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Impunidade de grupo 282

R egresso possivelmente a um tema já aqui abordado antes, o que é sinal


de como ele nos assombra. Nesta edição, temos um artigo do geneticista
Miguel Pita, que nos fala sobre como as mutações são essenciais à vida, embora
Outubro 2021

possam ser preocupantes, caso se trate de um vírus com potencial pandémico, ASTRONOMIA
como o SARS-CoV-2, causador da Covid-19. Por estes dias, Portugal atingirá
a fasquia de 85 por cento da população com vacinação completa. É o que os
Uma galáxia longe demais 10
especialistas julgam ser suficiente para atingir a imunidade de grupo, isto é, a TECNOLOGIA
situação em que o vírus, embora continuando a circular na comunidade, já não
tem meios favoráveis para a sua disseminação, ou, continuando a infetar, dificil-
Telepatia digital 16
mente tem consequências graves em termo de sintomas ou letalidade. Os cien- PSICOLOGIA
tistas continuam a avaliar as novas variantes (mutações) que vão surgindo, não
vá dar-se o caso de alguma poder ser mais letal ou, longe vá o agouro, escapar às
Rendidos ao acaso 18
vacinas. Cada vez que alguém é infetado, o vírus desata a multiplicar-se dentro PSICOLOGIA
do hospedeiro, e cada nova cópia pode ter uma mutação. Praticamente todas as
mutações são irrelevantes, mas só nos interessa uma: a que torna o vírus mais
Crenças e intenções 26
forte e, simetricamente, destrói o nosso arsenal contra ele. Infelizmente, grande AMBIENTE
parte da população mundial ainda não está vacinada, o que dá amplas oportu-
nidades para surgirem novas variantes. Por outro lado, o problema não é apenas
Onde estão as árvores? 32
a falta de vacinas, pessoal e equipamento para conduzir campanhas eficazes na ANIMAIS
Índia, na Indonésia, na Nigéria, etc. Em países como os Estados Unidos (e, em
menor grau, França ou o Reino Unido), a imunidade de grupo não será alcan-
Dietas separadas 38
çada porque vastos setores da população (cerca de metade!) se negam a tomar BIOLOGIA
a vacina. Para justificar a sua recusa, baseiam-se em desinformação colocada a
circular por pessoas que sabem perfeitamente estar a divulgar dados falsos, e
Origens incertas 40
pelo exército muitíssimo mais vasto dos cidadãos que preferem acreditar num BIOMEDICINA
vídeo do YouTube (e partilhá-lo) do que nos milhares de cientistas que atestam a
segurança e a eficácia das vacinas. Estes cidadãos julgam-se imunes à Covid-19,
Seres mutantes 46
mas obviamente não são. O que são, isso sim, é possíveis hospedeiros de uma SAÚDE
mutação fatal que nos faça regressar à estaca zero ou pior. Em vez de imunidade
de grupo, temos impunidade coletiva para comportamentos que, noutro con-
A origem da peste 54
texto, seriam considerados criminosos, como beber e conduzir. C.M. ANTROPOLOGIA
Humanos vs. hienas 56
HISTÓRIA
Muito mais do que Frankenstein 64
HISTÓRIA
A carga maldita 66
HISTÓRIA
Objetos misteriosos 72
HISTÓRIA
Uma raposa no deserto 78
HISTÓRIA
Calisto III, uma grande ambição 92
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Observatório

O nascimento da tectónica
O
s especialistas em ciências planetárias a paisagem. Por exemplo, intervêm tanto na for- clusão, os cientistas analisaram cristais de zircónio
mantêm um debate acalorado sobre mação de montanhas e cordilheiras, nas áreas antigos encontrados na região de Jack Hills, na Aus-
o papel que as placas tectónicas onde colidem, como também de nova crosta, trália Ocidental, usando espectrometria de massa.
desempenharam no desenvolvi- onde divergem. Uma equipa de investigadores Como explicaram na revista Geochemical Perspec-
mento da vida. Para alguns, sem essas estrutu- de diferentes instituições dos Estados Unidos, tive Letters, observaram que houve um aumento
ras, isso não teria sido possível. Para outros, elas coordenada pelo geólogo Michael Ackerson, do notável nas concentrações de alumínio naquela
poderiam tê-lo favorecido, mas não são indis- Museu Nacional de História Natural da Smithso- época, um indicador de que havia rochas a derre-
pensáveis. O que fica claro é que os movimentos nian Institution, anunciou que elas surgiram no ter a grande profundidade e que a crosta estava
dessas peças que compõem a litosfera e deslizam nosso planeta há 3600 milhões de anos (mais a aumentar de espessura e a arrefecer, o que
sobre o manto superior contribuem decisiva- cedo do que se pensava) e que estiveram em sugere que a formação das placas já estava em
mente para a renovação da superfície e alteram movimento desde então. Para chegar a essa con- curso.

4 SUPER
DUSTIN TRAIL / UNIVERSIDADE DE ROCHESTER

O Parque Nacional Thingvellir, na Islândia, Em 2014, investigadores liderados por John Valley, professor de geociências na Universidade
SHUTTERSTOCK

é atravessado pela falha entre as placas do Wisconsin em Madison, anunciaram que alguns cristais de zircónio descobertos na região
euroasiática e norte-americana. Este é o lado de Jack Hills (Austrália) datavam de há 4400 milhões de anos, o que os torna o material
ocidental; o oriental fica do outro lado do lago. mais antigo conhecido no planeta, que se formou apenas 160 milhões de anos antes disso.

Raridade
N o Sistema Solar, só a Terra parece ter
tectónica de placas, embora se suspeite
que processos semelhantes possam ocorrer em
Europa, uma das luas de Júpiter, e talvez em
Vénus. Os geólogos reconhecem sete placas
principais (africana, antártica, euroasiática,
norte-americana, sul-americana, pacífica e
indoaustraliana, esta por vezes dividida em
duas) e dezenas de outras secundárias. Em
2016, Christopher Harrison, da Universidade
de Miami (Flórida), resumiu a descoberta de
SHUTTERSTOCK

novas placas num artigo publicado na revista


Earth, Planets and Space. No total, registou 159.
No mapa, vemos os limites de algumas delas.

SUPER 5
Observatório Nesta ilustração, vemos Europa, em primeiro
plano, com o seu oceano subterrâneo, Júpiter
(à direita) e Io (ao centro). A NASA vai lançar
nesta década (talvez em 2024) a missão
Europa Clipper, para estudar se este satélite
gelado terá condições propícias à vida.

NASA / JPL-CALTECH
Primeiro a Terra, depois Europa
O
WHOI
submarino Orpheus, da Woods Hole
Oceanographic Institution, acaba
de concluir uma missão na Costa
Leste dos Estados Unidos na qual
usou o sistema de navegação autónoma conce-
bido pela NASA para o robô Mars Perseverance
e o helicóptero Ingenuity, que exploram atual-
mente Marte. O veículo robótico mapeou o
fundo marinho movendo-se a entre 6000 e onze
mil metros de profundidade (zona hadal). O que
pretendia a NASA com esta missão? Testar tec-
nologias que serão integradas nas sondas proje-
tadas para investigar os oceanos subterrâneos
que parecem existir em alguns mundos do Sistema
Solar, como Encélado, um satélite de Saturno, e
três das luas de Júpiter: Ganimedes, Calisto e, acima
de tudo, Europa. Os cientistas creem que sob a
superfície gelada de Europa existe um oceano com
cerca de cem quilómetros de profundidade, com
condições semelhantes às da nossa zona hadal,
incluindo atividade geológica que contribuiria com
minerais que enriqueceriam a água e abririam a pos-
sibilidade da existência de formas de vida, como
acontece no ambiente das fontes hidrotermais
do fundo do mar terrestre. De facto, o Orpheus já
testou também sensores eletroquímicos de ADN
que serão úteis para procurar indícios de vida no O Orpheus é um submarino autónomo em operação desde 2018. Pequeno e fácil de transportar,
os seus sensores e câmaras funcionam sem problemas em profundidades de até onze mil metros.
oceano deste satélite de Júpiter.

6 SUPER
SUPER 7
O Lado Escuro do Universo

Supernovas parciais
U
m dos grandes mistérios por resolver A SDSS J1240+6710 viaja
em astrofísica tem a ver com o pro- pela Via Láctea à velocidade
de 900 000 km/h.
cesso final de detonação de uma anã
branca (quando num binário estelar),
o que se conhece por supernova do tipo Ia (SN Ia).
A explosão que destrói a anã branca é tipicamente
mais brilhante do que as supernovas de estrelas
singulares maciças, ditas supernovas de colapso
central, ou do tipo II, Ib ou Ic. A grande importân-
cia destas SN Ia tem a ver com a sua utilização
como “velas padrão”, o que levou à maior des-

UNIVERSIDADE DE WARWICK / MARK GARLICK


coberta em cosmologia das últimas décadas: o
aumento da aceleração da expansão do universo
devido à energia escura. Conforme descobriu
o físico indiano Subrahmanyan Chandrasekhar
(1910–1995), as anãs brancas não podem ter uma
massa superior a 1,4 vezes a massa solar, pois de
outro modo os seus eletrões seriam supralumíni-
cos, violando a teoria da relatividade de Einstein.
Ora é muito importante que, de facto, as SN Ia
resultem sempre do mesmo processo, libertando ratura no disco de acreção da anã branca atinge os núcleos e atingem o fim da vida. A baixa massa da
sempre a mesma energia, para se poder usar o seu dez milhões de Kelvin, temos festa: a fusão nuclear anã branca (apenas 0,4 massas solares), associada
brilho aparente (magnitude) como um equivalente volta a acontecer nestas estrelas moribundas, à ausência de níquel, crómio e de outros elementos
de distância, através da lei fotométrica. Neste com- daí resultando uma explosão que se conhece por do “grupo do ferro”, sugere que a estrela apenas
portamento muito regular, assenta um dos pilares “nova”. No fim da festa, a anã branca ganha um passou por uma supernova parcial, perdendo
da descoberta da energia escura. pouco de massa, o que acontece recorrentemente, muita massa, mas sobrevivendo à detonação final.
No Reino Unido, Chandrasekhar não se deu muito nova após nova, até se atingir o limite de Chandra- Acresce ainda que esta anã branca se desloca a
bem com Arthur Stanley Eddington (1882–1944), sekhar. Durante as novas anteriores a uma SN Ia, cerca de 900 mil quilómetros por hora, contra o
à data um dos astrónomos mais prestigiados, a anã branca atinge temperaturas de centenas de sentido de rotação da Via Láctea, como se tivesse
sobretudo depois da sua famosa expedição à ilha milhões de Kelvin, produzindo elementos pesados sido ejetada num processo explosivo.
do Príncipe para medir a curvatura induzida na tra- como oxigénio, néon, magnésio e alumínio. Quando Nunca se observou uma supernova parcial
jetória da luz quando na presença de fortes campos a anã branca ganha demasiada massa, rebenta como esta, mas as supernovas do tipo Ia x, de que
gravíticos, durante um eclipse solar. Eddington pro- finalmente, fragmentando-se sem deixar para trás se conhecem cerca de trinta, poderão trazer
vara que Einstein estava correcto e Chandrasekhar um cadáver estelar, como acontece nas SN II, que alguns esclarecimentos. Um exemplo é a SN 2012Z,
foi “dar uma curva” para Chicago, onde ensinou produzem uma estrela de neutrões ou um buraco o único caso com progenitores conhecidos antes
durante o resto da sua vida; um dos seus alunos foi negro estelar. Isto é o caso típico, pois conhecem- da explosão ocorrida (desta vez) num binário
o físico Carl Sagan (1934–1996). Em 1983, Chandra- -se alguns casos das chamadas “supernovas par- composto por uma anã branca e uma estrela azul
sekhar ganhou o Prémio Nobel da Física pelo seu ciais”, em que a anã branca consegue escapar à brilhante. Um artigo publicado há um par de meses
trabalho, mas Eddington talvez desse hoje uma detonação final! Vejamos do que se trata. (tendo como co-autor Adam Riess, Nobel da
gargalhada ao saber que algumas anãs brancas, em A classificação das anãs brancas distingue-as Física pela descoberta da expansão acelerada do
SN Ia, parecem ter mais massa do que o previsto pela composição da sua atmosfera estelar. As do universo), baseado em observações recentes do
por Chandrasekhar. Trata-se das misteriosas super- tipo espectral DA são ricas em hidrogénio, estando Hubble, refere que os progenitores não foram
novas “champanhe”, que implicarão uma quan- ausentes o hélio e os metais. Nas do tipo DB, abunda destruídos! Pensa-se assim que as SN Ia x serão
tificação distinta (dita de Landau) para os seus o hélio, mas não o hidrogénio; as DQ mostram uma classe diferente das SN Ia, libertando ape-
níveis de energia quando sujeitos a campos mag- carbono; as DZ, linhas metálicas; as X têm um nas entre um e 50 por cento da energia das SN Ia,
néticos extremos. espectro inclassificável. Em 2015, descobriu-se a que são observadas mais frequentemente. Mais
Quando avalio propostas para tempo de obser- anã branca SDSS J1240+6710, na constelação do evidência. portanto, a apoiar o comportamento
vação em telescópios que abordam a temática das Dragão, mostrando uma composição atmosférica nem sempre padrão das SN Ia, podendo mesmo
SN Ia, é notória a diversidade de comportamentos peculiar, com oxigénio, néon, magnésio e silício. as anãs brancas escapar à típica destruição final!
e subclasses de supernovas que ainda estão por Em 2020, o telescópio espacial Hubble descobriu- PAULO AFONSO
estudar em pormenor. Desde logo, porque pode -lhe ainda carbono, sódio e alumínio, tudo elemen- Astrofísico

tratar-se de um par de anãs brancas (caso de tos que são produzidos em reações termonuclea-
dupla degenerescência) ou de uma anã branca e res antes de se atingir o limite do ferro, quando N.R. – Este texto foi adaptado para seguir o Acordo
uma gigante vermelha. De cada vez que a tempe- as estrelas não podem extrair mais energia dos Ortográfico de 1990, embora sob protesto do autor.

8 SUPER
SUPER 9
Astronomia

A GN-z11 vive junto ao Big Bang

Uma galáxia
longe demais
É a galáxia mais distante do universo conhecido.
Está situada a 32 mil milhões de anos-luz de nós
e vemo-la tal como era há 13 400 milhões de anos,
apenas 400 milhões de anos depois do Big Bang.
Agora, uma equipa de astrónomos chineses
descobriu intensas radiações provenientes dela,
o que parece indicar que as galáxias de primeira
geração são muito mais ativas do que pensávamos.
Saber mais sobre galáxias como a GN-z11
irá revolucionar o conhecimento do cosmos.

A galáxia GN-z11, a mais distante


detetada até hoje, fica na zona do céu
que conhecemos como Ursa Maior.

10 SUPER
SUPER 11
NASA, ESA, P. OESCH, G. BRAMMER, P. VAN DOKKUM E G. ILLINGWORTH
C
hama-se GN-z11 e fez cinco anos, no dia
10 de março passado, que foi vista pela
primeira vez. Efetivamente, foi em 2016
que o astrónomo suíço Pascal Oesch
revelou a grande descoberta na revista Astrophy-
sical Journal: a galáxia mais longínqua do universo
conhecido, situada a 32 mil milhões de anos-luz de
nós. Está tão longe que a vemos tal como era há 13
400 milhões de anos, apenas 400 milhões de anos
depois da data estimada do Big Bang. Em termos
cósmicos, é quase a origem do universo. Como era
uma galáxia nesses instantes iniciais?
Os cientistas não desistem de investigar. Em
dezembro, a equipa do astrónomo chinês Linhua
Jiang, da Universidade de Pequim, anunciou uma
descoberta controversa: depois de analisar os
dados sobre a GN-z11 obtidos, em abril de 2017, pelo
Observatório Keck do Hawai, Linhua descobriu
que a galáxia tinha aumentado de tamanho e se
tornara, em três minutos, centenas de vezes mais
luminosa. O que sucedera? O astrónomo chinês
adianta uma teoria para explicá-lo: as galáxias
jovens têm uma atividade muito maior do que se
pensava. Isso poderá mudar a nossa compreensão
de como se formou o universo primordial nascido
após o Big Bang, uma fase da história do cosmos
que cobre o conhecimento humano como um
espesso manto escuro.

GRANDES OBSERVATÓRIOS
“Deveríamos ter escolhido um nome melhor
para esta galáxia, um que fosse mais divertido”,
brinca Pascal Oesch, o “pai” da GN-z11. “GN vem de

A galáxia já tinha
sido fotografada Estima-se que o Big Bang se tenha

antes, mas não produzido há 13 800 milhões de anos.


Os dados observacionais indicam
que, desde então, o cosmos
fora analisada não parou de se expandir.

GOODS-North, que é como se designa a sua locali- galáxias muito distantes e diminutas. A NASA bati- antes, por dois instrumentos do Hubble. Contudo,
zação no campo de galáxias, e z11 refere-se ao seu zou o programa do Hubble para rastreio e obser- pensou-se que se trataria, pela sua elevada lumi-
desvio para o vermelho, o indicador da distância vação do cosmos com o nome de Great Observa- nosidade, de uma galáxia muito mais próxima.”
que a separa de nós.” A GN-z11 fica na constelação tories Origins Deep Survey (GOODS), ou pesquisa Quando a equipa do suíço a observou, em 2015,
da Ursa Maior, uma velha conhecida da civilização, profunda das origens por grandes observatórios. através do telescópio do Hawai, já conseguira
embora, obviamente, seja invisível a olho nu. ultrapassar várias vezes o record registado de dis-
A descoberta da GN-z11 é mais uma das efetua- DETETADA ANTERIORMENTE tância galáctica. “Quando medimos, finalmente,
das pelo telescópio Hubble. Para detetar a galáxia, “A GN-z11 é uma galáxia muito jovem”, explica a da GN-z11, vimos que ultrapassava amplamente
Oesch e a sua equipa utilizaram a câmara WFC3 Oesch. “Tem cerca de cem vezes menos massa do a fonte luminosa mais longínqua conhecida, a
(Wide Field Camera 3), instalada em maio de 2009, que a Via Láctea e é 25 vezes mais pequena. Todavia, galáxia EGSY8p7, com um desvio para o vermelho
na quarta missão de reparação in situ que a NASA forma estrelas a um ritmo vinte vezes mais ele- muito menor, de 8,68”, diz Oesch. Isto é, pode-
enviou ao telescópio, um monstro de treze vado do que a Via Láctea. De modo geral, as galá- mos vê-la agora tal como era há 13 200 milhões
metros de comprimento e onze toneladas que xias com esse tempo ainda se encontravam numa de anos.
orbita a Terra a 590 quilómetros. fase de crescimento muito menor, pelo que trans- Quando a câmara WFC3 ficou operacional no
A câmara WFC3 é um portento: desenvolvida formavam muito rapidamente os seus gases em Hubble, a equipa de Oesch detetou a galáxia,
pelo Centro Espacial Goddard da NASA em Washin- estrelas, que é a maneira de criar cada vez mais embora não fosse, nesse momento, mais do que
gton, consegue ver grandes zonas do espectro massa estelar.” uma fonte luminosa. Era preciso trabalhar os
eletromagnético invisíveis ao olho humano. “Um dado curioso”, acrescenta Oesch, “é que a dados que chegavam para confirmá-lo. “A GN-z11
Assim, a WFC3 é o “olho” do Hubble para detetar galáxia fora observada, na realidade, alguns anos era parte de um lote de quatro galáxias que pare-

12 SUPER
SHUTTERSTOCK
o explicou, Christian Doppler (1803–1853). Este
efeito consiste no facto de o ruído de um veículo ser
mais agudo quando vem na nossa direção e mais
grave quando se afasta, depois de ter passado pela
nossa posição. Doppler descobriu que isso se deve
à ação do corpo emissor do ruído (o veículo, neste
exemplo) sobre os comprimentos de onda do som
que emite ao deslocar-se. O efeito Doppler, apli-
cado ao cosmos e às ondas eletromagnéticas, em
vez do som, revolucionou a história da astronomia.

ANDRÓMEDA DESVIADA PARA O AZUL


No século XX, o físico alemão Albert Einstein
(1879–1955) deitou por terra a abordagem newto-
niana quando publicou, em 1914, a sua teoria geral
da relatividade, que completou três anos mais tarde
ao acrescentar a constante cosmológica para
garantir que o universo fosse estático e finito, como
ele pensava que deveria ser, embora a matemática
aplicada na sua teoria indique o contrário.
A partir daí, a história prossegue do outro lado
do Atlântico. No Observatório de Flagstaff (Ari-
zona), o astrónomo Vesto Slipher (1875–1969)
combinou a espectrometria de Newton e o efeito
Doppler. Ao observar a nebulosa de Andrómeda
(chamavam-lhe nebulosa, pois ainda não sabiam
que era outra galáxia), Slipher apercebeu-se de que
a luz proveniente do universo se desloca na nossa
direção em comprimentos de onda curtas e longas.
No caso de Andrómeda, tratava-se de ondas de
comprimento mais curtas, pelo que essa luz tendia
para o azul ao ser analisada num espectrómetro.
Foi assim que Slipher percebeu que se verificava

A equipa que a
isolou procurava
objetos mais
próximos
ciam estar num desvio para o vermelho de z = 10, uma delas, mas não a única) em diferentes espectros no espaço o mesmo efeito que Doppler explicara em
que era a distância das fontes mais distantes conhe- (o visível, o infravermelho e o ultravioleta), e, com relação às ondas sonoras: a velocidade relativa do
cidas até ao momento. De todas, a GN-z11 era a base nesses dados reunidos, provenientes de um corpo emissor de qualquer radiação eletromag-
mais luminosa e, por isso, concentrámo-nos nela”, recanto do universo, os cientistas têm de trabalhar nética (incluindo a luz) altera o comprimento de
recorda Oesch. Quando obtiveram os dados que (analisá-los, depurá-los e traduzi-los) para chegar a onda da radiação, e isso determina a cor com que
conduziram ao cálculo final, os presságios confir- uma conclusão concreta sobre o que o Hubble viu a recebemos. Desse modo, um desvio da luz para
maram-se. “A distância revelou ser ainda maior do e obter a fotografia final. Trata-se de um processo o azul indica que o objeto que a emite se aproxima
que tínhamos originalmente estimado, com base que exige meses ou anos, e não é apenas tecnoló- de nós. Slipher descobriu assim que a galáxia de
nas imagens captadas, o que tornava essa galáxia gico, pois assenta sobre o conhecimento científico Andrómeda se aproxima da Via Láctea e, de facto,
realmente única. Nunca tínhamos esperado encon- acumulado desde há quase quatro séculos. estima-se que a colisão entre ambas se produzirá
trar uma fonte luminosa a tanta distância, nos No cálculo da distância de galáxias longínquas, dentro de 4500 milhões de anos.
próprios limites da capacidade do Hubble”, reco- é fundamental o conceito de desvio para o ver-
nhece o astrónomo suíço. melho. O que significa isto? Esta história poderia UNIVERSO EM EXPANSÃO
começar com Isaac Newton (1643–1727) e os seus Contudo, o mais revelador foi que Slipher che-
EFEITO DOPPLER estudos sobre os espectros da luz solar, que o gou à conclusão contrária: um desvio da luz para
No século XXI, podemos dizer simplesmente: o inglês decompunha com um prisma para poder o vermelho, absolutamente maioritário quando se
Hubble descobriu uma galáxia. Contudo, a realidade analisá-los. A descoberta fundamental chegou, em observa o universo da Terra, indica um maior com-
é muito mais complexa do que essa mera frase. 1842, com o chamado “efeito Doppler”, assim primento de onda e, por conseguinte, que o objeto
O Hubble capta radiações eletromagnéticas (a luz é designado por causa do cientista austríaco que que as emite se afasta do observador, isto é, da

SUPER 13
O telescópio espacial Hubble
fez as observações da GN-z11.

NASA
Terra. Todavia, isso não acontece porque o objeto estimar a que distância se encontra o objeto, uma mais potentes produzidas no universo: algumas
em si se afasta pelo seu próprio movimento: afas- viagem que decorre não apenas no espaço, mas libertam mais energia, em apenas dez segundos,
ta-se porque habita um universo em expansão. também no tempo, pois a luz demora a chegar até do que a que o Sol emitiria em dez mil milhões
A constante cosmológica ficava feita em pedaços. nós. No caso da GN-z11, o desvio para o vermelho de anos.
O universo não era estático e finito, como Einstein (z = 11) significa, traduzido em linguagem comum, Como costuma suceder com muitas grandes des-
acreditara. Era dinâmico e estava a expandir-se. que vemos essa galáxia não como é agora, mas cobertas, tudo aconteceu por acaso: “Observámos
O golpe definitivo chegou pouco depois, preci- como era há 13 400 milhões de anos, 400 milhões a GN-z11 em abril de 2017, mas o nosso objetivo não
samente pela mão do homem cujo apelido acabou de anos depois do Big Bang. Olhar para a GN-z11 é era encontrar uma explosão de raios gama, pois
por dar nome ao telescópio que encontrou a GN-z11: observar o universo recém-nascido, dado que os a probabilidade de consegui-lo é extremamente
Edwin Hubble (1889–1953). Do Observatório de astrónomos consideram que as estrelas se forma- baixa”, explica Linhua. “O nosso propósito era
Mount Wilson (Califórnia), descobriu que a velo- ram apenas cem a 150 milhões de anos depois do detetar algumas emissões da galáxia para procurar
cidade do afastamento das galáxias era propor- Big Bang. medir com maior precisão o seu desvio para o ver-
cional à distância que as separava; isto é, quanto Esse universo incipiente poderia não ser tão melho e tentar estabelecer com maior exatidão a
mais longe estão, mais depressa se deslocam. É a inativo como se pensava até agora. A descoberta distância a que se encontra.”
chamada “lei de Hubble”. da GN-z11 foi a origem desta teoria, recentemente
O astrónomo norte-americano prosseguiu o reforçada com a descoberta efetuada por Linhua: RAIOS GAMA NOS INFRAVERMELHOS
raciocínio e concluiu que, se se rebobinasse o filme, para ele, as galáxias jovens (e, por conseguinte, o “Durante a observação, captámos por puro
a origem de tudo deveria ser o mesmo ponto, a universo nessa etapa mais ou menos inicial) tinham acaso uma explosão de raios gama proveniente da
partir do qual tudo teria começado a expandir-se: uma atividade muito maior do que se pensava. GN-z11”, prossegue o astrónomo. “Só percebemos
o Big Bang. A última e mais precisa medição dos Em dois artigos publicados, em dezembro, na isso uma semana depois, quando analisámos a
vestíduos da grande explosão foi efetuada pelo revista Nature Astronomy, Linhua e a sua equipa informação reunida.” De facto, o que a equipa de
satélite COBE da NASA, operacional entre 1989 e revelaram ter detetado uma explosão de raios Linhua encontrou não foi a radiação gama em si,
1993. O projeto, pelo qual John C. Mather e George gama procedente da GN-z11. Trata-se das explosões mas vestígios dela. “Os raios gama só podem ser
F. Smoot receberam o Prémio Nobel da Física detetados com satélites espaciais, dado que são
em 2006, estabeleceu que o universo tem a nada absorvidos pela atmosfera da Terra, e nós efetuá-
bíblica idade de 13 800 milhões de anos. Mais um acaso: mos a observação a partir do Hawai.”
O que os espectrómetros do observatório cap-
COSMOS RECÉM-NASCIDO a equipa chinesa taram foi uma explosão quase infravermelha, com
Portanto, se a luz das radiações eletromagné- uma duração observada de menos de 245 segun-
ticas que recebemos do cosmos se desvia para o viu uma explosão dos, segundo revelaram no artigo publicado na
vermelho, provêm de um corpo que está a afastar- Nature. Nele, Linhua assegura que algumas explo-
-se. Ao analisar a intensidade do desvio, é possível de raios gama sões de raios gama estão associadas a brilhantes

14 SUPER
O astrónomo suíço Pascal Oesch
dirige a equipa que descobriu a GN-z11.

clarões ultravioletas. Contudo, não tinha o equi- depois do Big Bang, e as primeiras galáxias surgi- NOVOS INSTRUMENTOS
pamento de Linhua recebido raios infravemelhos? ram cerca de cem milhões de anos depois. Por- O telescópio que poderá revolucionar esse
A explosão gama na galáxia teria emitido uma radia- tanto, a GN-z11 não seria uma galáxia de primeira olhar é o James Webb, cujo lançamento a NASA
ção ultravioleta mas, por causa do efeito Doppler, geração. De facto, a equipa de Linhua descobriu, tem previsto já para outubro. O telescópio ficará
“e devido à expansão do universo, esta teria che- durante a observação, que algumas emissões situado a 1,5 milhões de quilómetros da Terra, tão
gado à Terra transformada em radiação infraver- recebidas da galáxia tinham origem em gás com longe que, ao contrário do que acontece com o
melha, a detetada pelo observatório do Hawai”. carbono e oxigénio duplamente ionizados, o que Hubble, não se poderá enviar astronautas para
A fim de confirmar que estava no caminho certo, sugere uma grande abundância de metais, ele- repará-lo in situ.
a equipa de Linhua certificou-se de que o sinal mentos que as galáxias de primeira geração não Em contrapartida, o James Webb, pela sua
provinha do espaço e não da Terra. Depois, após continham. localização privilegiada e pela potência dos seus
descartar uma eventual proveniência artificial da É também a época em que começaram a for- equipamentos, oferecerá à humanidade as melho-
radiação infravermelha (um satélite, por exemplo), mar-se e a crescer as sementes dos primeiros bura- res vistas do universo obtidas até agora. “Quando
concluiu que a origem do sinal era uma réstia dos cos negros supermaciços. Esses objetos reioni- estiver operacional, os astrónomos poderão explo-
raios ultravioleta provenientes de uma explosão zaram gradualmente o universo. “A nossa des- rar a distâncias muito maiores e de forma mais
de raios gama. Esta teria ocorrido na GN-z11, e eles coberta”, diz Linhua, “significa que as condições profunda, pelo que encontraremos um monte
tinham visto os seus vestígios em direto, o que era físicas desta galáxia em particular (ou, pelo menos, de galáxias à mesma distância da GN-z11 e até mais
quase milagroso. de algumas das galáxias muito distantes) poderiam longe”, afirma Oesch.
ser diferentes das de um menor desvio para o ver- Quanto mais longe? Quão próximas do Big Bang
IMPORTÂNCIA CAPITAL melho, isto é, das que estão mais perto de nós, poderiam estar para ser possível observá-las da
A descoberta poderá ser de uma importância mas precisamos dos futuros telescópios para Terra se possuirmos a tecnologia necessária para
capital, como explica Linhua: “As explosões de raios poder compreender plenamente este tipo de galá- fazê-lo? “É um aspeto que ainda não está esclare-
gama estão associadas a estrelas maciças, com xias, que estão demasiado longe para os telescó- cido”, explica Oesch. Não se trata apenas de ter
um tamanho de entre vinte e trinta sóis. Quando pios atuais.” melhores instrumentos: “Dependerá da rapidez
vemos uma explosão desse tipo, significa que uma com que se formaram as populações de galáxias
dessas estrelas morreu. Esgotou o combustível no universo inicial. As atuais estimativas calculam
central e a gravidade fá-la colapsar. A explosão é Esse facto pode que poderíamos ser capazes de ver até cerca de
tão potente que pode ser vista a distâncias enor- 300 milhões de anos depois do Big Bang.” Se o uni-
mes. Quando se observa algo assim, obtém-se alterar as teorias verso fosse uma pessoa centenária que acabámos
a prova de que já havia esse tipo de estrelas no de conhecer, esse dado seria equivalente a poder
período observado.” sobre a formação utilizar uma câmara para ver, no presente, a vida
Os astrónomos pensam que as primeiras estre- que teve nos seus 98 anos anteriores.
las se formaram entre cem e 150 milhões de anos do universo M.R.R.

