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MISES: Interdisciplinary Journal of Philosophy Law and

Economics
ISSN: 2318-0811
ISSN: 2594-9187
Instituto Ludwig von Mises - Brasil

Melo, Gabriel Estruzani Queiróz de


A Influência da Filosofia Escolástica na Formação do Pensamento Econômico
MISES: Interdisciplinary Journal of Philosophy Law and
Economics, vol. 7, núm. 2, 2019, Maio-Agosto, pp. 451-481
Instituto Ludwig von Mises - Brasil

DOI: 10.30800/mises.2019.v7.1111

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=586361733010

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MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia
ISSN 2318-0811
Volume VII, Número 2 (maio-agosto) 2019 : 451-481

A Influência da Filosofia Escolástica na Formação


do Pensamento Econômico
Gabriel Estruzani Queiróz de Melo*
Resumo: O presente estudo buscou avaliar o papel que a escola de filosofia escolástica, tanto no seu
apogeu quanto na fase tardia, teve para a formação de fundamentais conceitos que formam a base de
qualquer pensamento econômico ulterior. Foram apresentadas considerações escolásticas acerca de auto
regulação do mercado, comércio, preço justo, teoria do valor, concorrência, propriedade, inflação e valor do
dinheiro no tempo. A universidade de Salamanca mereceu destaque, tanto por ser o berço das teorias da
economia de mercado, quanto por tentar conciliar as ideias econômicas com as bases morais e históricas,
de matriz judaico-cristãs, que sempre nortearam os pensadores escolásticos. Através de uma pesquisa
bibliográfica e histórica, com base documental, tanto de fontes primárias quanto de estudos posteriores,
o presenta trabalho mostra as raízes escolásticas de escolas de pensamento econômico contemporâneas
e a indissociabilidade dos conceitos por elas utilizados de seus autores originais.
Palavras-chave: Escolástica, Pensamento, Econômico, Universidade de Salamanca, Mercado, Usura.

The Influence Of Scholastic Philosophy on the Formation


of Economic Thought
Abstract: The present study analysis the influence that scholastic philosophy had on the formation of
fundamental concepts in economic thought. It shows scholastic considerations on market self-regulation,
trade, fair price, value theory, competition, property, inflation and the value of money. The University
of Salamanca deserves prominence both because it was the cradle of free market economic theories
and because it tried to reconcile economic ideas with the moral and historical bases of Judeo-Christian
matrix, which always guided the scholastic thinkers. Through bibliographical and historical research,
both of primary sources and of later studies, the present work shows the scholastic roots of contemporary
economic schools of thought and the relationship between the concepts they use and their original authors.
Keywords: Scholastic Philosophy, Economic Thought, University of Salamanca, Market, Usury.

La Influencia de La Filosofía Escolástica en la Formación


del Pensamiento Económico
Resumen: El presente estudio buscó evaluar el papel que la escuela de filosofía escolástica, tanto en su
apogeo como en la fase tardía, tuvo en la formación de conceptos fundamentales que forman la base
de cualquier pensamiento económico ulterior. Se presentaron consideraciones escolásticas acerca de la
regulación del mercado, el comercio, el precio justo, la teoría del valor, la competición, la propiedad, la
inflación y el valor del dinero en eltiempo. La universidad de Salamanca mereció destaque, tanto por
ser la cuna de las teorías de la economía de mercado como por tratar de conciliar las ideas económicas
con las bases morales e históricas, de matriz judeo-cristiana, que siempre guiaron a los pensadores
escolásticos. A través de una investigación bibliográfica y histórica, con base documental, tanto de fuentes
primarias y de estudios posteriores, el presente estudio muestra las raíces escolásticas de escuelas de
pensamiento económico contemporáneas y la indisociación de los conceptos por ellas utilizados de sus
autores originales.
Palabras clave: Escolástica, Pensamiento Económico, Universidad de Salamanca, Mercado, Usura.

DOI: https://doi.org/10.30800/mises.2019.v7.1111

* Graduado em Ciências Econômicas e Mestrando em Administração pela UDESC. Pesquisador na área


de Economia Institucional. Interessa-se por Filosofia da Economia e História das Ideias Econômicas.
Email: gabrieldemelo51@gmail.com
452 A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA ESCOLÁSTICA NA FORMAÇÃO
DO PENSAMENTO ECONÔMICO

Introdução destes, existem historiadores e comentaristas


da escolástica que argumentam que os
É necessário repensar os conceitos já filósofos dessa corrente foram os primeiros
estabelecidos em relação à Idade Média, visto a desenvolver a ideia de um mercado que se
que, ainda hoje, circula a errônea ideia de que autorregulava (WOODS JR, 2005).
foi um período de ignorância, superstição Tanto os escolásticos tardios quanto os
e repressão intelectual. Porém, segundo anteriores são pedra angular na formulação
Schumpeter (1954, p. 74), de conceitos que são comuns e necessários
para o estudo das mais importantes correntes
[...] as universidades gozavam de uma grande
econômicas, ao ponto de Schumpeter (1954,
liberdade e independência; elas deram mais
escopo ao professor individual do que as p. 93) afirmar que “[...] São eles que chegam
universidades mecanizadas de hoje; eram mais perto do que qualquer outro grupo de
um ponto de encontro de todas as classes serem os fundadores da economia cientifica”.
da sociedade; e elas eram essencialmente Nos escolásticos se encontram importantes
internacionais. reflexões sobre comércio, intercâmbio e preço
justo, além disso, também encontramos em
Segundo Woods Jr. (2005, p. 65), seus escritos as raízes da teoria subjetiva do
valor (SÀNCHEZ-SERNA; ARIAS BELLO,
[...] De fato, entre as contribuições medievais
mais importantes para a ciências moderna 2012).
estava a investigação essencialmente livre Além de se destacarem por fundar a
do sistema universitário, onde os estudiosos teoria das expectativas, a teoria do valor
poderiam debater e discutir preposições, e subjetivo e de escreverem os primeiros
na qual a utilidade da razão humana era tratados sobre a moeda, os escolásticos
tomada como garantia. Ao contrário do
medievais ainda contribuíram, em menor
quadro grosseiramente impreciso da Idade
Média que hoje passa pelo conhecimento
escala, com outros princípios econômicos
comum, a vida intelectual medieval deu cruciais para o desenvolvimento desta ciência
contribuições indispensáveis à civilização (WOODS JR., 2005).
ocidental. Defenderam princípios de liberdade
econômica e mercados desregulados,
Os escolásticos, a despeito do que se pode contribuíram para os estudos referentes
imaginar devido a sua formação religiosa, não a preços e salários e anteciparam teorias
estavam preocupados apenas com questões econômicas, que só foram formalizadas mais
teológicas, eles atuaram nas áreas da filosofia tarde. Compreenderam bem os fenômenos do
e teoria do conhecimento. Juntamente com a capitalismo nascente e, por isso, serviram como
filosofia e a teologia, os escolásticos obtiveram base do trabalho analítico de seus sucessores,
grande sucesso no desenvolvimento das incluindo Adam Smith (CHAFUEN, 2003;
áreas de gramática, retórica, direito civil e SCHUMPETER, 1954).
canônico, navegação e medicina (GRICE- É importante dizer que, apesar de terem
HUTCHINSON, 1952; SCHUMPETER, 1954). tamanha importância para a formação do
A maior parte dos historiadores da pensamento econômico, nunca foi o objetivo
economia afirma que a ciência econômica dos doutores escolásticos criar uma nova
nasceu no século XVIII com Adam Smith e os ciência, estes estavam muito mais preocupados
pensadores concomitantes a ele. Na contramão com questões de cunho moral, todavia,
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Gabriel Estruzani Queiróz de Melo

tendo em vista o fato de que as interações compra e venda destes mesmos recursos, em
econômicas são inerentes à convivência relações mercantis, onde definir o valor deles
humana, era necessário fazer deliberações era fundamental para que cada um, pensando
sobre elas. Porém, existia uma faculdade de em seu interesse individual, maximiza-se
teologia dedicada especialmente a assuntos sua utilidade. Apesar de tão familiar a todas
de interesse econômico, a Universidade de as sociedades, a economia ainda é uma das
Salamanca. Fundada pelo monarca dos reinos ciências mais jovens conhecidas, tornando
de Leão e Galícia, Alfonso IX de León, no difícil oferecer uma definição exata.
ano de 1218. Dentro desta universidade, no Segundo Mankiw (2012, p. 10) “Economia
século XV, nasceu a escola de pensamento é o estudo de como os seres humanos tomam
filosófico, chamada de Escola de Salamanca, decisões em face da escassez. Estas podem
fundada pelo padre Dominicano e teólogo ser decisões individuais, decisões familiares,
escolástico Francisco de Vitória, onde se usava decisões de negócios ou decisões sociais”.
da base intelectual deixada de legado por Apresentando um conceito mais amplo,
seus antecessores escolásticos para defender a Garcia e Vasconcellos (2004, p. 2) definem
teoria do valor subjetivista, o livre comércio e economia como:
o direito à propriedade privada (FABRE, 1998).
É necessário desmistificar a falsa [...] a ciência social que estuda como o
ideia de que o medievo seria uma indivíduo e a sociedade decidem (escolhem)
empregar recursos produtivos escassos
época obscurantista e intelectualmente
na produção de bens e serviços, de modo
repressiva, de pouco desenvolvimento a distribuí-los entre as várias pessoas e
científico e filosófico, pensamento este que, grupos da sociedade, a fim de satisfazer as
infelizmente, segue dominante em grande necessidades humanas.
parte dos ciclos acadêmicos e instituições
educacionais, quando na verdade foi um 1.1.1 A Influência da Filosofia Escolástica
tempo de desenvolvimento político, social, na Formação do Pensamento
tecnológico e científico (HUIZINGA, 1978). Econômico
Ao comentar sobre a evolução do pensamento
O economista teórico Ludwig Von Mises
filosófico do século XII, Le Goff (2003, p. 78)
(2010, p. 325), entretanto, define economia
aponta que “Assim prossegue essa obra de
de forma mais abstrata e filosófica do que
dessacralização da natureza, de crítica do
propriamente técnica, defendendo que “A
simbolismo, prolegômenos necessários a
economia [...] é a teoria de toda ação humana,
qualquer ciência [...]”.
a ciência geral das imutáveis categorias da
ação e do seu funcionamento em quaisquer
1 Desenvolvimento condições imagináveis sob as quais o homem
age”.
1.1 O pensamento econômico
A economia, tanto em seu aspecto
As interações econômicas são intrínsecas filosófico, como em seu aspecto prático, não
à existência da vida em sociedade, uma vez que pode ser definida como ciência da mesma
sempre foi necessário, em alguns momentos maneira que a matemática ou a física o
da história humana mais do que em outros, são, demandando total rigor, exatidão e
manejar recursos escassos. Além disso, as objetividade. Apesar de se utilizar de um
pessoas sempre conviveram com situações de instrumental matemático muito consistente
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DO PENSAMENTO ECONÔMICO

