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AS RELAÇÕES DE PODER E A CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO DISCURSIVO

NO FILME LOVELACE1

Sarah Carime Braga Santana2

Introdução

Este estudo tem por objetivo analisar as relações de poder presentes no filme
Lovelace (2013), a produção cinematográfica baseia-se na história de Linda Lovelace,
nome artístico de Linda Boreman, a atriz ficou conhecida pelo seu papel na produção
pornográfica Garganta Profunda, a história contada em Lovelace traz os bastidores da
gravação de Garganta Profunda, sua conturbada relação com o marido e quais
condições levaram a se tornar atriz pornô. O filme traz à tona a parte não vista da vida
de Lovelace, sua relação com a família e como a cultura e a sociedade da época (década
de 70/80) interferiam nessas relações e marginalizavam as mulheres apenas por serem
mulheres – ainda mais se estas eram atrizes de filmes pornôs. Para elucidar sobre essas
relações de poder, da disciplina e da docilidade dos corpos, nos apoiaremos na analise
do discurso de linha francesa, utilizando como embasamento teórico os textos de
Foucault e Fernandes, além de textos para discutir as questões culturais que permeavam
a sociedade da época. As análises realizadas neste trabalho se darão a partir da
observação dos discursos presentes no filme, colocando em foco a forma como Linda
era percebida dentro de sua família, com seu marido e em seu trabalho, e como a
sociedade patriarcal da época colocava a mulher como propriedade de seu marido, nos
atentando a como estes fatos constituíram a subjetividade de Linda Lovelace. Como
resultado pretende-se discutir as visões da indústria de filmes pornôs sobre os corpos
que as servem e de que forma as atrizes que fazem parte desse mundo são postas neste
lugar e como os discursos da mídia, da família e da sociedade em geral influenciaram na
constituição de Linda como sujeito.

1
Artigo apresentado à disciplina do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado em Estudos
da Linguagem, da Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão para integralização dos créditos da
referida disciplina.
2
Mestranda em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal de Goiás – Regional Catalão.
Lovelace nas relações de poder

Os discursos estão diretamente presentes na formação dos sujeitos e de sua


subjetividade, já que, como afirma Fernandes (2012, p. 76) “a subjetividade [...]
apresenta-se como uma construção histórica sob determinadas condições e se dá na
relação com o discurso, uma vez que o sujeito é produzido nas relações discursivas”.
Outra forma de olhar a relação entre subjetividade e discurso é através da ideia de
enunciado no passo que, o enunciado pressupõe uma posição de sujeito associando,
assim, esse sujeito à história e ao discurso (FOULCAULT, 2016).
Para a análise plena destes discursos vale ressaltar que, de acordo com
Fernandes (2007, p. 20) “analisar o discurso implica interpretar os sujeitos falando,
tendo a produção de sentidos como parte integrante de suas atividades sociais. A
ideologia materializa-se no discurso que, por sua vez, é materializado pela linguagem
em forma de texto”. Devendo assim, ser considerada toda e qualquer ideologia social ou
histórica em que estes discursos podem se inserir. Essa noção de discurso se vê
condicionada ao enunciado e à formação discursiva que apreende a pratica de produção
de sentidos, para Foucault (2012, p. 142) “um enunciado pertence a uma formação
discursiva, como uma frase pertence a um texto e uma preposição a um conjunto
dedutivo”, por tanto, os discursos podem ser descritos como um agrupamento de
enunciados que se inserem na mesma formação discursiva, já esta, funciona como um
elo entre discurso e prática e está liga a questões históricas e sociais inerentes ao
homem. Quanto às relações de poder