SUPER 15
Tecnologia

Comunicar sem abrir a boca

Telepatia
digital
Não lê a mente, mas também não precisa.
O AlterEgo é um dispositivo que deteta pequenos
movimentos nos músculos envolvidos na fala
para discernir o que o utilizador pretende dizer.

E
m agosto do ano passado, o empresário Quando falamos “em silêncio”, o cérebro envia
norte-americano de origem sul-africana os impulsos necessáriso para mover a mandíbula,
Elon Musk (n. 1971) anunciou que a Neu- a língua e as cordas vocais, mesmo que optemos
ralink, uma das suas empresas, tinha por não nos exprimirmos em voz alta. Não é exata-
desenvolvido um avançado implante cerebral. mente o mesmo do que pensar nas palavras, mas
Segundo Musk, o invento irá em breve revolucionar podemos também fazê-lo de modo impercetível e
a forma como controlamos as máquinas. Trata-se de silencioso, movendo apenas ligeiramente a língua
um pequeno disco do qual saem milhares de finís- e os órgãos implicados na fala e mantendo os
simos elétrodos, que um robô cirúrgico de elevada lábios fechados.
precisão implanta no cérebro: leem a atividade cere- Os responsáveis pelo projeto explicam-no assim:
bral e permitem utilizá-la para operar todo o tipo “Lembra-se de quando aprendeu a ler? No início,
de dispositivos, incluindo as próteses de pessoas dizia em voz alta as palavras que via, mas depois
com certas incapacidades. Não é uma ideia nova, aprendeu a expressá-las silenciosa e interna-
mas a Neuralink promete fazê-lo de forma mais mente. A fala silenciosa consiste num esforço
rápida e eficiente do que era possível até agora. consciente para dizer palavras, caracterizado por
Todavia, no Instituto de Tecnologia do Massa- movimentos subtis dos órgãos internos da fala,
chusetts (MIT), não querem esperar. É possível que mas sem chegar a pronunciá-las.” O AlterEgo capta
tenham encontrado uma solução mais eficaz e que esses sinais neuromusculares e interpreta-os, de O AlterEgo é um dispositivo que se
MIT MEDIA LAB

não requer a implantação de elétrodos no cérebro, forma a entender o que queremos dizer e enviar as pendura na orelha e adapta à cara;
permite comunicar silenciosamente.
um processo complexo e dispendioso, embora nossas instruções a um aparelho. Assim, elimina a
possa ser automatizado. O projeto do MIT não per- necessidade de comunicar em voz alta com um
segue exatamente o mesmo objetivo do que o de telemóvel, por exemplo.
Musk, mas, se funcionar (e parece que o faz), per- lizada por alguns auriculares disponíveis no mer-
mitirá controlar diferentes dispositivos sem termos PRIVACIDADE ASSEGURADA cado. Consiste em transportar os sons através da
de lhes dar ordens verbais. Mais ou menos. O sistema não lê a mente, interpreta apenas os mandíbula e outros ossos do crânio. As vibrações
impulsos que o cérebro envia aos diferentes mús- acústicas propagam-se por eles até alcançarem o
INTERFACE NÃO INVASIVA culos, o que, em muitos casos, é suficiente para ouvido, de modo que se pode ouvir música ou uma
Estamos a falar do AlterEgo, uma interface neu- compreender o que o utilizador pretende dizer. chamada telefónica sem bloquear o som do mundo
ronal periférica não invasiva e portátil que permite Segundo os seus inventores, o facto de não registar exterior, como aconteceria com auscultadores con-
às pessoas conversar em linguagem normal com diretamente os impulsos do próprio cérebro con- vencionais. Trata-se de um sistema utilizado pelos
máquinas ou assistentes virtuais sem necessidade fere-lhe um fator extra de privacidade. militares precisamente por essa razão.
de abrir a boca. Será simplesmente necessário Quando o AlterEgo quer comunicar com o utiliza- O que se consegue com tudo isto é uma inter-
articular silenciosamente as palavras, como se se dor, fá-lo também de forma silenciosa para ouvidos ação homem-máquina que se sente como algo
pensasse no que se pretende dizer, mas sem dizê-lo. alheios: recorre à condução óssea, uma técnica uti- interno. É um pouco como falar consigo próprio,

16 SUPER
e permitirá, em teoria, comunicar com diversos PROBLEMAS ESTÉTICOS esse processo de aprendizagem inicial tornar-se
dispositivos sem deixar de prestar atenção ao que Até à data, o sistema foi testado com um pequeno muito mais curto.
nos rodeia. Podemos caminhar pela rua enquanto repertório de palavras e frases curtas, e alcançou O maior obstáculo que o AlterEgo enfrenta talvez
ditamos uma mensagem ou consultamos o correio, mais de 92 por cento de precisão quando foi utili- seja estético. Atualmente, é uma espécie de faixa
mas sem dar instruções em voz alta, como acontece zado com um vocabulário específico para determi- visível que vai da orelha ao queixo, embora inclua
com os atuais assistentes virtuais. A coisa poderá nada aplicação. Trata-se de um valor muito prome- poucos elétrodos. Os investigadores do MIT julgam
ir muito mais longe: os criadores do AlterEgo acre- tedor, embora ainda estejamos a falar de um pro- que poderiam melhorar consideravelmente a pre-
ditam que, no futuro, este tipo de dispositivos aju- tótipo de laboratório, o qual também requer, na cisão do reconhecimento dos sinais neuromuscula-
dará as pessoas com problemas na fala, incluindo as atual fase, um treino prévio do utilizador para se res se fossem distribuídos mais elétrodos ao longo
que sofrem de esclerose lateral amiotrófica (ELA) ou conseguir um funcionamento eficaz. O objetivo dos da mandíbula, mas ainda procuram como fazê-lo de
esclerose múltipla. Poderia mesmo permitir uma responsáveis pelo projeto é que seja o próprio sis- forma mais discreta e eficiente.
aproximação à telepatia: conversa em silêncio. tema, no futuro, a adaptar-se à pessoa, o que fará A.J.L.

SUPER 17
Psicologia

Fenómeno adaptativo problemático

Rendidos ao acaso
18 SUPER
SHUTTERSTOCK
As estrelas cadentes são fenómenos
físicos, mas há quem lhes atribua
significados mágicos ou transcendentes.

Segundo a ciência, o universo e os fenómenos naturais regem-se pelas leis da sorte


e da casualidade, mas os seres humanos tendem a atribuir-lhes uma intenção
e um significado. Há quem acredite que as estrelas cadentes concedem desejos
ou que o aparecimento de um arco-íris é um sinal enviado à pessoa que o vê.
Os especialistas chamam-lhe “preconceito teleológico”. Provém de processos
adaptativos, mas pode ser um obstáculo para o conhecimento científico.
SUPER 19
Q
uando se pergunta por que motivo
algumas rochas são pontiagudas,
pode surgir todo o tipo de respostas,
como a de que evitam, assim, que
alguém se sente em cima delas e possam achatá-
-las, ou que servem para os dinossauros poderem
coçar as costas com a sua ponta afiada. De facto,
foi essa a resposta da maior parte das crianças
que participaram num estudo de Deborah Kelemen,
investigadora do Departamento de Psicologia e
Ciências do Cérebro da Universidade de Boston
(Massachusetts).
As crianças davam explicações teleológicas a
questões sobre a razão de ser de eventos naturais
ou objetos inanimados, isto é, achavam que havia
uma intencionalidade e uma conceção antro-
pomórfica nas pedras, nos rios ou nas estrelas.
Em 75 por cento dos casos, era uma utilidade que
servia o propósito individual do próprio objeto (as
pedras protegem-se com as suas pontas); em 86%,
o propósito era também social, o de ajudar os outros
(aliviam a comichão dos animais). Aos cinco anos,
os miúdos não são materialistas, mas “teístas
intuitivos, dispostos a contemplar os fenómenos
naturais como resultado de um objetivo não
humano”, escreveu a especialista na revista Psy-
chological Science.

Atribuir intenções
ao acaso resulta
em convicções
anticientíficas
Depois, Kelemen reproduziu as suas experiências
com crianças e adultos de diferentes países, dos
Estados Unidos à China, e verificou que o resultado
era igual em todos os casos: desde a mais tenra
infância, o ser humano mostra tendência para atri-
buir intenções personalizadas ao ambiente que o
rodeia. Kelemen chama-lhe “preconceito teleoló-
gico promíscuo”, que implica ideias “baseadas na
intuição e cientificamente incorretas, como a de
pensar que a Terra possui uma camada de ozono
para nos proteger dos raios ultravioleta, ou que o
vírus da Covid-19 sofre mutações para nos infetar”,
explica.

AS INTENÇÕES DOS OUTROS


Para a investigadora, o preconceito teleológico
não é uma inadaptação, mas um constructo decor-
rente de tendências altamente adaptativas, como
a deteção de agentes, isto é, a capacidade para
interpretar uma intenção no comportamento dos
outros e estar alerta. Esse preconceito não é, obvia-
mente, positivo para a compreensão científica: Se dois apaixonados são brindados
“Dificulta a aprendizagem dos princípios básicos da
SHUTTERSTOCK

com um arco-íris, podem interpretá-lo


ciência, como a noção de acaso e a seleção natural. com um sinal da sua felicidade futura,
embora não haja qualquer relação.
Torna-nos propensos a raciocinar e tirar conclusões

20 SUPER
SUPER 21
erradas. Não é fácil as crianças compreenderem bem
os mecanismos da evolução, baseada em variações
aleatórias, que não obedece a uma conceção ou um
propósito superior. Por isso, uma das linhas de tra-
balho do meu laboratório destina-se a ensinar aos
alunos do pré-escolar os mecanismos da evolução,
antes de terem consolidado o preconceito teleoló-
gico. Eu diria que os seres humanos estão, em certo
sentido, mais bem equipados para adquirir crenças
religiosas do que conhecimento científico”, diz
Kelemen, depois de se ter dedicado durante déca-
das a estudar o fenómeno.
Foi o que comprovou noutra experiência publi-
cada na revista Journal of Experimental Psycho-
logy, em 2015, cujos participantes eram profes-
sores de física em diferentes universidades nor-
te-americanas. Pediu-lhes para determinarem se
certas afirmações teleológicas eram exatas, como
a de que o Sol produz luz para as plantas poderem
efetuar a fotossíntese, ou a de que as moléculas se
juntam para criar a matéria. Os de um grupo tinham
de responder muito depressa (3,5 segundos por
pergunta), enquanto os do outro não tinham limite
de tempo. “Vimos que eram mais propensos,
quando não se lhes dava tempo para refletir, a con-
siderar certas tais afirmações”, relatou. O mesmo

A pareidolia
consiste em ver
imagens onde
elas não existem
acontecia com um grupo de adultos ateus ou agnós-
ticos, noutra investigação da sua equipa, publi-
cada na revista Cognition: quando tinham pouco
tempo para responder, tinham tendência para seguir
o mesmo padrão errado, ao considerar fenómenos
naturais, vivos ou não, como “criados por alguém”.

PODERES SOBRENATURAIS
A partir dos três anos, as crianças tendem a
elaborar histórias que partem de uma crença no
sobrenatural (poderes paranormais, deuses, vidas
depois da morte), a qual não é ultrapassada com a
idade, pelo menos não em todos os casos. Cerca de
71% da população mundial acredita num deus, e 74%
acredita na alma, segundo um inquérito de uma
empresa de estudos de mercado e de opinião, a
DYM Reseach. Mesmo pessoas que se dizem ateias
ou agnósticas opinam que as nossas vidas são
governadas, em certa medida, por forças sobrena-
turais, segundo uma sondagem da Universidade de
Kent (Inglaterra) realizada, em 2019, no Reino Unido,
na China, nos Estados Unidos, no Japão, no Brasil
É quase impossível não ver na rocha
e na Dinamarca. de Hvítserkur (Islândia) um elefante
Depois de interrogarem milhares de indivíduos ou outro grande animal a saciar a sede.
que negavam a existência de Deus, os investigado- De facto, é apenas uma rocha basáltica
moldada pela erosão da água e do vento.
res ficaram surpreendidos ao descobrir que uma

22 SUPER
Sinais ocultos
U m estudo de Marjaana Linde-
man, neurobióloga do Instituto
de Ciências do Comportamento da
Universidade de Helsínquia, publicado
na revista Social Cognitive and Affective
Neuroscience, comparou ressonâncias
magnéticas cerebrais de doze pessoas
que acreditavam na existência de for-
ças sobrenaturais com as de onze que
se declaravam céticas. Depois de lhes
mostrar animações de objetos que se
deslocavam de forma aleatória ou diri-
gida, comprovou-se que os crentes con-
sideravam os movimentos aleatórios
como intencionais, e ativava-se mais a
região pré-frontal medial do cérebro,
relacionada com a capacidade de inter-
pretar as emoções ou intenções alheias.
Em contrapartida, os crentes no sobre-
natural eram mais propensos a ver nas
imagens augúrios de futuras situações.
Quando observavam as fotos, ativava-se
a zona do cérebro relacionada com a
linguagem e a interpretação de sinais,
enquanto, no caso dos céticos, funcio-
nava mais a área relacionada com a ini-
bição cognitiva. Estes viam a foto de um
muro, por exemplo, apenas como uma
informação visual (uma parede de tijolo
e nada mais), e não como um símbolo
carregado de significado metafísico.

boa percentagem acreditava num “espírito ou


força vital universal”, nas “forças do bem e do mal”
ou que “os acontecimentos mais importantes da
nossa vida estão escritos no nosso destino”. Vinte
por cento dos ateus norte-americanos estavam de
acordo com alguma destas afirmações, uma per-
centagem que subia para 50% entre os chineses.
Estará o nosso cérebro concebido para acreditar,
por norma, em explicações paranormais?

IDENTIFICAR AGENTES
Talvez tudo comece com a deteção de agentes,
uma capacidade muito útil para a sobrevivência, que
partilhamos com os animais e que consiste em
identificar uma intencionalidade em tudo o que
acontece, para podermos antecipar-nos. Crer que
algo está vivo, é inteligente e nos observa revela-
-se eficaz quando se trata de salvar a pele perante
possíveis ameaças. É o que faz com que um pássaro
que pousou na varanda levante voo quando o vento
agita a cortina: acredita que poderá haver alguém,
por detrás do movimento, preparado para o
comer, pelo que decide fugir. Mais vale prevenir…
As pessoas também tendem a crer que há uma
SHUTTERSTOCK

entidade consciente por detrás da experiência


mais insignificante, e não forçosamente negativa.

SUPER 23
Armadilhas a evitar
Q uer tenhamos consciência disso
quer não, a forma como filtra-
mos a realidade e tomamos decisões
está semeada de preconceitos cogniti-
vos que deitam por terra a capacidade
de pensamento recional. Se os conhe-
cermos, será mais fácil mantê-los à dis-
tância e ser objetivos quando for neces-
sário avaliar qualquer situação com um
critério lógico.
Preconceito de confirmação. Pro-
curamos provas que apoiem a nossa
hipótese ou convicção inicial. Está
relacionado com o preconceito de
observação seletiva, que apenas toma
em consideração o que nos interessa. É
habitual quando procuramos argumen-
tos a favor ou contra uma tese política.
Preconceito retrospetivo. Julgar algo
em retrospetiva avalia as decisões pas-
sadas, não no seu contexto, mas com a
informação que temos agora, depois de
saber o resultado. É por isso que somos
tão duros com os erros dos governantes
e dos que têm de tomar medidas.
Preconceito de causalidade. Con-
siste em associar eventos próximos no
tempo mesmo que nada tenham a ver
uns com os outros. Por exemplo, o Sol
brilha e é por isso que a pessoa que
amamos se declara.
Preconceito de ancoragem. A pessoa
fica com a primeira informação que
recebeu sobre algo e não liga aos argu- Rezar ativa a mesma zona do cérebro
mentos contrários posteriores. que quando falamos com um amigo
ou tentamos pôr-nos na pele de alguém.
Preconceito de negatividade. Faz dar
sempre mais peso e importância à infor-
mação que contém emoções negativas,
em detrimento da neutra ou positiva. Se estivermos a passear com o namorado e virmos quando interpretamos as emoções e intenções
Efeito de halo. A primeira impressão um arco-íris, podemos interpretá-lo como um sinal alheias. Os estudos de neuroimagiologia de Uffe
é a que conta e atribuímos, em função da nossa felicidade. Um estudo publicado na revista Schjodt, da Universidade de Aarhus (Dinamarca),
disso, características imaginárias a Frontiers in Behavioural Neuroscience, em 2019, demonstraram que são ativadas, ao rezar, as mes-
alguém ou a algo. Daniel Kahneman mostrou que ratos sujeitos a condições de stress mas regiões cerebrais do que quando falamos
(n. 1934), psicólogo e Prémio Nobel da tendem a interpretar qualquer estímulo como com um amigo: ativa-se o córtex pré-frontal, uma
Economia, dá como exemplo a pessoa negativo. Por exemplo, se lhes aplicarmos descar- zona implicada na capacidade de adivinhar as
que, ao ver um jogador de râguebi alto e gas elétricas e, depois, abrirmos a porta da gaiola, intenções do outro e que permanece desativada
bem-parecido, tende a pensar que tam- os roedores assustam-se e escondem-se. Os inves- quando interagimos, por exemplo, com uma per-
bém terá de ser ótimo no campo. tigadores também comprovaram que os ratos, se sonagem de um videojogo.
Resistência negativa. Trata-se do viverem em condições satisfatórias, se aproximam
preconceito preferido dos adolescentes com curiosidade da porta da gaiola quando esta EVITAR A ANGÚSTIA
e consiste em fazer exatamente o con- é aberta de par em par. No Homo sapiens, a apti- Outro caso curioso é o dos autistas, cujos circuitos
trário do que nos aconselham, ou de dão para detetar agentes está relacionada com cerebrais relacionados com a teoria da mente não
acreditar exatamente no oposto do que outra capacidade cognitiva, a chamada “teoria da funcionam bem. Talvez por isso, os adolescentes
nos dizem. mente”. Trata-se da capacidade de ajuizar como com algum transtorno do espectro autista têm 90%
Preconceito do status quo. Reforça as funcionam cérebros diferentes do nosso para nos mais probabilidades do que os outros de ser
convicções consentâneas com a ordem podermos colocar na sua pele. ateus, segundo Ara Norenzayan, diretor do Centro
de coisas estabelecida. É por isso que O neuropsicólogo Jordan Grafman, da Universi- para a Evolução Humana, Cognição e Cultura da
Galileu Galilei (1564–1642) passou o dade do Noroeste (Illinois), observou em imagens Universidade da Colúmbia Britânica, especializado
que passou. de ressonância magnética que os pensamentos em aprofundar a base neurológica das crenças
religiosos ativam a mesma zona do encéfalo que religiosas.

24 SUPER
participantes que sentiam que não controlavam
a situação eram mais propensos a identificar
padrões (supostas imagens ocultas) em placas
com uma dispersão aleatória de pontos negros. É
o que se designa por “pareidolia”, um termo que
define o fenómeno que consiste em ver um dragão
ou uma ilha numa nuvem do céu, ou uma cara na
mancha de humidade de uma parede.
“Poderia ser definida como um tipo de ilusão ou
deficiência na perceção que faz com que um estí-
mulo vago, habitualmente uma imagem, seja erra-
damente distinguido como uma forma familiar
(rostos, silhuetas, animais). Pela sua etimologia
grega, poderia ser traduzido por ‘imagem anexa’.
A mente humada atribui um sentido a todas as coisas,
mesmo que não o tenham”, explica o fotógrafo Jesus
Olmo, que se define como um detetor de agentes
hiperativo. No seu trabalho, procura “compilar
essas coincidências espantosas que nos deixam
estupefactos e desafiam a nossa visão materialista,
mecanicista e causalista do mundo”. É assim que
o psiquiatra suíço Carl Jung (1875–1961), passando
por cima das fronteiras da ciência, definia as sin-
cronicidades, ou “coincidências significativas que
supostamente não se podem explicar pelas leis da
causalidade”.

A FÉ ACALMA
Sabemos que encontrar um significado profundo
para o que acontece ou sentir que tudo faz parte

Crer num deus


ajuda a controlar
a ansiedade em
SHUTTERSTOCK

casos de stress
Uma razão para procurar explicações para tudo, TEMPOS CONVULSOS de um plano divino produz uma sensação de bem-
científicas ou metafísicas, tem a ver com evitar a Vários estudos demonstraram que, em tempos -estar. Inibe mesmo os circuitos cerebrais que se ati-
angústia. Trata-se de uma forma de reduzir a convulsos, aumentam a fé e as crenças no sobrena- vam quando pensamos que fizemos asneira: uma
ansiedade produzida por não se saber exatamente tural, talvez porque pensar que tudo acontece por zona do córtex cingulado anterior conhecida por
qual a razão da nossa existência. Para Justin Barrett, uma razão pode ser reconfortante para muitas “negatividade relacionada com o erro”. Uma
investigador do Centro da Mente e Antropologia pessoas, e implica uma certa sensação de ordem equipa da Universidade de Toronto (Ontário) mediu
da Universidade de Oxford (Inglaterra), “crer num e previsibilidade, segundo Kelemen. O psicólogo a atividade nessa zona em 28 participantes que
ser superior e omnisciente, mais do que uma Giora Keinan, da Universidade de Telavive (Israel), cometiam erros de vez em quando nos testes.
doença, como disse Freud, seria uma receita adap- comprovou, numa investigação, que o stress e a Curiosamente, a reação de stress verificava-se
tativa para manter a calma face à incerteza”. necessidade de ter uma situação sob controlo ati- menos nas pessoas que acreditavam num deus.
Contudo, Deborah Kelemen pensa que não con- vam o comportamento supersticioso e o pensa- “Os crentes mostram-se mais calmos quando estão
vém baixar a guarda, já que esta tendência “faci- mento mágico. Por sua vez, investigadores da Uni- sob pressão, talvez porque a religião ajuda a explicar
lita certos padrões de pensamento, como o racio- versidade de Queensland (Austrália) concluíram, fenómenos que não entendemos”, escreveu o
cínio fatalista, que é desadaptativo e produz uma num estudo publicado na revista PLOS One, que neurocientista Michael Inzlich, autor do estudo.
falsa sensação de segurança”: “Por exemplo, no a perda de controlo aumenta a crença na precogni- Por tudo isto, não é de estranhar que mais de
contexto da atual pandemia, o preconceito teleo- ção, na possibilidade de prever o futuro (por exem- metade da população mundial prefira pensar que a
lógico leva muita gente a pensar que ‘tudo acon- plo, através da astrologia), pois pensar que pode- vida se rege por um plano concebido por uma inte-
tece por uma razão’, ou ‘o que tem de ser será’, mos saber o que se vai passar proporciona uma ligência superior, mais do que por uma sucessão
pelo que não usam máscara nem mantêm a distância maior sensação de controlo sobre a própria vida. de coincidências. Contudo, convém estar ciente de
social. Ora a vida não é previsível nesse sentido, e Os resultados de uma experiência desenvolvida que defender que “nada acontece por acaso”
comportar-se como se o fosse tem consequências por Jennifer Whitson, da Universidade do Texas, implica dar uma bofetada na ciência.
sociais negativas.” publicados na revista Science, confirmaram que os L.G.R.

SUPER 25
Psicologia

Entrevista com Ralph Lewis

Crenças e intenções

No seu último livro (2018), Lewis investiga


a mente científica para encontrar propósito
num universo regido pelas leis da física.