e conter considerável dose de empirismo, No século XVIII, quando o estudo do


ela deve ser analisada do ponto de vista das que viria a se chamar de ciência econômica,
ciências sociais, não das exatas. Na análise começa a tomar proporções inéditas, existem
do pensamento econômico, sempre deve ser duas linhas de pensamento principais que
dada a devida atenção para componentes tentavam a definir, a materialista (ou do bem-
históricos, sociológicos, morais e até mesmo estar), apoiada em sua maioria pelos teóricos
religiosos, que permearam os meios onde ele anglo-saxões e herdeira da fisiocracia, e a sua
se desenvolveu (SCHUMPETER, 1954). opositora, que defendia o conceito da escassez.
Antes mesmo do termo ciência econômica, O conceito do bem-estar tenta medir o
ainda no século XVII, era utilizado o termo progresso econômico pela utilidade criada
“economia política”, que se propunha a pelos processos produtivos, mas essa definição
analisar os aspectos relacionados aos ciclos não se sustenta, uma vez que o estudo da
de produção e comercialização de bens economia leva em conta tanto os preços de
elementares aos homens. Esta abordagem produtos que tem utilidade prática, quanto
manteve-se inalterada até as publicações os que têm apenas utilidade subjetiva. Já o
de Adam Smith. Ela tratava da natureza da conceito da escassez diz que o indivíduo toma
riqueza e da produção, de forma teórica,
decisões de modo a economizar recursos em
sem se preocupar com questões empíricas,
algumas atividades para poder empregar em
era, por assim dizer, o estudo dos esforços
outras, assim definindo o preço das coisas,
humanos para suprir suas necessidades,
baseado na quantidade em que elas existem
medidas em termos de riqueza. O termo
e no quanto são desejadas (ROBBINS, 1932).
“economia política” começou a ser suprimido
a partir do surgimento dos economistas Exatamente por ter uma definição tão
marginalistas, como Jevons e Menger, e foi aberta e subjetiva, existe, ainda hoje, entre
efetivamente abandonado com os neoclássicos os historiadores da Economia, o debate sobre
como Alfred Marshall e Irving Fisher. quando a ciência teve sua gênese. A corrente
Ambas as escolas entendiam o estudo da principal defende que foi com Adam Smith, no
economia como um conhecimento objetivo século XVIII, com sua obra “Uma Investigação
e científico, dependente de seus instrumentos sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das
matemáticos (GENNARI; OLIVEIRA, 2009; Nações” (ou ainda com sua obra anterior:
MENGER, 2017). “Teoria dos sentimentos morais”).
Segundo Robbins (1932, p. 15) Ainda existe um segundo grupo que
defende que a ciência econômica teve seu
O economista estuda a alocação de meios
início com a teoria fisiocrata, representada
escassos. Ele se interessa pelo modo como os
diferentes graus de escassez de bens distintos principalmente por François Quesnay e Anne
fazem surgir diferentes relações de valoração Robert Jacques Turgot, os quais afirmavam
entre eles, e se interessa pelo modo como as que a riqueza das nações derivava das terras
mudanças nas condições de escassez, sejam cultiváveis. Estes, na sua maioria franceses,
elas trazidas por mudança nos fins ou nos se denominavam les economistes, entendiam
meios – pelo lado da demanda ou da oferta –
que a produção de um país era equivalente
afetam essas relações. A Economia é a ciência
que estuda o comportamento humano como a seus recursos agrícolas e que o modo
uma relação entre fins e meios escassos que como o homem transformava a natureza era
têm usos alternativos. mais importante para o desenvolvimento
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Gabriel Estruzani Queiróz de Melo

econômico do que sua relação com seus pares Cantillon, que causou uma revolução no
(ROCHA, 1999). estudo da ciência econômica ao publicar, no
Segundo Marx (1974, p. 26): ano de 1755 sua obra Sobre a natureza do comércio
em geral, que continha percepções sobre valor
Corresponde aos fisiocratas a honra de ter e preço, oferta e demanda e autorregulação
analisado o capital na sociedade moderna.
do mercado, antecipando, em pelo menos 20
Isto lhes dá o direito de se considerarem
como os verdadeiros fundadores da anos, Adam Smith. Este tratado, escrito cerca
moderna economia. Foram os primeiros que de 25 anos antes de sua efetiva publicação, foi
analisaram os diversos elementos materiais o primeiro a apresentar bases organizacionais
em que o capital existe e se manifesta durante e científicas para o estudo da economia (FEIJÓ,
o processo de trabalho. [...] está claro que 2001; IORIO, 2017).
eles não podiam deixar de ver, nas formas
burguesas de produção, formas naturais, mas Thorton (2006) considera que Cantillon
tiveram o grande acerto de conceber essas foi o primeiro economista a analisar com
mesmas formas como formas fisiológicas sucesso a natureza cíclica da economia
da sociedade, impostas pela necessidade capitalista, desenvolvendo o que chamamos
natural da produção ou independentes da hoje de modelo de fluxo circular da riqueza.
política, da vontade etc. Trata-se de leis
Cantillon considerava que o dinheiro e os
materiais.
juros tinham uma natureza autorregulatória,
William Petty (1623-1687), famoso por sua tendendo sempre ao equilíbrio e só podiam ser
proposição de métodos quantitativos para perturbadas por manipulações bancárias ou
estudo das riquezas nacionais, defendia que intervenções monetárias por parte do governo.
existem dois tipos de renda: a da terra e a Ele atacou, por isso, toda a noção de controle
dos juros. A da terra é simplesmente o valor governamental da oferta monetária. Assim
total da colheita, subtraída dos gastos com como Von Mises, defendeu que qualquer
insumos e trabalhadores. A agricultura tinha quantidade de dinheiro é suficiente para o
uma utilidade especial para Petty, pois era a bom funcionamento da economia, já que o
única atividade capaz de gerar excedente para que os indivíduos buscam não é grandeza
o trabalhador. Por outro lado, a renda do juro dos meios de pagamento, mas sim poder de
correspondia ao pagamento pelo risco que compra.
corria o investidor, ao abrir mão de moeda, Murray Rothbard (1995) inclusive
que representava riqueza líquida e certa, para considera Cantillon como o fundador da
aplicá-la em uma atividade onde não havia ciência econômica ao usar o que chama de
nenhuma garantia de retorno, por melhor “praxiologia”, que é uma espécie de estudo
que fossem as perspectivas. Foram nessas econômico baseado em axiomas amplos e
ideias de Petty que os fisiocratas defenderam auto evidentes, deduzidos logicamente, sem
que, somente o trabalho produtivo é capaz necessidade de empirismo. Essa metodologia
de gerar um produto líquido, em especial a praxiológica o permitiu descobrir relações
agricultura, em face da renda com juros, do naturais de causa e efeito na economia de
trabalho com comércio ou com manufaturas. mercado. Justamente essa não necessidade
Estes seriam trabalhos estéreis, que apenas de empirismo permitiu a Cantillon isolar
transferem riqueza, mas não a criam. o fenômeno econômico, utilizando-se de
Outro autor que influenciou os pensa- abstração ou de construção imaginária, para
mentos fisiocrata e clássico foi Richard confeccionar modelos simples, e aceitando que
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DO PENSAMENTO ECONÔMICO

existem variáveis incontroláveis (ou exógenas) Espanholas, apesar de ser importante destacar
a eles e com o benefício do preceito ceteris que pensadores de outras escolas posteriores
paribus (IORIO, 2017). ao final do escolasticismo, como os fisiocratas,
Além das contribuições metodológicas e também tiveram contribuições originais e
sobre a natureza do dinheiro que Cantillon fez, indispensáveis antes do surgimento da
outra marca importante foi deixada: sua visão economia clássica (IORIO, 2017).
evolucionária sobre o papel do empreendedor.
O empreendedor é aquele que toma riscos e 1.2 O pensamento no mundo antigo
gastos certos para, talvez, colher frutos que A despeito dos méritos contidos nas
são incertos, seja esse um empreendedor, defesas de cada corrente sobre o início da
um produtor ou um comerciante. Por isso,
ciência econômica, é seguro afirmar que o
o empreendedor deveria receber mais do
pensamento econômico é bastante anterior
que apenas o valor do produto final, era a
e remonta ao período pré-helenístico,
recompensa que ele recebia por assumir
encontrado inclusive em fragmentos de Tales
riscos. Os empresários estavam vinculados
de Mileto e Xenofonte. Segundo Oliveira e
em reciprocidade com os seus clientes, uma
Gennari (2009, p. 7) “A palavra “economia”
vez que, para vender seus produtos, eram
vem do grego oikonomikos. O termo resulta
clientes de outros empresários, ou seja,
da composição da palavra oikos (que significa
a demanda por produtos é o que define o
casa ou unidade doméstica) com o radical
número de empresários em uma economia.
semântico nem (que significa regulamentar,
Essa definição, apesar de inovadora, é uma
administrar, organizar)”.
claramente derivada da escolástica. O padre
Rothbard (1995, p. 8) segue a mesma linha
Luís de Molina já havia enunciado uma
de raciocínio ao afirmar que “no decorrer do
definição neste sentido, porém muito menos
pioneirismo filosófico, seu filosofar sobre o
rebuscada, em torno de um século e meio
homem e seu mundo produziu fragmentos
antes (IORIO, 2017; SCHUMPETER, 1954).
de pensamentos e ideias político-econômicas
Um grupo minoritário, porém, muito
ou mesmo estritamente econômicas”. Porém,
influente, constituído basicamente por
ele faz um alerta para evitar o erro do
pensadores da escola Austríaca de economia,
anacronismo, segundo ele “ninguém deve
defende que a ciência econômica nasceu, de
ser enganado ao pensar que os antigos gregos
forma difusa e desordenada, com os filósofos
eram “economistas” no sentido moderno”. E
da escolástica, especialmente os escolásticos
conclui:
tardios da universidade Salamanca, como
Friedrich Hayek, que argumentou, ainda É verdade que o termo “economia” é
nos anos 1970, que as bases da economia de grego, proveniente da oikonomia grega,
mercado, e em especial do laissez-faire¸ não são mas oikonomia significa não economia em
nosso sentido, mas “gestão doméstica”, e os
resultado das obras de escritores anglo-saxões
tratados sobre “economia” discutiriam o que
protestantes, como linhas mais tradicionais poderia ser chamado de tecnologia de gestão
da literatura, em especial Max Weber em familiar – útil talvez, mas certamente não
uma das suas mais importantes obras: o que consideramos hoje como economia.
A ética protestante e o espírito do capitalismo,
tendem a defender, mas sim de padres das O alerta de Rothbard é extremamente
ordens franciscanas, esuítas e dominicanas válido, sendo necessário também deixar claro
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Gabriel Estruzani Queiróz de Melo

que os primeiros filósofos pós-socráticos a de riqueza é um fim por si só, não se pretende
abordarem temas de interesse econômico, criar nada com ela, é o caso, por exemplo, do
não estavam preocupados com questões comércio (GENNARI; OLIVEIRA, 2009).
como preços, inflação ou desemprego. Seu Este pensamento de Aristóteles, de
interesse partia da perspectiva ética e do condenar o comércio como força meramente
funcionamento da pólis. especulativa, muito se relaciona com o seu
Durante a era de ouro da filosofia mentor Platão, que acreditava que a função
grega, Atenas experimentava condições da atividade econômica deveria ser promover
sócio-político-econômicas que permitiram o bem-estar e o desenvolvimento da pólis, os
reflexões relevantes para o desenvolvimento bens e riquezas deveriam ser propriedade da
de qualquer pensamento econômico, como pólis e não do indivíduo (ROTHBARD, 1995).
a ampliação do comércio e da liberdade de Confirmando a prioridade que ambos
trocas entre as cidades-Estados da região davam à pólis em detrimento do indivíduo,
(ANTISERI; REALE, 2003). Oliveira e Gennari (2009, p. 7-8) afirmam que:
O desenvolvimento econômico da época
Tanto Platão quanto Aristóteles orientaram a
permitiu que a produção passasse a ser mais atenção para a vida econômica com o objetivo
sofisticada, exigindo especialização dos de extrair normas práticas que garantissem
trabalhadores, segundo Oliveira e Gennari condições de vida adequadas aos cidadãos, o
(2009, p. 8) funcionamento, a harmonia e a estabilidade
política da pólis. Da perspectiva que eles
Essa “especialização” fez com que o homem assumiam, o homem era entendido como
passasse a depender dos demais para obter um conjunto de potencialidades integradas
os artigos de que necessitava, mas não (físicas, produtivas, éticas, artísticas,
produzia. Assim surgiu a necessidade de intelectuais e espirituais) cuja realização
cooperação, e a pólis é o ambiente no qual plena só seria possível na vida em sociedade,
os homens cooperam entre si para produzir isto é, no interior da pólis.
e obter, por meio da troca, os produtos de
que necessitam para viver melhor. Segundo Joner (2015, p. 17)

Para Aristóteles, as dinâmicas sociais Aristóteles compreendia que a felicidade


e de produção se davam no sentido de do Estado era a mesma felicidade dos
proporcionar a sobrevivência do indivíduo e particulares, portanto não poderia haver
felicidade de particulares sem que houvesse a
de se sua família. Ele transforma a natureza e
felicidade da pólis como um todo, afirmando
se relaciona com outros homens para garantir que o melhor governo é aquele que encontra
isso. Aristóteles divide estas dinâmicas em a melhor maneira de viver feliz.
duas categorias: aquisição natural (também
chamada de economia) e aquisição artificial Platão contribui com noções que mais
(também chamada de crematística). A tarde seriam chamadas de divisão social
primeira faz referência à produção em seu do trabalho, mas era inegavelmente hostil
sentido estrito, a capacidade de transformar em relação ao mercado. Na contramão de
a natureza para criar um instrumento, de ambos, os sofistas eram aprazíveis ao mercado
domesticar um animal para desfrutá-lo ou e receavam interferências do governo nele
mesmo de coletar alimentos, já a segunda é a (GENNARI; OLIVEIRA, 2009; SCHUMPETER,
acumulação especulativa, onde a acumulação 1954).
458 A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA ESCOLÁSTICA NA FORMAÇÃO
DO PENSAMENTO ECONÔMICO