[...]em qualquer sociedade, existem relações de poder múltiplas


que atravessam, caracterizam e constituem o corpo social e que
estas relações de poder não podem se dissociar, se estabelecer
nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, uma
circulação e um funcionamento do discurso. Não há
possibilidade de exercício do poder sem uma certa economia
dos discursos de verdade que funcione dentro e a partir desta
dupla exigência. Somos submetidos pelo poder à produção da
verdade e só podemos exercê−lo através da produção da
verdade. Isto vale para qualquer sociedade [...] (FOUCAULT,
p.101)
Como objeto de estudo, em resumo, o filme Lovelace (2013) que é baseado na
historia real da atriz mais famosa atriz de filmes pornográficos Linda Susan Boreman
que assume em sua carreira o nome Linda Lovelace, inicia-se com a narrativa referente
à uma garota de 21 anos que teve de se mudar de cidade com os pais devido a uma
gravidez indesejada, a mãe de Linda, Dorothy Boreman, doa a criança antes mesmo de
saber o sexo da mesma, Linda foi criada em uma família tradicional, totalmente
patriarcal, que vivia de acordo com as regras da sociedade, que, de acordo com o filme,
resumia-se a sempre obedecer aos pais e depois ao marido, o homem sempre era a
representação máxima da casa.
Logo nas primeiras cenas do filme, linda conhece Chuck Traynor, que, desde o
inicio, se mostra gentil e cavalheiro, sempre fazia questão de elogiar linda. Ainda nos
primeiros encontros, após saber como Linda era criada rigidamente, ele se dispõe a
conhecer os pais dela Dorothy e John J. Boreman, no jantar propiciado para apresentar o
novo namorado de linda aos pais Chuck aparenta ser um bom homem, ele apresenta-se
como marido ideal e, assim, conquista rapidamente os pais de Linda. Logo depois eles
vão morar juntos e após um curto tempo eles se casam, a partir daí ele começa a mostrar
o homem que realmente é. Com o inicio das revelações de como Chuck era tanto como
marido, homem e empresário, logo de inicio é dito que o mesmo tem um bar, Linda
recebe uma ligação da delegacia em que seu marido está preso e o livra da cadeia,
Chuck, então, revela qual era realmente seu trabalho, o bar oferecia também serviços
sexuais. Após a saída da cadeia ele pede que Linda o ajude a ganhar dinheiro. A história
contada a partir desse ponto mostra como Chuck leva Linda para o teste de um filme, de
inicio, os produtores não gostam de Linda como atriz pornô uma vez que, a mesma não
tinha perfil para tal tipo de trabalho, porém quando Chuck mostra um vídeo caseiro em
Linda praticando felação em seu marido e os produtores veem potencial na garota e
nomeiam o filme Garganta Profunda devido aos “talentos” de Linda. O enredo então
mostra as gravações do filmes, a relação dela com o marido e com os colegas durante as
filmagens. Com sucesso do filme Chuck investe em produtos eróticos e ele mesmo
escreve a autobiografia de Linda, ele está sempre no comando e a garota nunca tem voz
na relação.
Após todos esses fatos há um corte de seis anos na narrativa que se inicia com
Linda passando por um polígrafo. Linda que já estava separada de Chuck há bastante
tempo, se casou novamente, tem um filho e está escrevendo um livro para contar sua
história. Dessa forma o filme começa a recontar as cenas já ilustradas anteriormente,
mas dessa vez mostrando a voz e o ponto de vista de Linda Boreman. As cenas voltam à
quando Linda se casa com Chuck e é estuprada logo em sua lua-de-mel e já recebe a
ameaça de que a partir daquele momento ela pertencia a ele. Linda então começa a
enfrentar uma rotina de espancamentos e ameaças constantes, até o dia em que vai
buscá-lo na cadeia e, como dito anteriormente, ele diz que ela deve ajudá-lo a ganhar
dinheiro, Linda aceita sem saber que na verdade a intenção dele era “alugá-la”, Chuck
começa a levá-la para boates e oferecê-la como mercadoria aos frequentadores do lugar,
porém ele que sempre negociava os valores e os recebia além de ficar esperando sua
esposa na porta para ter certeza que a mesma cumpriu o que foi prometido por ele.
Como ele que fazia a negociação e recebia o dinheiro, Linda não recebia nada e,
inclusive, não sabia o quanto era cobrado por ele em cada programa.
Esse dinheiro proveniente da prostituição de linda não se fez suficiente, então
Chuck leva-a para fazer o filme Garganta Profunda, porém tanto no teste quanto no
inicio das gravações Linda ainda não sabe o teor do filme e quando a mesma descobre e
se nega a fazer apanha de seu marido como frequentemente ele fazia. Com o inicio das
gravações Linda não poderia mais aparecer com hematomas para gravar o filme, Chuck
então a violenta sempre debaixo do chuveiro, para evitar as provas contra ele.
Depois de sofrer vários abusos, apanhar muito de seu marido e querer fugir da
obrigação de atuar no filme, Linda procura sua mãe para pedir ajuda, porém, sua mãe
diz que ela deve obedecer a seu marido e quando Linda diz apanhar dele sua mãe
atribuiu a responsabilidade a ela. Justificando que, se Chuck batia nela, é porque a
mesma o provocava. Nesse ponto pode-se perceber a forma como o modelo patriarcal
da sociedade forçosamente mantém Linda ligada ao seu marido, apesar da personagem
querer fugir, se vê constantemente encurralada, já que não encontra maneiras de escapar
de seu algoz. Ainda nessa cena, a mãe de Linda afirma que a mesma deve ser
agradecida por ter encontrado um marido que a sustenta, deixando claro que só por ele
ter aceitado se casar com ela, Linda deveria se sujeitar a qualquer ordem dada por ele,
deixando claro que “as pessoas” iriam falar se Linda se separasse, e que socialmente,
Linda deveria seguir as regras assim como sua mãe seguiu. Esse “patriarcalismo” que
regia a sociedade da época pode ser aqui definido como
uma estrutura sobre as quais se assentam todas as sociedades
contemporâneas. É caracterizado por uma autoridade imposta
institucionalmente, do homem sobre mulheres e filhos no
ambiente familiar, permeando toda organização da sociedade,
da produção e do consumo, da política, à legislação e à cultura.
Nesse sentido, o patriarcado funda a estrutura da sociedade e
recebe reforço institucional, nesse contexto, relacionamentos
interpessoais e personalidade, são marcados pela dominação e
violência. (BARRETO, p. 64)