O trabalho do psiquiatra Ralph Lewis, do Centro Sunnybrook


de Ciências da Saúde e da Universidade de Toronto (Ontário), centra-se
na tendência humana para atribuir relevância à intuição e à perceção subjetiva
e nas bases neuronais da motivação, da intencionalidade e das crenças.
26 SUPER
SUPER 27
KEVIN VAN PAASSEN / SUNNYBROOK
C
omo escreveu Ralph Lewis na revista
Psychology Today, “tudo começou com
a fertilização de um óvulo”: “Que pro-
babilidades havia de que esse evento
desse origem a quem é agora? Se esse espermato-
zoide, um entre milhões, não o tivesse fecundado,
não existiria. Se se tivesse tratado de outro esper-
matozoide do seu pai (meio segundo depois), ou de
um óvulo diferente da sua mãe, um hipotético irmão
estaria no seu lugar. É absurdamente improvável.”
A vida é uma sucessão de eventos aleatórios.
Lewis começou a pensar nestas coisas quando foi
diagnosticado um cancro à sua mulher. “Em
momentos de incerteza e de vulnerabilidade, quis
acreditar que, de algum modo, estava escrito no
universo que tudo acabaria bem. Todavia, por causa
do meu trabalho e da minha formação, conhecia o
poder da negação e do pensamento crente como
mecanismo de defesa. Tinha visto como são usados
pelas pessoas cujo destino está a ser arbitrariamente
determinado por fatores triviais e aleatórios que
parecem zombar das suas vidas”, afirma.
Porém, em vez de perder tempo a perguntar
“porquê eu?”, a mulher concentrou os seus esforços
no tratamento. “Depois de termos entendido que
o cosmos carece de propósito, o mistério da razão
pela qual acontecem coisas más a pessoas boas
evapora-se. Acontecem pela mesma razão do que
tudo o resto: as mesmas leis da natureza que expli-
cam todas as causas e efeitos.” O importante é
saber o que fazer com o drama que nos coube viver,
como agir para superá-lo. É essa a ideia que trans-
mite aos seus pacientes oncológicos do Odette
Cancer Centre, em Toronto.
No entanto, a sua abordagem científica dá de caras
com uma tendência muito arreigada na natureza
humana. “Ao longo da história, pensámos que o
mundo é controlado por um poder superior, car-

O excesso
de procura de
significado gera Algumas pessoas com perturbações
mentais veem constantemente
sinais ocultos ou mensagens
doença mental em eventos banais do quotidiano.

regado de intencionalidade, mas a ciência diz-nos para criar narrativas coerentes e elaboradas com um a pensar que esses eventos são controlados por
que o universo é arbitrário”, indica no livro Finding significado profundo e um final satisfatório. agentes sobrenaturais.
Purpose in a Godless World. Foi sobre tudo isto que Acreditamos que as coisas devem acontecer por Como é que a ciência explica isso?
conversámos com o investigador. motivos específicos, que devem ter razão de ser. O encéfalo especializou-se em procurar padrões
O cérebro não gosta da sorte e dos acasos. Somos e detetar agentes, em pensar que os fenómenos
FINALIDADE SUPERIOR egocêntricos. Pensamos que tudo tem a ver con- naturais são produzidos por um ser inteligente. Tra-
Ontem, dois dias depois de uma velha foto me ter nosco. Não é de estranhar que pense que tudo ta-se de tendências que evoluíram como parte do
feito lembrar de um amigo que não via há dez anos, acontece por um motivo e que tem a ver consigo. nosso ser social. Gostamos de reconhecer o pro-
tocou o telefone e era ele. Não consegui evitar pensar É comum crer que há uma finalidade superior ou pósito das ações dos outros. Essa capacidade seria
se não seria um sinal. um plano divino em tudo? favorecida pela seleção natural, pois contribui para a
Temos tendência para identificar padrões e inten- Claro. Gostamos tanto de procurar explicações sobrevivência, ao antecipar-se às intenções de uma
ções deliberadas nos atos alheios. O nosso cérebro e de contar histórias que nos excedemos e atribuí- presa ou de um predador. Se pensarmos que um
foi concebido para formar histórias nos centros da mos um propósito a eventos aleatórios da natureza ruído que se ouve na floresta, à noite, é um mons-
linguagem do hemisfério esquerdo, e tem tendência ou a objetos inanimados. Isso pode levar a pessoa tro que nos quer apanhar, iremos pôr-nos a salvo.

28 SUPER
julgados por espíritos ou divindades. Talvez motive
as pessoas a esforçarem-se mais no que fazem se
acreditarem que isso obedece a um propósito.

MAIS TRABALHO, MELHOR SAÚDE


Quem acredita que o mundo é governado por um
plano divino aplica-se mais no trabalho?
Não há provas de que os que não creem num pro-
pósito divino estejam menos motivados ou encon-
trem menos sentido para a sua vida. Os cientistas,
que, como coletivo, são menos propensos a crer na
intencionalidade de um agente sobrenatural, estão
geralmente entre os membros mais motivados e
inspirados da sociedade.
Alguns estudos indicam que os que pensam que
a vida tem um sentido exibem melhor saúde. É mais
saudável crer num deus?
É característico dos seres humanos ter necessi-
dade de significado. Sentir que esse propósito é
maior do que nós é muito motivador, mas associá-
-lo a um ser superior não tem uma base real. Estar
motivado tem a ver com a personalidade, com a
forma de ser. É o fator chave da correlação entre
o sentido de propósito e o estímulo que encontra-
mos no que fazemos. É um círculo vicioso.
Uma pessoa pensa que tudo acontece de acordo
com um plano divino, outra que a vida é puro acaso.
O que implica cada atitude?
Crer que existe intenção por detrás de eventos
aleatórios e que tem a ver connosco parece a forma
habitual de pensar, à falta de melhor. Ultrapassar
tais intuições requer pensamento crítico, cético,
também designado por “ciência”. A ciência é difícil,
necessita de educação e aprendizagem, um certo
nível de capacidade cognitiva. Muita gente nunca a
compreenderá nem estará interessada em fazê-lo.
Felizmente, é possível ter uma existência feliz sem
chegar a vislumbrar a natureza da realidade.

Pode levar
a crises de delírio
e paranoia,
SHUTTERSTOCK

ou megalomania
Se tiver sido um gato, nada perdemos; se fosse abstrato complexo e aptidões cognitivas e de lin- POUPAR ENERGIA
um urso, salvámos a vida. guagem mais avançadas. Disse que tendemos a contar a nós próprios his-
Mais de metade da população mundial possui tórias credíveis, embora não sejam reais. Esse viés
VANTAGENS ADAPTATIVAS alguma crença metafísica num ser superior, inteli- cognitivo é uma disfunção do pensamento?
Acreditar num propósito cósmico acompanha- gente e criador. Será que a evolução premiou a pro- Não, regra geral, os viés cognitivos são adapta-
-nos desde o princípio? cura de significado? É algo adaptativo? tivos. Trata-se de estratégias para poupar energia,
O conceito de propósito cósmico é muito abs- Não sabemos ao certo. Se não for adaptativo em atalhos que ajudam a avaliar as situações de forma
trato, pelo que talvez não seja inato, mas tem raízes si, pode ser consequência de tendências que o são mais rápida e eficiente. Normalmente, são fiáveis,
muito fundas na natureza humana; veja-se as cren- efetivamente, como a procura de padrões ou a dete- mas fazem-nos perder exatidão em prol da eficácia.
ças animistas e a fé na vida depois da morte, como ção de agentes. Talvez crer no sobrenatural tenha Por isso, devemos confiar neles e, simultaneamente,
mostram as pinturas rupestres e as práticas fune- as suas vantagens em termos de sobrevivência, ao contemplá-los com cautela e ceticismo.
rárias antigas. A noção de um plano divino é uma reforçar os laços entre as pessoas que partilham Encontrar uma intenção sobrenatural em coisas
versão mais elaborada dessas crenças, concebida crenças e ao promover o bom comportamento normais é habitual. Quando deixa de ser um precon-
por cérebros com capacidade para o pensamento por se pensar que estamos a ser observados ou ceito e se transforma em doença mental?

SUPER 29
Quando os preconceitos ou erros de inferência
levam a identificar propósitos para além da conta,
podem conduzir a vários distúrbios mentais.
A psicose e o delírio amplificam até ao absurdo
a tendência normal para identificar padrões e
descobrir planos deliberados numa sequência de
eventos aleatórios que, ainda por cima, relaciona-
mos connosco. Em estado de psicose, a pessoa
desenvolve convicções falsas mas inamovíveis.
As mais comuns são os delírios de autorreferência:
crer que meras coincidências se referem ao indivíduo
de forma pessoal. Os afetados por este trastorno
repetem que “tudo acontece por uma razão”.
Detetam mensagens ocultas ou sinais que indicam
que certos acontecimentos não podem ser fortui-
tos. Estão convencidos de que têm a ver com eles,
por vezes na forma de megalomania ou paranoia,
e acrescentam provas que consideram irrefutáveis
para apoiar as suas afirmações. Estabelecem
demasiadas ligações e dotam coisas arbitrárias de
uma importância que não possuem. Os delírios são
versões extremas de erros cognitivos normais.

EXCESSO DE DOPAMINA
Por que motivo um preconceito comum em pes-
soas saudáveis se descontrola noutras?

Acreditar num
propósito para
a vida pode ser
uma cola social
O mecanismo cerebral do delírio tem muito a ver
com a produção excessiva de dopamina, o neu-
rotransmissor que desempenha um papel funda-
mental nos circuitos da atenção e da motivação.
Um pico na transmissão de dopamina faz o cére-
bro perceber que um estímulo é importante,
digno de atenção. Quando este sistema está
sobre-excitado, a pessoa afetada pode pensar que
demasiadas coisas são notórias e confundir estí-
mulos insignificantes com mensagens relevantes
a nível pessoal. Um doente psicótico poderia ver o
mesmo modelo de carro em duas ocasiões e pensar
que é uma prova de que está a ser vigiado. Muitas
drogas podem induzir psicose ao interferir com o
sistema dopaminérgico do cérebro. Por outro lado,
os fármacos antipsicóticos bloqueiam a dopamina.
Porque encontramos explicações egocêntricas
para as coisas que acontecem?
Todos nos centramos mais nas coisas pessoal-
mente relevantes. Uma grávida pode achar que há
mais anúncios de fraldas ou referências a bebés e
partos em todo o lado. Normalmente, a sua aptidão
para procurar evidências reais iria impedi-la de acre- As crenças sobrenaturais na vida
ditar que alguém da televisão passou os anúncios depois da morte têm fundas raízes
de propósito para ela. Seria um delírio. No entanto, na natureza humana, como provam
as práticas funerárias da antiguidade.
muita gente poderia pensar que se trata de uma

30 SUPER
espécie de presságio, por exemplo, de que o parto
vai correr bem. Muitas pessoas mentalmente sãs
não acham estranho acreditar em sinais.

PRESSÁGIOS E SINAIS
Qual é a definição de presságio ou sinall?
O dicionário diria que é um fenómeno ao qual se
atribui a capacidade de antecipar um evento futuro,
mas, de um ponto de vista científico, isso não
existe. É apenas uma crença supersticiosa, uma
perceção subjetiva infundada, formada exclusiva-
mente por crenças mágicas prévias ou preconceitos
cognitivos.
Nesse caso, quando um amigo que não vejo há
dez anos me telefona depois de eu ter encontrado
uma foto sua, é por mero acaso?
As coincidências parecem impressionantes, por-
que consideramos como são improváveis depois
de acontecerem e através da nossa visão de autor-
referência. Quanto mais algo nos pareça inexpli-
cável, mais céticos deveríamos ser relativamente
às perceções subjetivas. Na realidade, a probabi-
lidade estatística de uma coincidência improvável
ocorrer de vez em quando é mais elevada do que
pensamos.

Genes egoístas
dão origem
a indivíduos
colaborantes
AUSÊNCIA DE SENTIDO
Se não existe um sentido, o que importa que o
ambiente se destrua ou que morram os seres pró-
ximos de nós?
A sobrevivência e a reprodução são o objetivo
mais arreigado em todos os organismos vivos.
É uma característica da vida. Tudo o resto decorre
disso e constitui uma elaboração complexa desses
dois impulsos básicos. A complexidade produz coi-
sas maravilhosas. Através de uma série de meca-
nismos naturais que operam a diferentes níveis
(desde a célula até ao grupo social), os genes
egoístas dão lugar a indivíduos colaborantes e
altruístas e a sociedades compassivas e interde-
pendentes.
Está a falar de encontrar sentido para um mundo
sem deus. Qual é o seu propósito vital, a nível pes-
soall?
Tenho muitos e evoluem com a experiência. Os
mais importantes para mim, tal como para a maioria
das pessoas, têm a ver com a minha família e com
a minha profissão. Escolhi estudar medicina e psi-
quiatria para tentar ajudar e entender as pessoas,
integrar o meu duplo interesse pela ciência e pelas
humanidades. Isso continua a ser a minha maior
motivação.
GETTY

L.G.R.

SUPER 31
Ambiente

Primeiro censo mundial

Onde estão
as árvores?
Até há muito pouco tempo, não havia um censo mundial e preciso
sobre as árvores que existem na Terra. Graças às novas tecnologias
e ao trabalho coordenado de investigadores de todo o mundo, dispomos
finalmente de um mapa pormenorizado e fidedigno, que pode servir de referência
para empreender iniciativas de reflorestação bem planificadas e eficazes.

32 SUPER
SHUTTERSTOCK
Embora cubram menos de três
por cento da superfície da Terra,
as florestas tropicais albergam
mais de metade das espécies
animais não aquáticas.

SUPER 33
Q
uantas árvores há no mundo? Até há
pouco, ninguém sabia responder a
esta pergunta. Uma estimativa indi-
cava que seriam cerca de 400 mil
milhões. Todavia, não havia uma contagem siste-
mática. Além disso, alguns especialistas pensavam
que não era possivel sabê-lo e que não era cientifi-
camente importante. No entanto, para Tom Crow-
ther, um engenheiro florestal da Universidade de
Yale (Connecticut), a questão acabou por tornar-se
da máxima importância.
O seu interesse nasceu devido a um programa
ambiental das Nações Unidas denominado Billion
Tree Campaign, lançado em 2006 com o objetivo
de reflorestar maciçamente o planeta para mitigar
as consequências das alterações climáticas. Era uma
intenção nobre, mas sem base científica. Crowther
apercebeu-se de que, para coordenar e contex-
tualizar os esforços da campanha, seria necessário
inseri-los no quadro de uma comunidade de inves-
tigadores. O primeiro passo era obter uma estima-
tiva fiável do número total de árvores. A quanti-
dade e a distribuição global por países permitiria
efetuar reflorestações corretamente orientadas e
obter melhores resultados.

SETE VEZES MAIS


Desse modo, obteve o apoio de investigadores
da Escola Florestal da Universidade de Yale, assim
como de outros especialistas em engenharia e
ecologia. O grupo de trabalho reuniu dados de
numerosos estudos prévios, procedeu à contagem
direta em certas zonas de cada continente e usou
sistemas de deteção por satélite. Os dados foram
armazenados mediante cartografia digital, o que
proporcionou as ferramentas necessárias para
completar o trabalho com uma resolução de um
quilómetro quadrado. Assim, foi possível elaborar,
em 2015, o primeiro mapa das árvores do mundo:
T.W. CROWTHER, H.B. GLICK, K.R. COVEY ET AL

O recenseamento
planetário
surpreendeu O Mapa Global da Densidade de Árvores
mostra de forma fiel a sua distribuição
os cientistas em todas as regiões do planeta.

o Global Tree Density Map (GTDM, Mapa Global da DENSIDADES INESPERADAS O GTDM revela aspetos fundamentais da cober-
Densidade de Árvores), que revelou que o número As árvores armazenam grandes quantidades de tura arbórea. Por exemplo, a forma como a den-
total é de cerca de três biliões, quase 7,5 vezes carbono, pois absorvem dióxido de carbono (CO2) sidade se altera nos diferentes tipos de floresta.
mais do que se pensava. durante a fotossíntese e incorporam-no no seu A mais elevada surge nas regiões subárticas da
No entanto, as implicações do estudo ultrapas- sistema biológico. Quanto maior o número de árvo- América do Norte, da Escandinávia e da Rússia.
sam em muito a mera obtenção de um número. res, maior a quantidade de CO2 que se transfor- Nessas frias latitudes setentrionais, a baixa tem-
A quantidade de árvores presentes num ecossis- mará em biomassa (matéria orgânica do ecossis- peratura e a escassa humidade favorecem o cres-
tema determina que tipo de espécies, tanto ani- tema florestal). Isso reduz o carbono na atmosfera, cimento de espécies de coníferas tolerantes ao
mais como vegetais, podem ali viver, e em que pois fica sequestrado nos tecidos superiores (folhas stress, alcançando as maiores densidades arbóreas
número. Deste modo, o GTDM serve para informar e tronco) e inferiores (raízes). As nossas amigas da Terra. Curiosamente, apesar da origem russa
outros cientistas sobre a estrutura dos ecossiste- árvores são eficazes escoadouros de CO 2 que da palavra “tundra” (“planície sem árvores”), a
mas florestais e a sua biodiversidade em diferen- diminuem a concentração deste gás de efeito de tundra de coníferas é o bioma que mais árvores
tes regiões do mundo. estufa na atmosfera. possui por hectare: em média, cerca de 900.

34 SUPER
O exemplo do Brasil
D e todos os países, o Brasil é o que
melhor conseguiu controlar a perda
anual de florestas. Enquanto se registou o
e os níveis desceram para a média habitual.
Todavia, os incêndios regressaram em força
no verão de 2019, e alcançaram o seu apogeu
deflorestação provém, tradicionalmente, de
abates de árvores associados à obtenção de
matérias-primas e à agricultura itinerante.
desaparecimento, em 2003, de mais de 40 no início de agosto, com quase três vezes Além disso, a Amazónia não é o lugar mais
mil árvores por quilómetro quadrado, em mais queimadas do que durante o mesmo ameaçado do continente americano. Com
2010 e 2011, o declínio arbóreo diminuiu período do ano anterior. A opinião pública recurso a dados do sistema de satélites
para menos de metade, segundo o estudo internacional reagiu com severas críticas Landsat, Hansen e os seus colaboradores
de Matthew C. Hansen, do Departamento às políticas ambientais do presidente Jair demonstraram que as florestas secas tropi-
de Ciências Geográficas da Universidade Bolsonaro. Este enviou militares para a Ama- cais da América do Sul apresentam a maior
do Maryland, publicado em 2013. As quei- zónia e ordenou a proibição de queimadas taxa de perdas devido à dinâmica de deflo-
madas (a utilização do fogo para aumentar durante 60 dias. As medidas surtiram efeito restação em zonas da Argentina, da Bolívia e
a superfície agrícola ou de pastoreio) de e a quantidade foi reduzida a um terço no do Paraguai. De facto, o anterior presidente
2016 e 2017 desencadearam outro grande final de agosto e em setembro. No entanto, boliviano, Evo Morales, aprovou um decreto
aumento das perdas florestais durante os segundo indica o Global Forest Watch, os que permitia aos agricultores aumentar qua-
mandatos de Dilma Rousseff e Michel incêndios florestais não são a principal causa tro vezes os terrenos para cultivos agrícolas
Temer. Em 2018, foi recuperado o controlo do drama ecológico brasileiro. A verdadeira mediante a queima seletiva.

SUPER 35
Haiti e República
Dominicana
O s efeitos da deflorestação são
palpáveis na ilha Hispaniola,
partilhada por dois estados: o Haiti e
a República Dominicana. No Haiti, o
problema é o abate maciço de árvores
para servir de combustível. Ao invés,
a República Dominicana possui uma
cobertura arbórea quatro vezes mais
densa. De facto, a densidade florestal
quase estabelece o limite fronteiriço
entre ambos os países.
T.W. CROWTHER, H.B. GLICK, K.R. COVEY ET AL

África subsahariana
O Gana e a Costa do Marfim sofre-
ram um grande aumento per-
centual na perda de florestas primárias
entre 2017 e 2018 (60 e 26 por cento,
respetivamente). A exploração mineira
ilegal foi em grande parte responsável
pela deflorestação. Pensa-se também
SHUTTERSTOCK

que a expansão das plantações de cacau


causou perdas em ambos os países.
Na República Democrática do Congo,
a perda de floresta primária foi 38%
mais elevada em 2018 do que em
2011–2017. A expansão do abate flores- TRISTES TRÓPICOS na maioria dos biomas. As áreas mais húmidas e
tal em pequena escala para a agricultura Todavia, segundo o GTDM, são as regiões tropicais quentes são aquelas em que podem crescer mais em
e a obtenção de lenha foi responsável que possuem maior proporção de zonas flores- número, e deveriam ser, por conseguinte, as de
por três quartos do declínio. Alguns tais: 42,8 por cento das árvores do planeta encon- maior densidade. Todavia, a fria e seca tundra
padrões analisados pela Universidade tram-se em áreas tropicais e subtropicais. Ao con- é a mais rica neste aspeto. Qual a razão para os
do Maryland sugerem que os novos trário das coníferas, as árvores tropicais possuem trópicos não serem os lugares mais arborizados?
sistemas agrícolas em média escala e a copas cheias de folhas compridas e largas, que A resposta é muito simples: deve-se à intervenção
deslocação das populações devido ao acabam frequentemente em ponta, conferindo à humana. Os efeitos positivos do calor e da humi-
conflito armado também contribuíram paisagem a sua característica frondosidade. dade são revertidos nessas regiões porque as pes-
para a deflorestação. Os investigadores descobriram também que o soas preferem as terras húmidas e produtivas para
clima pode ajudar a prever a densidade das árvores a agricultura. Procede-se ao corte de árvores para

36 SUPER
Indonésia
É o país do mundo onde mais
depressa está a desaparecer a flo-
resta virgem tropical. Segundo o Global
Forest Watch, ocupa a sétima posição
na lista de países com maior aumento
da deflorestação. A equipa de Hansen
constatou que desaparecem mais de
vinte mil quilómetros quadrados de
floresta por ano. No entanto, parece que
a nova legislação está a conseguir rever-
ter o problema. Em 2017/18, a taxa de
deflorestação reduziu para menos de
metade.

do solo e à gestão florestal. Crowther estima que


há menos 46% de árvores no planeta desde o iní-
cio da agricultura, há cerca de doze mil anos, no
Neolítico.
Os efeitos variam de país para país e dependem
da densidade populacional. Segundo o Global Forest
Watch (uma plataforma que proporciona dados e
ferramentas para a monitorização das florestas),
o Burkina Faso é o país mais deflorestado. Entre 2001
e 2018, sofreu a maior perda relativa de cobertura
arbórea do mundo: mais de 99% das árvores que
possuía no ano 2000 desapareceram. Segue-se a
Mauritânia.

TAREFA PRIMORDIAL
O impacto das populações humanas do passado
na transformação da vegetação primitiva tem uma
grande importância para se poder compreender
a dinâmica florestal a longo prazo, assim como
para a conservação e gestão desses recursos. Por
exemplo, o GTDM identifica habitats que poderiam
ser mais resistentes ou estar em risco de futuras

A qualidade
da água e do ar
Com 115,55 metros de altura, esta sequoia,
batizada como Hyperion, é a árvore mais
alta que conhecemos. Vive no Parque
depende
Nacional Redwood, no norte da Califórnia.
das árvores
obter mais superfície de terreno fértil, com a con- precisos muitíssimos anos para as florestas voltarem alterações ambientais. É também possível melhorar
sequente diminuição da densidade. O aumento ao seu estado original. A base de dados do Centro os modelos de muitos sistemas em grande escala,
da atividade humana traduz-se numa redução do de Análise de Informação Sobre o Dióxido de Car- desde o ciclo do carbono e as alterações climáticas
número total de árvores, e esse padrão repete-se bono, dos Estados Unidos, revela que quase 35% à distribuição de espécies animais e vegetais.
em todo o mundo. das emissões antropogénicas de CO2 se devem à Preservar as nossas árvores deveria ser uma tarefa
utilização do solo, nomeadamente ao abate de primordial. Armazenam grandes quantidades de
CLAREIRAS AGRÍCOLAS árvores para a agricultura e ao seu aproveitamento carbono, é delas que depende a qualidade da água
As florestas tropicais primárias proporcionam para fins energéticos e para a indústria madeireira. e do ar e prestam inúmeros serviços aos seres
biomas para mamíferos emblemáticos, que vão dos O GTDM permite estimar uma perda bruta humanos. Sem árvores, a vida na Terra seria muito
orangotangos e gorilas-de-montanha aos jaguares de mais de dez mil milhões de árvores por ano, mais escassa e difícil.
e tigres. Quando se regista um abate de árvores, são devido à deflorestação, às alterações na utilização M.G.B.

SUPER 37
Animais

Alguns alimentos podem matar

Dietas
separadas
A ingestão de comida humana pode causar graves
problemas de saúde a cães e gatos: alimentos que são
saudáveis para nós tornam-se tóxicos para os animais.

O
s detentores de animais de estimação Os animais de estimação também não devem
partilham com eles a casa, o tempo, as ingerir café, chocolate ou chá, que são estimulantes
rotinas e, por vezes, os alimentos que devido à presença de cafeína no primeiro, teobro-
fazem parte da sua dieta, sem terem mina no segundo e teofilina no último, tudo subs-
consciência de que alguns podem revelar-se nocivos tâncias alcaloides que exercem um efeito sobre o
para cães e gatos e colocar em risco a sua saúde ou sistema nervoso central. Além disso, podem dar
mesmo a sua vida. O abacate, por exemplo, é uma origem a problemas renais e cardiovasculares e a
fruta cuja toxicidade se encontra no caroço e na alterações na contractibilidade da musculatura.
casca, pois contêm persina, uma toxina completa- Se ingerir grandes quantidades, isso poderia até
mente inócua para o ser humano mas nociva para custar a vida ao animal. Os sintomas incluem dis-
os animais e cujo consumo pode provocar-lhes túrbios gastrointestinais (vómitos, diarreia e dor
distúrbios gastrointestinais e pancreatite. abdominal), incontinência e tremuras.
O álcool também pode representar um perigo, Por sua vez, as carnes cruas podem esconder
pois o seu organismo irá absorvê-lo rapidamente e larvas de parasitas que causam graves patologias
pode provocar-lhes desde uma descida da pressão ao animal ou ao seu detentor. Assim, por exemplo,
sanguínea até hipoglicémia, hipotermia, vómitos, dar-lhe um bife por cozinhar poderia provocar-lhe
diarreia, tremuras e, em alguns casos, dificuldade uma triquinose, doença produzida por um parasita
em respirar. Não nos devemos esquecer de que do género Trichinella que acarreta anorexia, des- furam o aparelho digestivo, ou que podem mesmo
o álcool está presente não só nas garrafas como nutrição e até, se a infeção for grande, a morte. obstruí-lo se o seu tamanho for demasiado grande
noutro tipo de produtos que, por descuido ou des- para passar por ele. Em ambas as situações, a vida
conhecimento, podemos deixar ao alcance dos CUIDADO COM OS CAROÇOS! do animal corre perigo.
animais, desde produtos de confeitaria até colutó- Devemos também ter cuidado com as cerejas. Embora possa parecer surpreendente (dado
rios, perfumes ou fruta fermentada, entre outros. Não que o próprio fruto seja tóxico, mas os animais que os mamíferos recém-nascidos se alimentam do
Uma ingestão excessiva (ou consumo cons- de estimação tendem a consumir igualmente o leite materno), deverá evitar-se que cães e gatos
tante) de alho, cebola, cebolinho e alho-porro pode caroço, e este contém um tipo de glicosídeo ciano- o bebam. À medida que crescem, produz-se uma
acarretar problemas como distúrbios gastrointes- génico que provoca alterações digestivas, letargia, redução progressiva da produção da enzima encar-
tinais ou mesmo anemia hemolítica, causada pela dificuldade em respirar, etc. De facto, todos os frutos regada de facilitar a sua digestão (a lactase), o que
diminuição da quantidade de glóbulos vermelhos com caroço (abacate, cerejas, pêssego, ameixas…) pode torná-los intolerantes ao leite e também aos
no corpo, como se explicava num artigo publicado são potencialmente prejudiciais, pois os animais seus derivados.
na revista Journal of Nutrition. Alguns dos sintomas comem o fruto inteiro, incluindo os caroços, o que Por sua vez, as leveduras utilizadas em confeita-
são mucosas pálidas, fraqueza, aumento da fre- poderá provocar a obstrução parcial ou total do ria e panificação incorporam o fungo Saccharomy-
quência cardíaca, icterícia… O detentor do animal aparelho digestivo, um bloqueio que poderá exigir ces cerevisiae, que provoca o processo de fermen-
deve tomar em consideração que os sintomas tar- uma intervenção cirúrgica para ser resolvido. tação na massa. Na maior parte dos casos, uma
dam por vezes a aparecer e que a intoxicação se Não se deve também dar-lhes ossos, nem crus ingestão dessa massa crua dá origem a um
produz não só por ingerir o produto fresco, mas nem cozinhados. Podem lascar-se enquanto são aumento da produção de gases, vómitos, diarreia
também poderá ocorrer se ele tiver sido cozinhado. mastigados e produzir fragmentos afiados que per- e letargia.