É fácil entender o porquê de os primeiros grande parte disso foi adotada pelos países
insights econômicos terem se revelado do Ocidente cristão”. O direito Romano
na Grécia antiga, segundo Schumpeter permitia pouca influência do Estado sobre
(1954, p. 51) “O pensamento grego, mesmo a vida pessoal do indivíduo, inclusive nos
quando mais abstrato, sempre girava em assuntos que tangiam a vida econômica do
torno dos problemas concretos da vida mesmo, em raríssimas vezes arbitrava sobre o
humana”. E completa “[...] o filósofo grego preço dos produtos ou alocação dos recursos
era essencialmente um filósofo político: era privados disponíveis.
da pólis que ele olhava para o universo, e era Nesta linha de raciocínio, Rothbard
o universo – tanto do pensamento como de completa:
todas as outras preocupações humanas que
ele encontrou refletido na pólis”. [...] O preço “justo” (justum pretium) era
simplesmente qualquer preço alcançado
Apesar do evidente destaque que estes
por negociação gratuita e voluntária entre
receberam, não é correto imaginar que o comprador e vendedor. Cada homem
pensamento econômico no mundo antigo tem o direito de fazer o que quer com sua
se resumiu aos pensadores gregos. Os propriedade e, portanto, tem o direito de
pensadores romanos pré-medievais também fazer contratos para distribuir, comprar ou
tiveram sua importante contribuição. Assim vender esses bens; portanto, qualquer preço
como os gregos, os romanos não estavam livremente chegado é “justo”.
exatamente preocupados em resolver
problemas puramente econômicos, seus A cultura jurídica ocidental, especialmente
esforços eram dirigidos para resolver questões nos países latinos, foi formada em grande
centrais do dia a dia da comunidade, que, parte pelo direito Romano, em especial no
por vezes, esbarravam em assuntos da esfera que diz respeito ao direito privado. O direito
econômica. privado Romano considerava a existência
de um direito subjetivo da propriedade, que
Um dos grandes legados que a civilização
era inerente à natureza humana, já que o
Romana deixou para posteridade foi o seu
acúmulo de capital é próprio dela (BARBOSA;
direito, e é justamente em seus códigos de leis
PAMPLONA FILHO, 2004).
que se encontra a maior parte da contribuição
ao pensamento econômico que eles têm a A grande revolução jurídica Romana,
apresentar. no tocante à propriedade privada, consiste
nos bens imóveis. Sociedades mais antigas
O s ju r i st a s roma nos, s eg u ndo
só consideravam a existência de propriedade
Schumpeter (1954, p. 66) “[...] criaram uma
para os bens móveis, tais quais, objetos
lógica jurídica que provou ser aplicável a uma
de trabalho ou de uso pessoal. As terras
grande variedade de padrões sociais – de fato
pertenciam à coletividade, ou ao Estado. Essa
a qualquer padrão social que reconheça a
mesma propriedade era considerada absoluta,
propriedade privada e o comércio capitalista”.
individual, ilimitada e perpétua, tendo sua
E completa: “na medida em que seus fatos
transmissão garantida para seus sucessores
eram econômicos, sua análise era análise
(DEBONI, 2011; VENOSA, 1999).
econômica”.
Segundo Rothbard (1995, p. 31) “os 1.3 Os Escolásticos
direitos de propriedade privada e o laissez-
faire eram, portanto, a herança fundamental É chamada de escolástica, a corrente de
da lei romana até os séculos seguintes, e filosofia medieval que tentava harmonizar
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Gabriel Estruzani Queiróz de Melo

a filosofia grega e a fé Judaico-Cristã deveria ter uma resposta imediata e objetiva.


mediante a recuperação e interpretação dos Só então, os mestres se reuniriam em júri e
escritos clássicos do pensamento Platônico, decidiriam, sempre por unanimidade, se o
Neoplatônico e Aristotélico. De forma mais aluno fazia ou não, jus ao título de doutor
simples, pode-se dizer que são os homens (LE GOFF, 2003).
da ciência no medievo. Era chamada de Sobre a escolástica, Le Goff (2003, p. 123)
escolástica, também, o método universitário afirma que esta era “[...] mestre do rigor,
aplicado em universidades medievais, simuladora de pensamento original na
caso de Bologna, Oxford e Salamanca obediência às leis da razão. O pensamento
(LE GOFF, 2003; SÁNCHEZ-SERNA; ARIAS ocidental ficou marcado para sempre por ela,
BELLO, 2012; SCHUMPETER, 1954). fez através dela progresso decisivos”.
O termo “escolástica” vem do latim Tinham por formação intelectual o
scholasticus, e faz referência ao professor Trivium (gramática, dialética e retórica)
das artes liberais (trivio e quadrívio) e de e o Quadrivium (aritmética, geometria,
teologia ou filosofia que, à época, não raras astronomia e música). As universidades
vezes confundiam- se em um só campo de escolásticas deram um passo essencial
estudos. Os escolásticos começaram a fundar no que se entende por universalização do
suas universidades apenas no século XIII, mas estudo, uma vez que foram elas, iniciando
seu método de ensino já era aplicado desde pela universidade de Paris, que pela primeira
o século V, iniciando por Mânlio Severino vez aceitaram em seus corpos mestres e
Boécio, considerado por historiadores do estudantes de quaisquer classes sociais, não
medievo como “ultimo filósofo Romano apenas da nobreza. Apesar de, em grande
e primeiro escolástico”, em três tipos de parte, serem religiosos, foram os primeiros
escolas: as monacais (anexas a uma abadia), ocidentais a criar um sistema filosófico
as episcopais (anexas a uma catedral) e as metodologicamente independente da teologia,
palatinas (anexas a corte real) (ANTISERI; tornando conhecida no ocidente a metafísica
REALE, 2003). aristotélica (COPLESTON, 1950; ANTISERI;
Conseguir um título de doutor em REALE, 2003).
universidades escolásticas se mostrava um A escolástica não pode ser considerada
grande desafio, o postulante deveria cursar uma escola de filosofia esquematizada, onde
seis anos de artes liberais antes de almejar todos os seus pensadores partem da mesma
cursar filosofia e teologia, onde passaria base e chegam em conclusões similares
pelo menos mais oito anos. Completado sempre. Ela se define como uma filosofia de
este processo de estudos, o mesmo deveria escola, praticada dentro do catolicismo, por
passar por uma avaliação final, que era uma intelectuais que tinham a sua educação formal,
espécie de argumentação oral onde seus em grande parte, uniformizada, dispondo
mestres lhe exigiriam comentar um texto, de conhecimentos comuns e utilizando
geralmente uma passagem bíblica, a luz dos nomenclaturas similares (CARVALHO, 2007).
ensinamentos que lhes foram dados durante Os filósofos escolásticos eram em geral
os cursos. O comentário deveria ser original e religiosos consagrados das ordens Jesuítas
acrescentar ao estudo da Escritura. Terminada e Dominicanas, apesar de existirem alguns
a sustentação oral, o estudante seria exposto exemplos oriundos das ordens Franciscanas
a uma bateria de perguntas para as quais ele e Agostinianas. Em geral, lecionavam moral
460 A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA ESCOLÁSTICA NA FORMAÇÃO
DO PENSAMENTO ECONÔMICO

e teologia nas universidades pontifícias avaliar os efeitos práticos que suas variáveis
e mosteiros. Mânlio Severino Boécio e os de interesse têm na vida dos envolvidos.
escolásticos tardios espanhóis, tidos como, Sendo assim, o economista, além de executar
respectivamente, o primeiro e os últimos a prática do ofício, deve sempre se defrontar
representantes do escolasticismo, estão com o componente ético que o permeia
separados no tempo por um período de onze (JONER, 2015).
séculos, o que não faz com que suas ideias Por exemplo, para São Tomás de Aquino,
percam a consistência. A escolástica não pode a propriedade não se limita apenas a objetos
ser definida na obra de poucos autores, com físicos, o direito inicial de cada pessoa é a
linhas de pensamento individuais, ela é o propriedade sobre si mesmo, o que pode
resultado dos esforços combinados de um ser entendido como sua independência, tal
grupo de intelectuais, organizados dentro “direito de propriedade sobre si mesmo”
da mesma instituição religiosa, por mais advém a racionalidade do gênero humano.
de um milênio, onde cada novo autor que Tal ponderação de Aquino antecipa, em pelo
surgia buscava referenciar seus antepassados menos quatro séculos, as deliberações iniciais
(CARVALHO, 2007). de John Locke sobre direito à propriedade.
Assim como seus antecessores, os Como argumenta Mello (1993, p. 85)
escolásticos não estavam exatamente
interessados em desenvolver uma ciência Para Locke [...] a propriedade já existe no
estado de natureza e, sendo uma instituição
nova, e sim em analisar fatos da vida cotidiana
anterior à sociedade, é um direito natural
sobre o ponto de vista moral, o que inclui do indivíduo que não pode ser violado pelo
interações econômicas. É importante se Estado. O homem era naturalmente livre e
ater para o fato de que as ordens religiosas proprietário de sua pessoa e de seu trabalho
não têm, nem nunca tiveram, o objetivo de [...]. Como a terra fora dada por Deus em
formar economistas. As ordens formavam comum a todos os homens, ao incorporar seu
padres que muitas vezes seriam confessores trabalho à matéria bruta que se encontrava
em estado natural o homem tornava-a sua
de seus fiéis, então era relevante o debate de
propriedade privada, estabelecendo sobre
assuntos econômicos como preço justo, direito ela um direito próprio do qual estavam
a propriedade ou usura, para que o pároco excluídos todos os outros homens.
decidisse se os atos a ele confessados seriam
um pecado ou não. (SCHUMPETER, 1954). Aquino também defende que, em caso de
A análise moral feita pelos padres não existência de proprietário para uma bem,
escolásticos das interações humanas é como terras cultiváveis, o primeiro que nele
fundamental para o desenvolvimento da empreender trabalho e se ocupar, terá direito
ciência econômica, uma vez que esta, é, antes adquirido a sua propriedade, para uso, e seu
de tudo, um problema filosófico, mesmo domínio, para venda (ROTHBARD, 1995).
que repleta de tecnicidade e instrumentos A propriedade, para Aquino, estava
matemáticos sofisticados. Antes de se avaliar justificada porque os indivíduos cuidarão
qual o impacto que instituições fortes de melhor do que é exclusivamente seu do que o
defesa a propriedade têm sobre a atividade que é de uso geral, uma vez que o livre acesso
econômica, deve-se perguntar o que, em si, a um recurso escasso acaba por esgotá-lo, visto
é a propriedade. O estudo econômico não é que ninguém sofrerá diretamente a perda,
um fim em si mesmo, ele deve servir para antecipando, em pelo menos seis séculos,
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia 461
Gabriel Estruzani Queiróz de Melo

o que o economista inglês William Forster dita. De qualquer forma, é inegável que estes
Lloyd disse e o que viria a ser chamado de pensadores do período medieval, além dos
“Tragédia dos comuns”. Outras justificativas escolásticos tardios do século XVII, foram
para a propriedade é que os indivíduos se essenciais na reflexão de temas de interesse
esforçariam mais arduamente para lograr algo econômico, como preço justo, inflação e
para si mesmos do que para a coletividade, impostos.
aumentando sua eficiência, e que a ordem Segundo Oliveira e Gennari (2009, p. 22)
social seria mais facilmente preservada se “A escolástica assumiu a tarefa de realizar essa
as posses fossem distintas (SCHUMPETER, flexibilização do pensamento econômico da
1954). Igreja mediante um conjunto de leis e preceitos
A concepção de Aquino provavelmente morais criados para possibilitar uma boa
deriva da tradição cristã, onde Deus deu ao administração da vida econômica [...]”. Dentre
homem o domínio da terra para que este todas as contribuições que os escolásticos
se utilizasse dos materiais disponíveis na deram para o desenvolvimento, tanto da
natureza para moldá-la, a transformando em ciência, como do pensamento econômico, as
seu lar legítimo. Sobre os aspectos econômicos mais célebres foram as desenvolvidas pelos
pode-se dizer que Aquino compreendeu mais professores da Universidade de Salamanca.
sobre o processo de formação de capital do Os escolásticos não formam um
que sobre a acumulação de riqueza, devido pensamento homogêneo, e nem se pode
a sua confusa definição de usura. esperar isso de uma tradição filosófica que
se inicia no século VI com Mânlio Severino
É neste sentido que aquele grupo de
Boécio e dura até o século XVII, com os últimos
escolásticos, que foram apenas professores
escolásticos espanhóis, também chamados de
de moral e ética, diferentemente de seus pares
escolásticos tardios. Existiam divergências
que se envolveram com estudos sobre moeda,
teológicas, morais e até mesmo artísticas.
valor, ou preço, têm também a oferecer para
Apesar disso, existem elementos comuns que
o desenvolvimento da ciência econômica,
os ligam pelo percurso destes onze séculos.
especialmente no ocidente da terra.
Eram católicos de fé e formação intelectual
Segundo Joner (2015, p. 13) e, baseados nos valores que lhes foram
Através da compreensão do conceito ensinados nos seminários e monastérios,
de prudência em Tomás de Aquino, que defenderam ideais de liberdade e a maior
combinou as observações de Aristóteles autonomia do cidadão em relação ao rei ou ao
e Agostinho, podemos compreender a Estado propriamente dito, pois, segunda sua
pesquisa econômica como portadora de moral, só existe mérito em rejeitar o mal se
valores, já que a sua abordagem é prática e o indivíduo puder escolher não rejeitá-lo, só
não teórica, afinal, a ciência econômica pode há mérito na caridade, se o indivíduo é livre
ser livre-de-valor, mas o economista jamais.
para não fazê-la (ANTISERI; REALE, 2003).
A partir do advento do escolasticismo 1.4 Universidade de Salamanca
fica difícil definir se o que existe é apenas o
pensamento econômico, com alguns insights A universidade de Salamanca, fundada
que derivavam de situações da vida social em 1218, carrega o peso de ser o centro de
(da mesma forma que Gregos e Romanos) ensino superior mais antigo da Espanha, e o
ou se é a ciência econômica propriamente quarto mais antigo da Europa. É mais jovem
462 A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA ESCOLÁSTICA NA FORMAÇÃO
DO PENSAMENTO ECONÔMICO

somente que as universidades de Bolonha, governamental na economia, a imoralidade