Linda volta para casa com seu marido é ameaçada com uma arma e forçada a
continuar sua rotina de gravações e espancamento. Esse modelo de sociedade além de
patriarcal e disciplinar reforça as relações de poder. Como disciplinar produz corpos
dóceis e corpos sujeitados ao invés de produzir sujeitos individualizados. Dessa forma,
para Fernandes (2012, p. 62) “o poder disciplinar visa a conduzir a conduta dos sujeitos;
intervém, ou procura intervir, em todas as ações do sujeito, [...] não deixando escapar
nem um gesto, nem um instante, antes mesmo que a ação se realize”. Já as relações de
poder, nesse caso exercidas por Linda e Chuck, “abrem a possibilidade a uma
resistência, [a de Linda] e é porque há possibilidade de resistência real que o poder
daquele que domina tenta se manter com tanto mais força, tanto mais astúcia quanto
maior for a resistência” (FOUCAULT, 2003, p. 232).
Com o fim das gravações de Garganta Profunda, os produtores resolvem dar
uma festa em comemoração, nessa festa Chuck bate em Linda no quarto ao lado onde o
restante dos convidados está hospedados, alguns deles riem dos barulhos do quarto ao
lado e acham que se trata apenas de uma relação sexual entre marido e mulher, porém
outros sabem que Chuck estaria na verdade violentando Linda e mesmo assim de
excluem de qualquer reação.
O filme vai para os cinemas e é recorde em bilheteria, com isso é oferecida uma
apresentação privada do filmes para empresários, artistas e magnatas da indústria
pornográfica, ao final da exibição do filme Linda deveria fazer uma apresentação ao
vivo e praticar sexo oral com um dos magnatas presentes no local, esta apresentação de
Linda renderia financiamento aos projetos de Chuck, porém Linda se nega a fazer e
apenas aparece no palco para receber os aplausos do publico. Ao chegar a casa, Chuck a
espera e novamente a ameaça com uma arma, depois arrasta Linda para um hotel, lá
quatro homens a esperam, Chuck recebe o dinheiros deles e espera pacientemente,
apesar dos gritos de Linda, que eles tenham relações com sua esposa. Ao fim do
“serviço prestado” por ela Chuck a leva novamente para casa, ao chegar na porta Linda
corre para tentar fugir e pedir ajuda a alguém, ela cai e Chuck a arrasta de volta para
casa, porém antes de chegar em casa a polícia aparece e questiona o que estava
acontecendo, Linda tenta falar, mas Chuck a interrompe e diz seu marido, com isso os
policiais apenas pedem que ele leve sua esposa para casa. No entanto, no dia seguinte
Linda vai ao encontro de um dos produtores do filme, Nat Laurendi, e mostra a ela os
hematomas provenientes da noite anterior em um pedido de socorro, Nat por sua vez
esconde Linda de seu marido e a ajuda a se separar de Chuck.
Apesar de Nat tê-la ajudado ele insiste na gravação de Garganta Profunda 2,
porém Linda recusa a oferta e começa uma outra vida. É certo que apesar da ajuda de
Nat, a muito, todos já sabiam das agressões físicas e psicológicas sofridas por Linda,
mesmo assim, ninguém intervém. A indústria pornográfica estava mais interessada no
lucro que o filme produziria do que em tudo que acontecia na vida de Linda. E para
eles, ter Chuck sempre de olho nela e a forçando a fazer o papel garantia todo esse
lucro.
Apesar de toda essa trajetória, Linda ainda alimentava a ideia de ser mãe e dona
de casa, casando-se novamente e reforçando como a sociedade patriarcal com seus
discursos interferia na constituição dos sujeitos. Mesmo com todas as lutas e
resistências por parte de Linda as relações de poder demandadas pela sociedade e seu
poder de governar pessoas são constantemente efetivados nessa relação. Essa condução
de condutas pode ser descrito, para Bert (2013, p. 130) como “um equilíbrio movente
entre as técnicas que asseguram a coerção e procedimentos pelos quais o si se constrói e
se modifica a si mesmo”. O que garante a docilidade dos corpos por ela governados.
Linda Boreman ficou casada com Chuck Traynor por dois anos, fez quatro
filmes pornôs neste tempo, o ultimo deles, Garganta Profunda, filme esse que
arrecadou mais de $ 600 milhões de dólares, enquanto Linda recebeu $1.250 dólares, a
oferta para Garganta Profunda 2 era que Linda recebesse o dobro $2.500 dólares. A
atriz nunca recebeu por nenhum de seus trabalhos, todo o dinheiro ficava com seu
marido, assim como os valores arrecadados com sua primeira autobiografia, escrita por
Chuck, ou os produtos eróticos que levavam o nome dela. Seu livro, escrito seis anos
depois, contando a real história de sua vida chegou à terceira edição, Linda morreu em
detrimento dos ferimentos sofridos em acidente de carro aos 53 anos.