38 SUPER
Longe do lixo
A lgumas pessoas consideram que
os cães e os gatos possuem uma
capacidade especial que lhes permite
comer qualquer tipo de alimento,
seja em que estado se encontre, ou
mesmo se já estiver com mofo ou
apodrecido. Embora seja verdade
que um animal faminto, ou com
obsessão pela comida, tentará ingerir
qualquer coisa, isso não significa que
lhe vá fazer bem. É por essa razão que
o detentor não deve deixar ao seu
alcance alimentos que se encontrem
em mau estado ou com bolor, pois
poderão provocar vómitos, dor abdo-
minal, descoordenação, convulsões
e, em casos extremos, insuficiência
hepática.

tóxico devido à persina e por ser muito gordo (nas


aves, os sinais de intoxicação surgem poucas horas
após a sua ingestão; muitas vezes, morrem alguns
dias depois).
Quanto aos pequenos mamíferos (como o hams-
ter), gostam e dão-se bem com quase tudo, mas
há também alimentos nocivos para a sua saúde,
como os citrinos, que, devido à sua acidez, cos-
tumam provocar-lhes problemas estomacais, ou
como as couves e a couve-flor, que dão origem
a digestões pesadas. Nestes animais, as cólicas,
causadas ou não por gases, são muito dolorosas
e, por vezes, não lhes sobrevivem.
No caso das aves, se nos referirmos apenas às
que se alimentam de vegetais, frutas e sementes,
não se dão bem com as sementes de frutos, devido
SHUTTERSTOCK

ao cianeto que contêm, com as plantas solanáceas


(como a batata, o tomate, o pepino e o pimento),
com grandes quantidades de oxalatos que provo-
cam graves alterações renais, e com o leite e seus
As uvas e as passas são alimentos que também o açúcar (pastilhas elásticas, rebuçados, gomas...) derivados, pois o seu aparelho digestivo não está
não devem comer: provocam sérias alterações e nas pastas de dentes, entre outros produtos, e preparado para processá-los.
renais. Estes são os sintomas que podem mani- a sua ingestão pode provocar aos animais distúr- Em relação aos répteis herbívoros, como a iguana,
festar após a sua ingestão: fraqueza, vómitos, bios gastrointestinais, hipoglicémia ou mesmo estão proibidas bananas e uvas, pois contêm tani-
diarreia, letargia… Segundo um estudo publicado insuficiência hepática, se as quantidades ingeridas nos que interferem no metabolismo das proteínas,
na revista Journal of Veterinary Internal Medicine, forem importantes. espinafres e aipo, dois vegetais com ácido oxálico,
levado a cabo entre 1992 e 2002 com animais que que faz diminuir os níveis de cálcio no organismo
tinham ingerido grandes quantidades destes ali- OUTRAS ESPÉCIES ao interferir na sua captação, e ovos, porque a sua
mentos, os níveis de creatinina e ácido úrico no Dois grupos tão diferentes como os pequenos concentração de fósforo e gordura é muito ele-
sangue tinham aumentado, o que os tornou víti- mamíferos e as aves têm em comum uma série de vada e não conseguem metabolizá-los.
mas de insuficiência renal. Em alguns casos, houve alimentos que podem fazer-lhes mal. É o caso do Quando se alimenta répteis insetívoros (lagartos,
uma remissão da doença após o tratamento, mas chocolate, que provoca uma hiper-estimulação que camaleões, lagartixas...) com bichos não controla-
outros nunca recuperaram por completo. pode fazer com que o seu organismo colapse por dos, estes podem ter estado expostos a inseticidas
Por último, temos de falar de uma substância em causa do aumento da frequência cardíaca; do alho, e, nesse caso, as toxinas passam para o animal de
que geralmente não se pensa como fazendo parte da cebola e do alho-francês, cuja ingestão provoca estimação e provocam um envenenamento. Além
da nossa alimentação, mas que encontramos fre- letargia, fraqueza, anemia ou mesmo a morte; do disso, há espécies de insetos que são tóxicas para
quentemente em casa, em mais produtos do que sal, que pode provocar, quando ingerido em gran- estes répteis, como o pirilampo, a borboleta-mo-
poderíamos imaginar: o xilitol. Este edulcorante des quantidades, alterações neurológicas devido narca e o percevejo das plantas.
artificial é utilizado em guloseimas para substituir a um desequilíbrio eletrolítico; e do abacate, M.B.

SUPER 39
Biologia

Dúvidas na árvore da vida

Origens incertas
Até agora, os cientistas pensavam que os primeiros povoadores da Terra
estavam divididos em três ramos: os eucariotas, que formam a vida complexa,
as bactérias mais simples e um tipo de micróbios, também elementares,
chamados “arqueas”. Novas descobertas vieram colocar estas últimas
no centro do palco: e se, na realidade, descendêssemos delas?
40 SUPER
As descobertas do investigador holandês
Thijs Ettema deram mais argumentos
a quem defende um papel fundamental
das arqueas na evolução da vida terrestre.

SUPER 41
A

AGE
té os deuses tinham problemas nas suas Nesta imagem, veem-se os flagelos
relações com Loki, o deus dos enganos da arquea Pyrococcus furiosus,
que usa para se deslocar.
na mitologia nórdica; por isso, teria sido
temerário atrair o mítico intriguista para
o mundo da ciência moderna. Contudo, foi isso que
fez, em 2008, um grupo de investigadores. Tinham
tido dificuldade em encontrar um grupo de fontes
hidrotermais situadas no fundo do mar da Noruega,
porque, aparentemente, o sinal de calor que emitia
não parava de se mover. Quando deram, por fim,
com as esquivas agulhas rochosas, pensaram que
seria apropriado batizá-las com o nome de “Castelo
de Loki”, em referência à habilidade da divindade
para mudar de forma.
Não tardou que os habitantes mais diminutos do
castelo começassem também a criar problemas.
Os estranhos micróbios que ali vivem (inevitavel-
mente batizados pelos investigadores com o nome
de “lokis”) estão a fazer luz sobre um dos maio-
res mistérios da evolução: a origem da vida com-
plexa. Mais do que isso: reabriram o debate sobre
a estrutura da árvore da vida, uma das principais teses
da biologia para descrever o aparecimento de seres
vivos na Terra, com implicações para todos nós.
A descoberta dos lokis poderá deixar a humanidade

Na nova teoria,
somos todos
umas arqueas
particulares
estreitamente ligada a um peculiar grupo de orga- tipos de seres vivos tinham sido considerados entendi realmente porquê”, diz Martin Embley, da
nismos unicelulares, as arqueas (Archaea), o que distintos. As semelhanças sugeriam uma liga- Universidade de Newcastle (Inglaterra). Há uma
redefiniria radicalmente a nossa espécie. ção evolutiva entre as arqueas e os eucariotas. década, Embley e os seus colegas reexaminaram
James Lake, da Universidade da Califórnia em Los os argumentos de Lake. Um dos problemas que os
DOIS OU TRÊS RAMOS? Angeles, propôs, por isso, uma versão alternativa estudos sobre as origens da vida enfrentam é que
Os manuais afirmam que, após o aparecimento da árvore da vida. Lake argumentava que a biolo- os organismos existentes há milhares de milhões
das células biológicas na Terra, há mais de 3500 gia celular começou, na realidade, por uma sim- de anos desapareceram há muito. Isso leva a
milhões de anos, a vida dividiu-se em três ramos ples bifurcação, e que apenas haveria dois gran- que os avanços tenham de basear-se na biologia de
diferenciados. Um inclui as bactérias, organismos des domínios: as bactérias e as arqueas. seres vivos atuais, pelo que Embley e a sua equipa
unicelulares apenas visíveis ao microscópio. Outro tiveram de analisar dezenas de genes de bactérias,
contém micróbios igualmente simples, mas bio- HIPÓTESE IGNORADA arqueas e eucariotas atuais. Para sua surpresa, o
logicamente distintos, as arqueas. A derradeira Uma das implicações da tese de Lake é que os resultado era nitidamente favorável à hipótese do
ramificação conduz a seres mais complexos, os eucariotas seriam um ramo evolutivo dentro das eócito, com uma árvore de apenas dois domínios.
eucariotas, um grupo onde se incluem os seres arqueas, de modo muito semelhante a como os Nem todos estavam preparados para esta revo-
humanos, as árvores e os fungos, e cujos membros biólogos aceitam, agora, que as aves são um ramo lução: “Nunca sofri um processo de revisão tão
se distinguem dos seus primos elementares por evolutivo na família dos dinossauros. Um pardal duro como o suscitado por esse artigo. O que me
possuírem células com intrincadas estruturas não se parece muito com um braquiossauro, mas pareceu estranho foi que não argumentavam que
internas, incluindo um núcleo. é, em termos técnicos, um dinossauro. Da mesma estávamos enganados por alguma razão especí-
Muito antes de terem sido encontrados os lokis, maneira, William Shakespeare e Albert Einstein fica; simplesmente, não acreditavam nos nossos
já tinham surgido dúvidas sobre esta descrição da podem ter, aparentemente, pouco em comum resultados”, recorda Embley. Para ser justos, diz
vida. Começaram com a descoberta de um novo com os micróbios produtores de metano que o especialista, não é simples reconstituir aconte-
tipo de arqueas, identificado pela primeira vez em vivem nos pântanos e lodaçais, mas, no cenário cimentos evolutivos que podem ter ocorrido há
águas termais sulfurosas de Itália, nos anos 1980. proposto por Lake, tecnicamente, somos todos mais de 3500 milhões de anos. A tarefa torna-se
Esses organismos, denominados “crenarqueotas”, arqueas. ainda mais difícil porque organismos de diferentes
“sulfobactérias” ou “eócitos”, pareciam par- Conhecida como “hipótese do eócito”, é difícil domínios trocam habitualmente fragmentos de
tilhar características celulares com os eucario- encontrar uma referência a esta ideia nos livros ADN na horizontal (isto é, absorvem-nos, em vez
tas, o que era estranho. Até então, esses dois escolares. “Em grande parte, foi ignorada. Nunca de serem herdados).

42 SUPER
AGE
As fontes hidrotermais submarinas
são o local ideal para a proliferação
das arqueas, capazes de sobreviver
em ambientes muito extremos.

SUPER 43
Segundo Embley, podemos compreender melhor
a forma da árvore da vida se nos concentrarmos
num subconjunto de genes que pareçam espe-
cialmente difíceis de intercambiar desse modo.
Algumas enzimas, por exemplo, interagem dentro
da célula com uma variedade tão grande de outras
moléculas que os micróbios não podem trocar facil-
mente a sua versão por outra que se encontre num
micro-organismo não relacionado. O resultado é que
os genes que fabricam essas enzimas opõem resis-
tência à transferência horizontal. Embley explica
que, à medida que os investigadores começaram a
adotar esta abordagem mais matizada, a árvore de
dois domínios foi conquistando maior aceitação.
“Agora, começa-se a pensar que é o cenário mais
plausível”, afirma.

ONDE ESTÃO AS PROVAS?


Todavia, para se tornarem verdadeiramente
convincentes, os partidários da hipótese do eócito
tinham de esgrimir uma descoberta simbólica: algo
equivalente aos fósseis de dinossauros com penas
descobertos nos anos 1990, que conseguiram con-
vencer finalmente muitos indecisos da existência
de um elo entre aves e dinossauros. É aqui que
entram em cena os lokis.
Thijs Ettema, atualmente a trabalhar na Univer-
sidade de Wageningen (Países Baixos), sequen-
ciou, com a ajuda de outros investigadores, o
ADN obtido nos lodos do fundo marinho em redor
do Castelo de Loki. Parte pertencia a micróbios
que pareciam ser arqueas, mas continham tam-
bém dezenas de genes previamente considerados
exclusivos dos eucariotas. Poderiam ser vistos
como o equivalente arquea-eucariota dos dinossau-
ros com penas. Por outras palavras, os lokis eram

Os cientistas
têm revelado
cada vez mais Os apêndices da arquea
Prometheoarchaeum syntrophycum,
em forma de tentáculos, sugerem
seres deste tipo a capacidade de capturar outros micróbios.

o elo perdido que mostrava o modo como algumas pensam que os organismos eucariotas cresceram e Nacional de Yellowstone, nos Estados Unidos.
arqueas tinham evoluído até se tornarem muito mais se tornaram mais complexos porque as suas célu- Cada grupo foi batizado com o nome de uma per-
complexas e se converterem nos primeiros seres las incluem organelos produtores de energia, as sonagem da mitologia nórdica, o que deu origem
eucariotas. “A verdade é que prevíamos fazer esta mitocôndrias, e uma ideia fundamental é que esses à denominação coletiva de “arqueas de Asgard”.
descoberta. Foi apaixonante”, admite Ettema. componentes eram originalmente bactérias mais Mesmo os investigadores que mostraram reser-
Os lokis, oficialmente agrupados no novo filo pequenas ingeridas pelos eucariotas primitivos. vas relativamente à tese dos dois domínios estão
Lokiarchaeota, possuem as suas próprias versões Todas estas descobertas estão em consonância dispostos a aceitar que os lokis (e, de forma mais
dos genes que ajudam os eucariotas a construir com a tese dos dois domínios. “Talvez tenhamos ampla, as arqueas de Asgard) estão estreitamente
compartimentos delimitados por membranas no de nos habituar à ideia de que somos um peculiar relacionados com os eucariotas. É o caso de Gre-
interior das células. Sem esses habitáculos, as grupo de arqueas”, resume Ettema. gory Fournier, do Instituto Tecnológico do Massa-
células eucariotas não apresentariam a sua carac- chusetts (MIT), o qual adverte, no entanto, para a
terística mais determinante: o núcleo. APARECEM EM TODO O LADO importância de compreender que essa ligação não
Dentro de um típico genoma loki, há também Desde 2015, foram encontrados micróbios implica forçosamente que se tenha de reduzir a
versões do ADN que permitem às células eucariotas semelhantes aos lokis por todo o mundo: em lagos árvore da vida de três para dois ramos.
engolir micróbios mais pequenos, e essa poderá da Roménia, em tapetes microbianos da Austrália, Após milhares de milhões de anos de evolução,
ser outra descoberta importante. Muitos biólogos em fontes hidrotermais neozelandesas e no Parque os eucariotas são muitíssimo mais complexos do

44 SUPER
antes de se descobrir o Castelo de Loki e antes
ainda de Ettema e a sua equipa conhecerem os lokis
que ali viviam. Apesar da arrevesada cronologia,
o Prometheoarchaeum syntrophicum é o primeiro
micróbio de Asgard cultivado. O artigo de Imachi,
publicado em janeiro de 2020, recebeu múltiplos
elogios por parte dos microbiólogos. “É realmente
fascinante ter por fim um loki cultivado”, afirmou
Fournier.
Segundo o estudo, o P. syntrophicum exibe
estranhas protuberâncias que adotam a forma de
tentáculos. A ideia da equipa de Imachi é que esses
apêndices podem ter permitido que antigos micró-
bios semelhantes aos de Asgard capturassem
bactérias, acabando por incorporá-las nas suas
células como mitocôndrias, um processo do qual
teriam surgido as primeiras células eucariotas.
A equipa também demonstrou que estes micróbios
tentaculares não vivem isolados e que só podem
desenvolver-se unidos a uma pequena comunidade
de outros micro-organismos, dos quais dependem
para sobreviver. Essa estreita colaboração pode
ter levado as espécies de Asgard a incorporar os
micróbios que lhes prestavam ajuda.

O MAIOR MISTÉRIO DE TODOS


A descoberta do P. syntrophicum contribui para
reforçar a ideia de que as criaturas de Asgard estão
estreitamente relacionadas com os eucariotas,
mas não permite decidir se são realmente arqueas,
afirma Fournier. Em primeiro lugar, não se conhece
qualquer arquea com protuberâncias em forma de
tentáculos como os do P. syntrophicum. Depois,
temos o problema de se tratar de um micróbio
de Asgard relativamente especializado. Parece
evidente que será necessário muito mais trabalho

Em última
análise, ajudarão
IMACHI ET AL / BIOXRIV

a compreender
a origem da vida
que as arqueas ou as bactérias, mas, no início, não adequadamente a sua biologia e o seu compor- para resolver a questão. Fournier diz que é necessá-
teria existido tanta diferença. Isto significa que tamento. rio cultivar espécies de Asgard que se aproximem
talvez os micróbios de Asgard tivessem um aspeto mais das primeiras etapas de evolução do grupo,
semelhante ao das arqueas quando, na realidade, TENTÁCULOS PROMISSORES pois será mais fácil desse modo decidir se esses
se encontravam numa primeira fase do caminho Há dois anos, Hiroyuki Imachi, da Agência Japo- primitivos asgard são arqueas.
rumo aos eucariotas. Neste cenário, os micro-or- nesa para a Ciência e Tecnologia Marítimo-Terres- Finalmente, os lokis e os asgards poderão enco-
ganismos de Asgard continuariam a ser compatí- tres, e a sua equipa foram os primeiros a conseguir rajar os biólogos a rejeitar a árvore de três domí-
veis com a tradicional árvore de três domínios. exatamente isso. Anunciaram que tinham isolado nios em prol de uma versão de dois. Contudo,
Um estudo mais pormenorizado poderia ajudar e cultivado um tipo de micróbio de Asgard, obtido no mesmo que não conduza a uma mudança tão
a estabelecer, sem margem para dúvidas, se são fundo marinho ao largo da costa sul do Japão. Contra radical, os recém-descobertos organismos servem
realmente arqueas. A identificação destes micro- a tendência habitual, deram-lhe o nome de Pro- para poder estar na origem de formas de vida com-
-organismos foi feita, pela primeira vez, reunindo metheoarchaeum syntrophicum, em referência a plexas, das amebas aos seres humanos. O deus
fragmentos do seu ADN; na realidade, porém, uma figura da mitologia grega, em vez da nórdica. nórdico das travessuras aprovaria, sem dúvida, a
ainda nunca se tinha visto um micróbio de Asgard Trata-se de um micróbio muito difícil de cultivar revolução que os micróbios com o seu nome estão
vivo. O objetivo era, por conseguinte, cultivar um e de crescimento especialmente lento. A equipa de a provocar.
exemplar em laboratório para poder observar Imachi iniciou a experiência há 14 anos, dois anos C.B.

SUPER 45
Biomedicina
GETTY

A base da evolução e a Covid-19

Seres mutantes
Todos os seres vivos, dos micróbios aos humanos, experimentam constantemente
alterações nas instruções genéticas que governam células e organismos.
As mutações são o motor da biologia terrestre (sem elas, não haveria evolução)
e compreendê-las bem é fundamental, por exemplo, para lutar contra muitas
doenças e, atualmente, controlar as variantes na pandemia de Covid-19.
O geneticista Miguel Pita explica em que consistem as mutações.

46 SUPER
SUPER 47
N
ão são famosas por isso, mas as muta-
ções deram origem a toda a diversi-
dade e riqueza biológica que nos
rodeia. Estas alterações nas moléculas
de ácido desoxirribonucleico (ADN) e de ácido
ribonucleico (ARN) acompanharam os seres vivos
desde a sua origem. Sem a ação destes erros ines-
perados, não haveria a abundância nem a variedade
de formas que povoam o planeta. Todas as caracte-
rísticas exibidas pelos seres humanos que fundam
a sua existência no ADN e no ARN foram aparecendo
através de mudanças progressivas sofridas por estas
moléculas: das folhas das plantas à pelagem dos
mamíferos, passando pelas suas complexas redes
metabólicas. Qualquer traço biológico no qual pos-
samos pensar não existia até que uma mutação
o criou inadvertidamente.
Apesar da sua importância, só em ocasiões muito
pontuais lhes prestamos atenção. Por exemplo,
quando alteram a dinâmica de um vírus, criando
novas variantes que dificultam a superação de uma
pandemia. Contudo, estas mudanças ocorrem cons-
tantemente. Tinham lugar há milhares de milhões
de anos quando começou a vida, e é possível que
enquanto lê este texto também algo se esteja a
alterar no ADN de alguma das suas células. É sob
o mesmo termo que descrevemos o mecanismo
responsável por eventos transcendentes e banais,
como a perda de uma molécula de adenina numa
região do genoma de uma célula de um folículo
piloso ou no ADN da folha de uma árvore.
Esta disparidade de consequências obriga-nos
a tomar consciência de que devemos aceitar que
o termo engloba situações com a mesma origem

Preocupam-nos
as mutações
dos agentes
patogénicos
AGE

mas repercussões extremamente diversas. São dade dos seus efeitos. No ADN (ou ARN) de um infelizmente, a mutação ajuda a escapar às nossas
alterações no material genético, ADN ou ARN virião (partícula viral), uma mutação pode implicar defesas. Não obstante, é com igual probabilidade
(falaremos sobretudo do primeiro), suscetíveis de que sintetize uma das moléculas de proteína que que a modificação ocorrida no material genético
transmissão. Ou seja, na sua definição mais simples, o rodeiam, com um formato tridimensional, para do virião dote o vírus de uma nova forma tridimen-
é uma mudança num “texto”, no “manual de ins- algo ligeiramente diferente da de outros membros sional que não seja suficientemente distinta (por
truções” dos seres vivos dependentes de material da sua espécie. Isto poderia ocorrer se, sendo exemplo, I) para impedir que as defesas do hospe-
genético. O que não podemos antecipar é se essa mutante, o material genético do virião visse altera- deiro a reconheçam. Uma mutação não é mais do
alteração se vai consolidar ou propagar, nem se terá das algumas “letras” no “texto” que dita a forma que uma alteração, transcendente ou não; tudo
consequências para o seu portador e a sua des- como constrói a proteína. Imaginemos que pro- dependerá de onde, quando e como ocorre e da
cendência. duz uma nova proteína que se assemelha a uma quantidade de material genético alterado.
interrogação (?) em vez da forma original que pare- Com efeito, para ilustrar a imensidão de situa-
MUITAS EVOLUÇÕES DIFERENTES cia uma exclamação (!). Isto poderia evitar que ções que abarca o termo “mutações”, podemos
Qualquer alteração nas peças que formam o os anticorpos do sistema imunitário do hospedeiro começar com uma divisão muito simples. Nas aulas
ADN pode ser considerada uma mutação: perdas, reconhecessem a nova proteína se continuassem a de medicina, a mutação é explicada como a origem
ganhos, reordenamentos, translocações, etc. utilizar a original como referência para localizar o de numerosos processos oncológicos que des-
As formas de mutar são numerosas, mas não é agente invasor. controlam as células e como a causadora de hor-
necessário entrar em pormenores: é muito mais Este tipo de situação repete-se frequentemente ríveis síndromas. Pelo contrário, ao falar de evo-
esclarecedor se nos focarmos na análise da varie- na evolução dos agentes patogénicos, aos quais, lução em biologia, define-se como a fonte única

48 SUPER
estrutura química robusta que permite preservar
de forma extraordinária o ordenamento das suas
peças. É precisamente essa disposição de molécu-
las de forma ordenada que codifica as mensagens;
a modificação desta ordenação de elementos é
que pode trazer consequências.
O ADN é uma macromolécula particularmente
sólida, mas muito requisitada e explorada no seu
trabalho. Entre as suas tarefas quotidianas, deve
ser lido por determinadas moléculas da célula que
comanda. As coisas têm de se processar desta
forma para que se possam aplicar as ordens que o
ADN recolhe nos seus genes, mas, além disso, deve
ser profusamente copiado. O “texto” que alberga
deve ser também transmitido às novas células que
se formam. No nosso corpo, algumas células reno-
vam-se diariamente, o que implica, entre outros
pormenores, copiar toda a extensa molécula de
ADN como quem replica um enorme texto letra a
letra. Por exemplo, é possível que o nosso intestino
seja totalmente diferente do que era na semana
passada. A diferença é indetetável, porque se
reconstituiu seguindo as mesmas instruções, lendo
o nosso ADN pessoal e particular, mas é, sem dúvida,
outro órgão. Em resumo, a função rotineira do
material genético implica passar por processos de
reprodução permanente que o expõem à introdu-
ção de erros de impressão.

MUTADOS DE ORIGEM
Além disso, devemos recordar que o material
genético, seja o nosso, o de uma árvore ou o de um
vírus, está exposto às inclemências do ambiente:
agentes químicos, radiações, interações molecula-

No entanto, elas
A evolução ocorre através de transformações
aleatórias do ADN que se revelam adaptativas.
proporcionaram
Na imagem, um peixe do género Tiktaalik,
que viveu há cerca de 375 milhões de anos
e caminhou pela primeira vez fora de água.
a variedade das
É considerado um fóssil de transição.
formas de vida
de toda a variedade da vida; a responsável, por importância diversa? As mutações podem vir a fazer res, oxidação, etc. Tudo isto também promove a
exemplo, por as barbatanas dos peixes terem dado surgir seres humanos com garras metálicas, como ocorrência de mutações. Não nos esqueçamos de
lugar a membros que permitiram aos vertebrados nos super-heróis da ficção? que o ADN é um conjunto de moléculas encadeadas
povoar terra firme há cerca de 400 milhões de anos, Comecemos pela primeira pergunta: “É expec- e, como tal, está sujeito às alterações provocadas
ou a razão para a nossa espécie ser um primata tável que o ADN mute?” Sem dúvida, a resposta é por forças físicas e químicas. Prova disso é que
capaz de falar. A mutação também é responsável sim. O material genético é suscetível à decompo- quanto mais tempo vivemos mais mutações
pela variedade de formas e cores que caracterizam sição, tal como todo o material. O ADN e o ARN acumulamos, arriscando-nos a que alguma delas
as plantas, os animais, os fungos, etc. Sem essas são ácidos grandes e complexos que encadeiam desencadeie um processo oncológico e ponha
alterações, não haveria bioquímica, ou melhor: não longas sequências de pequenas moléculas que se em risco a invulgar coordenação que um corpo
haveria flores coloridas nem borboletas, nem podem degradar, alterar ou modificar de diversas requer.
cérebros para as observar e desfrutar. formas, como qualquer composto químico. Não é apenas um problema que decorre do
Tudo isto acontece independentemente de o envelhecimento, mas do facto de já virmos algo
UM PROCESSO EXPECTÁVEL material genético estar sempre protegido, porque mutados de origem. Estima-se (grosseiramente)
Um panorama tão diverso como o que rodeia o reside no interior mais profundo das nossas células que todos nascemos com pelo menos uma cen-
estudo deste fenómeno exige apresentar uma série (o compartimento chamado “núcleo” que têm os tena de mutações no nosso material genético que
de questões: é normal que o ADN sofra mutações? fungos, as plantas e os animais) ou está protegido não existiam no dos nossos pais, do qual é originá-
Porque é que se produzem as mutações? Ocorrem por uma armadura de membranas e proteínas em rio. Tudo isto antes de começar a utilizar, copiar e
por acaso? Porque é que diferentes alterações têm vírus e bactérias. Além disso, o ADN possui uma expor o nosso ADN!

SUPER 49
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Porque é que diferentes mutações têm uma rele- coronavírus se contem aos milhares, tendemos Entre as variantes ameaçadoras, destaca-se a
vância diversa? Pensemos no exemplar da revista a ignorar aquelas que não acarretam consequên- alfa, primeiro detetada no Reino Unido. Nela, a
que tem nas suas mãos. Imagine que todas as cias graves. Com efeito, o Centro de Controlo de mutação N501Y parece provocar uma ligeira
páginas deste artigo apareciam completamente Doenças (CDC) dos Estados Unidos apenas apre- mudança numa das suas proteínas externas, o que a
em branco. Se tivesse perdido o conteúdo de senta, no momento da escrita deste artigo, cinco torna mais eficaz na propagação. Algo semelhante
meia dúzia de páginas, pensaria seguramente variantes catalogadas como “preocupantes”. Evi- ao que ocorre com as variantes californianas, com
que o seu exemplar estava seriamente danificado. dentemente, as várias instituições mantêm sob a mutação L452R. Da mesma forma, as alterações
Pelo contrário, se apenas aparecesse uma gralha vigilância outras tantas, que consideram simples- presentes nas variantes gama (surgida no Brasil)
numa palavra do texto (por exemplo, um “e” no mente “variantes de interesse” enquanto não são e beta (África do Sul) facilitam a sua expansão, e
meio da palavra “mutação”), o erro poderia ser conhecidas com maior pormenor e rigor as suas estuda-se minuciosa e cautelosamente se a muta-
ignorado, porque a mensagem é transmitida da implicações. O que é inquestionável é que apenas ção E484K nelas presente as torna mais resisten-
mesma forma. Ambas seriam mutações, mas de uma parte muito pequena de todas as mutações tes a alguma das vacinas disponíveis.
diferente ordem. Não tem a mesma relevância se se merece a nossa atenção. A variante delta (identificada inicialmente na
consegue transmitir a mensagem ou se ela desa- Índia) comporta uma mutação similar (E484Q) à
parece. L452R; o efeito da combinação ainda não é total-
Algumas mente conhecido. No momento em que escreve-
VARIANTES PREOCUPANTES mos este texto, ignoramos ainda se o tremendo
O SARS-CoV2, causador da Covid-19, tem mutações impacto na população (nomeadamente, a sua con-
mutado sem parar desde o seu aparecimento, mas, tagiosidade elevada) se explica por razões sociais
apesar do seu acompanhamento mediático, apenas podem resultar (relaxamento nas medidas de distanciamento,
se destacou a presença de algumas variantes. encontros sociais, etc.) ou se as mutações desem-
Embora o número de mutações identificadas neste em doença grave penham um papel mais importante.