Paris e Oxford, fundadas respectivamente em da taxação forçada e a garantia de direitos
1088, 1096 e 1170. Uma característica comum negativos, ou seja, proteção do indivíduo em
que une as quatro é que todas elas foram relação ao Estado.
formadas por clérigos católicos do período Segundo Roover (1995, p. 168)
medieval, em geral professores de moral e
teologia, que compartilhavam das ideias Mais ainda do que os escolásticos medievais,
os Doutores tardios aderiram a teoria de que
escolásticas.
a utilidade era a principal fonte do valor
Apesar de ter sido fundada no século XIIV, e que o preço justo, na falta de regulação
a Universidade de Salamanca passa a receber pública, era determinado pela estimação
maior destaque a partir da contribuição de comum, ou seja, pela interação das forças
Francisco de Vitória, monge Dominicano de demanda e oferta, sem nenhuma fraude,
restrição ou conspiração. Domingos de Soto e
nascido em 1483, que estudou e lecionou
Luís de Molina denunciaram como falaciosa
em Sorbonne, na França, considerado como a lei formulada por John Duns Scotus (1274-
grande fundador do direito internacional, por 1308), de acordo com a qual o preço justo
sua extensa e brilhante obra sobre direitos deveria igualar o custo de produção mais
humanos e a forma adequada de relações um lucro razoável.
entre dois países (JONER, 2015).
Segundo Chafuen (2003, p. 84) apud
Francisco de Vitória era, segundo
Woods Jr. (2010, p. 160), Luís de Molina,
Rothbard (1995, p. 102) “um professor e
teólogo e jurista espanhol, fundador do
palestrante brilhante e altamente influente,
Molinismo (doutrina que afirma que Deus
Vitoria estabeleceu o quadro para a Escola de
tem um controle certeiro e preciso sobre
Salamanca para o resto do século”. E ainda
todas as coisas, porém cede ao homem
completa
liberdade absoluta para agir por si próprio),
Consequentemente, a universidade tinha, argumentava que
pelo menos, 70 cadeiras preenchidas pelos
melhores estudiosos da época, fornecendo O preço justo dos bens não é fixado de
instrução não apenas no currículo medieval acordo com a utilidade que lhes é dada
tradicional, mas também em disciplinas tão pelo homem, como se, caeteris paribus, a
natureza e a necessidade do uso que lhes
novas como a ciência da navegação e a língua
foi dado determinassem a quantidade de
caldeu.
preço [...] Depende da apreciação relativa
que cada homem tem para o uso do bem.
Como a economia ainda não era Isso explica por que o preço justo de uma
uma ciência muito bem definida, os pérola, que só pode ser usado para decorar,
Salamanticienses destacaram-se também é maior do que o preço justo de uma grande
em outras áreas, como a produção filosófica quantidade de grãos, vinho, carne, pão ou
e teológica (especialmente a teoria moral), cavalos, mesmo que a utilidade dessas coisas
além da área legal, dando enfoque para o (que são também mais nobres na natureza)
seja mais conveniente e superior ao uso de
jusnaturalismo e o direito internacional.
uma pérola. É por isso que podemos concluir
A despeito disso, os Salamanticienses que o preço justo para uma pérola depende
continuaram a tradição escolástica de análise do fato de que alguns homens quiseram
econômica ao defender a não interferência conceder-lhe valor como objeto de decoração.
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia 463
Gabriel Estruzani Queiróz de Melo

A resolução de São Tomás de Aquino Francisco de Vitória utilizou o seu


para o preço justo se afasta um pouco de instrumental jusnaturalista para analisar as
outros escolásticos, ao afirmar que este não transformações pelas quais passava a Europa
era qualquer preço acordado livremente entre durante a expansão marítima, especialmente
compradores e vendedores. Mas sim um preço sobre um aspecto que é muito caro a qualquer
específico, suficiente para compensar o serviço economista: a propriedade. Claramente, a
prestado, apesar de não dar bases claras para linha jusnaturalista que se utilizava era
definir qual seria esse preço de recompensa. a teológica, segundo a qual a divindade
Por outro lado, Aquino se reaproxima de onipotente, onisciente e onipresente tinha
seus correligionários ao defender que o agraciado todos os homens, sem exceção,
Estado só poderia interferir na economia em com direitos adquiridos na primazia de sua
caso de absoluta e emergencial necessidade existência e, via de regra, eram mantidos
(GENNARI; OLIVEIRA, 2009). pelo resto da vida, dentre eles se elencam o
Uma das marcas mais expressivas dos direito à propriedade e a liberdade. Por esse
escolásticos era sua inserção na tradição motivo, foi grande defensor dos indígenas
jusnaturalista. Segundo Soares (2008, p. 1) latino-americanos, os quais não poderiam ser
usados como escravos, ter seus bens tomados
O jusnaturalismo se afigura como uma
ou mesmo governados por espanhóis. Mesmo
corrente jurisfilosófica de fundamentação do
direito justo que remonta às representações que não se convertessem ao catolicismo, uma
primitivas da ordem legal de origem divina, vez que professar outra religião, que não a
passando pelos sofistas, estóicos, padres da verdadeira, não constitui motivo para a perda,
igreja, escolásticos, racionalistas dos séculos ou suspensão, dos direitos naturais do homem
XVII e XVIII, até a filosofia do direito natural (VIEJO-XIMÉNEZ, 2004).
do século XX.
Segundo Woods Jr. (2005, p. 140)
O jusnaturalismo se divide em direito [...] Vitória argumentou que o homem não
positivo e direito natural. O primeiro faz era privado do domínio civil por cometer
referência ao fato jurídico em si mesmo, aquele pecado mortal, e que o direito de se apropriar
que existe na prática, processual. Enquanto das coisas da natureza para uso próprio (ou
que o segundo corresponde ao que se chama seja a instituição de propriedade privada)
“direito justo”, que se compõe de um rol de pertencia a todos os homens, independente
direitos dos quais todos os seres humanos são de seu paganismo ou de quaisquer outros
vícios que eles possuam. Os índios do Novo
titulares, são eternos, imutáveis e universais.
Mundo, em virtude de serem homens, eram,
Segundo a doutrina jusnaturalista o direito portanto, iguais aos espanhóis em matéria de
positivo, e todo o processo jurídico, deve direitos naturais. Eles possuíam suas terras
ser elaborado em consonância e respeito ao pelos mesmos princípios que os espanhóis
direito justo. Não se pode dizer, sob hipótese possuíam para eles.
alguma, que o direito natural é uma invenção
do cristianismo medieval, ele é produto Neste sentido, pode-se dizer que Vitória
original da escola estóica, apesar de ter é importante para a conceituação e análise
sofrido profundas modificações e assumido de contratos, uma vez que sua defesa em
suas peculiaridades mais sofisticadas com os relação aos indígenas serve para garantir o
professores Salamanticenses (BOBBIO, 1999; que se pode chamar de segurança jurídica
SABINE, 1945). dos mesmos. Isso, de forma que nenhum
464 A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA ESCOLÁSTICA NA FORMAÇÃO
DO PENSAMENTO ECONÔMICO

humano perde sua condição de detentor de deveria ser uma forma de reproduzir, na
seus direitos naturais. Essas considerações de medida do que fosse possível, a justiça divina
Vitória ecoam até mesmo nos estudos mais (SOARES, 2008).
modernos. A Nova Economia Institucional,
por exemplo, que é uma abordagem que 1.5 Teoria Monetária
tenta combinar diferentes disciplinas
A moeda surge no contexto da
como economia, direito e ciências políticas,
especialização dos indivíduos e do progresso
considera os contratos como uma instituição
econômico, como uma substituição do
formal indispensável para a funcionalidade
escambo, uma vez que, em uma economia
e a eficiência de qualquer mercado. Além
complexa com bens intangíveis, é inviável
disso, estes contratos devem ser estáveis, onde
uma troca direta. Além disso, ela serve como
todos os agentes têm certeza de quais são
facilitadora das trocas, uma vez que nada mais
suas obrigações e direitos, e estes devem ser
é do que uma mercadoria de desejo comum.
protegidos. Modo muito similar à segurança
Sem a presença da moeda, seria necessária
jurídica pregada por Vitória para os indígenas
uma dupla coincidência do escambo. O
(MACEDO, 2012; PONDÉ, 2007).
proprietário do bem A, que deseja possuir
Ainda sobre o conceito de propriedade, o bem B, deve encontrar algum proprietário
defendido por Vitória, que a considera um de bem B interessado em trocar pelo bem A.
direito intrínseco à existência humana e não Além de ser claramente um estorvo para os
uma convenção social, é importante ressaltar a transacionadores, este sistema representaria
diferença entre domínio e uso da propriedade um atraso para o desenvolvimento econômico,
privada, aquele deveria sempre ser particular, uma vez que, em grande parte, só seriam
enquanto este pode ser público. Isto significa produzidos os bens de maior valor unitário
que, em caso de necessidade extrema, uma (LOPES; VASCONCELLOS, 2008).
pessoa, que não é proprietária de algo, pode Milton Friedman (1992, p. 23) apud
se utilizar dele em benefício próprio ou de Matias-Pereira (2010, p. 13), de uma perspectiva
algum terceiro. Como no exemplo de uma clássica, define como:
tragédia natural, onde a propriedade de
algum indivíduo poderia ser utilizada por moeda é tudo aquilo que é aceito por todos
outro que sofresse graves riscos, cabendo em troca de bens e serviços – aceito não
como um objeto para ser consumido, mas
a este restituir financeira ou materialmente
como um objeto que representa um conteúdo
o dono legítimo, uma vez que, durante a temporário de poder aquisitivo a ser usado
catástrofe, o que foi perdido foi o uso, mas para comprar outros bens e serviços.
não o domínio. E é exatamente por este motivo
que a propriedade poderia ser utilizada por Já Assaf Neto (2003, p. 34), sob uma
este indivíduo em perigo, mas não poderia perspectiva moderna do que é a moeda, define
ser vendida por ele, já que isto configuraria como “um meio de pagamento legalmente
transferência de domínio (JONER, 2015). utilizado para realizar transações com bens
Como se faz claro, os escolásticos não e serviços. É um instrumento previsto em lei
abriam mão de seus valores morais na e, por isso, apresenta curso legal forçado. Ou
elaboração de sua atividade intelectual, sendo seja, sua aceitação é obrigatória”.
assim, o jusnaturalismo medieval assume Para Keynes, a moeda tinha a função de
contornos de teologia cristã. A justiça humana ser unidade de conta, meio de pagamento e
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia 465
Gabriel Estruzani Queiróz de Melo

