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Educação superior brasileira: inclusão interrompida?

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Ana Luíza Matos de Oliveira, Marcio Pochmann e Pedro Rossi


01 de junho de 2019

Os dados mostram significativa redução das desigualdades no acesso ao ensino superior no século 21, mas esse
processo vem desacelerando

É anacrônico o argumento de que a educação superior brasileira serve apenas à elite. Nos últimos anos, observa-se uma “deselitização”
dessa etapa e uma convergência entre o perfil do estudante e o perfil médio da população brasileira, o que configura uma democratização
do acesso à educação superior, ainda que persistam importantes desigualdades. Mas esse processo pode estar ameaçado pelas atuais
políticas para o setor.

No início do século 21, além do crescimento e melhoria do mercado de trabalho, que afetam as decisões de gasto das famílias, a subfunção
educação superior teve um crescimento real acentuado. Foram criados/expandidos o Reuni (Programa de Apoio a Planos de
Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), as ações afirmativas, o Pnaes (Programa Nacional de Assistência Estudantil), o
Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), o Prouni (Programa Universidade para Todos) e o Fies (Fundo de Financiamento Estudantil).

Políticas em parceria com o setor privado – como as duas últimas – estão relacionadas ao crescimento das matrículas em IES (Instituições
de Ensino Superior) privadas, mas sem alterar muito a participação das matrículas privadas no total: de 2002 a 2017 oscila entre 70% e
75%.

Essas políticas públicas, em conjunto com o crescimento econômico e as melhoras na distribuição de renda, contribuíram para um amplo
processo de inclusão social na educação superior, como se vê no gráfico abaixo:

Já o gráfico seguinte mostra a evolução da participação de estudantes de graduação que estão entre os 70% mais pobres e os 30% mais
ricos da distribuição de renda per capita familiar de acordo com a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) (2001-2015) e a
Pnad Contínua (2012-2017). Nota-se clara tendência à maior participação dos 70% mais pobres, que desacelera recentemente e mostra um
novo afastamento das curvas a partir de 2016.

A inclusão ocorre também no plano racial: pretos e pardos (negros) passam de 21,9% dos estudantes em 2001 para 43,5% em 2015. Pela
Pnad Contínua, seguiu a tendência de redução da participação dos brancos como total dos estudantes, mesmo com a crise a partir de 2015.
E isso aconteceu apesar de as famílias negras terem sido mais atingidas pela crise que as brancas , um indicativo de que as políticas
públicas para inclusão na educação superior com enfoque nessa população foram importantes, como mostra o gráfico a seguir. Nesse
sentido, apesar da permanência de desigualdades raciais, houve uma convergência nesse aspecto do perfil dos estudantes de graduação
com o perfil do brasileiro médio.

Quanto às regiões, no gráfico abaixo percebe-se a ampliação da participação do Norte e do Nordeste no número de estudantes
de graduação, processo que foi mais rápido no início do século 21 e que também desacelera nos anos recentes.

Ou seja, os dados mostram uma redução das desigualdades no acesso à educação superior muito clara, pelo menos até 2015,
com uma aproximação do perfil dos estudantes de graduação brasileiros ao da população brasileira em termos de renda,
cor/raça e região.

Mas, a partir de 2015, para além da crise no mercado de trabalho, há cortes no orçamento da educação superior com fortes
impactos nas políticas públicas, que afetam a capacidade financeira das famílias. O quadro é agravado pela Emenda
Constitucional 95/2016, que provoca competição entre as áreas sociais, pois, para que uma área tenha aumento real em seus
gastos, é preciso que outra perca.

Também, na prática, a medida desvincula os gastos com saúde e educação: o mínimo para os gastos públicos da União com
educação, estabelecido pelo artigo 212 da Constituição, é de 18% da RLI (Receita Líquida de Impostos), mas com a nova regra o
gasto federal real mínimo com educação foi congelado no patamar de 2017 (R$ 49 bilhões), caindo ao longo do tempo em
proporção da RLI e do PIB (Produto Interno Bruto). Como as despesas com educação cresceram acentuadamente acima do
mínimo constitucional nos últimos anos, há espaço para cortes ainda maiores.

Quanto aos dados sobre o perfil dos estudantes de graduação, se a inclusão enquanto processo teve sua velocidade no mínimo
reduzida a partir de 2015, a inclusão enquanto resultado em 2017 ainda mostra um quadro muito menos desigual que no início
dos anos 2000. No máximo foram mantidas tendências já em curso, em especial devido a políticas que ainda não sofreram
regressão. Uma dessas medidas é a ação afirmativa para o ingresso nas IES. Outras políticas importantes, no entanto, como o
Reuni e o Fies sofreram graves cortes desde 2015.

Sobre os dois fatores principais que provocam desaceleração no crescimento da inclusão (crise no mercado de trabalho e
cortes nas políticas), enquanto a situação no mercado de trabalho pode em teoria melhorar e impactar a capacidade das
famílias de manter integrantes na educação superior, a austeridade impede o aumento do orçamento da política pública nos
próximos 20 anos. O quadro se agrava, agora, em 2019, com a queda da arrecadação do governo e o contingenciamento de
despesas na área.

* Fonte dos gráficos: Oliveira, A. L. M. (2019) Educação Superior brasileira no início do século XXI: inclusão interrompida?
Tese de Doutorado, IE/Unicamp.

Ana Luíza Matos de Oliveiraé doutora em desenvolvimento econômico pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e
professora visitante da Flacso Brasil (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais)

Marcio PochmannePedro Rossi são professores do Instituto de Economia da Unicamp.

Os artigos publicados no nexo ensaio são de autoria de colaboradores eventuais do jornal


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