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Uma pequena mudança no material
genético pode acarretar consequências
dramáticas para o organismo. Por exemplo,
a progeria (página oposta), doença que
se manifesta através de um envelhecimento
precoce e acelerado. Outras vezes tem
efeitos inócuos, por exemplo, no aspeto
físico, como é o caso do tigre branco
do zoológico de Shijiazhuang (China).

INTERESSE PELOS PIORES MOTIVOS a lógica prevalece, e é mais provável que produzam à conceção. Houve um dia em que fomos um óvulo
Em qualquer caso, as novas características um resultado mais impactante as mutações que afe- que acabava de receber um espermatozoide.
adquiridas pelos vírus explicam que estas variantes tarem áreas muito maiores de material genético, Ambos juntaram os seus traços de ADN para pro-
sejam desafortunadamente interessantes. Apre- mas, ainda assim, estas podem não ter esse efeito se duzir aquela que seria a nossa molécula pessoal
sentam mutações semelhantes às registadas nou- essa região estiver inativa ou se desempenhar um e única. Esse óvulo fecundado, a nossa primeira
tras muito menos famosas por não terem tanto papel secundário. Inversamente, uma simples célula, começou de seguida a reproduzir-se, a divi-
impacto, o que traduz a importância de observar o alteração de uma letra numa frase determinante dir-se, de acordo com o ditado pelo novo ADN. Pri-
efeito ao analisar mutações. Por exemplo, a desencadeia muitas doenças (por exemplo, a ane- meiro, deu lugar a duas células; depois, a quatro,
P681H altera o material genético sem perturbar as mia falciforme). a oito... Nas sucessivas divisões, cada uma das células
propriedades das partículas virais que a transpor- Outro fator crucial para avaliar a transcendência ia lendo diferentes partes das cópias do nosso par-
tam. (Nota: alguns destes resultados estão ainda de uma mutação é o local e o momento do desen- ticular ADN, que dotavam as sequências celulares
em avaliação e devem ser tomados com cautela e volvimento do portador em que ocorre. Pensemos de um destino: um grupo acabaria por constituir
somente como exemplos.) de novo na nossa própria existência, recuando até o sistema nervoso; outro, os membros; outro, o
Portanto, é difícil antecipar a importância de fígado, etc.
uma mutação. As generalizações são pouco úteis Nessa dinâmica, uma mudança na molécula de
quando se estuda este mecanismo. Podemos Outras afetam ADN de uma célula que fosse a mãe de todas as
supor que um dos fatores que influi sobre a relevân- que se formaram (por exemplo, o sistema ner-
cia da alteração é a quantidade de ADN envolvido, aspetos físicos voso) propagar-se-ia a milhões delas. Se essa muta-
mas não é o único. Continuando a metáfora da ção afetasse uma parte do texto do ADN cujas
revista, há mutações de uma única letra do texto como a cor da instruções não estão relacionadas com a formação
do ADN, outras que afetam palavras ou frases e do cérebro, não teria importância. Ou seja, as
outras artigos ou revistas inteiras. Habitualmente, pele ou dos olhos modificações que ocorrem nas primeiras etapas do

SUPER 51
desenvolvimento podem ser copiadas em milhões
de células derivadas e é mais provável que tenham
consequências visíveis. Pelo contrário, uma altera-
ção na fase adulta (por exemplo, numa célula da
pele) tem, em princípio, menos potencial: poderia
simplesmente produzir um sinal (embora também
pudesse dar lugar a um tumor).
Ainda mais interessantes são as implicações nas
nossas células reprodutivas. Como se disse antes,
uma mutação numa célula da nossa pele, do pul-
mão ou do fígado pode causar-nos uma doença
ou até um cancro que nos elimine, mas também
pode não ter qualquer consequência. Aconteça o
que acontecer, só terá relevância no nosso corpo
e em mais ninguém, porque morrerá com ele. Tal-
vez seja colossal para o indivíduo, mas não para a
história da vida.
Pelo contrário, se acontecer num dos nossos
óvulos ou espermatozoides, e esse exemplar foi
o eleito para dar lugar a um descendente, o filho
adquirirá a mutação na sua primeira célula e, por
conseguinte, nos 40 mil milhões que se gerarão
a partir dela. As células reprodutivas do nosso
rebento também a portarão e, consequentemente,
todos os seus futuros descendentes. Não é o mesmo
a sua revista ter uma página em branco porque,
acidentalmente, se introduziu uma folha vazia, ou
isso ocorrer nos milhares de exemplares da tiragem
porque a impressora avariou. O primeiro caso afe-
tá-lo-ia apenas a si, o segundo a todos os exempla-
res e às futuras tiragens.

NOVIDADES FUNCIONAIS
Para além das doenças, as mutações também
ostentam o mérito de serem o mecanismo que
gerou toda a variabilidade da vida. A existência de
seres tão diferentes como os animais, as plantas,

Em vírus como
o SARS-CoV2, as
variantes podem
ser mais letais
GETTY

os fungos, as bactérias e tudo o que povoa o planeta seres vivos terem replicado o seu ADN milhares de mas não observamos os resultados desastrosos. Só
com ADN no seu interior radica na acumulação de milhões de vezes durante milhares de milhões de está entre os vivos aquilo que surgiu aleatoriamente,
mutações do material genético surgido há cerca de anos. Com efeito, se digitássemos letras aleatoria- funcionou e conseguiu transmitir-se.
4000 milhões de anos. Não obstante, não devemos mente numa folha em branco uma quantidade de Como tal, da mutação diz-se que tem um caráter
esquecer que são erros aleatórios; o expectável é vezes semelhante, muitas vezes obteríamos textos pré-adaptativo, o que significa que as alterações
que o resultado seja adverso. Imaginemos uma coerentes. ocorrem independentemente da sua transcendên-
orquestra que se propõe tocar uma obra sinfónica. De forma análoga, apareceram novas mensagens cia. Só as que são adaptativas, as que permitem a
Se desafinarmos um instrumento aleatoriamente, nas sequências genéticas que criaram novidades nos sobrevivência dos seus portadores e não lhes difi-
o mais provável é que o concerto seja desastroso, seres, algumas das quais se revelaram operacionais, cultam a existência, têm credenciais para perdu-
pior do que teria sido em completa harmonia. quer tenham melhorado, igualado ou piorado a rar. Se são nocivas ou destroem o portador, não
Ainda assim, ao longo da história da vida, houve versão original. Funcionam e os seus portadores se transmitem, pelo que carecem de importância
tentativas e tempo suficientes, muito tempo, para sobrevivem e, portanto, transmitem-nas. É daí que evolutiva. Nem sequer vemos o seu rasto, tal como
surgirem erros que deram origem a novidades fun- todos vimos, dessa acumulação de erros. Não há não detetamos a maioria dos abortos espontâneos
cionais. O nosso cérebro não tem recursos para dúvida de que a maioria das alterações provocou que ocorrem nas primeiras etapas da gestação
processar o que significa milhares de milhões de modificações nocivas, frases sem sentido no texto, devido a mutações precoces (estima-se que ocor-

52 SUPER
dirige outros compostos químicos, de modo que
não parece provável que nos venha a permitir
desenvolver esqueletos metálicos ou visão de
raios X. Por outro lado, as mudanças futuras tam-
bém não têm de ser obrigatoriamente simples ou
aborrecidas, como alterações na cor da pele, dos
olhos e do cabelo. Talvez até possamos dar lugar
a novas espécies, se resistirmos o tempo suficiente
entre os sobreviventes do planeta.

MUDANÇAS BRUSCAS
Durante muito tempo, acreditou-se que, ao
longo do processo evolutivo, só ocorriam pequenas
mudanças graduais e progressivas, mas hoje sabe-
mos que não foi assim. Até ao aparecimento da
genética do desenvolvimento, postulava-se que
todas as novidades da vida haviam sido introduzi-
das por mudanças graduais e que carecíamos de
vestígios de algumas espécies no registo fóssil
que nos impediam de ver esse processo de tran-
sição paulatina.
A descoberta de alguns genes, fundamentais
nos seres pluricelulares (os genes homeóticos),
permitiu concluir que não era necessário procurar
os elos entre os animais com barbatanas e os com
membros, ou entre os diferentes tipos de flores nas
plantas. As mutações que implicam grandes mudan-
ças, particularmente na evolução, são possíveis.
A alteração de alguns genes produz pequenos
efeitos, mas as de outros, como os homeóticos,
particularmente em etapas precoces do desenvol-
vimento, provocam grandes reorganizações cor-
porais. Tudo isto apesar de não existir algo que
distinga vincadamente um gene homeótico de
outro qualquer; uns e outros não são mais do que
diferentes partes da molécula do ADN. Mais uma
vez, a mutação presenteia-nos com a sua carac-

Os nossos
Salão de festas convertido em pavilhão
cérebros, fruto
de isolamento para pacientes de Covid-19
em Nova Deli. Em abril, a Índia começou
a sofrer os impactos de uma nova vaga
de mutações,
da doença, provocada pela variante delta.
podem vencê-las
ram em metade das fecundações). É complicado do gene KRAS). Certas zonas do nosso ADN são terística mania de ser praticamente impossível
assumir a importância que tem na nossa existência mais suscetíveis à modificação do que outras, prever as suas consequências.
um fenómeno que ocorre aleatoriamente. porque cada espécie tem os seus pontos fracos, Ainda assim, não esqueçamos que a vida trabalha
tal como certos carros tendem a sofrer avarias na sempre sobre material pré-existente: as novidades
NOVAS ESPÉCIES embraiagem e os de outras marcas sobreaquecem que surgirem terão resultado da modificação de um
Não devemos cair noutra das armadilhas habi- os travões. A razão fundamental é que a molécula texto escrito no idioma utilizado pelo código do ADN,
tuais que oferece o estudo da mutação. O facto de de ADN adquire conformações tridimensionais que usa determinados tijolos para construir os
o acaso ser o motor que o desencadeia não significa que deixam regiões mais expostas do que outras. organismos vivos, os aminoácidos, que são os
que todas as alterações sejam possíveis, nem sequer Apesar disso, a existência de certas alterações andaimes das proteínas. Portanto, não é expectável
igualmente prováveis. De facto, há muitas mutações recorrentes não nos permite antecipar, nem de que desenvolvamos a capacidade de disparar raios
que surgem com maior frequência do que a que lhe perto, para onde se encaminha a nossa espécie, por laser pelos olhos, mas também não é grave. É muito
caberia numa igual distribuição ao acaso. Bem muito que a ficção se tenha empenhado na mais interessante termos cérebros desenvolvidos
conhecidos são alguns casos de cancro que ocorrem apresentação de propostas originais. A mutação que nos permitem entender a vida. Estes sim, sur-
devido a danos ou erros frequentes no nosso é uma alteração que ocorre sobre o material giram por mutação.
genoma (por exemplo, produzidos pela mutação pré-existente, sobre uma molécula orgânica que M.P.

SUPER 53
Saúde

Explicações pré-científicas

A origem
da peste
Especialistas de todo o mundo continuam a procurar
determinar a origem da primeira pandemia do século
XXI, do mesmo modo que os médicos e filósofos
europeus do século XIV tentavam encontrar,
sob outros paradigmas de conhecimento com base
nos conhecimentos da época, razões em termos de
cadeias causais para explicar a peste negra de 1348.

A
incerteza é um fator que assola a razão, do médico persa Avicena (Abu Ali Hussein ibn
muito mais num tempo, como a Baixa Abdala ibn Sina, 980–1037), formulada três séculos
Idade Média europeia, em que Deus antes. A propósito das “febres pestilentas”, distin-
era, indubitavelmente, a causa original, guiu duas categorias de causas: a “causa remota e
por muito que houvesse depois leis naturais, aces- primeira”, consistente nas “formas celestes”, e as
síveis à razão humana, que concorriam para expli- “causas próximas”, que representavam as “dispo-
car as crises. Definitivamente, havia duas ordens de sições terrestres”.
razões que operavam em níveis diferentes: o das No pensamento e no cânone de Avicena, era a
causas superiores e universais, onde Deus se encon- sinergia entre os dois grupos de causas que desen- corrupção mortífera do ar circundante”, que
trava, e o das causas terrestres e particulares. cadeava uma “humectação veemente do ar”: “Por trouxe “mortalidade e fome”. Por sua vez, o astró-
No caso da peste negra, entre os que situavam isso se elevam e difundem vapores e fumos que, nomo e médico amdaluz Alfonso de Córdova impu-
diretamente a “pestilência” sob a ordem imediata através de uma ligeira calidez, provocam a sua tou a pandemia a uma indeterminada “constela-
da vontade divina, estavam os textos dos mestres putrefação. Quando o ar sofre essa putrefação, ção de planetas desventurados”, precedida por
de Paris e do médico catalão Jacme d’Agramont ao alcançar o coração corrompe a compleição do um eclipse lunar que, segundo ele, ocorrera no signo
(m. 1350), que não tinha dúvidas sobre o facto de espírito que reside nele e, após rodeá-lo, fá-lo apo- de Leão, pouco antes do início da “pestilência”.
a mão de Deus estar por detrás de algumas pes- drecer. Uma calidez preternatural estende-se então
tilências gerais, embora o atribuísse a “méritos por todo o corpo, em consequência da qual surgirá ENTRE A CIÊNCIA E OS PRECONCEITOS
nossos”, isto é, aos “nossos pecados”, alinhando uma febre pestilencial que se transmite a qualquer Ao contrário dos mestres de Paris, o professor
assim com lugares-comuns extraídos do Antigo ser humano predisposto a tê-la.” bolonhês Gentile da Foligno (m. 1348), sempre
Testamento (Livro dos Reis e Pentateuco). Nos Se considerarmos a análise de outras fontes pro- com base na ideia original que associava a peste
seus textos, os mestres de Paris consideravam venientes de diferentes zonas europeias, as “cau- à divindade, teve o acerto de inventariar as possí-
que se tinha sempre, como derradeiro remédio, sas celestes” desempenharam um papel relevante veis causas terrestres da “pestilência” do seguinte
“rezar-lhe [a Deus] humildemente, embora nem na génese da “pestilência”, com a maior parte modo: “As causas particulares e manifestas são as
sequer neste caso se deva desprezar por com- a atribuir a peste a conjunções planetárias maléfi- corrupções sensíveis presentes em determinado
pleto o conselho do médico”. cas. Para os mestres em medicina da Universidade lugar ou transportadas de lugares distantes por
de Paris, foi a conjunção de três planetas principais ventos (sobretudo os austrais), tal como ocorre
O DIVINO E O HUMANO (Saturno, Júpiter e Marte) no signo de Aquário, no dia com a abertura de poços e cavernas fechados
No entanto, muitos médicos da época eram 20 de março de 1345, às 13 horas, juntamente com durante muito tempo; com a falta de ventilação
influenciados pela teoria da causalidade natural outras conjunções e eclipses, o que concitou “uma e a constrição do ar entre paredes e tetos; com as

54 SUPER
ALBUM
lagoas e pântanos (como já indicava Galeno); ou origem artificial, que qualificava “de maldade pro- mente o olhar como um modo de transmissão
com o esterco dos animais, os cadáveres e outras funda, obtida através de uma arte muito subtil e de interpessoal extremamente perigoso: “O momento
putrefações fétidas”. grande crueldade”, que descreveu com precisão: de maior virulência desta epidemia, que acarreta a
Agramont chegou a afirmar que a “nortada” e “O ar pode ser infetado mediante artifício, como morte quase instantânea, é quando o espírito aéreo
o “austro” eram ventos que, em função da inten- quando se prepara uma confeção numa ânfora que sai dos olhos do enfermo atinge o olho do
sidade com que soprassem, podiam alterar as qua- de vidro. Quando essa confeção está bem fermen- homem são que o olha de perto, sobretudo quando
lidades do ar ao ponto de desencadear uma “pes- tada, qualquer pessoa que deseje produzir este mal aquele está agonizante; então, a natureza venenosa
tilência”. O médico catalão também defendia que espera que haja um vento forte e variável, prove- desse membro passa de um para outro e mata o
outra causa podia ser o facto de se deixar por inu- niente de alguma região do mundo. Caminha então indivíduo são.”
mar, após uma batalha ou durante um cerco, os contra esse vento e põe a sua ânfora perto de um Basta analisar estas teses para concluir que a
cadáveres humanos e os corpos dos cavalos, “pois lugar pedregoso, oposto à cidade ou vila que quer construção intelectual dos médicos e mestres uni-
à putrefação das coisas mortas segue-se uma infetar. Retrocedendo contra o vento para evitar ser versitários do Mediterrâneo converte a peste de
grande infeção e a corrupção do ar”, além de con- infetada pelo vapor, com o pescoço da ânfora 1348 numa calamidade social de origem essencial-
centrar “moscas e moscardos muito perigosos”. tapado, atira a ânfora com força contra as pedras. mente divina. Hoje, quase sete séculos depois, o
Não faltaram também as acusações a algumas Uma vez quebrada a ânfora, o vapor irá difundir-se coronavírus matou milhões de pessoas em todo
minorias, em especial judeus e leprosos, de serem e dispersar-se pelo ar. Quem quer que o vapor toque o mundo. Agora, também se analisam causas e
os responsáveis pela calamidade. A tese propa- morrerá mal seja alcançado pelo ar pestilento.” efeitos, embora as circunstâncias sejam muito
gou-se de forma singular pelas regiões do Lan- diferentes. Atualmente, também se invoca Deus,
guedoc, da Provença e da Catalunha, e Alfonso de CALAMIDADE SOCIAL embora por razões diferentes, mas isso não é his-
Córdova e Agramont não tardaram a secundá-la. Por sua vez, um clínico anónimo de Montpellier tória, ou talvez seja.
Alfonso de Córdova relacionou a peste com uma (França), na linha de Agramont, considerava igual- M.G.

SUPER 55
Antropologia

Sobrevivência na Sibéria

Humanos vs. hienas


Os seres humanos arcaicos que habitaram as regiões siberianas durante
o Pleistoceno superior tiveram de enfrentar condições de vida terrivelmente duras
para a subsistência, perseguidos pelas hienas-das-cavernas e sem capacidade
para confecionar roupa adequada para resistir ao clima extremo.

56 SUPER
CARLOS AGUILERA

Análises de ADN indicam que as hienas


atacavam os neandertais e denisovanos
que colonizaram a Sibéria. As crianças
eram a presa mais fácil.

SUPER 57
Os montes Altai conservam muitos
restos de mamíferos de grande tamanho,
incluindo humanos de espécies diferentes.

O
s neandertais (Homo neandertha- cordilheira de Altai, uma cadeia montanhosa que ácidos estomacais, ficam parcialmente dissolvidos,
lensis) foram um povo viajante que se estende das fronteiras da Rússia, da Mongólia, arredondados e polidos. Podem apresentar um
chegou à Europa há cerca de 400 mil da China e do Cazaquistão até ao extremo sul do aspeto esponjoso ou compacto, ou mesmo uma
anos. Espalharam-se por todo o nosso lago Baikal. A parte noroeste dos montes Altai mistura de ambos. As hienas são vorazes triturado-
continente e chegaram até à Sibéria. Ali, encon- forma o que os russos chamam “Gorny Altai”. É ras de ossos, o que lhes permite alcançar o tutano,
traram primos distantes provenientes das regiões nessa parte da Sibéria que foram encontrados muito rico em gordura, e também o colagénio do
orientais, os denisovanos, com os quais partilharam escassos restos fósseis de humanos arcaicos. tecido ósseo.
o território durante muitos anos e tiveram relações Sabemos que os hominídeos chegaram aos mon-
sexuais. Contudo, nem neandertais nem denisova- tes Altai há cerca de 120 mil anos, pois deixaram CARNÍVOROS EXTRAORDINÁRIOS
nos conseguiram alcançar o Ártico e atravessar o ferramentas de pedra em jazidas como Ust-Ka- As hienas que dominavam aqueles territórios
estreito de Bering para colonizar a América. Apenas rakol-1, a gruta de Okladnikov e Anui-2. Nas grutas têm sido tradicionalmente designadas por “hienas-
os seres humanos modernos o conseguiriam. de Okladnikov e Denisova, foi também recuperado -das-cavernas”. Como eram maiores do que a atual
Este facto é um enigma paleoantropológico, pois ADN antigo bem conservado dos restos de nean- hiena-malhada africana, foram frequentemente
os neandertais possuíam grandes cérebros e uma dertais e denisovanos. separadas numa espécie distinta (Crocuta spelaea).
capacidade exploradora bem comprovada. É tam- Alguns dos restos humanos ali encontrados apre- Todavia, estudos desenvolvidos com o ADN mito-
bém possível que os denisovanos tivessem uma sentam um tipo de erosão que se produz quando condrial das hienas-das-cavernas indicam que se
elevada encefalização e dominassem a arte de foram ingeridos por hienas e expostos ao destrutivo trata de uma subespécie das hienas-malhadas
povoar novos lugares. Podem ter permanecido em processo do seu sistema digestivo: queimados por modernas, pelo que deveriam ser incluídas na
latitudes meridionais da Sibéria devido a fatores mesma espécie (Crocuta crocuta).
climáticos, mas também é possível que a pressão As hienas são carnívoros extraordinários, pois
dos predadores tenha provocado uma grande Três espécies possuem mandíbulas e dentes concebidos para
mortalidade no seu seio. esmagar e digerir esqueletos completos de grandes
humanas animais. Como devoram quase todos os elementos
INGERIDOS E DIGERIDOS corporais, têm habitualmente processos digestivos
Para conhecer o mundo em que viviam juntos conviveram acidentados, já que não conseguem assimilar o pêlo,
denisovanos e neandertais (que designaremos por as unhas e os chifres das presas. Regurgitam fre-
“seres humanos arcaicos”), é preciso viajar até à na Sibéria quentemente parte da comida e focinham nessa

58 SUPER
GETTY
GETTY

massa de vómito, da qual retiram, por vezes, frag-


Temíveis caçadoras
mentos de ossos parcialmente digeridos para vol-
tar a mastigá-los.
Durante as análises aos vestígios humanos
A hiena-malhada possui uma das mais
poderosas arquiteturas cranianas de
todos os carnívoros. Os seres humanos pos-
zonas arborizadas. Trabalhos de campo tão
exaustivos e detalhados como o do zoólogo
Hans Kruuk demonstram que não são os
encontrados em Denisova, os investigadores do suem apenas dois pré-molares superiores e “cobardes” imaginados pela ficção popular.
Departamento de Genética Evolutiva do Instituto inferiores em cada lado da boca; em contra- São caçadores muito eficientes que vivem
Max Planck (Alemanha) descobriram ADN de hie- partida, as hienas dispõem de um terceiro em grupos sociais, que Kruuk designa por
na-malhada quando sequenciavam o ADN humano pré-molar, tanto inferior como superior, “clãs”. Normalmente, caçam em grupo, mas
arcaico. A notável descoberta levou os geneticistas que constituem autênticos quebra-ossos também podem ser solitárias. Na África
a questionar-se sobre como teria o ácido nucleico em forma cónica. Possuem também um subsahariana, percorrem, em média, 27
contaminante chegado aos restos humanos. quarto pré-molar inferior, cuja ponta quilómetros por noite, e deslocam-se a
saliente serve para agarrar o osso, de forma cerca de dez quilómetros por hora quando
HIPÓTESES EXPLICATIVAS a não se mover durante a trituração. Na procuram presas. No entanto, são boas
Uma primeira possibilidade seria que tanto nean- parte de trás da boca, têm um único molar, corredoras e podem alcançar os 50 km/h
dertais como denisovanos realizavam algum tipo superior e inferior, com uma acentuada quando perseguem uma vítima, durante
de prática funerária. Os falecidos podem ter sido capacidade de corte e que é designado por uma corrida que pode estender-se por
inumados no chão das cavernas e, posteriormente, “molar carniceiro”. Esta dentição, a par dos mais de 2 km. Assim, não é de espantar que
as hienas tê-los-iam encontrado cavando e retirado grandes músculos da mandíbula e de uma os seres humanos estejam dentro do seu
da terra para os comer. Poderia também ter acon- abóbada craniana especial para proteger o espectro gastronómico. Como os carnívo-
tecido o oposto: não enterraram os mortos e deixa- crânio contra grandes forças biomecânicas, ros nos caçam desde os alvores da nossa
ram os corpos expostos à intempérie, onde seriam conferem à hiena-malhada uma capacidade evolução, Kruuk opina que essa circuns-
facilmente encontrados por estes necrófagos. de dentada 40 por cento mais poderosa do tância exerceu uma influência significativa
Outra hipótese é que os cadáveres tivessem sido que a do leopardo. A atual hiena-malhada sobre o nosso comportamento e as nossas
enterrados num local pouco acessível das grutas, é, apesar da sua reputação de oportunista, reações perante os predadores, incluindo a
mas, quando estas passaram a ser habitadas pelas um grande predador que caça muitas quantidade desproporcional de publicidade
hienas, os animais poderiam ter urinado e defecado vezes nas planícies africanas e mesmo em que lhes damos.
na gruta, pelo que os excrementos se misturariam

SUPER 59
Na gruta de Denisova, foram encontrados
fósseis de hienas, lobos, cavalos, ursos,
rinocerontes, bisontes e antílopes.