reserva de valor, o que nada mais é do que Essa amplamente desejada, commodity,
uma atualização das ideias já concebidas por qualquer que seja, deve, portanto, primeiro
Aristóteles. Já Marx, defende que a moeda ser valorizada por seu papel na satisfação de
desejos não monetários. Deve ser facilmente
funcione como uma medida universal de
portátil e divisível e ter alto valor por
valor e controladora dos preços, meio de unidade de peso, de tal forma que pequenas
entesouramento, meio de pagamento e deveria quantidades sejam valiosas o suficiente para
apresentar uma característica universal, facilitar quase qualquer transação.
fazendo se tornar irrelevante a origem dos
transacionadores. Modernamente, a visão Jean de Buridan teve um aluno que
Keynesiana é a mais aceita. Já os atributos alcançou tanto destaque quanto o mestre
necessários à moeda são: baixo custo de na formulação da teoria monetária e foi
transação e estocagem, estabilidade do valor, significativamente mais bem sucedido na
ser relativamente escassa, com elasticidade sua vida religiosa, chegando ao posto de
de produção próxima a zero (AMADO, 2000; bispo de Lisieux. Este foi Nicolas Oresme, que
MOLLO, 1993; LOPES; VASCONCELLOS, escreveu, na década de 1350, seu Tratado sobre
2008). a Origem, a Natureza, o Direito e as Alterações do
Jean de Buridan (1300 – 1358), teólogo Dinheiro, onde aplicava os ensinamentos de
e filósofo francês, é considerado por grande Buridan ao caso concreto da coroa francesa
parte dos historiadores da economia como (ROHTBARD, 1995).
o fundador da teoria da moeda. Seu tratado Segundo Rothbard (1995, p. 75):
sobre o dinheiro é tido por muitos como
a contribuição mais importante da Oresme
o pioneiro no que se trata de explicar um
para a teoria monetária foi enunciar
problema de natureza econômica, que incluía claramente, pela primeira vez, o que veio
análise sobre o fluxo do dinheiro entre países e a ser chamado de “lei de Gresham”, isto
também sobre a paridade do poder de compra é, a percepção de que, se duas ou mais
em reinos que usavam moedas diferentes. moedas forem legalmente fixados em valor
A visão de Buridan sobre dinheiro se relativo pelo governo, então o dinheiro
sobrevalorizado pelo governo expulsará o
assemelha muita mais a perspectiva clássica
dinheiro subavaliado da circulação.
do que a moderna, segundo Woods Jr. (2005,
p. 154): Oresme também considerava que a
Buridan mostrou como o dinheiro surgiu moeda tinha duas funções: Ser unidade de
livre e espontaneamente no mercado, medida para facilitar as trocas de bens e
primeiro como uma mercadoria útil e depois serviços e de servir como reserva de valor
como um meio de troca. Em outras palavras, para o detentor ou para o reino. Considerava
o dinheiro emergiu não por decreto do que a moeda poderia existir sem prejudicar
governo, mas por meio do processo de troca
a eficiência do mercado em qualquer
voluntária, que as pessoas descobrem ser
dramaticamente simplificada pela adoção de
quantidade, antecipando Richard Cantillon
uma mercadoria útil e amplamente desejada em 4 séculos, desde que fosse o suficiente
como meio. para possibilitar que todas as trocas de uma
economia acontecessem. Considerava que
Buridan inclusive define como a moeda o uso da moeda era uma convenção social
deve ser fisicamente. Ainda segundo Woods e precisava atender certos requisitos para
Jr. (2005, p. 155): continuar sendo admitida pelos usuários
466 A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA ESCOLÁSTICA NA FORMAÇÃO
DO PENSAMENTO ECONÔMICO

e enumerou condições para que uma se com valor estável, para que ele seja um
moeda fosse valorizada. Em sua visão, ela meio de troca confiável e não prejudique os
deveria ser fabricada em material durável, outros preços relativos existentes na economia
ter aparência facilmente identificável, ser (JONER, 2015). Aquino também defende que
amplamente aceita por quem usa e respeitar a moeda tem valor apenas para transações
os costumes comerciais dos usuários. Para que e não um valor intrínseco, porque não tem
a moeda possa ser facilmente identificável, utilidades práticas, como servir de matéria-
Oresme considera que ela deve ser feita de prima para algum produto. Além disso, ela
um material específico, o qual não deve pode ser usado como meio de enriquecimento
ser alterado frequentemente. Nela também do usuário, por ser uma boa reserva de valor.
deve ser impressa uma imagem ou figura Contudo, criar valor definitivamente não se
que identifique o reino de sua cunhagem e encontrava entre uma das funções naturais
que seja expresso, na própria moeda, o seu da moeda, visto que ela é um simples meio
valor nominal. A ampla aceitação da moeda de troca, valorada apenas em convenção
é especialmente importante pois permite dos agentes que a manuseiam. Para ele, a
uma medida comum para diferentes bens, moeda não tem poder de medir diretamente
estipulando uma noção de justiça distributiva a utilidade dos bens, esta era medida pelo
e também porque permite uma maior julgamento pessoal do detentor da moeda
especialização de bens e serviços uma vez (GENNARI; OLIVEIRA, 2009; JONER, 2015).
que o escambo só permite a troca de bens de Segundo Woods Jr. (2005, p. 156):
primeira necessidade, de forma direta.
Na ausência de moeda, o proprietário do Oresme também concluiu sobre os efeitos
bem A teria que encontrar um proprietário destrutivos da inflação. A degradação pelo
governo da unidade monetária não serve
do bem B que desejasse fazer essa troca.
para um bom propósito, explicou ele. Isso
Na presença de moeda, o proprietário do interfere no comércio e aumenta o nível geral
bem A pode trocar com qualquer um que de preços. Isso enriquece o governo às custas
tenha essa unidade de medida de valor para do povo. Idealmente, ele sugeriu, o governo
depois trocá-la pelo bem B. Assim, sendo não deveria interferir no sistema monetário.
a existência e a ampla aceitação da moeda
fatores que permitem que existam bens ou Oresme também considerou o valor da
serviços intangíveis, como um serviço de moeda no tempo ao afirmar que a função
assessoramento ou contabilidade, onde, em de reserva de valor serviria, entre outras
termos físicos, nada é produzido (CUSTÓDIO, coisas, para transferir poder de compra
2015). do presente para o futuro, uma vez que o
A crítica das ações governamentais no processo inflacionário faria os preços relativos
processo monetário é frequente em escritos se alterarem (CUSTÓDIO, 2015).
de toda a escolástica. Os filósofos dessa escola Com a descoberta das Américas, no
sempre olharam com muita desconfiança para século XV, iniciou-se um processo que veio
o processo de multiplicação de moeda e de a culminar na alta generalizada dos preços na
desvalorização da mesma, usando metal de Espanha do século XVII, decorrente da massiva
qualidade inferior na sua produção. Aquino, entrada de metais preciosos, especialmente
especialmente, defende que a moeda não pode a prata, do novo mundo na economia local.
ser criada a bel prazer do rei, ela deve manter- Martin de Azpilcueta (também conhecido
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia 467
Gabriel Estruzani Queiróz de Melo

como Doutor Navarro), destacado professor e. Decisões tomadas pelas autoridades em


salamanticiense, foi um dos primeiros a, relação ao contexto onde a moeda circulava
observando a situação que começava a se ou mudanças na relação entre o valor legal
desenhar na Espanha, especular sobre os e o valor intrínseco;
efeitos que um aumento na quantidade moeda f. A diversidade do tempo;
causariam na economia. Segundo Rothbard g. A falta e a necessidade de dinheiro;
(1995, p. 106), Azpilcueta argumentava que: h. A presença ou ausência de diferentes
moedas.
Toda mercadoria torna-se mais cara quando
é muito procurada e tem pouca oferta, e Outro escolástico a tentar definir o valor
esse dinheiro, na medida em que pode da moeda foi o professor da Universidade de
ser vendido ou trocado por alguma outra Valência, Francisco Garcia. Para ele, o valor
forma de contrato, é mercadoria e, portanto,
do dinheiro é dado por uma combinação de
também torna-se mais caro quando está em
grande demanda e falta de oferta. três fatores: a oferta de dinheiro disponível;
a intensidade da demanda por dinheiro e a
Ao analisar comparativamente Espanha segurança apresentada pelo dinheiro. Pode-
e França, Azpilcueta (2004, p. 189) afirma: se inferir aqui que, quando usa o termo
“segurança do dinheiro”, Garcia se refere a
Assim, através da experiencia podemos não perda de poder de compra da moeda
perceber que, na França, quando a moeda é no tempo, o que chamaríamos de inflação.
mais escassa que na Espanha, o pão, o vinho, (ROTHBARD, 1995).
as roupas, e o trabalho, valem muito menos.
E até mesmo na Espanha, quando em tempos Uma prática muito comum na Idade
a moeda é escassa, os bens à venda, assim Média, que também não escapou das críticas
como o trabalho, custam muito menos do dos escolásticos, era a degradação monetária,
que após o descobrimento das índias, que que consistia em o monarca subtrair metal
inundaram o país com ouro e prata. A razão nobre das moedas em circulação para colocar
para isso é que o dinheiro vale mais onde algum metal de menor qualidade, de modo a
e quando é escasso, do que onde e quando
criar mais moeda em uma tentativa de expandir
é abundante. O que alguns homens dizem
a base monetária. Algo que configuraria um
que a escassez de moeda reduz o preço dos
produtos, surge do fato de que o aumento processo de senhoriagem, implicando em um
excessivo do valor do dinheiro faz com imposto oculto. O escolástico, Jesuíta Juan
que as outras coisas pareçam mais baratas. de Mariana, considerava que a cobrança de
Exatamente como quando um homem qualquer imposto sem o consentimento do
baixo fica ao lado de um homem mais alto, cidadão era imoral.
parecendo menor do que quando fica ao lado
Ainda que os impostos fossem consentidos
de um homem da mesma estatura que a sua.
pela população, Mariana defendia que a estes
Segundo Azpilcueta (2004, p. 188-189), deveriam estar estruturados de uma maneira
existem oito fatores que afetam o valor da que hoje chamaríamos de carga tributária
progressiva, pois deveriam se concentrar
moeda, são eles:
principalmente na renda e minoritariamente
a. A inexistência de moedas do mesmo metal; no consumo. Ainda assim, na tributação sobre
b. Diferentes valores dos metais; o consumo, os bens de luxo deveriam ser
c. Diferentes formas e pesos; taxados com maiores alíquotas, enquanto
d. A diversidade da terra em que circulavam; os bens básicos para a sobrevivência mais
468 A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA ESCOLÁSTICA NA FORMAÇÃO
DO PENSAMENTO ECONÔMICO

modicamente, de forma a melhorar a real em relação à moeda, o fez considerar


distribuição de renda (LAURES, 1928). que, em alguns casos (como quando o rei
Segundo Huerta de Soto (2013, p. 36) absorve grandes vantagens pecuniárias
Mariana argumentava que “Tampouco pode o rebaixando o valor da cunhagem), poderia ser
rei – e este é um dos aspectos mais importantes aconselhável a utilização de moedas feitas de
do livro da Mariana- obter ganhos pela via outros matérias, como couro ou papel (IORIO,
de reduzir o conteúdo de metal nobre nas 2017; LAURES, 1932).
moedas que os cidadãos usam com dinheiro”, Mariana analisa, até mesmo, as vantagens
já que ele havia concluído que “a redução e desvantagens da inflação. Para ele, em
de material nobre nas moedas e, portanto, situações onde os preços estão se elevando, no
o aumento no número das mesmas é uma curto prazo, haverá uma maior abundância do
forma de inflação (mesmo que este termo não dinheiro, o que leva a um aumento da oferta
fosse utilizado na época), que inevitavelmente de empréstimo e uma diminuição dos juros.
levará a um aumento dos preços”. Mariana foi A diminuição dos juros aumenta a atividade
pioneiro na compreensão do que mais tarde produtiva, sendo assim, haverá uma maior
seria chamado de senhoriagem. procura por trabalho e o desemprego será
De Monetae Mutatione, de Mariana, é um menor, em suma, no curto prazo, uma menor
dos primeiros tratados que se tem notícia taxa de desemprego está associada a uma
sobre dinheiro. Nele, o padre acusa o rei maior inflação. O economista neozelandês
Felipe III da Espanha por degradar a moeda William Phillips, ao desenhar sua famosa
nacional ao diminuir o seu peso em cobre e curva cerca de 400 anos depois, chegaria a
aumentar seu valor de face sem justificativa mesma conclusão, apesar de se utilizar de
alguma. Mariana afirmou que esta degradação um instrumental muito mais sofisticado
monetária prejudicava o comércio, uma vez (LAURES, 1928).
que as partes envolvidas nas trocas passavam É importante ressaltar, ainda, que
a desconfiar da moeda e, por isso, aumentavam as reflexões de Mariana não tinham por
os preços. Ao mesmo tempo, a degradação era objetivo uma análise numérica ou utilitarista.
uma forma de roubar o cidadão, pois ele via Inspirado pelo pensamento de São Tomás de
seu poder de compra diminuído em favor do Aquino, empreendia sua pesquisa econômica
Rei. Mariana argumenta que há dois valores tendo em vista uma melhora do bem-estar
para o dinheiro, o natural (intrínseco) e o legal geral. Exemplo disso é seu estudo sobre a
(extrínseco), o primeiro equivale a quantidade desvalorização da moeda criada pela entrada
e a qualidade do metal que compõe a moeda, de metais na Europa, originários do Novo
o segundo é fixado pela autoridade estatal. Mundo, onde defendia que a desvalorização
Ele argumenta que os dois valores devem deveria ser combatida enfaticamente, pois sua
ser os mais próximos possíveis, porque, do presença aumentava os preços, encarecendo o
contrário, os compradores e vendedores custo de vida dos súditos do rei, especialmente
poderiam suspeitar de degradação da moeda, dos mais pobres (JONER, 2015).
tendo como consequência a inflação. Apesar Thomas de Vio (1469-1534), também
de ser um metalista, o que é inteiramente conhecido como Cardeal Caetano, foi um
compreensível, visto que Mariana viveu frade dominicano e exegeta de origem italiana,
durante o auge do mercantilismo, esta que ficou marcado na história por ser o grande
desconfiança, para com o trato da autoridade opositor de Martinho Lutero, defendendo a
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia 469
Gabriel Estruzani Queiróz de Melo

