de saneamento.

Cumpre destacar que as doenças relacionadas à falta de saneamento podem ser


causadas por agentes biológicos, notadamente vírus, bactérias, protozoários ou helmintos,
substâncias orgânicas ou inorgânicas. Nestes últimos, além de metais, estão inclusos os
microcontaminantes e micropoluentes, temas relativamente novos pelos recentes avanços
obtidos nos equipamentos de detecção, proporcionando melhor monitoramento (Daniel,
2013).

Drenagem urbana e saúde pública

A drenagem urbana é todo o sistema de condução de águas pluviais de uma cidade,


incluindo componentes hidráulicos como tubulações, galerias, canais e corpos hídricos.

Relacionado ao impacto na saúde pública, a drenagem urbana tem seu aspecto mais
expressivo no crescimento populacional, especialmente em países emergentes, por ocorrer em
áreas periféricas sem controle urbanístico e com ausência de saneamento básico.
O incremento do escoamento superficial gerado pelo aumento dos índices de
impermeabilização do solo, quando ultrapassa a capacidade de escoamento do curso d’água
que drena a área, resulta, fundamentalmente, nas inundações urbanas. Ressalta-se, no
entanto, a diferença de cheias e inundações, caracterizadas pela ocupação da calha menor e
calha maior do corpo hídrico, respectivamente.

Relacionando à expansão urbana descontrolada, muitas vezes há a ocupação da calha


maior do corpo hídrico por populações vulneráveis socialmente, as quais são diretamente
atingidas pelas inundações e expostas às doenças de veiculação hídrica. Esse cenário pode ser
negativamente potencializado caso não haja sistemas de esgotamento sanitário e limpeza
urbana eficientes.

Resíduos sólidos e saúde pública

Conceitualmente, os resíduos sólidos são definidos como material, substância, objeto


ou bem descartado resultante de atividades humanas em sociedade, nos estados sólidos ou
semissólidos, bem como gases contidos em recipientes e líquidos cujas particularidades
tornem inviável o seu lançamento na rede pública de esgoto ou corpo d’água (Brasil, 2010).

A geração de resíduos sólidos é inerente ao ser humano, porém, teve incremento


substancial e mudança de características nos últimos anos pelo aumento populacional, sua
concentração em cidades e alteração dos modos de vida. No Brasil, estima-se que a geração
per capita atual seja da ordem de 1,0 kg/hab.d (ABRELPE, 2022).

Historicamente, o gerenciamento dos resíduos sólidos urbanos (RSU) no Brasil se


baseou em coleta e afastamento, no entanto, sua disposição ambientalmente inadequada, os
conhecidos lixões, proporciona alimento e abrigo para vetores de doenças, como roedores e
insetos. Adicionalmente, por serem resíduos com elevada concentração orgânica (~45%), pode
haver a produção de lixiviado, resultando na contaminação do solo e água subterrânea, além
de gerar gases de efeito estufa, como metano e óxido nitroso. A Política Nacional de Resíduos
Sólidos (Lei nº 12.305/2010), atualizada pela lei nº 14.026/2020 estabelece prazo limite para
que se faça a disposição final de rejeitos em aterros sanitários, sendo agosto de 2024 o prazo
final, estabelecido para municípios com populações inferiores a 50.000 habitantes.

Por outro lado, a limpeza urbana ineficiente pode afetar fisicamente o sistema de
drenagem de águas pluviais, obstruindo tubulações e unidades de entrada nas vias públicas
(bocas de lobo), potencializando o efeito das inundações e o seu impacto na saúde pública.

Águas urbanas e sua interface no gerenciamento

Partindo do preceito da água como fator comum principal aos eixos do saneamento
básico, cabe destacar alguns aspectos relacionados ao seu uso, como o incremento da vazão
utilizada no mundo nos últimos 70 anos ter sido cerca de três vezes maior que o incremento
populacional, resultado da industrialização, poluição e intensificação da agricultura. Esta
última, inclusive, atualmente é a maior usuária global de água.

Especificamente no meio urbano, há necessidade de se gerenciar os recursos hídricos


sob a ótica integrada, englobando o uso do solo da bacia de contribuição, o tratamento da
água para abastecimento público, o tratamento das águas residuárias e seu lançamento ao
corpo hídrico receptor. Adicionalmente, deve ser considerada a adequada e atualizada
drenagem urbana, incluindo aspectos relacionados às inundações ribeirinhas. Por fim, a
limpeza urbana e a disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos, que proporciona o
adequado funcionamento da drenagem urbana e evita a proliferação de vetores de doenças.

Isso posto, ressalta-se a necessidade de se avançar de forma consolidada com setor de


saneamento, em seus quatro eixos principais, contribuindo sobremaneira com a saúde pública,
mas, também, com áreas ambientais, sociais e econômicas de forma geral.

2. Reflexão sobre o tema na formação do Engenheiro civil

Apresentada a temática acerca do saneamento e saúde pública: conceitos e visão geral,


essa segunda parte aborda aspectos relacionados ao seu ensino, pesquisa e extensão.

Haja vista a carência do setor de saneamento no cenário brasileiro, o qual inclui os


eixos de abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza urbana e manejo de
resíduos sólidos e drenagem urbana e manejo de águas pluviais, o ensino do tema objeto
desse texto é fundamental à formação do Engenheiro civil. A atualização do Marco do
Saneamento (Lei nº 14.026/2020) apresenta a universalização como meta a ser cumprida até
2033, sendo que os três primeiros eixos são contemplados nas metas: i) abastecimento de
água potável para 99% da população; ii) coleta e tratamento de esgotos para 90%; iii)
erradicação dos lixões como forma de disposição final de rejeitos até 2024 (municípios com
populações inferiores a 50.000 habitantes), demandando profissionais com competência
técnica no tema.

O tema é abordado em diferentes disciplinas, dentre elas Ciências Ambientais,


Sistemas de abastecimento de água e Sistemas de drenagem e de esgotos, havendo a
necessidade de consolidar o conhecimento e desenvolver habilidades ao longo do curso,
possibilitando, ao final, uma percepção integrada do tema. O objetivo deve ser contribuir com
a formação de engenheiros(as) com capacidade crítica e analítica, que compreendam a
importância do saneamento para as políticas públicas relacionadas à saúde, sob as óticas
econômica, social e ambiental, e tenham competência para propor soluções inovadoras e
adequadas para a realidade brasileira.

Em relação à pesquisa e extensão, há possibilidade de se propor projetos de


conscientização da população a respeito de práticas sanitárias que contribuam com a redução
do risco à saúde, como a desinfeção de água de sistemas de abastecimento individual e
promoção de iniciativas de construção de sistemas estáticos alternativos de tratamento de
esgotos.

Referências

ABRELPE. Panorama dos resíduos sólidos no Brasil. 2022.

Brasil. Fundação Nacional de Saúde. Manual de saneamento. 2004.

Brasil. Lei nº 11.445 – Diretrizes Nacionais de Saneamento Básico. 2007.

Brasil. Lei nº 12.305 – Política Nacional de Resíduos Sólidos. 2012.


Daniel, L.A. Meio Ambiente e saúde pública. In: Engenharia ambiental: conceitos, tecnologia e
Gestão. 2013.

Heller, L.; Pádua, V.L. Abastecimento de água para o consumo humano. Belo Horizonte: editora
UFMG, 2016.

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