Considerações Finais

A partir dos pressupostos teóricos acima, que aqui se fundamentam na Análise


do Discurso de linha francesa, e as análises do filem Lovelace (2013) podemos perceber
como a constituição do sujeito é construída através das relações de poder presentes o
tempo todo no filme. Essas relações permeiam o social e o privado e se fazem em
detrimento da mulher, como ser desfavorecido e submisso que deveria ser. Essa
sociedade disciplinar funciona em um modo de vigilância e correção dos
comportamentos em que todos os indivíduos são avaliados. Linda de nenhuma forma
escapa a isso e mesmo com toda sua resistência o tempo todo linda é vigiada e punida, a
submissão que por ela deve ser acatada se faz de forma concisa e sempre presente. Em
todo momento percebe-se que há resistência, e como elucidado no decorrer deste
trabalho, quanto maior a resistência maior será a força para garantir as relações de
poder.
Linda é sempre subjetivada e posta a cumprir ordens de acordo com a pirâmide
social, os pais e o marido, dessa forma Linda é subjugada e impedida de qualquer
escape à essa situação. O tempo todo se vê encurralada e obrigada a fazer coisas aquém
do seu desejo. Com a descrição e análise do filme biográfico de Linda Boreman
consegue-se facilmente perceber como as relações de poder se inseriam na sociedade e
na vida, especialmente de Linda, também a forma como essas relações era reafirmadas
sempre pela sociedade, seja quando a mãe de Linda manda que ela obedeça o marido,
quando os produtores do filme ignoram a toda a violência sofrida por ela ou quando
mesmo quando seus produtos são impedidos de fechar os olhos insistam que ela faça um
novo filme. Em todos esses casos, os discursos sociais e a economia intervêm na relação
de poder existente entre Linda e Chuck Traynor.
Referências

BARRETO, Maria do Perpétuo Socorro Leite. Patriarcalismo e o feminismo: uma


retrospectiva histórica. p. 64 -73. Dísponivel em:
<http://periodicos.ufpb.br/index.php/artemis/article/viewFile/2363/2095>. Acesso em:
19 ago. 2017

BERT, Jean-François. Pensar com Michel Foucault. Trad. Marcos Marciolino. São
Paulo: Parábola, 2013. 215 p.

FERNANDES, Cleudemar Alves. Análise do discurso: reflexões introdutórias. 2. ed.


São Carlos: Claraluz, 2007.

FERNANDES, Cleudemar Alves. Discurso e sujeito em Michel Foucault. São Paulo:


Intermeios, 2012, 106 p.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 8 ed. Luiz Felipe Baeta Neves trad. Rio
de Janeiro: Forense Universitaria, 2012, 254 p.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 174 p.


Disponível em: <ttp://petletras.paginas.ufsc.br/files/2017/03/foucault-microfisica-do-
poder.pdf>. Acesso em: 19 ago. 2017.

FOUCAULT, Michel. Poder e saber. In: ____. Ditos e escritos IV. Estratégia, poder-
saber. 2 ed. Manoel Barros da Motta org. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p.
223-240.

LOVELACE. Produção: Heidi Jo Markel, Jason Weinberg, Jim Young, Laura Rister.
Direção: Rob Epstein e Jeffrey Friedman. São Paulo: Paris Filmes, 2013. 1 DVD (93 min).

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