doutrina romana frente a iminente revolta de atacar os ganhos obtidos com cobranças de
protestante. Porém, não só no campo teológico juros, apresentou uma defesa das transações
Caetano obteve destaque, no início do século cambiais como forma de lucro. Para ele, o
XV, escreveu sua Magnum opus, intitulada dinheiro não tinha apenas a função de meio
De Cambiis, onde, segundo Woods Jr. (2005, de troca de bens, eles poderiam ser trocados
p. 157): entre si mesmos e por diferentes preços,
uma vez que o valor da moeda não pode ser
[...] apontou que o valor do dinheiro
definido por uma lei, mas sim pelo peso e
no presente poderia ser afetado pelas
material com a qual as mesmas tenham sido
expectativas em relação ao mercado no
futuro. Assim o valor do dinheiro no presente fabricadas. Bonini foi um dos primeiros a
poderia variar se as pessoas esperassem observar que a demanda por dinheiro pode
certos eventos de grande impacto no futuro, variar, e de fato varia, com o decorrer do
como doenças e guerras. tempo. Assim, a moeda pode sofrer mudanças
de valor, mesmo que fisicamente permaneça
Segundo Rothbard (1995, p. 100), Caetano a mesma, podendo também ter alterações em
em sua obra De Cambiis: seu preço relativo, se comparadas com outras
moedas estrangeiras (ROTHBARD, 1995).
estabeleceu a defesa mais completa e
incondicional ainda escrita do mercado Um dos discípulos de Bonini foi São
cambial [...] Ele mostrou claramente que o Bernardino de Siena, o qual seguiu os passos
dinheiro é uma mercadoria, particularmente do mestre ao defender o mercado cambial,
quando se deslocam de uma cidade para uma vez que as transações cambiais eram
outra e, portanto, está sujeito às leis de
conversões de moeda e não empréstimos, não
demanda e oferta que regem os preços das
sendo, portanto, como a proibida usura. Para
commodities.
Bernardino, o mercado cambial deveria ser
Além disso, Caetano demonstrou que defendido, inclusive pela Igreja, pois somente
era impossível a existência do comércio assim seria possível a existência do comércio
internacional sem o mercado de câmbio e que exterior, uma vez que a cunhagem de um
o mesmo era completamente lícito. A retórica reino certamente não seria aceita em outros.
é simples. Caetano considerava que o papel É conveniente lembrar que tanto Bonini
do comerciante era legítimo. Então, como (1270 – 1314) como São Bernardino (1380 –
a moeda nada mais é do que um produto 1444) antecedem os pós-escolásticos, que só
comercializável, o trabalho do banqueiro de surgiram depois do século XV (ROTHBARD,
câmbio também é legítimo. No mercado de 1995).
câmbio, como nos outros, o preço justo para
1.6 Teoria do Valor
uma moeda era aquele livremente acordado
entre compradores e vendedores. (IORIO, A contribuição mais importante dos
2017). escolásticos para o desenvolvimento da
Mas, antes mesmo de Caetano, outro economia é também a característica que
teólogo escolástico já tinha redigido uma os diferencia da maior parte das correntes
defesa do mercado de câmbio. O padre econômicas existentes até o momento (e
Franciscano Alexander Bonini, professor da também parte das futuras). Os escolásticos
Universidade de Paris, durante os séculos XIII acreditavam que o valor dos bens e serviços
e XIV, em sua obra Tratado sobre a usura, apesar derivavam de fatores subjetivos e não de
470 A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA ESCOLÁSTICA NA FORMAÇÃO
DO PENSAMENTO ECONÔMICO

fatores objetivos. Segundo Joner (2015, p. 37), produto (quanto maior a oferta), por outro
“os doutores notaram que o valor dos lado, menor o valor e o preço.
bens possuía um caráter subjetivo, que
impossibilitava uma mensuração uniforme Na mesma linha de raciocínio, Chafuen
de um determinado bem pela população como (2003, p. 84) argumenta que o Cardeal
um todo”. Jesuíta Juan de Lugo havia desenvolvido
um argumento original em favor do valor
Segundo Joner (2015, p. 32):
subjetivo:
Vitória analisou o valor dos bens no mercado
a partir de uma lei natural e não de uma o preço flutua não por causa da perfeição
justificação objetiva. Para ele, “quando intrínseca e substancial dos artigos – uma
Pedro vende trigo, o comprador não precisa vez que os ratos são mais perfeitos que o
considerar o dinheiro gasto por Pedro ou o milho, mas valem menos – mas por sua
seu trabalho, mas sim a estimação comum utilidade em relação à necessidade humana
de quanto vale o trigo. e somente por causa da estimativa seu preço
é muito maior. E devemos levar em conta
Segundo Woods Jr. (2005, p. 158) não só a estimativa de homens prudentes,
mas também da imprudência, se eles são
“influenciados em parte pela própria análise
suficientemente numerosos em um lugar.
e em parte pela obra de Santo Agostinho “A [...] A estimativa comunitária, mesmo que
Cidade de Deus”, esses pensadores católicos tola, aumenta o preço natural dos bens, já
compreenderam que o valor deriva não de que o preço é derivado da estimativa.
fatores objetivos como o custo de produção
ou o montante de trabalho empregado, mas Para Tomás de Aquino, no momento
da valoração subjetiva que os indivíduos dão”. de definir o valor subjetivo que dá a
Em consonância, Joner (2015, p. 25) afirma determinada mercadoria, o homem pondera
que Agostinho “[...] foi o primeiro a avaliar o trabalho efetuado pelo comerciante, e não
que o valor e o preço de um determinado só pelo produto, bem como o risco que este
bem são baseados na utilidade deste para o comerciante assume para poder transportar
homem”. Porém, antes mesmo dos escolásticos os bens de um reino ao outro. É importante
tardios espanhóis, já existia dentro da corrente reforçar que Tomás de Aquino viveu no século
de pensamento, um seleto grupo que defendia XIIV, na região do Lácio, onde foi fundada a
os fatores subjetivos como determinantes do cidade de Roma, capital do império, e estava
preço. Um dos mais destacados foi Jean Pierre inserido no contexto de uma economia
Olivi, teólogo franciscano do século XIIV. feudal, onde grande parte do comércio se
Segundo Rothbard (1995, p. 60): dava nos burgos. Ou seja, do lado de fora
das muralhas que protegiam as cidades, por
[...] em dois tratados sobre contratos,
pessoas, em geral, de menor poder aquisitivo,
um sobre usura e outro sobre compras e
vendas, apontou que o valor econômico que enfrentavam riscos como saqueadores e
foi determinado por três fatores: intempéries (WOODS JR., 2005).
escassez (raritas); utilidade (virtuositas); Segundo Rothbard (1995, p. 52-53):
e desejabilidade (complacibilitas). O efeito
da escassez, ou o que agora chamaríamos São Tomás era claramente um Aristotélico
de “oferta”, é claro: quanto mais escasso ao adotar a visão incisiva deste último de
é um produto, mais valioso é, e, portanto, que o determinante do valor de troca era a
maior o preço. Quanto mais abundante o necessidade, ou utilidade, dos consumidores,
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia 471
Gabriel Estruzani Queiróz de Melo

expressa em sua demanda por produtos [...]. dependia da quantidade relativa de trabalho
Além disso, na Summa, Tomás de Aquino aplicada a sua produção. Ele acreditava que
observa a influência da oferta e da demanda deveria haver uma “mercadoria padrão”, a
nos preços. Uma oferta mais abundante em
qual seria uma medida de todas as outras, esta
um lugar tenderá a baixar o preço naquele
lugar e vice-versa. “mercadoria padrão” deveria ter um preço
que não variava de acordo com outros preços
A teoria do valor subjetivo está ou com os salários dos trabalhadores, pois a
diametralmente em oposição com a teoria sua produção necessitaria de uma quantidade
do valor objetivo. Por influência dos clérigos de trabalho aplicado eternamente invariável.
católicos, a teoria subjetivista encontrou Todos os esforços de Ricardo para encontrar
mais respaldo na própria Espanha, mas esta mercadoria foram frustrados.
também na Itália e, principalmente, na Para Adam Smith, o preço real dos
França, influenciando os pais da Fisiocracia: produtos era uma função da quantidade
François Quesnay e Anne Robert Jacques de trabalho necessário para sua produção
Turgot. Já a teoria objetivista do valor, e a quantidade de trabalho necessário para
encontrou espaço em países que foram mais poder comprá-lo. A riqueza, portanto, é
fortemente influenciados pelo protestantismo, uma relação sobre quanto domínio sobre
como o Reino Unido e Alemanha. O valor o trabalho alheio o indivíduo tem. Assim,
objetivo foi tão determinante na formação dos o preço de alguma mercadoria representa
economistas destes países que se converteu uma quantidade de riqueza equivalente às
em parte indissociável dos trabalhos de horas de trabalho necessárias para obtê-
Karl Marx, Adam Smith e Davi Ricardo, por la. Stuart Mill também considerava que o
exemplo. trabalho era o principal fator para se definir
Segundo Woods Jr. (2005, p. 161): o preço das mercadorias, mas não o único.
Para ele, também eram relevantes o valor
A teoria do valor subjetivo também equivale dos instrumentos de produção utilizados e
a uma refutação direta à teoria do valor do a quantidade de capital empregada, assim,
trabalho, mais intimamente associada a
o trabalho só poderia ser o único valor a
Karl Marx, o pai do comunismo. [...] Esse
valor econômico objetivo foi baseado no
afetar os preços se as quantidades de capital
número de horas de trabalho que entraram fossem idênticas em todas as indústrias.
na produção de um bem em particular. O que havia em comum em todas essas
análises é que elas consideravam que os
Woods Jr. (2005, p. 163) ainda completa preços poderiam ser determinados por fatores
“os economistas franceses e italianos, objetivos (CARCANHOTO, 1991; OLIVEIRA;
influenciados pelos escolásticos, mantiveram, SCOVILLE, 2014).
em geral, a posição correta; foram os A teoria do valor-trabalho divide a
economistas britânicos que divergiram tão produção entre trabalho produtivo e trabalho
tragicamente em linhas de pensamento que não produtivo. O primeiro é o simples processo
culminaram em Marx”. de transformação dos elementos disponíveis,
Apesar de apresentar a formulação mais onde existe produção de valor de uso. Em
desenvolvida do valor trabalho, Marx não foi o suma, é o trabalho que produz mais-valia para
único teórico a tratar do assunto. David Ricardo o capitalista, que valoriza monetariamente
considerava que o valor de uma mercadoria o produto. Porém, este trabalho produtivo
472 A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA ESCOLÁSTICA NA FORMAÇÃO
DO PENSAMENTO ECONÔMICO

não é necessariamente material, um mestre subjetivos e sem necessariamente seguir uma