com a água provenientes das paredes húmidas O modus operandi era o mesmo todos os anos: Por analogia com os casos atuais, a maior parte
da caverna, formando uma espécie de sopa que durante a estação estival, quando as pessoas apro- dos ataques seria realizada contra crianças, muito
acabaria por impregnar o sedimento e alcançar veitavam para dormir no exterior das suas casas, mais vulneráveis e leves para poderem ser levadas
os restos humanos, os quais absorveriam assim na frescura dos alpendres, as hienas aproximavam- até uma zona segura. É fácil imaginar os humanos
o ADN das hienas. Esta última hipótese é menos -se silenciosamente, agarravam as vítimas, nor- arcaicos a ensinar às crianças a regra básica da
provável, pois muitos sedimentos das cavernas malmente pela cabeça, e escondiam-se no mato, sobrevivência face aos grandes carnívoros: “Não
siberianas foram completamente alterados pelas tudo num ataque relâmpago. Extrapolando estes te afastes do grupo; mantém-te longe dos animais,
escavações efetuadas por hienas, pelo que dificil- casos para tempos do Pleistoceno Superior, parece especialmente das hienas.”
mente um corpo sepultado lhes teria escapado. provável que a predação por hienas entre os huma-
Estudámos formas indiretas como o ADN de nos arcaicos fosse um fator muito mais impor- CAÇA AOS HUMANOS
hiena poderia ter contaminado os ossos daqueles tante, pois estavam menos protegidos do que Susana Sawyer, investigadora do Instituto Max
seres humanos. No entanto, resta um último os humanos atuais. Planck de Antropologia Evolutiva, de Leipzig (Ale-
cenário, pavoroso: pode também ter acontecido manha), baseou parte da sua tese de doutora-
que as hienas-malhadas caçassem os neandertais OPONENTE FORMIDÁVEL mento na procura de ADN mitocondrial de hiena-
e os denisovanos que viviam na zona e levassem Enquanto a hiena-malhada moderna tem o seu -malhada nos escassos restos humanos encontra-
os seus restos para o interior da caverna. Como domínio em África, a hiena-das-cavernas do Pleis- dos em Denisova. Dos cinco que analisou, quatro
os primeiros dentes e falanges contaminados que toceno Superior ocupava uma vasta área habita- apresentavam ADN mitocondrial de hiena; dois
foram recuperados em Denisova não apresentam cional, com um limite setentrional situado no para- eram de crianças e outro de um indivíduo jovem.
marcas detetáveis de dentadas ou corrosão pelos lelo 56. O porte da hiena-malhada siberiana era O facto de metade dos restos contaminados per-
ácidos do estômago, é possível que tenham sido maior do que o das atuais subsaharianas. Algumas tencerem a crianças ou jovens poderia indicar que
regurgitados na forma de bolas de pêlo. fêmeas pesariam provavelmente 100 kg. Se, como as hienas-malhadas do Pleistoceno Superior tinham
vimos, exemplares de menos de 80 kg conseguem hábitos de caça aos humanos semelhantes aos das
ATAQUES RELÂMPAGO atacar pessoas adultas, a hiena-das-cavernas seria atuais. Outra prova reside num diminuto fragmento
Há casos bem documentados de hienas-malhadas um oponente formidável, mesmo para os corpu- ósseo que pertenceu à adolescente híbrida denomi-
que caçaram seres humanos, pois o seu tamanho é lentos neandertais. nada Denny, o qual estava cheio de orifícios e alte-
maior do que parece à primeira vista. Além disso, as rações produzidas por ácido estomacal de hiena,
que atacam pessoas são especialmente corpulentas. um claro indício de que foi regurgitada num desses
Um guarda florestal chamado Ballestra relatou, em As hienas episódios de vómito que as hienas sofrem por vezes.
1962, na revista African Wildlife, que abatera duas Se, tal como parece, as hienas siberianas caçavam
hienas após uma série de incidentes na cidade de caçavam neandertais e denisovanos, o ódio a estes carnívo-
Mulanje (Malawi). Pesavam 72 e 77 quilos, um peso ros deveria ser algo comum no Pleistoceno Supe-
semelhante ou superior ao das suas vítimas. Mata- neandertais rior. Podemos imaginá-las, subtis e resolutas, a
ram e devoraram 27 pessoas durante cinco anos, e entrar nos acampamentos de noite e a arrastar pre-
muitas das suas vítimas foram crianças. e denisovanos ferencialmente crianças ou idosos vulneráveis, tal

60 SUPER
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Hiena-castanha Hiena-riscada

Família diversificada
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A atual família Hyaenidae é o que resta


de um grupo que foi, outrora, muito
prolífico. No apogeu da sua diversidade
(há sete a oito milhões de anos), havia
mais de 80 espécies que se estendiam de
África à Europa e ao leste da Ásia. Hoje,
restam quatro espécies. A hiena-castanha
(Hyaena brunnea) é um omnívoro peludo
que habita o sul de África. A hiena-riscada
(Hyaena hyaena) é semelhante à hiena-cas-
tanha, mas é ligeiramente mais pequena e
menos peluda e possui um padrão de riscas
mais distintivo. Habita o norte de África e
é a única hiena que também vive fora do
continente, no Médio Oriente e na Índia.
O lobo-da-terra (Proteles cristata) é o tipo
mais pequeno de hiena e também o único
insetívoro. Habita o sul e o leste de África.
A hiena-malhada (Crocuta crocuta) é a
maior de todas. Como o seu nome indica, a
pelagem possui pontos ou manchas escuras
e é um devorador de carne. O atual habitat
abarca grande parte da África subsahariana.
Lobo-da-terra
As quatro espécies têm hábitos nocturnos.
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Hiena-malhada

SUPER 61
Domesticação perdida
U ma equipa internacional encabeçada
pelo paleontólogo russo Nicolai D.
Odov considera que os canídeos de Goyet
seguramente, alterações nos padrões de
povoamento, suficientemente graves para
ter interrompido o processo de domesti-
e Razboinichya não são antepassados cação e detendo, pois, a evolução de cães
dos cães que surgiram depois do Último totalmente domesticados. As linhagens
Máximo Glacial. Os especialistas pensam continuadas de cães surgiram na Europa,
que esses canídeos eram cães incipientes no Médio Oriente e no China, no final do
que não sobreviveram o suficiente para for- Último Máximo Glacial, durante o Holo-
mar linhagens duradouras, pois não foram ceno inferior. Há cerca de 14 mil anos, os
encontrados restos de cães em lugares da cães já se teriam tornado um componente
Europa e da Sibéria ocupados durante esse consistente dos povoamentos humanos e
período. As variações ecológicas causadas foram submetidos a enterro deliberado e
pelo progressivo arrefecimento causaram, incluídos em sepulturas humanas.

como fazem hoje. Entrar nos acampamentos talvez miné natural. Seria um lugar ideal para fazer uma
significasse uma refeição fácil. Depois de um grupo fogueira e estar ao abrigo das noites frias durante
ter experimentado caçar uma pessoa, aprenderia a época invernal, mas é possível que as hienas habi-
depressa a melhorar a eficácia, e outros membros tassem habitualmente a caverna e só permitissem
do clã poderiam imitar as suas táticas. Seria um o acesso em raras ocasiões. Podemos imaginar os
processo imparável e os clãs tornar-se-iam pro- moradores humanos em constante vigilância para
gressivamente mais temerários e agressivos. o caso de as hienas regressarem.
Outro indício de que eram senhoras de Denisova
OCUPAÇÃO INTERMITENTE reside no depósito descontínuo dos sedimentos,
A presença destes carnívoros também nos pro- pois estão completamente alterados e os níveis
porciona uma ideia da extensão do território habi- arqueológicos são muito difíceis de estabelecer.
tado pelos seres humanos. Mesmo que os restos Essa circunstância torna complicado datar os restos
de denisovanos e neandertais recuperados dos humanos, pois a estratigrafia arqueológica é inter-
sedimentos de Denisova não tenham pertencido a mitente. É possível estimar com segurança a idade
indivíduos que ocuparam a caverna, sabemos que de hominídeos com uma antiguidade inferior a 50
teriam vivido a poucos quilómetros dali. Se nos mil através dos métodos com radiocarbono. Em
basearmos nas atuais hienas-malhadas, sabemos contrapartida, no caso dos mais antigos, são esta-
também que as suas áreas de caça podem variar belecidos amplos intervalos etários em função da
amplamente consoante a densidade de presas fauna fóssil e das ferramentas líticas. Os cientistas
(entre 40 e mil quilómetros quadrados), mas nesse do Max Planck também recorrem a estimativas
caso não as arrastam até ao seu covil, que pode baseadas na taxa de mutação do ADN nuclear.
situar-se a grande distância do local da morte. Na sua
tese de doutoramento, Susana Sawyer propõe que, CÃES E AGULHAS
se alguma matança ou razia necrófaga tivesse ocor- A chegada dos seres humanos modernos tradu-
rido a poucos quilómetros de Denisova, alguma ziu-se na introdução de um novo e difícil adver- É surpreendente o número de fósseis
de hiena encontrados na gruta de Denisova.
hiena poderia ter levado, durante o frenesim do sário para os clãs de hienas. Os recém-chegados
festim, uma cabeça ou um braço para poder comê- possuíam uma tecnologia mais sofisticada que
-lo em paz no refúgio da caverna, tal como fazem se materializava na utilização de finas agulhas
habitualmente as suas congéneres modernas. de osso para confecionar uma indumentária que semelhante a um cão junto de uma fauna diver-
Assim, os hominídeos devorados estariam num os protegia muito melhor do frio e da chuva. sificada em que se destacavam maioritariamente
raio de poucos quilómetros relativamente a Deni- Possuíam igualmente armas de arremesso que os restos de hienas. A presença de pequenos frag-
sova. Já foi demonstrado que os neandertais sabiam utilizar com grande habilidade para matar mentos de carvão e ossos queimados prova que
viviam na região, pois foram encontrados restos as hienas mais agressivas e ousadas. os homens a visitavam ocasionalmente. Com uma
humanos em grutas nas imediações de Okladnikov Além disso, os seres humanos possuíam um vestimenta superior, melhores armas e a inesti-
e Chagyrskaya. É também perfeitamente possível aliado muito poderoso: os primeiros cães domes- mável ajuda de cães como guardas e ajudantes de
que denisovanos e neandertais tivessem ocu- ticados. Os seus apurados sentidos do olfato e do caça, os seres humanos modernos podiam deslo-
pado Denisova de forma intermitente. Dizemos ouvido converteram-nos em excelentes guardas, car-se de forma mais segura do que neandertais
de forma intermitente porque não foram encontra- que podiam alertar para um ataque noturno imi- e denisovanos. Todavia, também só alcançariam
dos vestígios de fogo nos sedimentos escavados nente. Sabemos que a domesticação do cão se o continente americano dezenas de milhares de
em Denisova. verificou na Sibéria há 33 mil anos, graças à desco- anos depois. Mais outro enigma.
berta de um crânio na caverna de Razboinichya,
SEDIMENTOS ALTERADOS outra jazida da zona noroeste dos montes Altai. BARREIRA DE HIENAS
Isso é outro mistério, dado que Denisova pos- Em 1975, o paleontólogo Nicolai D. Odov encon- O antropólogo Christy Turner II sugeriu que a
sui no teto um buraco na rocha que faz de cha- trou um crânio e duas mandíbulas de um canídeo razão para esse atraso reside no que designou por

62 SUPER
de ferramentas de pedra e lascas. Entre a fauna
fossilizada, surgem restos de mamute, cavalo, rena,
bisonte, rinoceronte lanudo, lebre... e carnívoros
como o leão-das-cavernas e o urso pardo. Por
enquanto, não se descobriu vestígios de hienas.

PARAÍSO DE CAÇA
Segundo a diversificada fauna recuperada em
Yana, o nordeste da Sibéria não era, na altura, a
inóspita tundra imaginada por Turner, mas um ver-
dadeiro paraíso cinegético. É óbvio que o mamute
e outros animais das estepes, como cavalos e
bisontes, se estendiam pela zona. Os dados sobre o
pólen recuperado dos sedimentos indicam um clima
fresco e seco e a presença de povoamentos de larí-
cios e bétulas. Não sabemos se as hienas que viviam
em latitudes nortenhas conseguiram impedir,
de alguma maneira, que neandertais e denisova-
nos chegassem ao extremo norte da Siberia. Con-
tudo, é mais provável que o clima do inverno ártico,
com temperaturas negativas, exigisse uma vesti-
menta adequada que talvez estes humanos arcai-
cos ainda não fossem capazes de confecionar.
Poderiam os habitantes de Yana ter povoado
pela primeira vez a América? Por enquanto, não
há qualquer prova arqueológica que apoie a hipó-
tese. Os primeiros indícios de presença humana
no Alasca datam de há cerca de 14 mil anos. Con-
tudo, poderão surgir futuras surpresas, dado que
os habitantes de Yana estavam bem adaptados à
vida circumpolar e não havia barreiras ambientais
ou animais que não pudessem ultrapassar. Segundo
Michael Waters, da Universidade do Texas, a sua boa
adaptação ao meio não os teria impedido de migrar
para leste e chegar ao continente americano.
Uma razão simples para não se terem deslocado

O Homo sapiens
levou outros
saberes e venceu
a disputa
AGE

“barreira de hienas”. Segundo este autor, a norte nos modernos, devido ao insuficiente crescimento em direção a oriente é que não precisavam de
do paralelo 56 existia uma espécie de barreira da população. fazê-lo. Naqueles vales siberianos, tinham todas as
intransponível de hienas que se prolongava até à Embora Turner tenha proposto uma teoria ori- suas necessidades cobertas, tanto em matéria de
Beríngia, a vasta ponte de terra que ligava na altura ginal e dramática, a sua hipótese caiu por terra: alimentação como de recursos naturais, e o clima
a Ásia com a América. Naquela época, os níveis sabemos, com elevado grau de certeza, que as era muito mais ameno do que o que viria a regis-
do mar eram mais baixos, pois grande parte da hienas setentrionais não representavam qualquer tar-se depois. Com efeito, há entre 26 500 e 19 mil
água doce do planeta estava convertida em gelo. obstáculo para os seres modernos. No vale do anos, produziu-se um episódio de frio intenso
A Beríngia encontra-se agora submersa sob os rio Yana, 500 km acima do Círculo Polar Ártico, conhecido como “Último Máximo Glacial”. Talvez
mares de Bering e Chukotka. encontra-se a jazida Yana RHS (Yana Rhinoceros essa importante alteração climática tenha formado
Segundo Turner, nessas zonas mais setentrio- Horn Site), quase na costa nordeste da Sibéria. uma barreira gelada no caminho para o Alasca.
nais, os recursos alimentares seriam muito limita- Os arqueólogos descobriram nessa jazida uma Seja como for, a Pré-história siberiana ainda
dos e ter-se-ia desencadeado uma luta pela sobre- esplêndida estilha de flecha feita de corno de rino- está repleta de incógnitas que futuras descobertas
vivência. A escassez de alimentos talvez tivesse ceronte e outras duas elaboradas com presas de poderão ir desvendando lentamente, pois o enredo
levado as hienas a matar e a comer com maior mamutes, que permitem documentar a presença da paleoantropologia é sempre sinuoso e muitos
frequência crianças desprotegidas, travando de humanos ali há cerca de 30 mil anos. Em Yana mistérios aguardam os futuros investigadores.
assim a expansão para norte por parte dos huma- RHS, foi também encontrada uma ampla variedade M.G.B.

SUPER 63
História

Retrato de Mary Shelley pintado em 1840


pelo irlandês Richard Rothwell (1800–1868).

64 SUPER
Mary Shelley

Muito mais
do que
Frankenstein
Há 170 anos, morreu a escritora inglesa
Mary Wollstonecraft Godwin, mais conhecida
como Mary Shelley, vítima de um tumor cerebral.

Ó
rfã de mãe – a filósofa e escritora Mary soais, um olhar para a sua realidade que recorda o seu
Wollstonecraft (1759–1797), autora de Uma passado ao mesmo tempo que deseja gerar vida e mode-
Vindicação dos Direitos das Mulheres (1792; lar o seu verdadeiro destino.
Antígona, 2017) –, Mary Shelley (1797–1851) Em obras como Valperga or The Life and Adventures
manteve uma relação difícil com o seu pai, William of Castruccio, Prince of Lucca (1823), The Last Man (1826),
Godwin (1756–1836), filósofo, romancista e jornalista que Lodore (1835) ou Falkner – A Novel (1837), revolta-se con-
a descreveu como sendo uma “mulher corajosa, impe- tra a tradição e tenta explorar as relações contraditórias
tuosa e de mente aberta, com imenso desejo de reconhe- entre o indivíduo e a sociedade e a possibilidade da sua
cimento e uma grande perseverança”. transformação através do exercício responsável do poder
A sua personalidade não deixa ninguém indiferente. político. Sempre se destacou pelo seu esforço de procura da
Desde muito pequena, refugiou-se na leitura e na escrita, verdade, que a levou a questionar as instituições políticas
ao mesmo tempo que era educada nas teorias políticas e teológicas estabelecidas e a exaltar a amizade, a sim-
liberais. Partilhou o seu tempo de vida com Jane Austen, plicidade e a capacidade de decisão. Face à compulsão
as irmãs Brontë, George Elliott e Elizabeth Barrett masculina, defendeu a sensibilidade e a razão femininas.
Browning. Amiga e confidente do poeta inglês lord George A memória de Mary Shelley está associada ao “inomi-
Gordon Byron (1788–1624) e amante do historiador e nável”, ao não nomeado, ao ser ressentido, colérico e vin-
romancista francês Prosper Mérimée (1803–1870), apaixo- gativo criado pelo doutor Victor Frankenstein no seu livro
nou-se depois pelo poeta reformista inglês Percy Bysshe de juventude, relato de ficção científica, novela gótica e
Shelley (1792–1822), com quem casou em 1816, aos 19 anos, de terror. Porém, foi muito mais do que isso. Desafiou de
e de quem foi mulher e editora, além de ter adotado o seu forma liberal, independente e combativa o romantismo
apelido. Teve quatro filhos com ele (em seis anos) e relatou individual, convencida da necessidade de cooperação das
as muitas viagens feitas pelos dois em cartas e livros. mulheres para a reforma da sociedade civil. Desta forma,
Mary Shelley é tão significativa pela sua importância ideo-
ENTRE A FICÇÃO E A ANÁLISE SOCIAL lógica como pelos seus sucessos literários.
Romancista e pensadora, no conjunto da sua produção Vale a pena referir que, entre as muitas obras que nos
interessou-se pelas modas estéticas, os temas de pendor deixou, consta a sua colaboração com James Montgomery
feminista, as liberdades e os direitos individuais e a igual- e David Brewster no monumental Lives of the Most Eminent
dade e a independência das mulheres: antecipou muitos Literary and Scientific Men of Italy, Spain, and Portugal
princípios, visíveis ou não, que sustentam ideias atuais. (três volumes integrados na Cabinet Cyclopedia do irlandês
Dotada de uma grande capacidade criativa, inventou aos Dionysius Lardner, que totalizou 133 volumes), em que terá
21 anos o monstro que rouba o fogo divino em Frankens- escrito as biografias de Sá de Miranda, Jorge de Montemor,
tein (1818; Relógio d’Água, 2017), reflexo de lutas men- Gil Vicente, António Ferreira e Luís Vaz de Camões, entre
tais e morais, crítica do individualismo e do egocentrismo. muitas outras.
O seu monstro parece uma reprodução de vivências pes-
ASC

P.U.V. / A.R.

SUPER 65
História
AGE

Continuamos a avançar?

A carga maldita

Litografia colorida da carga da Brigada


Ligeira, da autoria do artista inglês
Richard Caton Woodville Jr. (1856–1927).

66 SUPER
Em 25 de outubro de 1854, mais de 650 cavaleiros britânicos lançaram-se
contra os canhões russos, numa cavalgada heroica e suicida que se tornou
um dos episódios mais célebres da guerra da Crimeia. Ainda se ouvem
os ecos da carga da Brigada Ligeira, uma gesta inútil que, como tantas outras,
se produziu devido a um erro militar que poderia ter sido evitado.

SUPER 67
O
sentimento preponderante não é O Vale da Sombra da Morte é uma
senão honroso e justo. O de que Ingla- fotografia feita por Roger Fenton em 1855.
Era esse o nome dado pelos soldados
terra se comprometeu a ajudar um britânicos a este local muito bombardeado
vizinho vulnerável contra a agressão da Crimeia, como mostram as balas
de um forte. Trata-se, na realidade, da luta do povo.” de canhão espalhadas no solo.
Com estas palavras, o londrino Times defendia, em
27 de fevereiro de 1854, a guerra que o Reino Unido
iria declarar à Rússia um mês depois, em 28 de
março, e que se desenrolaria na remota península
da Crimeia, na costa setentrional do mar Negro.
Como é que tudo começou? Com uma disputa entre
os monges católicos e ortodoxos encarregados da
guarda da Igreja da Natividade em Belém, que foi de
imediato tomada pela Rússia como pretexto para
invadir territórios do império otomano e defender
os ortodoxos, um ato que levou britânicos e fran-
ceses a aliar-se aos turcos e a intervir.
Na realidade, a obscura disputa religiosa serviu
os planos russos, que passavam por conquistar
Constantinopla e conseguir o ansiado acesso ao
Mediterrâneo, algo que o Reino Unido não poderia
consentir, como explicava o diário Westminster
Review: “Tudo depende de como lidarmos com
a presente crise. O nosso corredor para a Índia
depende disso. O nosso comércio com todas as
nações livres depende disso. Quando o czar trans-
formar o Mediterrâneo num lago russo, os nossos
mercadores lamentarão a cega loucura de nos
recusarmos a detê-lo quando ainda era possível.
A crise do mundo civilizado está à nossa porta.”
Depois de se aliarem com franceses e turcos,
os britânicos recrutaram, em poucos dias, 27 mil
homens, num ambiente de grande fervor bélico.
“Trazei o grande urso numa jaula!”, gritavam as
pessoas às tropas que se dirigiam para os portos,

Aqueles homens
iam enfrentar
o maior exército
do mundo
a fim de embarcar rumo ao mar Negro. O grande nem sequer tinham treino militar, pois haviam anciãs do exército británico, a quem chamam conde
urso era o czar Nicolau I (1796–1855), que o jornal comprado o cargo. “Muitos jovens oficiais traziam de Cardigan. Tem tanto cérebro como as minhas
Morning Advertiser descrevia como “um demó- consigo alguma destreza como cavaleiros e entu- botas. Apenas o seu parente, o conde de Lucan,
nio com aspeto humano”. O ardor guerreiro era siasmo pela caça à raposa, mas pouco mais”, está à sua altura em termos de falta de inteligência.
tal que, como narra o historiador Terry Brighton escreve Brighton. Claro que havia algumas exce- Sem querer ofender, digo que não se poderia ter
(n. 1949) no livro Hell Riders – The Truth About the ções, mas o resultado era uma mistura de comba- escolhido em todo o exército dois idiotas como
Charge of the Light Brigade (2004), “a rainha Vitória tentes experientes e completos novatos. eles para exercer o comando”, desabafava, numa
e o príncipe Alberto apareceram na varanda do Palá- No caso da Divisão de Cavalaria, o comandante carta enviada à família, o capitão Robert Portal
cio de Buckingham para se despedir dos regimen- era lord Lucan (George Bingham, 1800–1888). (1820–1888). “Chamamos a Lucan o imbecil pru-
tos que abandonavam Londres e desejar-lhes uma Entre os seus subordinados, figuravam o general dente e a Cardigan o imbecil perigoso”, escreveu,
rápida vitória; a maior parte dos oficiais da Cava- Sir James Yorke Scarlett (1799–1871), que dirigia a por sua vez, outro membro da cavalaria, o major
laria de Sua Majestade davam-na por garantida”. Brigada Pesada, e lord Cardigan (James Thomas William Forrest. Como se isto fosse pouco, aqueles
Brudenell, 1797–1868), que comandava a Brigada homens iam enfrentar o exército mais numeroso
COMANDO INCOMPETENTE Ligeira. As escolhas não teriam tido muita impor- do mundo, o russo, engrossado para a ocasião por
Porém, nem todos partilhavam a euforia. Devido tância, não fosse o facto de até os jornais classifi- camponeses aos quais o czar concedera terras em
aos costumes da época, a maior parte dos oficiais carem os dois oficiais como sádicos e ineptos. troca de se alistarem. Eram os cossacos, que até
de cavalaria nunca entrara em combate; alguns “Estamos sob o comando de uma das maiores os seus oficiais temiam pela sua ferocidade.

68 SUPER
Pretexto religioso
A guerra da Crimeia (1853–1856)
teve na sua origem um episódio
aparentemente trivial, ocorrido na
Igreja da Natividade, em Belém (atual
Israel), então sob domínio turco e
sob a custódia conjunta de monges
ortodoxos gregos e católicos romanos.
Em 1847, os ortodoxos retiraram, um
dia, uma estrela de prata que os cató-
licos tinham colocado no lugar exato
onde pensavam ter estado o estábulo
onde Jesus nasceu. Perante a recusa
em restituí-la, iniciou-se uma disputa
e posterior rivalidade que alcançaria
o seu apogeu em 1852, quando vários
monges ortodoxos foram assassinados
pelos seus colegas católicos. A resposta
dos gregos foi pedir ajuda ao czar Nico-
lau I da Rússia, autoproclamado pro-
tetor dos ortodoxos cristãos de todo o
mundo. Assim, o episódio transformou-
-se num conflito internacional. O czar
decidiu aproveitá-lo e pediu ao sultão
da Turquia que o reconhecesse como
protetor dos cristãos em território oto-
mano. Perante a sua recusa, Nicolau I
invadiu a Moldávia e a Valáquia, sob o
argumento de querer defender a religão
ortodoxa. Não escapou a ninguém que
o que pretendia realmente era expandir-
-se para sul, procurando um acesso ao
Mediterrâneo para poder rivalizar com
ROGER FENTON / BIBLIOTECA DO CONGRESO DOS EUA

as frotas britânica e francesa. Se tivesse


êxito, o Reino Unido veria ameaçado
o seu comércio com a Índia. Assim,
quando a Rússia atacou de surpresa a
frota turca em Sinope e afundou os seus
navios, os britânicos encontraram o
pretexto desejado para iniciar a ansiada
guerra contra os russos.

ASSÉDIO PROLONGADO perceber-se-ia que, se tivesse atacado, teria tomado dos homens ao tomar a cidade (se formos bem
A força expedicionária britânica ancorou na baía a milenar cidade sem grandes problemas. sucedidos) do que teríamos perdido se tivésse-
de Kalamita (Crimeia) em 13 de setembro de 1854. Foram erguidas plataformas para os canhões e mos atacado há 24 horas. Estes disparos à distân-
O seu principal objetivo era Sebastopol, a cidade montado um acampamento com vista a um cerco cia não fazem sentido. O ataque é absurdo.”
portuária situada a pouco mais de 50 quilómetros prolongado. As escaramuças com os cossacos
que constituía a base da frota russa no mar Negro. sucederam-se nos dias seguintes. A ordem era para RUSSOS AO ATAQUE
Embora fossem acompanhados por trinta mil não lançar um ataque em força, com receio de cair Além disso, a combinação do frio e da má alimen-
soldados franceses, a conquista de Sebastopol numa armadilha, o que foi minando o moral das tação também estava a provocar baixas. É nova-
afigurava-se difícil, devido às suas fortificações e tropas. Os primeiros tiros de canhão foram dispa- mente Windham que diz: “As noites eram terrivel-
aos numerosos navios de guerra ancorados nas rados contra Sebastopol em 17 de outubro. mente frias e o intenso orvalho deixava-nos quase
suas águas. Apesar disso, a força aliada iniciou as Não tardou a perceber-se que o assédio seria ensopados. Até o sangue parecia gelar. Com todos
manobras para tomar a cidade. Em 26 de setembro, longo. O que os britânicos destruíam durante o dia, aqueles piquetes defensivos e ofensivos, quase
as tropas estavam suficientemente perto para ini- os russos reconstruíam de noite, como escreveu sempre a cavalo, sem nunca trocarmos de roupa,
ciar o ataque, mas o general FitzRoy James Henry o coronel Charles Windham (1810–1870): “A fase doentes e famintos, sentíamo-nos muito mal.”
Somerset (1788–1855), barão de Raglan e coman- do bombardeamento decorreu como de costume, Todavia, o que mudou o curso dos acontecimen-
dante-em-chefe do exército britânico na Crimeia, sem que tivéssemos ganho a mínima vantagem, tos e, em última instância, precipitou a carga da
foi convencido a não fazê-lo. No final da guerra, e estou convencido de que perderemos o dobro Brigada Ligeira foi um relatório dos espiões britâni-

SUPER 69
cos recebido por lord Raglan: avisava-o de que 40
mil soldados russos estavam a caminho da Crimeia
para lançar uma ofensiva em grande escala. Raglan
duvidou da veracidade da informação e o cerco
prosseguiu, até que, no dia 25 de outubro, às cinco
da manhã, a tropa de Nicolau I passou ao ataque.
Com as primeiras luzes da alvorada, os britâni-
cos observaram que o inimigo tinha erguido para-
peitos de canhões a dois quilómetros do seu acam-
pamento. “Em seguida, percebemos que tinham
colocado canhões ao longo da zona mais baixa do
vale. Simultaneamente, a artilharia de campanha
fora colocada na subida de uma colina situada
diante de nós e à nossa esquerda. Havia também
outra unidade de artilharia de campanha na pen-
dente à nossa direita”, relataria, posteriormente,
o soldado Mitchell.

