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Freamunde

Fontanário de Cachopadre

“Descalça vai para a fonte/ Leonor,


pela verdura;/ vai formosa e não segura…”

Introdução

Os versos de Luís de Camões identificam uma época e um imaginário que marcou


sobremaneira a sociedade portuguesa até há menos de um século; em Freamunde,
este quadro terá durado até finais dos anos 1980, apesar de nos anos sessenta terem
surgido alguns poços sobretudo para regas das culturas.

Nesta agora cidade de Freamunde, onde impera o gosto pela modernidade, vai-se
esquecendo e fossilizando subtilmente os laivos ainda existentes de pedaços do
passado que resistem às mudanças e à voracidade do fluir do tempo. Pedaços de nós.
Disso são exemplo os moinhos e as fontes, testemunhos que poderiam ser uma
espécie de guia para contar (sim, para contar) a sua história e, também, a história da
cidade onde vão resistindo, até que o tempo e a incúria humana os eliminem
definitivamente.

Há lendas para contar? Não sei se há lendas para contar, porém é certo que este
património material, foi chafariz de conhecimento popular. Muito prático, este
património imaterial. Quem não se lembra dos provérbiosi:

“o cântaro tantas vezes vai à fonte que um dia deixa lá a asa”? ou “Água
corrente, água inocente”, “Água corrente não mata gente”, “Água de Janeiro
vale dinheiro”, “Água de Fevereiro mata o onzeneiro”, Água de Março pior é
que nódoa no fato”, “Água de Abril, por um funil”, “Água de Maio, pão para
todo o ano, “Água de São João tira o vinho e não dá o pão”; ou ainda: “Água
de Julho no rio não faz barulho e “Água de Agosto apressa o mosto, “Água
fresca, dá-a o jarro, não de prata, mas de barro”…, ou “Água viva dá vida,
parada é morte”.

Quanto à estética, digamos que esta fonte de Cachopadre é muito volumosa, simples
e bruta; com uma bica a brotar água num pequeno tanque, que liga a outro mais
pequeno e a encaminha para um maior que estes dois para aproveitamento total da
água oriunda da mina. É uma estrutura rudimentar, com marcas suficientes para a
descrever, apesar de tudo, como minimamente harmoniosa, de bom granito e
sobretudo prática. Com as obras na estrada, a bica ficou mais funda, mais difícil de
apanhar a água.

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Pouco ou nada sabemos das memórias poéticas à volta desta fonte. Mas como outras,
é quase certo que “testemunhou” namoricos e outras relações humanas à sua volta. Ai
se as fontes falassem!

Benditas sejam as fontesii / À beirinha dos caminhos, / Onde vão matar a sede

Os alegres passarinhos

Nos dias de hoje não damos importância a estas construções, porque as fontes agora
são torneiras; tempos houve em que a água era transportada em cântaros de barro à
cabeça com a ajuda de uma rodilha, à mão com balde ou regador. E vendida (doce)
nas festas em cântaro de barro.

Com as obras dos arruamentos (já nos anos 1980 e 1990) e as construções a jusante
da Rua da Vila Cova, o “progresso” cortou a mina e com ela, a água, e deixou a fonte
órfã do valioso líquido e da presença humana. Durante o dia e durante a noite. 24
horas por dia.

Nasceu do esforço de um cidadão particular, porque as instituições político-


administrativas esqueceram-se dos cidadãos daquele lugar, nunca lhes foi “oferecida”
uma fonte ou fontanário mais digno e com mais estética. Sem esta fonte, os
moradores de Cachopadre teriam de andar mais de 1 quilómetro (ida e volta) para a
obter. Se no Verão era agradável, no Inverno, era uma tortura.

O lugar é rico em água. É natural até que a origem do topónimo tenha raízes nesses
recursos. Apesar disso, este bem é sempre disputado, é origem de rixas, motivo de
inveja e cobiça; avidez. Mesmo não havendo fontanário, tempos houve em que a
simples transmissão de um prédio onerava o subsolo com a “autorização de construir
poço e extrair água apenas com balde, ou bomba manual”. Avalie-se assim a fortuna
de ter água próxima, água corredia, de uma fonte que alguém com enorme visão
resolveu um dia, em 1904, construir.

Esta fonte sempre deu água desde a sua construção, em 1904. Água aos moradores,
e água a todos os que por ali passavam.

E o enquadramento histórico do fontanário?

A aldeia de Cachopadre é dos lugares povoados mais antigos de Freamunde. No


século XIII, tinha 3 casais; em 1758, 8 vizinhos.