que ensine um ofício para um estudante, na determinada lógica (o valor pode ser dado
intenção de enriquecer o capitalista que for por paixões transitórias, por exemplo), além,
usar seu trabalho futuramente também é um da raridade deste produto no mercado, e da
trabalho produtivo. Já o trabalho improdutivo teoria do valor-trabalho, onde a mercadoria
é aquele que pode fazer a transferência de pode ser valorada mediante fatores objetivos
renda, mas não cria riqueza diretamente por e que respeitam sempre uma mesma lógica
transformação dos elementos disponíveis, é, de mensuração, como horas despendidas na
por exemplo, o comércio, onde um indivíduo produção (GENNARI; OLIVEIRA, 2009).
compra um determinado produto a um preço São Bernardino de Siena, sacerdote
mais baixo e, por meio de especulação, o vende franciscano, que viveu entre os séculos XIV
a um preço mais alto. Nenhum valor foi criado e XV, deu continuidade as ideias de Olivi
neste processo, mas o comerciante está mais e as aprofundou, quando aplicou as suas
rico. Outros trabalhos improdutivos são a ideias de valor subjetivo ao “salário justo”,
contabilidade, as atividades administrativas porque, na sua visão, o salário era apenas
ou o próprio trabalho despendido no processo mais uma mercadoria, que teria seu “preço
de criação de moeda física (MARX, 1984). justo” definido pela livre interação entre
Para Gennari e Oliveira (2009, p. 46), a compradores e vendedores. Segundo Rothbard
mais-valia pode ser entendido de maneira (1995, p. 83), Bernardino argumentava que:
mais simplificada como “o valor criado por
Os salários são o preço dos serviços
uma jornada de trabalho é constituído de trabalhistas [...] e, portanto, o salário
duas partes: uma que remunera o trabalhador justo ou de mercado será determinado
e outra que constitui o excedente, o trabalho pela demanda por mão-de-obra e pelo
não pago, parcela que Marx denominou fornecimento disponível de mão-de-obra
posteriormente mais-valia”. no mercado. A desigualdade salarial é uma
função das diferenças de talento, habilidade
Saber o conceito de trabalho produtivo é e treinamento.
importante, neste ponto, pois assim é possível
chegar ao cerne da teoria do trabalho objetivo: Em uma tentativa de complementar
a grandeza de valor de uma mercadoria pode Bernardino, Francisco de Vitória reafirma
ser medida pela quantidade de valor agregado que, para bens sem um mercado comum, com
a ela, atribuída pelas horas de trabalho poucos compradores e vendedores, os preços
produtivo gastas em sua confecção. Porém, deveriam ser negociados individualmente,
o trabalho que agrega valor para Marx (e que sendo determinados pelas duas partes
pode ser considerado como produtivo) é o do câmbio. O mesmo se aplica para itens
abstrato, que é aquele destituído de qualidade, “luxuosos”, uma vez que o comprador está
ou valoração subjetiva, e que pode ser medido usando de seu livre arbítrio para despender
por tempo. uma voluptuosa quantidade de dinheiro em
O valor de um produto, então é medido algum bem que não é necessário, ou pode ter
pela quantidade de horas gastas por todas um substituto mais barato. Porém, quando se
as partes envolvidas na produção de bem. tratam de itens básicos para a sobrevivência
Fica bem claro assim, a oposição das ideias e manutenção da dignidade humana, Vitória
escolásticas sobre valor, onde este deriva das argumenta que não pode ser cobrado um preço
preferências e desejos do consumidor, todos qualquer pelo vendedor, pois o comprador não
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia 473
Gabriel Estruzani Queiróz de Melo

estaria completamente livre de coerção, ele A crítica de Aquino a Usura está longe de
deve comprar para sobreviver, então nestes existir em um sentido estritamente econômico,
casos, é admitida interferência externa (o ela é mais de caráter moral. Para ele, o trabalho
que pode ser entendido como interferência mecânico, ou mesmo, o intelectual tem valor
estatal) na determinação do preço justo do positivo e se afastar deles poderia representar
item. (ROTHBARD, 1995). riscos a alma humana, como o pecado capital
da avareza. Além disso, Aquino considerava
1.7 Mercado, comércio e usura que lucrar com empréstimos configurava
uma imoralidade, uma vez que, para ele, o
Os filósofos católicos medievais, em dinheiro é totalmente consumido pelo seu
grande parte, sempre se demonstraram contra proprietário em uma troca, assim o direito
o que se chamava de usura. Mas, apesar de de uso e o direito de domínio do dinheiro
serem os mais lembrados por essa condenação, são a mesma coisa. Então, cobrar juros pelo
não foram os únicos a fazê-las, tampouco os empréstimo é cobrar duas vezes pelo mesmo
primeiros. A filosofia pagã ocidental já contava item, uma vez pelo seu domínio e uma vez
com inúmeros críticos a esta forma de lucro, pelo seu uso. Antes, Guilherme de Auxerre,
dentre eles, Aristóteles, que marca claramente filósofo escolástico e reitor da Universidade
essa posição em sua obra “Política”. Como de Paris, nominalmente citado por Aquino
São Tomás de Aquino é a grande ponte entre como uma de suas maiores referências,
Aristóteles e o catolicismo, ao mesmo tempo fez um ataque violento à prática da usura,
em que é visto como referência para boa parte classificando-a como “má e monstruosa”, até
dos filósofos escolásticos nascidos depois mesmo pior que o assassinato, pois este, sob
do século XIIV, é fácil perceber a origem do certas circunstâncias de legítima defesa, pode
movimento escolástico de repudia a usura ser justificado, a usura jamais (GENNARI;
(RODRIGUES, 2015). OLIVIVEIRA, 2009; ROTHBARD, 1995).
Definir usura, até os dias presentes, é um A partir do século XIV, porém, parece
trabalho árduo. O que é ponto pacífico entre haver, nos documentos oficiais da igreja, uma
historiadores e filósofos é que, quando se fala redefinição do que seria a condenável usura:
em usura, se faz uma referência ao ganho Nem toda cobrança de juros era pecaminosa,
ou rendimento, por meio de juros, de certa apenas aquela exagerada e injusta. Também
quantia de capital emprestado. Segundo Le após o século XIV, a usura deixa de ser crime
Goff (2014, s/p): comum, com punições similares as que se
aplicavam a casos de furto, passando a ser um
O código de direito canônico exprime
melhor a atitude da Igreja em face da usura
“crime contra as finanças”, e se aproximando
no século XIII: usura é tudo aquilo que se muito do que o direito moderno chama de
pede em troca de um empréstimo para além “agiotagem”.
do empréstimo em si mesmo; pedir isso é Essa mesma tendência de aceitação dos
um pecado proibido pelo Antigo e o Novo ganhos com empréstimo por parte da Curia
Testamento; a só esperança de um bem de
Romana, que se manifesta a partir do século
retorno para além do bem emprestado é um
pecado; as usuras devem ser integralmente
XIV, é refletida nos filósofos escolásticos que
restituídas a seu verdadeiro dono; preços começavam a se destacar nesta época. Como
mais altos por uma venda a crédito são é o caso de Gabriel Biel, importante canonista
usuras implícitas. alemão e histórico professor da Universidade
474 A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA ESCOLÁSTICA NA FORMAÇÃO
DO PENSAMENTO ECONÔMICO

de Erfurt. Biel defendia que ganhar juros estivesse defasado (IORIO, 2017; ROTHBARD,
com um empréstimo era o mesmo que 1995).
comprar um contrato de seguro, pois não Por conta deste tipo de tratamento,
havia nenhuma garantia de que o tomador que era dado a cobrança de juros, formou-
do empréstimo iria retornar ao poupador se uma certa linha de análise histórica que
o capital emprestado, portanto, se manter associa a igreja católica a um entrave no
contratos de seguro era lícito, lucrar com desenvolvimento econômico e do mercado
juros também deveria ser. Vale lembrar que (uma vez que empréstimos, e a consequente
o argumento de Biel tem grande impacto pois cobrança de juros, são necessários para grandes
o mesmo viveu durante a expansão marítima empreendimentos) ou, mais especificamente,
europeia, que era de grande importância tivesse inibido o desenvolvimento do
para a expansão do catolicismo, uma vez que capitalismo. Porém, é importante deixar claro
havia todo um novo continente a catequizar, que, antes do século XIIV, a Europa contava
e que não seria possível sem os chamados com uma economia agrária, ainda marcada
“contratos e dinheiro e risco marítimo”, que, fortemente pelo escambo, onde o dinheiro
segundo Pereira (2013, p. 5) “consistiam desempenhava apenas papel secundário
num empréstimo dado a um navegador, e nas relações de troca e ainda não existiam
que previam uma cobrança maior no caso de os grandes investimentos especulativos
sucesso da viagem e o perdão da dívida se a que se iniciaram com a expansão marítima
embarcação e a carga fossem perdidas” (LE (CAMPOS, 1952).
GOFF, 2014; PIMENTEL, 1974; ROTHBARD, Outra acusação comumente feita é que
1995). as bases do pensamento católico condenam
O jesuíta Leonard Lessius, pioneiro o enriquecimento pessoal, porém, segundo
Le Goff (2014, s/p)
na aplicação da ética a práticas comerciais,
foi o primeiro a utilizar, explicitamente, a literatura da alta Idade Média só raramente
o que pode ser traduzido como custo de fala em “ricos”, palavra que designa antes os
oportunidade. Para Lessius, a cobrança de poderosos do que os donos de fortunas [...].
juros sobre o empréstimo de capital era Um dos textos mais célebres e mais utilizados
na Idade Média é o de Isidoro de Sevilha
perfeitamente justificável, pois o emprestador,
(cerca de 570-636) que, em suas famosas
além de correr o risco de sofrer um calote, Etimologias, situa o amor ao dinheiro à
ainda fica, temporariamente, sem a posse frente dos pecados capitais, promete aos
do dinheiro, que poderia ser utilizado em ricos o inferno e lembra a parábola do rico
outros investimentos lucrativos. Ou seja, e do pobre Lázaro, mas na verdade não
para emprestar dinheiro para um investidor, condena totalmente a riqueza e os ricos.
Como a riqueza foi criada por Deus, se
ele mesmo perdia uma chance de investir.
os ricos consagrarem sua fortuna ao bem
Lessius, paralelamente, também especulou público e às esmolas estão justificadas [...].
sobre o preço justo. Para ele, havia dois:
aquele determinado pelo mercado ou aquele Nem mesmo as acusações de serem
determinado pelo governo (quando este fosse promotores e advogados da pobreza e atuarem
legítimo), porém, o preço de mercado deveria contra o desenvolvimento do mercado e da
ser o efetivo sempre que ele fosse menor que o economia, por sua recusa à propriedade
preço definido governo, ou quando o segundo privada, feitas contra os franciscanos
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia 475
Gabriel Estruzani Queiróz de Melo