SENTENÇA DE MORTE
Além disso os cossacos estavam a arrastar para
longe os canhões ingleses instalados nas ladeiras
do vale. Às onze da manhã, o capitão Nolan entre-
gou a lord Lucan uma ordem escrita assinada por
lord Raglan: “Que a cavalaria avance rapidamente
até à frente, siga o inimigo e tente impedir que
levem os canhões. A companhia de artilharia mon-
tada poderá acompanhá-la. A cavalaria francesa
ficará à sua esquerda.”
ROGER FENTON / BIBLIOTECA DO CONGRESO DOS EUA

O último
sobrevivente
do ataque suicida
morreu em 1907
A ordem era a sentença de morte da Brigada depois, o soldado John Richardson. Um dos seus mas os outros membros retorceram-se sobre
Ligeira. Como explicaram depois testemunhas camaradas, chamado Farquharson, recordaria o tronco contraído como se fosse vítima de um
oculares, da posição em que se encontrava, como tinha ouvido alguém dizer nesse momento: espasmo, e perguntámo-nos como era possível que
lord Lucan não podia ver quaisquer inimigos ou “Muitos de nós nunca regressaremos à reta- aquela forma encolhida se mantivesse alguns ins-
canhões. Desconcertado, perguntou a Nolan onde guarda.” O plano era que a Ligeira fosse seguida, tantes sobre a sela. Foi o primeiro horror daquela
devia atacar. Este indicou a frente e respondeu: a uma distância prudente, pela Brigada Pesada. cavalgada de horrores.”
“Ali, milorde, está o inimigo; ali estão os canhões.” Desse modo, a frente russa seria alvo de dois ata- Enquanto a Brigada Ligeira avançava, as balas
Os comandantes da Divisão de Cavalaria com- ques praticamente consecutivos. Não foi assim. de canhão e as granadas caíam por entre os cava-
preenderam que o número de baixas seria terrível, Ao toque da trombeta, principiou a carga. Pouco los, segundo testemunhos dos sobreviventes:
mas tinham de manter a disciplina militar. É neste mais de dois quilómetros estendiam-se diante dos “A descarga seguinte abriu grandes brechas nas
ponto que reside a beleza e a tragédia do episódio, cavaleiros até aos canhões cossacos, um trecho nossas fileiras e muitos soldados caíram.” “Ouviam-
como explica Brighton: “Havia algo de mítico no imortalizado pelo poeta britânico Alfred Tennyson -se blasfémias e pragas entre os disparos dos
facto de uma brigada de cavaleiros, enviada a toda (1809–1892) no seu poema narrativo “A carga da canhões e as granadas a explodir, enquanto os
a pressa para a morte por erro humano, avançar a Brigada Ligeira”, publicado em 1854: “Meia légua, homens se amontoavam e se empurravam uns aos
um passo ainda mais rápido, sem conhecer o motivo meia légua,/ meia légua avante,/ pelo vale da outros num esforço para se reagrupar no centro.”
mas prosseguindo, graças à sua coragem, naquela morte/ cavalgaram os seiscentos.” “O fogo era tremendo e as granadas explodiam
corrida fatal. Ali, condensada numa frenética galo- sobre nós. Por entre as balas de canhão que despe-
pada de sete minutos, estava a vida heroica vivida LUTA CORPO A CORPO daçavam o chão e as balas de mosquete que caíam
ao máximo.” O cavaleiro James Wightman descreveu sem como granizo, continuámos a avançar sem alterar
“Desembainhai as espadas!”, gritou lord Car- meias palavras aquele ato suicida: “Mal tínhamos o nosso passo.”
digan aos seus homens da Brigada Ligeira. Estes cavalgado duzentos metros, e ainda íamos a trote, Quando os cavaleiros se encontravam a 250 m
obedeceram. “Todos podíamos ver que se estava quando o pobre Nolan encontrou o seu destino. dos canhões, o corneta tocou “a galope” e, segun-
a cometer um erro, mas a única coisa que podía- Vi-o ser metralhado. A espada caiu-lhe da mão dos depois, “à carga”. Os cossacos disparavam
mos fazer era acatar as ordens”, diria, alguns anos erguida. O braço permaneceu levantado e rígido, e carregavam as armas a cada trinta segundos,

70 SUPER
Jornalismo de guerra
A penas três horas depois da carga
da Brigada Ligeira, o jornalista
William Howard Russell (1820–1907)
enviou a sua reportagem sobre o epi-
sódio bélico ao Times de Londres, per-
mitindo que os leitores o conhecessem
quase em direto. Era apenas um dos
muitos textos que Russell escreveu na
Crimeia. Os seus trabalhos retratam
as provações vividas pelos soldados, a
má organização logística, as desavenças
entre os comandantes… Por essa razão,
os oficiais britânicos nunca lhe tiveram
grande estima, e houve até quem qui-
sesse que fosse enforcado por traição.
Contudo, nunca se deixou intimidar.
Queria que o público conhecesse a ver-
dade, antes de os comunicados oficiais
darem a sua própria versão. “Se a exibi-
ção do maior arrojo, de excesso de cora-
gem e de uma ousadia que teria dado
brilho aos melhores tempos da cavalaria
pode oferecer-nos absoluto consolo
pelo desastre de hoje, não há razão para
lamentar a melancólica perda que sofre-
mos na luta contra um inimigo selvagem
e bárbaro”, começava o seu relato sobre
a carga. Graças a estas reportagens, Rus-
sell tornou-se famoso, o que lhe permi-
tiria acompanhar, também para o Times,
Oficiais e soldados sobreviventes da carga
da Brigada Ligeira, meses depois da batalha. a revolta na Índia (1857), a guerra da
Na altura, não chegava sobreviver no próprio Secessão norte-americana (1861–1865)
dia: era preciso resistir também a possíveis e a guerra anglo-zulu (1879).
infeções e a cuidados médicos deficientes.

o que provocou numerosas baixas, mas não con- que nunca tínhamos pensado, pois ninguém ima- poema de lord Tennyson. “Preferiu-se a lenda aos
seguiram evitar que os britânicos chegassem até ginava que fosse possível; decidiram carregar uma factos”, sentencia Brighton no seu livro. Foram
eles e que a luta se transformasse num corpo a vez mais contra a nossa cavalaria, mas voltando também ocultados os erros cometidos. Para
corpo. “Ouvi um grito terrível e entre cinco a sete agora pelo mesmo terreno na direção contrária. Raglan, Lucan e Cardigan, houve apenas um res-
cossacos aproximaram-se, brandindo as espa- Aqueles dementes estavam a tentar fazer o que ponsável pelo desastre: o capitão Nolan e a men-
das; pensei que iam matar-me, mas quiseram ninguém pensou que se podia fazer”, escreveu sagem confusa que enviou. “Está a ser levada a
que tirasse o sabre, o que me fez perceber que a o tenente russo Stefan Kozhukhov. Quando os cabo uma tentativa vil de sufocar as suspeitas,
resistência era inútil”, relatou o soldado George homens alcançaram terreno amigo após essa culpando o falecido capitão Nolan. Os mortos
Wombwell, descrevendo uma reação que não foi segunda galopada no meio de fogo de morteiro, não podem defender-se”, denunciou de imediato
comum, pois a maior parte dos britânicos que tinham a ovação foi estrondosa, mas a imagem era deso- o Daily News.
alcançado as fileiras inimigas tentavam apode- ladora. Centenas de soldados e de cavalos jaziam Lord Cardigan prometeu um “porvir assegurado”
rar-se dos canhões russos e levá-los para o seu destroçados pelos canhões ao longo do vale. aos sobreviventes, mas não foi isso que aconte-
acampamento, dado que pensavam que a Brigada Alguns, ainda vivos, aproximavam-se andando ou ceu. A maioria viveu quase na miséria, relatando a
Pesada estava a chegar para ajudá-los. a arrastar-se pelo chão, com terríveis ferimentos sua gesta em tabernas a troco de um copo ou de
Porém, esse apoio não chegou: quando as balas de bala e de baioneta. algumas moedas. Terminaram os seus dias em asilos
começaram a atingir os seus homens, lord Lucan para os pobres, como denunciou, em 1891, o escri-
ordenou que voltassem ao acampamento. Diz-se A LENDA E OS FACTOS tor Rudyard Kipling (1865–1936) no poema “Os
que terá afirmado: “Sacrificaram a Brigada Ligeira; Graças às crónicas notáveis enviadas pelo cor- últimos da Brigada Ligeira”.
não farão o mesmo com a Pesada, se eu puder respondente de guerra William Howard Russell, No ano de 1879, assistiram a uma cerimónia
evitá-lo.” todo o Reino Unido soube imediatamente o que se comemorativa 222 sobreviventes da carga. Em 1913,
Os exaustos sobreviventes regressaram às passara. O jornalista ofereceu uma visão fidedigna, já só viviam seis. Em 1927, morreu o último dos
suas linhas como puderam, muitos deles feridos e criticando o absurdo daquela ação e a incompe- membros da Brigada Ligeira. Foi sepultado com
montados em cavalos igualmente esgotados, mas tência dos comandantes, mas o que determinou as máximas honras militares.
continuaram a lutar. “Os ingleses fizeram algo verdadeiramente a perceção dos cidadãos foi o J.R.

SUPER 71
História

A ciência continua sem explicá-los

Objetos
misteriosos

Pela sua origem incerta, pelas estranhas


características ou pela localização num tempo
ou num lugar que aparentemente não lhes
correspondem, estes artefactos continuam
a despertar a curiosidade de especialistas
e amadores, dando origem a inúmeras especulações.
72 SUPER
SHUTTERSTOCK
Petroesferas da Costa Rica

SUPER 73
ASC
Trílito de Baalbeck

ASC
Lente de Nimrud
TRÍLITO DE BAALBEK
Idade do Bronze
É nas ruínas da antiga cidade romana de Heliópolis
(atual Baalbek, no Líbano) que se encontram os
restos de um dos mais colossais templos do mundo
antigo, dedicado a Júpiter e erguido por ordem
de Otávio Augusto no século I (embora só fosse
concluído no século III). No gigantesco pódio ou
plataforma que lhe serviu de base, encontra-se o
trílito (por analogia com as construções megalíticas
assim designadas) de Baalbek: três pedras desco-
munais de 19 metros de comprimento, 4,2 m de
altura, 3,6 m de espessura e 800 toneladas de peso
cada uma. Como foram transportadas até ali conti-
nua a constituir um mistério, objeto de debate his-
toriográfico e de especulações, embora as análises
e escavações arqueológicas indiquem que fizeram
parte de um monumento muito anterior, datado da
Idade do Bronze e “reciclado” pelos romanos.

LENTE DE NIMRUD
Século VIII a.C.
Esta peça, talhada em cristal de rocha e de forma
ligeiramente ovalada, de 38 milímetros de diâmetro,
foi descoberta, em 1850, nas escavações do Palá-
cio de Nimrud (atual Iraque) pelo viajante, arqueó- e que explicaria os conhecimentos de astronomia cido por “Jomon” (a primeira cultura identificada
logo, colecionador e político inglês Austen Henry dos babilónios, embora não haja referência a tais no arquipélago nipónico) e foram encontrados
Layard (1817–1894), pelo que é também conhe- instrumentos nos textos assírios – ou se era um cerca de 15 mil, quase todos no leste do Japão. Não
cida por “lente de Layard”. Datada do ano 750 objeto meramente ornamental. se conseguiu determinar o propósito destas esta-
a.C., aproximadamente, e hoje exposta no Museu tuetas de argila antropomorfas (há também algu-
Britânico (Londres), questiona-se se os assírios a DOGUS DO JAPÃO mas com formas de animais), que têm entre 10 e 30
teriam utilizado como lupa, se fez parte do mais Século V a.C. centímetros de altura: representariam divindades
antigo telescópio conhecido – tese defendida pelo O seu nome em japonês significa “figuras de barro”, femininas, efígies mágicas para as quais se podia
paleógrafo italiano Giovanni Pettinato (1934–2011) provêm do final do período pré-histórico conhe- transferir a doença ou a má sorte? A teoria mais

74 SUPER
ASC
Pássaro de Saqqara

Dogus do Japão

ousada, com base nos intrigantes traços dos dogus,


é que se trata de astronautas da Antiguidade
envergando capacetes e trajes espaciais.

PETROESFERAS DA COSTA RICA


Séculos IV a.C. a XVI
Conhecidas igualmente por “petrosferas de Diquís”,
por terem sido principalmente encontradas no delta
do rio com o mesmo nome, são mais de 500 esferas
de pedra talhadas pela cultura pré-colombiana da
zona ao longo de muitos séculos, até à chegada dos
espanhóis. Extraordinárias pela sua perfeita esfe-
ricidade e pela delicadeza do acabamento (e hoje
símbolo nacional da Costa Rica), pensa-se que
podem ser servido de sinais de classe ou de impor-
tância social, embora haja hipóteses que defendem
a sua utilização como parte de um calendário agrí-
cola, e outras que lhe atribuem, como não podia
deixar de ser, uma suposta proveniência extrater-
restre.

PÁSSARO DE SAQQARA
Século III a.C.
Esta singular curiosidade esculpida em madeira
de sicômoro por volta do ano 200 a.C. (durante
a dinastia ptolemaica), foi encontrada, em 1891,
no túmulo de Pa-di-Ámon da antiga necrópole
egípcia de Saqqara e está atualmente exposta no
Museu do Cairo. Tem 15 cm de altura e, pela sua
forma, muito semelhante à de um avião em minia-
tura, há quem lhe chame o “planador de Saqqara”
e o classifique como um oopart (objeto fora de
contexto), considerando que se trata de uma
maqueta que mostra que os antigos egípcios
ASC

SUPER 75
ASC

Cabeça de Tecaxic-Calixtlahuaca

GETTY
Pilar de ferro de Deli
inventaram as primeiras aeronaves da história.
A verdade é que não se sabe ao certo o que é: um
atributo cerimonial (o falcão tem uma forte pre-
sença na mitologia egipcia), um brinquedo infantil,
um catavento, uma espécie de boomerang?

CABEÇA DE TECAXIC-CALIXTLAHUACA
Séculos II ou III
Esta cabeça de terracota que se demonstrou ser de
origem romana foi encontrada, insolitamente, num
túmulo pré-colombiano da zona de Tecaxic-Calix-
tlahuaca (vale de Toluca, México). Por isso, alguns
consideram que prova a existência de contactos
transoceânicos entre a Roma imperial e o conti-
nente americano, mas há outras explicações, ape-
sar de nenhuma ser conclusiva: uma brincadeira de
um arqueólogo que a colocou ali, uma importação
europeia posterior, os vestígios de um naufrágio
romano que alcançaram o México...

PILAR DE FERRO DE DELI


Século IV
Situado no Complexo de Qutb, um conjunto de
edifícios e monumentos da Índia classificado como
Património da Humanidade pela Unesco, este fasci-
nante testemunho da história da siderurgia mostra
o extraordinário nível de sofisticação dos antigos
ferreiros indianos. Com 7,21 m de altura, foi ela-
borado na época do imperador Chandragupta II
(m. 410 d.C.) com ferro forjado de tamanha pureza
que não enferrujou após 1600 anos exposto à

76 SUPER
ASC

GETTY
Manuscrito Voynich

ASC
Moeda do Maine

Mapa de Piri Reis

intempérie. Apesar de haver diversas teorias, com nativos americanos mais a norte, no Labrador ilustrações (muitas de espécies botânicas não
nenhuma conseguiu determinar de forma convin- ou na Terra Nova, e que depois estes a teriam levado identificadas) e um texto escrito num alfabeto
cente o método que permitiu aos seus criadores consigo. desconhecido e num idioma incompreensível.
fabricar este “milagre”.
MANUSCRITO VOYNICH MAPA DE PIRI REIS
MOEDA DO MAINE Século XV Século XVI
Século XI Aquele que foi classificado como o “Santo Graal da Só nos chegou um fragmento, mas seria suficiente
Como chegou uma moeda de prata norueguesa do criptografía histórica”, pela incessante (e até agora para transformá-lo num dos documentos carto-
reinado de Olaf Haraldsson (1067–1093) ao atual infrutífera) procura de um código para decifrá-lo, é gráficos mais famosos da história: neste belíssimo
estado do Maine, na Costa Leste dos Estados Unidos? um dos livros mais estranhos e misteriosos de mapa, elaborado pelo almirante e cartógrafo
Foi ali que a descobriu o arqueólogo amador Guy todos os tempos. Durante décadas, pensou-se que otomano Piri Reis (Hacı Ahmed Muhiddin Piri,
Mellgren (1908–1978), em 1957, na jazida ameríndia se tratava de uma fraude, mas a datação por car- c. 1465–1553) em 1513, surgem delineadas a costa da
de Goddard. Sugeriu-se que o chamado “penny do bono-14 estabeleceu que o pergaminho foi escrito América do Sul e até o contorno da Antártida, com
Maine “(devido a um erro inicial de identificação) entre 1404 e 1438, sendo por isso uma verdadeira uma exatidão e uma precisão completamente fora
confirma a tese do “pré-descobrimento” da Amé- obra medieval. Deve o seu nome ao antiquário e do alcance do conhecimento geográfico da época.
rica pelos nórdicos, embora o facto de ser o único alfarrabista norte-americano de origem lituana Ornamentam também o mapa desenhos de espé-
objeto encontrado dessa procedência tenha levado Wilfrid M. Voynich (Michał Habdank-Wojnicz, cies animais presentes nos seus locais de origem
outros especialistas a pensar que a sua presença 1865–1930) que o adquiriu em 1912. De autor e então desconhecidas.
em Goddard é fruto de um intercâmbio comercial anónimo, as suas 272 páginas contêm numerosas N.O.

SUPER 77
História
LAPI / ROGER VIOLLET / GETTY

Erwin Rommel

Admirado
pelos inimigos

78 SUPER
A filosofia tática e de comando de Erwin Rommel era simples: tomar decisões
rápidas e pô-las em prática imediatamente. Foi isso que permitiu à “Raposa
do Deserto” estar sempre na dianteira frente aos seus adversários e lhe mereceu
a admiração de ambos os lados do conflito durante toda a sua carreira.

O marechal-de-campo Erwin Rommel


criou grandes problemas aos britânicos,
graças ao seu uso da guerra móvel.
Aqui, em Tunes, em março de 1943.

SUPER 79
Rommel inspeciona as rampas
BUNDESARCHIV

de troncos, muitas delas com minas


na ponta, que serviriam para fazer
frente ao desembarque aliado
na Europa. A foto é de abril de 1944.

T
emos diante de nós um adversário ver- grafias, por parte dos seus antigos opositores no mais lembrado da Segunda Guerra Mundial.
dadeiramente corajoso e habilidoso e, seu país natal? O interesse e a admiração que despertam são únicos
se me permitem que o diga, no meio dos Rommel é provavelmente o general alemão e ultrapassam fronteiras. Isto deve-se, em parte,
casos da guerra, um grande general”, ao facto de, como pessoa, Rommel ser um enigma.
declarou, em janeiro de 1942, o primeiro-ministro As suas proezas militares podem ser também
britânico, Winston Churchill (1874–1965). A última missão interpretadas de várias formas. Juntos, estes dois
Hoje, quase 80 anos após a sua morte, o mare- fatores contribuíram para a criação de um legado
chal-de-campo alemão Erwin Rommel (1891–1944) foi reforçar mítico e duradouro. Qualquer pessoa que queira
continua a ser uma figura única, quase insondável: aproximar-se da verdade em relação a Rommel
quantos líderes militares tiveram elogios dos seus a Muralha enfrentará a dificuldade de filtrar o rico, mas por
inimigos no decurso de uma guerra implacável ou vezes contraditório, material sobre o esquivo
se tornaram um objeto posterior de análise e bio- Atlântica comandante.

80 SUPER
CRIANÇA DOENTE para quem não demonstrava talentos especiais. para um regimento de infantaria em Weingarten,
Rommel nasceu no sudoeste da Alemanha, Em janeiro de 1912, após quase dois anos de treino perto do lago Constança. Nesse mesmo ano, teve
numa família burguesa alheia à tradição militar. como oficial, Rommel foi destacado, como alferes, uma aventura amorosa da qual nasceu uma filha,
O pai era diretor de uma escola. Foi uma criança Gertrud. O casamento foi considerado impossível,
doente que não se destacou particularmente nos mas as cartas escritas nessa altura mostram a serie-
estudos nem em qualquer outra coisa. Na adoles- Pouco depois dade com que assumiu as suas responsabilidades.
cência, começou a demonstrar talento para a mate- Prova disso é que incluiu a mãe da sua filha como
mática e para a engenharia e mostrou interesse do desembarque, beneficiária de um seguro de vida, contratado no
em trabalhar no incipiente setor aeronáutico. O pai, início da guerra.
contudo, não achava que essa indústria oferecesse foi “convidado” Nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial,
segurança suficiente. Por isso, o jovem macilento Rommel parece ter-se transformado. Desde o pri-
acabou por se alistar no exército, uma saída habitual a suicidar-se meiro dia, o jovem pálido e retraído demonstrou

SUPER 81
HISTORIEARKIV
possuir capacidades táticas incríveis, rapidez mental
e carisma de líder militar. Foi ferido e condecorado
por duas vezes e, em 1917, teve a oportunidade de
voltar a demonstrar o seu valor, desta vez como
comandante de um batalhão de montanha na
frente italiana. Ali, as suas façanhas valeram-lhe a
medalha Pour le Mérite, a máxima distinção militar
do império alemão.

PROMOÇÕES RECUSADAS
Na mesma altura, começou a mostrar uma faceta
do seu caráter que é mais discutível: a ambição.
Rommel achava, com certa razão, que a concessão
da medalha Pour le Mérite lhe foi atribuída tarde e
que outros oficiais lhe tinham “roubado a glória”,
ao receber essa condecoração graças a sucessos
que, na verdade, eram seus. Essa experiência dei-
xou-lhe uma profunda mágoa e ensinou-lhe que
não bastava destacar-se; os sucessos deveriam ser
percebidos também pelas pessoas adequadas.
No final da guerra, em novembro de 1918,

Era um jovem
macilento,
mas distinguiu-se
em combate
recém-nomeado capitão, Rommel regressou à Ale-
manha e iniciou a vida militar em tempos de paz,
tão fácil como se tivesse regressado de um longo
período de manobras. Devido à sua trajetória,
tornou-se um candidato óbvio para fazer parte da
Reichswehr, as Forças Armadas alemãs do pós-
-guerra, na qual o Tratado de Versalhes permitia um
máximo de 4000 oficiais no ativo.
Durante os nove anos seguintes, a vida familiar
HISTORIEARKIV

de Rommel (tinha casado durante a guerra) foi dis-


creta e aparentemente feliz. A sua atividade pro-
fissional consistiu fundamentalmente em treinar
as tropas de um regimento de infantaria de Estu-
garda. Os pedidos de treino para patentes mais
elevadas foram, contudo, recusadas, apesar das
avaliações positivas que recebeu de todos os seus
comandantes.

GOSTOS SIMPLES
Os gostos de Rommel eram, na maioria, simples:
tocar violino, caminhar, praticar esqui e equitação
e resolver todo o tipo de desafios mecânicos. O
pessoal da Reichswehr estava proibido de partici-
par em atividades políticas, incluindo votar nas elei-
ções, o que encaixava perfeitamente na natureza
de Rommel, mas implicou uma ignorância política
O tenente Rommel em Itália, em 1917,
que, mais tarde, lhe causaria problemas. ostentando ao pescoço a sua medalha
Em 1928, depois de doze anos de casamento, a Pour le Mérite, a mais alta condecoração
mulher de Rommel deu à luz o único filho do casal, do império alemão, instituída por Frederico,
o Grande, em 1740, e atribuída até 1918.
um rapaz a quem chamaram Manfred. Ambos par-
ticiparam também na educação da filha de Rom-

82 SUPER
Tropas de assalto alemãs descansam durante
a batalha de Caporetto (1917), na qual, ao
comando de apenas 150 homens, Rommel
conseguiu que se rendessem 9000 italianos,
graças ao seu aproveitamento do terreno
e aos ataques a partir de locais inesperados.

SUPER 83
BUNDESARCHIV
mel, depois da morte da mãe. Gertrud tinha cres-
cido com a avó, mas Rommel mantivera contacto
com ela, sob o pretexto de ser seu tio.
Em 1929, Rommel foi destacado para instrutor
da escola de infantaria de Dresden. Ali se tornou um
honesto professor que baseava as aulas de tática
na sua própria experiência, enriquecida ao longo
do tempo. Em 1937, reuniu todo esse material num
pequeno tratado, A Infantaria ao Ataque, que rece-
beu grandes elogios e foi adotado pelo exército
suíço como manual de treino. O livro revelou o
talento pedagógico e literário que Rommel voltaria
a demonstrar em momentos posteriores.

ASCENSÃO NAZI
A promoção chegou, por fim, em abril de 1932,
após 14 anos como capitão. A sua vida na Reichs­
wehr, em tempos de paz, parecia clara: manter-
-se-ia no mesmo posto durante anos e talvez con-
seguisse uma nova promoção pouco antes de se
reformar. Porém, a oportunidade de fazer carreira
dos oficiais alemães estava prestes a melhorar sig-
nificativamente.

Em 1936, ficou
responsável
pela segurança
pessoal de Hitler
Um ano depois, Rommel foi destacado para
um destino que parecia feito à sua medida: o
comando de um batalhão de caçadores em Goslar,
na região montanhosa de Hard. Ali permaneceu
dois anos, durante os quais se deu a ascensão ao
poder do partido nazi ao poder. Em 1935, foi promo-
vido a tenente-coronel e colocado como instrutor
na recém-criada Academia de Guerra de Potsdam.
Hitler chegou ao governo no inverno de 1933,
quando foi nomeado chefe de uma coligação, após
uma eleição em que o partido nazi tinha perdido
onze por cento dos seus eleitores. A mudança de
liderança no país não suscitou demasiado interesse
na Reichswehr, que até viu com bons olhos a purga
das SA, uma vez que eliminava uma organização
que aspirava competir com o exército.

PROTEGER O FÜHRER
Nessa altura, muitos alemães achavam Hitler
um homem imaculado, rodeado de uma estupidez
da qual pouco a pouco se iria libertando, uma per-
ceção que lhe foi favorável durante muito tempo.
Quando, em 1935, o Führer desafiou os termos do
Tratado de Versalhes e iniciou o programa de rear-
mamento, a Reichswehr e Rommel não poderiam
estar mais de acordo.
Em 1936, além de dar aulas em Potsdam, Rommel
ficou responsável pela segurança pessoal de Hitler
no Congresso de Nuremberga, um contacto com o

84 SUPER
Durante a invasão da Polónia, Rommel
(ao centro, à esquerda de Hitler) foi
responsável pela segurança do Führer.