O fontanário está rodeado por casas Modernas, por uma capela oitocentista (Capela
de São José, na “Casa da Capela”, e por uma habitação do século XIX com
arquitetura deveras peculiar no seu interior, de que se destaca um louceiro encaixado
na própria fachada granítica; e no primeiro andar, junto aos aposentos, um nicho que
atesta a fé e a religiosidade vividas naquela habitação. Mais afastado, mas ainda
assim, próximo, um moinho, nas margens do Rio Madões.

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Trazer ainda à memória a Rua de Cachopadre, outrora carreiro, depois caminho, mais
recentemente e, finalmente, Rua.

A ligação Freamunde-Carvalhosa nem sempre foi um tapete agradável. Não fora a


doação graciosa à res pública pelo construtor do fontanário/fonte de Cachopadre, em
1908, e hoje ainda estaríamos a dar os primeiros passos para facilitar a mobilidade
entre ambas as freguesias e outras terras da Ferraria. Antes de ser Rua, foi carreiro,
depois caminho, estrada macadame.

A tudo isto o fontanário/fonte assistiu passivamente; a água nunca deixou de


“cantarolar”, e de matar a sede a todos os que ali viviam, ou por ali passavam.
Paradoxalmente, à sua volta a vida agitou-se e a sua própria existência está agora
ameaçada de morte.

Fontanário

Quanto à autoria da construção, a epígrafe na pedra (Figura 1, não mente:

FEITA EM 1904 / POR / ANTÓNIO MARTINS / PACHECO

Cidadão Freamundense, homem muito ativo


política e socialmente; um benemérito, altruísta;
dedicou grande parte da sua vida não só à
agricultura, mas também à manutenção dos
caminhos em terra batida, e igualmente à abertura
de vias de comunicação, essenciais para o
desenvolvimento local. E hoje são visíveis as
consequências dessa atitude humana em prol do
futuro da sua terra.

Figura 1 Fontanário António Martins Pacheco

A ele se deve o “tratado manuscrito dos consortes” para uso das águas em
Cachopadre, onde a agricultura historicamente tem sido relevante, tratado esse ainda
em vigor nos nossos dias. Os consortes foram-se sucedendo, mas as regras
mantiveram-se, tal qual foram redigidas em1908.

Foi o 1º Presidente da Comissão Administrativa da Junta de Freguesia de Freamunde,


de 4 março de 1928 a 17 de novembro de 1929, altura em que pediu a demissão por
razões de saúde, sendo substituído por António José de Brito.

A ele se devem as ações para “rasgar” arruamentos no centro da então Vila de


Freamunde. A ele se devem ainda as iniciativas para compra dos terrenos e
construção da Escola Primária.

Na atividade política, o seu neto, Idalino Martins Pacheco dar-lhe-ia continuidade em


1942-1943. E enquanto Freamundense, ainda prestou a sua colaboração num
mandato da Direção, ao Sport Clube Freamunde.

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E quem era esse António Martins Pacheco (1861-1945)?

Tinha morada em Cachopadre; casado com Casimira Ferreira Neto (1856-1925), de


Figueiró. O casal teve vários filhos, entre eles, Teotónio Ferreira Martins Pacheco
(1889-1946) casado com Dionízia da Costa Almeida (1903-1981I, de Negrelos. Este
casal teve duas filhas – Idalina (1931-2015) casada com José Dias (1932-2013);
Ascensão (1929), casada com Avelino (1930-?) – e 1 filho, Avelino (1929-1991)

Era filho de Bernardo Martins Pacheco (1761-?), casado com Maria Rosa Brandão
(1832-?). Bernardo era filho de Custódio Martins Pacheco (1761-?) e de Ana Joaquina
Alves de Sousa (1775), de Carvalhosa.

A ascendência continua até encontrarmos os primeiros antecessores conhecidos, em


1555. Ou seja, o construtor do fontanário tem ascendência que remontam ao século
XV.

Joaquim Hernâni Dias

Bisneto de António Martins Pacheco

Março de 2024

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Parente, Salvador, O Livro dos Provérbios, Círculo de Leitores, âncora Editora, Barcelos, 2005
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https://dotempodaoutrasenhora.blogspot.com/2011/08/cancioneiro-popular-da-agua.html#:~:text=%5B1%5D
%20%E2%80%93%20DELGADO%2C%20Manuel%20Joaquim%20Delgado.%20Subs%C3%ADdio%20para%20o
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