procedem, uma vez que a doutrina da ordem, vida; e buscamos o lucro, não como um fim,
fundada por São Francisco de Assis, diz que mas como paga do trabalho.
seus membros devem abrir mão de suas
riquezas, voluntariamente, para compartilhá- Tomás de Aquino ainda considerava
las com os pobres, mas para alguém abrir mão que o comércio não era intrinsecamente
de riqueza é necessário que, anteriormente, virtuoso, mas que era indispensável para
tenha tido meios para acumulá-la (IORIO, o bom funcionamento de um mundo
2017). imperfeito e que poderia ser completamente
justificado, desde que fosse feito para garantir
Ao contrário do que aponta uma linha
a subsistência do comerciante ou dos que dele
historiográfica que se tornou muito popular,
dependessem ou quando o comércio trouxesse
especialmente depois da publicação, em 1904,
desenvolvimento para a comunidade na qual
por Max Weber, de A Ética Protestante e o Espirito
o empreendedor estava inserido, ou nas
do Capitalismo, o pensamento escolástico e pós-
que seu empreendimento afetavam. Sendo
escolástico sempre se mostrou muito favorável
assim, só existia um comércio injustificável
a uma economia de mercado desregulada e
para Aquino, aquele que servia apenas para
à atividade comercial. As principais provas
enriquecer o comerciante, que já tinha mais do
disto talvez sejam a incessante defesa dos
que o necessário para sobreviver, ao mesmo
escolásticos de que o valor de bens ou serviços
tempo que não beneficiasse a comunidade, ou
seria sempre relativo, sendo definido pela
até mesmo o Estado, na suposição de que este
totalidade de compradores e vendedores, que
reverteria o benefício para os cidadãos. Fica
juntos formam o que chama-se de mercado,
claro que Aquino não apresentava empecilhos
e não por fatores objetivos que podem ser
morais para a obtenção do lucro, o problema
determinado por uma legislação. Além da
era buscar a acumulação de riqueza como fim
também argumentação de que o preço justo
último. (GENNARI; OLIVEIRA, 2009).
é aquele livremente acordado entre os entes
Corroborando com o exposto acima,
envolvidos na transação, desde que estes
Rothbard (1995, p. 53-54) defende que
estejam livres de coerção. (WOODS JR., 2005).
Segundo Aquino (1980, s/p) apud Gennari Não deveria surpreender que Aquino, em
e Oliveira (2009, p. 24): contraste com Aristóteles, fosse altamente
favorável às atividades do comerciante.
[...] a negociação, em si mesma considerada, O lucro mercantil, declarou ele, era um
não visando nenhum fim honesto ou salário para o trabalho do comerciante e
necessário, implica em certa vileza. Quanto uma recompensa por assumir os riscos do
ao lucro, que é o fim do negócio, embora não transporte. Em um comentário à política de
implique por natureza nada de honesto ou Aristóteles [...] particularmente importante
necessário, também nada implica de vicioso foi o breve esboço de Tomás de Aquino sobre
ou de contrário à virtude [...] nada impede o benefício mútuo que cada pessoa obtém da
um lucro ordenar-se a um fim necessário ou troca. Como ele colocou na Summa: “comprar
mesmo honesto. E, desse modo, a negociação e vender parece ter sido instituído para o
se torna lícita. Assim, quando buscamos, num benefício mútuo de ambas as partes, uma
negócio, um lucro moderado, empregando-o vez que é preciso algo que pertence ao outro,
no sustento da casa ou mesmo ao socorrer e inversamente.”
os necessitados. Ou ainda quando fazemos
um negócio visando a utilidade pública, para Aquino ainda considerava que existia
não faltarem à pátria as coisas necessárias à uma outra prerrogativa para justificar o
476 A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA ESCOLÁSTICA NA FORMAÇÃO
DO PENSAMENTO ECONÔMICO

comércio: as trocas deveriam ser efetuadas criticar o comércio meramente motivado


por livre interesse de comprador e vendedor, por lucro), na medida em que ele equilibrava
porque cada uma das partes tem interesse no as necessidades e o excedente de produção
que a outra detém e acreditam estar auferindo de diferentes países, de modo a distribuir
ganho com a troca. Bernardino de Siena melhor os produtos. Assim, cada país poderia
concordava com Aquino ao defender que dispor de tudo o que precisava para escoar
não existe nenhuma moralidade absoluta e seu excedente, fornecendo abundância de
intrínseca ao comércio, este poderia ser tanto todos os produtos, para todos os países.
legal como ilegal. Para ele, o comércio tem Além disso, quanto mais estimulado fosse
caráter excepcionalmente positivo quando o comércio, mais concorrência existiria e
cumpre com alguma função social, como os preços seriam menores, diminuindo o
transportar commodities (especialmente as número de necessitados. Apesar de utópico,
essenciais) de países onde há excedente para o pensamento de Mariana traduz bem os
países onde há escassez, possibilitando que a benefícios do livre comércio, especialmente
população desfrute de algum produto que, na para os mais pobres (JONER, 2015; LAURES,
ausência do comerciante, seria inalcançável. 1928; ROTHBARD, 1995).
O comerciante também era importante Bernardino ainda fez uma grande
porque possibilitava que outros indivíduos observação em relação à pratica do monopólio
realizassem seus trabalhos e obtivessem que, segundo ele, é tão terrível para o mercado
seus sustentos, quando, por exemplo, e para os cidadãos, por encarecer preços e
faziam o transporte e o armazenamento de impedir o fluxo natural dos bens, aumentando
matérias necessárias à produção artesanal. a pobreza ao passo em que é corrosivo para com
Quando o comerciante cumpria com esta o poder de compra. Em sua visão, era algo que
importante função social, seus lucros não deveria não apenas ser considerado um crime
eram condenáveis, pelo contrário, eram punível com prisão, como um pecado punível
dignos os pagamentos do serviço realizado com excomunhão. Para ele, não existia livre
e as despesas e riscos que ele assumia. Um comércio se não existisse concorrência. Outro
contemporâneo de Bernardino a também escolástico, discípulo de Aquino, a defender
advogar pela licitude do lucro empresarial foi o benefício do comércio para todas as partes
o teólogo alemão Johanes Nider. Ele afirmava envolvidas, foi Ricardo de Middleton. Como
que o lucro do empresário não era somente a maioria dos seus companheiros, Ricardo
um pagamento pelos riscos do transporte e considerava que a necessidade e a utilidade
do armazenamento, era também uma forma de determinado bem é quem ditavam seu
de recompensar o tempo gasto para adquirir valor econômico, e o preço justo era aquele
conhecimento de mercado e manter relações determinado comumente pelos consumidores
comerciais com os potenciais compradores. em vista de suas necessidades particulares.
No lucro do comerciante também estava Sobre o comércio, ele afirmava que, quando
contido a recompensa por sua diligência e desregulado e justo, ele será benéfico para os
cuidados para com a mercadoria. Outro a dois envolvidos, pois o vendedor tem mais
verificar a função social do comércio foi Juan necessidade no dinheiro do comprador do
de Mariana, um século após Bernardino. que no bem que ele possui. Já o consumidor,
Para ele, o comércio era indispensável contrariamente, tem mais necessidade no
para a prosperidade do reino (apesar de bem que o vendedor possui do que no seu
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Gabriel Estruzani Queiróz de Melo

próprio dinheiro. A mesma justificativa que o comércio e a atividade empresarial. Muito


Ricardo utilizava para o comércio entre dois provavelmente, em decorrência do pensamento
indivíduos também serviu para defender neoplatônico e aristotélico que, em grande
o comércio internacional, uma vez que, se parte, formaram a filosofia medieval no
um país hipotético fosse produtor de uma ocidente. Aristóteles considerava o comércio
grande quantidade de material A, suficiente como força meramente especulativa, incapaz
para atender as suas próprias necessidade e de criar qualquer riqueza. Platão, no mesmo
ainda gerando excedente, ao passo que um sentido, tratava a atividade comercial como
outro país hipotético fosse grande produtor corrosiva do tecido social, pois criva conflitos
de material B, nas mesmas condições que ao concentrar nas mãos de poucos a riqueza,
o primeiro, seria benéfico para ambos um que, em sua visão, deveria ser comunitária (da
intercâmbio dos excedentes, uma vez que pólis) e por ser incapaz de produzir bem-estar
diversificariam ambas as economias, com e desenvolvimento social.
produtos que, caso não existisse o comércio Porém exposto isto, também é necessário
internacional, seriam descartados como dizer que esta hostilidade ao mercado
sobras (ROBBINS, 1998; ROTHBARD, 1995). apresentada pelos primeiros escolásticos é
Os escolásticos tardios espanhóis deixada de lado, ao ponto de ser substituída
mantiveram a posição dos discípulos diretos por uma defesa ao comércio, pelos escolásticos
de Aquino na defesa do comércio e do lucro. da baixa Idade Média, como, destacadamente,
Os jesuítas Francisco Suárez e Luís de Molina Aquino, Bonini, Ricardo de Middleton
estabeleceram uma forte argumentação em e Bernardino de Siena, sem desprezar
favor do mercado em seus trabalhos acadêmicos também, as contribuições menores, porém
dentro da Universidade de Salamanca, ao ainda importantes, feitas pelos escolásticos
afirmarem os benefícios sociais do comércio tardios como Francisco de Vitória e Juan de
na geração de renda e diminuição da pobreza, Mariana, ou como o menos celebrado, porém
ajudando a descontruir a imagem de que o não menos relevante, professor de Salamanca,
trabalho comercial seria estéril. Além disso, Jeronimo Castillo de Boabadilla que, segundo
para eles, a simples especulação financeira Iorio (2017, s/p) “[...] defendeu a competição
também era justificável e benéfica pois criava dinâmica nos mercados como um processo
condições necessárias para a expansão do e não como o estudo de casos de equilíbrio,
comércio ao permitir a transferência de antecipando Carl Menger, Ludwig von Mises,
fundos para empreendedores. Domingo de Ludwig M. Lachmann (1906-1990) e Israel
Soto, outro professor salamanticiense, coloca M. Kirzner em quatrocentos ou quinhentos
a atividade comercial como requisito para anos!”. Em última instância, pode-se dizer
o desenvolvimento civilizacional, uma vez que a grande contribuição do escolasticismo
que permitia trocas pacíficas e livres entre para o desenvolvimento do mercado foi a
duas partes igualmente interessadas (GREGG, legitimação, tanto moral quanto legal, da
2004). atividade comercial.
É impossível negar que, na alta Idade
Média, período compreendido entre o final Conclusão
do século V e o início do segundo milênio,
havia uma certa antipatia por parte dos O estudo teve por alvo também abrir
representantes do escolasticismo para com a literatura no assunto específico, uma
478 A INFLUÊNCIA DA FILOSOFIA ESCOLÁSTICA NA FORMAÇÃO
DO PENSAMENTO ECONÔMICO

vez que a contribuição escolástica para o desta ciência. Eram filósofos sofisticados em
desenvolvimento da ciência econômica sofre seu trabalho de aplicar análise moral a fatos
com um déficit de produção acadêmica, cotidianos, muitos de natureza econômica,
especialmente em língua portuguesa. como a licitude de fazer comércio ou cobrar
Com a formulação do referencial teórico, juros. Os escolásticos entenderam muito
foi possível apresentar o pensamento bem a importância da propriedade privada
econômico antes dos clássicos como Smith, individual em detrimento da propriedade
Ricardo e Marx. O que, apesar de muitas vezes coletiva, antecipando o que viria, século depois,
ser deixado de lado pelas principais linhas de a ser chamada de “tragédia dos comuns”.
análise histórica, é de suma importância, uma Permitiram formidável entendimento no
vez que o pensamento econômico precede e que se refere a inflação e valor da moeda
forma a ciência econômica, ao criar as bases no tempo, deram o lastro necessário para
filosóficas que, posteriormente, seriam usadas ao desenvolvimento do mercado de câmbio
por economistas renomados. Juntamente com e foram fundamentais, até mesmo para
os ferramentais empíricos e matemáticos para o desenvolvimento do conhecimento e
a estruturação desta ciência. ciência como conhecemos hoje, mérito das
Discutiu-se o que significa ciência suas grandiosas universidades. A maior
econômica dentro dos seus nuances e contribuição foi sua teoria subjetiva de
qual o papel do economista dentro do valor, que contrapõe a teoria marxista do
campo das ciências sociais, bem como sua valor objetivo e mais-valia, tendo muito mais
indissociabilidade para com outras formas aderência com a realidade, no que tange a
de conhecimento, como a filosofia ou a correta análise dos determinantes dos preços.
sociologia. Foi demonstrado que, apesar de Por fim, afirma-se aqui o mérito e a
certas imprecisões, filósofos do mundo antigo, importância do tema abordado. Não há como
especialmente gregos e romanos, foram estudar a história da ciência econômica, ou
os primeiros a discutir conceitos que são mesmo olhar para seu futuro, sem ter em mente
utilizados até hoje. Como mercado, comércio, a monumental contribuição dos escolásticos.
divisão social do trabalho. É difícil acreditar A análise se faz necessária à medida em que
que existiria o laissez-faire sem o arcabouço ajuda a desmistificar preconceitos com o
jurídico fornecido pelos romanos, ou mesmo medievo e confronta até mesmo, em alguns
que nosso conceito atual de propriedade seria pontos, teorias consagradas. Como é o caso da
o mesmo. Weberiana, sobre a importância da ética das
Quanto aos escolásticos, que consistiram religiões no progresso econômico, oferecendo
na parte fundamental do trabalho, houve um uma visão, que ainda é minoritária, mas,
esforço considerável para conceituar e definir sem dúvidas, relevante dentro do meio
qual a filosofia deste grupo, uma vez que foi acadêmico. Algo que torna o debate acadêmico
um movimento que durou mais de 1000 anos multidisciplinar, não se atendo apenas aos
e contou com pensadores das mais diversos instrumentais matemáticos, uma vez que a
matizes do conhecimento, apesar de serem ciência econômica, em última instância, estará
todos teólogos católicos. Com a pesquisa sempre tratando de indivíduos humanos,
empreendida, torna- se compreensível o com dilemas morais, raramente utilitaristas
motivo de tantos historiadores da economia e isto, os escolásticos entenderam melhor do
classificarem os escolásticos como fundadores que qualquer outro grupo.
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia 479
Gabriel Estruzani Queiróz de Melo

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