SUPER 85
Führer que se tornou ainda mais intenso em 1938,
primeiro em março, durante o Anschluss (a anexa-
Tanques superiores
ção da Áustria), e depois no outono, quando a Ale-
manha invadiu os Sudetas checoslovacos. Nessa
altura, Rommel, já tenente-general, fora nomeado
R ommel considerava que as caracterís-
ticas técnicas dos tanques (blindagem,
potência de fogo e mobilidade) eram o fator
montado numa plataforma, o que limitava
a sua mobilidade lateral. Foi preciso esperar
pelo verão de 1942, com a introdução do M4
comandante do centro de comando militar de determinante para o êxito no campo de bata- Sherman, para os Aliados terem um tanque
Hitler. Assim começou a ter encontros diários não lha. Outro aspeto importante era a equipa à altura dos alemães. Em geral, os tanques
só com o Führer, mas também com as principais de resgate e reparação de que dispunha. alemães mantinham um bom equilíbrio entre
figuras do partido nazi e com a cúpula militar do Se o tanque não tivesse começado a arder, blindagem e capacidade de manobra. Os
Terceiro Reich. normalmente era possível arranjá-lo e pô-lo italianos, pelo contrário, eram tão maus que
Durante este período, e mesmo até mais tarde, de novo pronto para combate, algo em que as tropas lhes chamavam “caixões móveis”. Os
as cartas de Rommel para a mulher revelam uma os alemães se destacavam de forma especial. tanques germânicos eram sobretudo Panzer
atitude espantosamente ingénua em relação às Inicialmente, os tanques britânicos eram ou III e IV, produzidos em massa e de qualidade
diversas demonstrações de aprovação que recebia Crusader II (demasiado leves, com blindagem comprovada. O primeiro tinha um canhão
de Hitler. Este, por seu lado, parecia apreciar a sim- fraca e mal armados) ou tanques de infanta- de 50 mm apto para todo o tipo de munição,
plicidade de Rommel, muito diferente da arrogância ria, bem protegidos, mas demasiado lentos e enquanto o segundo levava um canhão curto
dos generais aristocratas com que tinha de lidar. Há com armamento insuficiente. O canhão QF de 75 mm que disparava projéteis explosi-
que lembrar que Hitler tinha um imenso carisma de duas libras, com projétil de 40 milímetros, vos e era usado para apoio de proximidade
que lhe permitia manipular com facilidade os que não tinha dimensão como arma contra alvos à infantaria. No verão de 1942, entrou ao
o rodeavam. O pouco refinado Rommel ficou blindados e, tendo em conta que nunca pos- serviço uma nova versão com canhão longo,
encantado pelo Führer de uma forma que iria per- suiu munição explosiva, apenas pôde ser utili- juntamente com um projétil de carga explo-
durar durante muitos anos. zado contra alvos com fraca proteção. O pro- siva dirigida para o canhão curto original.
blema só se resolveu na primavera de 1942, No entanto, nem este modelo nem o Tiger
quando entrou ao serviço o norte-americano desempenharam um papel significativo no
Em África, M3 Grant. Tinha um canhão de 75 mm, mas norte de África.

pôs em prática
a tática da guerra
relâmpago
COMANDANTE DE BLINDADOS
Um dos grandes pontos de viragem na carreira de
Rommel teve lugar em novembro de 1939, quando
Hitler lhe perguntou que tipo de unidade gostaria
de ter sob o seu comando. Rommel respondeu
sem hesitar: “Quero uma divisão blindada.” A sua
experiência não justificava tal responsabilidade
(o normal teria sido receber o comando de uma
divisão de infantaria), mas, como foi um pedido seu
apresentado com o aval de Hitler, o Gabinete de
Pessoal do Exército da Wehrmacht não conseguiu
opor-se. Rommel assumiu o comando da 7.ª Divisão
Panzer em fevereiro de 1940 e entregou-se à tarefa
com o seu empenho característico, de modo
que, quando começou a ofensiva alemã contra a
Europa Ocidental, em 10 de maio de 1940, a sua
divisão foi uma das unidades colocadas na frente e
fez história.
As ideias de Rommel sobre a tomada de deci-
sões, a concentração de forças e o elemento sur-
presa encaixavam na perfeição no contexto da
Blitzkrieg, a “guerra relâmpago” alemã, e o rápido
avanço da unidade foi lendário. O inimigo só conse-
guiu organizar uma vez um contra-ataque contra
o flanco norte da divisão, que não estava protegido,
e com tanto azar que se deparou pessoalmente
com Rommel, que montou rapidamente uma
defesa antitanque com canhões antiaéreos de 88
CORBIS / GETTY

Rommel usa o seu todo-o-terreno


milímetros e frustrou o avanço britânico. Porém, como posto de observação
no norte de África, em 1942.
a audácia e a decisão de Rommel também se refle-

86 SUPER
HISTORIEARKIV

HISTORIEARKIV
Rommel com o seu Fieseler Fi-156 Storch. O avião precisava de pouco terreno para levantar
e pousar, e o trem de aterragem tinha uma suspensão longa, ideal para terrenos irregulares.

SUPER 87
tiram de outra forma: quando um tenente-coronel
francês capturado se recusou três vezes seguidas
a obedecer a ordens, mandou fuzilá-lo.

ESTRELA DA PROPAGANDA
Além de lhe conferirem promoções e fama, estes
sucessos chamaram a atenção do aparelho de
propaganda nazi. Pouco a pouco, Rommel foi-se
tornando uma figura importante, coisa que estava
em consonância com as suas ambições, mas tinha
o inconveniente de despertar os ciúmes de muitos
comandantes de peso no exército alemão, e espe-
cialmente de alguns de origem nobre que não per-
diam uma oportunidade de se opor ao “arrivista”.
No outono de 1940, o ditador fascista italiano
Benito Mussolini (1883–1945) ordenou uma estú-
pida ofensiva contra o Egito, controlado pelos bri-
Canhão britânico QF2
tânicos, a partir da colónia italiana da Líbia. Num
ousado contra-ataque, as tropas britânicas repeli-
ram as forças italianas, que sofreram numerosas
baixas e ficaram envoltas numa grande confusão.
Domínio antitanque
Hitler decidiu então enviar uma pequena força para
o norte de África para ajudar o seu aliado a salvar a
cara e evitar que o Reino Unido se apoderasse da
N a luta contra os blindados, entram em
jogo as armas, as condições do terreno
e as minas, mas, no norte de África, Rommel
assim, era preciso arrastá-lo até ao campo de
batalha e só podia ser utilizado em terreno
plano. O uso da artilharia antitanque pelo
Líbia. O comandante seria o cada vez mais conhe- tinha apenas canhões antitanque. As armas exército alemão, inclusivamente em opera-
cido Rommel, que rapidamente ali ganharia fama sem recuo só chegaram uns anos depois. No ções ofensivas, baseou-se na eficiência dos
eterna como “Raposa do Deserto”. verão de 1942, os britânicos estavam em des- canhões de 50 e 76 mm, por vezes monta-
vantagem, porque ainda usavam o obsoleto dos em chassis sobre lagartas. Porém, o rei
QF de duas libras (40 milímetros), apesar absoluto neste terreno era o canhão alemão
A frente de terem uma nova peça de artilharia de 57 de 88 mm. Concebido originalmente como
mm, pronta para o processo de produção. arma antiaérea, foi utilizado como peça de
de batalha No entanto, com receio de uma invasão, o artilharia e, com o seu alcance de mais de
Reino Unido não quis interromper o fabrico dois quilómetros, dominou os campos de
podia deslocar-se do QF2 o tempo necessário para alterar batalha do norte de África. Rommel usou
os equipamentos. Só tiveram um canhão repetidamente a sua superioridade em peças
como no mar antitanque moderno em 1943, quando o antitanque para montar armadilhas aos blin-
QF17 (76,2 mm) entrou ao serviço. Mesmo dados aliados.

BUNDESARCHIV
GUERRA MARÍTIMA SOBRE AREIA Um canhão alemão de 88 mm Flak 18/37
O campo de batalha tinha um comprimento de aponta a um veículo de comando britânico
na batalha de Gazala (18 de junho de 1942).
2000 quilómetros, mas, em alguns pontos, a lar-
gura não chegava a dez. A partir da costa agrícola,
na qual se encontrava a única estrada em bom
estado, o terreno subia para uma meseta desér-
tica de cascalho e areia, apenas interrompida por
alguns morros e barrancos ressequidos. A visibili-
dade era de apenas umas dezenas de quilómetros,
quando não era obscurecida por tempestades de
areia ou pelo pó levantado pelos veículos.
Na maior parte do tempo, era impossível estabe-
lecer um flanco sul, que podia sempre contornar-
-se com uma manobra envolvente. Neste aspeto,
a guerra no deserto era semelhante à guerra no mar,
onde as possibilidades de manobras eram pratica-
mente infinitas. Quer dizer, era um tipo de combate
que parecia feito de propósito para Rommel.
Fiel ao seu estilo, Rommel surpreendeu os britâ-
nicos quando, depois de desembarcar em Trípoli,
em fevereiro de 1941, iniciou em março um avanço
para leste que, com a chegada de reforços, acabou
por se tornar uma ofensiva em grande escala. Foi uma
das muitas vezes em que desobedeceu a uma ordem
específica do Alto-Comando: não ataque!

88 SUPER
SUPER 89
De donos do ar
a presas fáceis
N o início da guerra do deserto, as
forças do Eixo dispunham de uma
boa proteção de bombardeiros e aviões
de transporte, o que deu a Rommel uma
grande vantagem e lhe permitiu operar sem
grandes interferências da aviação britânica.
A partir do verão de 1942, o reforço da
aviação aliada implicou uma mudança na
situação, e a vida dos alemães tornou-se
mais difícil. Os bombardeamentos diurnos
impediam o reagrupamento de soldados
e destruíam veículos de abastecimento; à
noite, aumentavam a devastação. A expe-
riência africana demonstrou a Rommel
como era difícil disputar uma guerra móvel
sem apoio aéreo, um problema que enfren-
tou também durante o desembarque na
Normandia, em 1944.

A superioridade
aliada forçou
Hitler a desistir
de África
OFENSIVA IMPARÁVEL
A resistência britânica estava fraca, porque,
em fevereiro, metade das unidades tinham sido
transferidas para a Grécia. Esta desastrosa decisão
fora tomada, por motivos políticos, por Churchill,
que estava convencido de que o ataque alemão
contra a Grécia estava iminente. Os alemães, por
outro lado, tiveram a sorte de ter capturado os três
principais especialistas britânicos em blindados
e guerra no deserto, incluindo o tenente-general
Richard O’Connor (1889–1981), que dirigira a bem-
-sucedida ofensiva contra os italianos em dezem-
bro e janeiro.
Em meados de abril, os alemães chegaram à
fronteira egípcia. Para trás, ficava cercada, mas Um caça Messerschmitt Bf-109E
ameaçadora, a cidade líbia de Tobruk, com a sua camuflado sobrevoa o deserto
líbio no verão de 1941.
fortaleza. Foi durante um ataque a Tobruk que as
forças blindadas alemãs tiveram de recuar pela
primeira vez; depois, houve outra tentativa, e mais
outra, e Rommel viu como era difícil atacar um PROMOVIDO A MARECHAL O resultado superou as melhores expectativas.
inimigo decidido e que possuía uma posição bem Deu-se então uma repetição dos acontecimentos As debilitadas unidades britânicas retrocederam
defendida. Ao longo de 1941, os alemães tenta- de março e abril. As unidades aliadas estavam e foram incapazes de deter Rommel antes de este
ram conquistar Tobruk várias vezes e sofreram exaustas pelo combate, e o avanço de mais de ter recuperado grande parte do território perdido
imensas perdas. O cerco terminou em novembro, 500 km tinha esgotado as suas linhas de abaste- nos meses anteriores. No seu avanço, os alemães
quando os defensores aliados se juntaram ao 8.º cimento. Entretanto, Rommel recebera reforços chegaram à posição de Gazala, em Tobruk, onde a
Exército, que tinha avançado a partir do Egito, e importantes e abastecimentos da Alemanha. Não frente ficou estabilizada.
fizeram retroceder as forças alemãs e italianas até é de estranhar, portanto, que, em janeiro de 1942, Em 26 de maio de 1942, Rommel iniciou uma
El Agheila, na Operação Crusader. tenha decidido lançar alguns ataques exploratórios. operação que o levaria ao outro lado da fronteira

90 SUPER
estado. Tobruk caiu, desta vez, após um único dia de
combates. Assim, Rommel chegou ao zénite da sua
carreira e foi promovido a marechal-de-campo.

SUICÍDIO FORÇADO
Graças ao combustível obtido em Tobruk, Rommel
pôde atacar de novo a leste, desta vez contra um
exército cada vez mais desmoralizado. O avanço
parou quando os alemães encontraram uma resis-
tência muito mais firme em El Alamein, que, ao
contrário de outras posições defensivas durante a
guerra do deserto, não podia rodear pelo sul por-
que estava firmemente instalada na depressão de
Quattara, considerada intransponível.
A última ofensiva de Rommel foi repelida em
setembro e, um mês depois, os Aliados atacaram
com uma força incrível na histórica batalha de El
Alamein, marcando o ponto de viragem decisivo na
guerra do norte de África. As operações de Rommel
viram-se seriamente afetadas por problemas de
abastecimento por causa dos ataques aéreos e
navais com origem em Malta. Na primavera de
1943, os alemães renderam-se ao 8.º Exército em
Tunes, já sob um novo comandante.
A reputação de Rommel estava salva. Para des-
gosto dos altos comandos aliados, a sua perícia
no campo de batalha foi objeto de admiração
mundial. A expressão “Do a Rommel”, em inglês,
ULLSTEIN / GETTY

passou mesmo a querer dizer, na gíria britânica,


tomar uma decisão inteligente ou surpreendente.
Depois do regresso à Alemanha, Rommel foi
encarregado da Muralha Atlântica, a principal
defesa contra uma invasão aliada da Europa conti-
egípcia e, em simultâneo, ao ponto mais alto da sua tinha conhecimento das intenções de tomar a nental, mas mostrou-se crítico das opções de Hitler.
carreira. Mediante uma combinação de ataques fortaleza no ano anterior e preparara um ataque, Acusado de participar numa conspiração contra o
contra posições inimigas e manobras de diversão, apoiado por bombardeamentos de mergulho, que Führer, foi obrigado a suicidar-se.
conseguiu que os Aliados lançassem um contra- se baseava numa finta das tropas italianas a sul, J.L. / A.R.
-ataque que os levou diretamente a uma armadilha: enquanto a verdadeira ofensiva, com tropas alemãs,
uma linha de defesas antitanque, camuflada e muito chegava de sueste. As exaustas tropas australianas, NR – Este texto é uma adaptação de um dos arti-
bem preparada, que rapidamente acabou com a que tão bem tinham defendido a posição em 1941, gos da edição especial Comandantes Históricos da
superioridade numérica britânica em blindados. haviam sido substituídas por sul-africanos com Segunda Guerra Mundial, que pode encontrar numa
Era o momento de regressar a Tobruk. Rommel pouco treino, e as defesas encontravam-se em mau banca perto de si.

SUPER 91
História Esta moeda de bronze
de 1456 representa
o papa Calisto III.

Calisto III

Uma grande ambição


Embora a sombra do “grande Bórgia”, Alexandre VI, enormemente desmesurada
pela lenda negra, tenha reduzido o seu tio e protetor ao modesto papel
de “pequeno Bórgia”, os factos mostram a sua verdadeira estatura.
No seu breve mas intenso pontificado (três anos e quatro meses), Calisto III
anulou o Grande Cisma do Ocidente, travou os turcos em Belgrado, enriqueceu
o Vaticano, reabilitou Joana d’Arc e canonizou o seu conterrâneo, S. Vicente
Ferrer, cumprindo assim a dupla profecia: “Serás papa e far-me-ás santo.”
92 SUPER
ASC

SUPER 93
A
predisposição de Afonso de Borja
para a grandeza foi facilitada pelo seu
berço e pela qualidade de primogé-
nito. João Domingo de Borja, o seu pai,
era senhor da Torre de Canals, hoje no município
valenciano de Canals, que ainda alberga os restos
da muralha que os tornou imortais. Mais com-
plexo é saber como chegou às mãos dos Borja.
Algumas fontes não consideram provável que,
apesar de João Domingo e a sua primeira mulher,
Catalina Doncel, viverem na torre, esta fosse sua.
É certo que Catalina era uma Borja e que o casa-
mento foi a aliança que permitiu a ascensão social
a João Domingo, mas ele não era exatamente um
cavaleiro. Entre outras coisas, fora guarda do cas-
telo de Montesa e alcaide-menor do castelo de
Buñol. No entanto, há uma frase sobre o pai do
futuro papa que o definiria para sempre: “Un bon
hom llaurador de Xàtiva” (“Um bom homem lavra-
dor de Xátiva”). Foi assim que o descreveu, em
1806, Jaime Villanueva, na obra Viage Literario á
las Iglesias de España. Ao referir-se a ele como llau-
rador, muitos pensaram que era pouco mais do
que um modesto dono de alguns campos. Porém,
também se designava assim os proprietários de
terras não sujeitos a um senhor feudal, não sendo
necessariamente inferiores a um cavaleiro. De
modo que João Domingo não era um zé-ninguém
e podia ter acesso a uma mulher como Catalina e
a uma família como a dos Borja, que se tornaria
proprietária da Torre, provavelmente já pela mão
do próprio Alexandre VI. Antes, porém, quando
Jaime I de Aragão conquistou Valência, este ramo
dos Borja instalou-se na nova praça-forte, dei-
xando Saragoça.

SÁTIRA OBSCENA
Nascem, então, os Borja de Canals, mas Catalina
faleceu em 1370, sem dar filhos a Domingo, uma
questão que ele resolveria amplamente com a sua
segunda esposa, Francina Llançol. É referida na

Afonso foi bispo


aos 50 anos,
cardeal aos 74
e papa aos 85
famosa Carajicomedia, uma sátira obscena do Francina deu à luz Afonso na véspera do ano novo cato da Catedral de Lérida que lhe é conferido,
século XVI, de 117 quadras, da qual Francina não sai de 1378, e teve mais quatro filhas: Isabel, Joana, em 1411, pelo antipapa Bento XIII (o Papa Luna,
nada bem, pois dizia-se dela que “é pública e notória Catarina e Francisca, que casaram todas com 1328–1423). Contudo, é da sua própria boca que se
em Valência” (é fácil imaginar o que significa nobres, o que teria influência no pontificado. conhece o facto que mudaria a sua vida: o encon-
“pública”) e que “tem um violario dos genoveses”. tro com o dominicano Vicente Ferrer (1350–1419).
Um violario é uma pensão vitalícia, segundo o GRANDE FUTURO VATICINADO O pregador vaticinou que chegaria ao papado
direito catalão, e sabemos que Calisto III combateu Tudo foi servido de bandeja a Afonso: os seus e que, já instalado no trono pontifício, iria cano-
em Itália. Por isso, muitos pensam que a sátira se estudos de gramática e latim e os doutoramentos nizá-lo, e assim foi. Em 1455, elevou-o aos altares.
dirigia ao papa e não tanto à sua pobre mãe, tam- em direito canónico e civil em Lérida. Começa aqui Parece uma lenda hagiográfica, mas é contemporâ-
bém valenciana e provavelmente natural da própria a sua ascensão, como grande jurista reconhecido nea de Calisto e baseia-se no seu próprio testemu-
Xátiva, capital da comarca a que pertence a Torre. pelo rei Martinho I (1356–1410), e com o canoni- nho. Eneas Silvio Piccolomini (1405–1464), que lhe

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ASC
O futuro papa Calisto III nasceu
na Torre Borja. Construída
no século XIII, a torre muçulmana
foi ampliada com um palácio gótico
na centúria seguinte e vendida
ao município de Xátiva (juntamente
com a baronia) em 1506.

Pregação de S. Vicente Ferrer (1644/45).


O futuro santo vaticinou o papado de Afonso.

da corte, apesar da influência de Afonso V. Encon-


trava todas as portas fechadas, por um motivo ou
outro, até que o cardeal Foix o nomeou bispo de
Valência, pelo seu papel na extinção do cisma. Os
chamados “antipapas” (Bento XIII e Clemente VIII)
acabaram por aceitar o pontificado de Martinho V,
abdicando e deixando o caminho livre aos adver-
sários.

OPORTUNIDADE ÚNICA
Afonso levou muito a sério o ansiado novo cargo.
Ordenou aos sacerdotes que pregassem, fazen-
do-o também ele próprio, e organizou os seus deve-
res e normas. Melhorou os costumes reinantes
na administração dos sacramentos, que não corres-
pondiam ao decoro que ele exigia. A heresia que,
aos seus olhos (os de um dominicano declarado
e fervoroso), os franciscanos representavam foi
combatida com sanha. Revirou Valência de cima a
SHUTTERSTOCK

baixo, mas a sua ausência da região, dado que era


constantemente requerido na corte para pacificar
Castela, teria um preço, e muitas autoridades da
zona iriam confrontá-lo. Até que, com a conquista
sucederia no pontificado como Pio II, após narrar o rei Afonso V de Aragão, o Magnânimo, em 1416, de Nápoles, chegou nova grande oportunidade.
nos seus Commentarii a eleição de Calisto III, diz que o encarregou de algumas causas e o entregou O rei encarregou-o de organizar juridicamente
acerca do primeiro papa Bórgia que “já vários anos depois aos cuidados de Francesc Martorell, o cole- o novo reino, em 1442, como presidente do Sacro
antes, com a sede apostólica vacante, [o domini- tor de bens da Câmara Apostólica da Coroa. Daí, Conselho; isso implicava melhorar as relações
cano] vaticinou a todos a sua ascensão ao pontifi- passaria, em apenas dois anos, para a Chancelaria com o papa Eugénio IV, que não se dava bem
cado, e afirmou que ele seria, sem dúvida, o futuro Real e, em 1420, já era membro permanente do com Afonso V. Entre 1439 e 1442, encabeçou, em
pontífice, embora ninguém o tivesse acreditado e Supremo Conselho Real. Tinha 42 anos. várias ocasiões, as negociações com este, até que
todos pensassem que delirava por causa da sua Lutara contra o Grande Cisma do Ocidente, que finalmente, após a assinatura da chamada Paz
velhice; o vatícinio era verdadeiro: seria um com- ainda persistia, e o rei agradeceu-lhe levando-o de Terracina, Eugénio IV deu o seu beneplácito à
patriota seu a fazê-lo S. Vicente, ao canonizá-lo.” consigo para Itália durante algum tempo, embora nomeação de Afonso como rei de Nápoles.
A carreira de Afonso foi meteórica. Conheceu tenha demorado anos a ascender na prelatura, fora O prémio foi suculento: adquiriu o barrete cardi-

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nalício em maio de 1444, e nem sequer teve de dei- Esta gravura de 1898 mostra o sultão
xar o bispado de Valência. É justo esclarecer que otomano Mehmet II durante o assédio
de Constantinopla, em 1453, à frente
outras fontes (como Bartolomeu Platina, o seu de um exército de 80 a 200 mil homens
primeiro biógrafo) o descrevem como austero e e uma armada de cerca de 320 navios.
pouco dado às lutas pelo poder no seio da Igreja.
Dizia que o episcopado de Valência era a sua única
esposa. Após a morte de Nicolau V, Afonso de
Borja foi eleito papa em 8 de abril de 1455, dado
que os votos das poderosas famílias Colonna e
Orsini, que não o queriam no trono, não bastavam
para ser rejeitado, e escolheu o nome de Calisto III.
Sabiam que era idoso: o pontificado seria breve.

PAPA CONTRA OS TURCOS


A primeira das suas obsessões foi, como ele pró-
prio admitiu, travar os maometanos. Constantino-
pla caíra nas mãos de Mehmet II, em 1453, e eles já
espreitavam o resto a Europa. Calisto empenhou-
-se a fundo nesse combate: a sua cruzada foi paga
com as dízimas, pregou incessantemente e pediu
ajuda aos monarcas cristãos. Em vão, pois estes
estavam entretidos com outros interesses: o tempo
das Cruzadas já ia longe (algo que o velho papa não
soube ver) e a iniciativa pareceu-lhes demasiado
cara, mas ele não desistiu.

O pontificado
seria breve, mas
aproveitou-o
com energia
Sozinho, enfrentou os turcos na Hungria, que já
estava a ser atacada. Fez tudo para arranjar
dinheiro, empenhou joias e conseguiu lançar um
ataque terrestre e por mar, apenas com o auxílio de
algumas naus da coroa de Aragão (menos do que
as que tinham sido prometidas). Por fim, obteve
uma vitória crucial, a da batalha de Belgrado,
graças a um herói local, João Huniady, em julho de
1456. Para celebrar, instaurou as festividades
da Transfiguração do Senhor, em 6 de agosto.
Porém, a sua alegria durou pouco: apesar do êxito,
a maior parte dos mandatários europeus não lhe
prestou qualquer apoio. Não tardou a perceber
porquê: a razão estava na península itálica.

PACIFICAÇÃO DE ITÁLIA
A primeira pedra no caminho era o seu grande
amigo, o rei Afonso V, o Magnânimo, de Aragão. As
restantes potências da península conheciam essa
amizade. Se não se distanciasse do monarca, não
acreditariam na sua retidão e objetividade e pen-
sariam que o reino de Nápoles seria favorecido.
Afonso não reagiu bem. Confrontaram-se pela
atribuição de sedes eclesiásticas em Saragoça,
Barcelona e Gerona, pelo episcopado de Valência,
que Calisto III pretendia para o sobrinho, Rodrigo,
e o rei para o seu, João de Aragão, por causa dos

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Bento XIII, o “Papa Luna”.

ASC
Papas e antipapas
N o final do século XIV, entre 1378
e 1417, a Igreja ficou dividida
em duas. Os antecedentes já vinham do
início do século, quando Filipe IV, o For-
moso, rei de França, na sua luta com a
Igreja por querer ser ele a escolher o alto
clero do seu país, prendeu o papa Boni-
fácio VIII. Com a morte deste pouco
depois, o monarca impôs um papa fran-
cês, Clemente V, que transferiu a Santa
Sé de Roma para Avignon, sob a órbita
do reino gaulês. No final do século, o
papa Gregório XI decidiu, embora fosse
francês, regressar a Roma, mas morreu
e, no Conclave de 1378, a fação italiana
elegeu Urbano VI. Os cardeais estran-
geiros, encabeçados pelos franceses e
com o valenciano Pedro Luna nas suas
fileiras, declararam nula a designação e
nomearam Sumo Pontífice um primo
do rei de França, Clemente VII, que
voltou a estabelecer-se em Avignon.
Havia, pois, dois papas. Iniciava-se
assim o Grande Cisma do Ocidente,
uma situação que dividiu a cristandade
durante perto de 40 anos. Após a morte
de Clemente VII, o Conclave de Avig-
non elegeu papa Pedro Luna, em 1394:
tornou-se Bento XIII. Roma também
escolheu um novo papa, Gregório XII,
em 1406. Nenhum dos dois compare-
ceu no Concílio de Pisa, que investiu
Alexandre V, e ambos se recusaram a
renunciar. Assim, já não havia dois, mas
três papas em simultâneo. João XXIII,
que substituiria Alexandre V, convocou
um sínodo a decorrer em Constança
(Alemanha), para pôr fim às quatro
décadas de divisão. João XXIII foi
deposto; Gregório XII renunciou por
intermédio de um representante; Bento
XIII (que se negou a abdicar) foi desau-
torizado e excomungado. Foi nomeado
um novo papa para a cristandade reuni-
ficada, Martinho V. Terminara o Grande
Cisma do Ocidente.
ISTOCK

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Joana d’Arc
U ma simples adolescente, Joana d’Arc,
derrotou os ingleses em Orleães e
conseguiu virar a Guerra dos Cem Anos a
favor dos franceses. Carlos VII foi coroado
rei em Reims, e tudo porque, segundo
explicava Joana a quem quisesse ouvi-la, o
Senhor lhe anunciara o fim da invasão dos
estrangeiros e lhe pedira encarecidamente
para os combater, Assim, comandou uma
grande ofensiva, sustentada por uma ampla
resistência popular, até ser feita prisioneira,
em 1430, pelos borgonheses. Estes entre-
garam-na, sem hesitar, aos seus aliados, os
ingleses. O paradoxo nasceu do próprio
processo a que foi submetida. Para a con-
denarem, julgaram-na por atos de feitiçaria
e heresia. Queimada viva na fogueira em
Ruão, em 30 de maio de 1431, o seu nome
só seria reabilitado quando Calisto III
decidiu, em 1456, rever o seu caso. Desde
então, é considerada uma heroína nacional
e padroeira de França.

Elogiado pelo
rigor, foi criticado
por não apoiar
artistas famosos Joana d’Arc numa ilustração medieval.

navios esperados e não concedidos contra os tur- para poder empenhá-los, mas nunca eliminou da
cos, e pelo ataque de Afonso a Génova. Só evitou sua agenda a conservação dos monumentos de
um contra-ataque da Liga Itálica, unida sob Calisto, Roma. A sua aparente austeridade, confirmada pelo
devido às alianças matrimoniais da coroa de Ara- primeiro biógrafo, parece sustentada na obsessão
gão com os Sforza, senhores de Milão. antiotomana: todos os recursos contra o turco.
Para rematar o confronto, o rei pediu o divórcio da Assim, os gastos da corte papal foram muito
rainha Maria de Castela, o que o papa obviamente reduzidos, e nunca incorreu na vida licenciosa que
recusou, fazendo-lhe chegar a mensagem pela mão caracterizou outros papas e sobretudo o seu
da própria amante de Afonso, Lucrezia d’Alagno, sobrinho, embora algumas vozes lhe atribuam a
uma beleza da época. Rebentou a guerra. O papa paternidade de Francesc de Borja, cardeal falecido
adiou propositadamente a sucessão de Ferrante, em 1511. Os rumores surgiram anos depois, já no
filho ilegítimo de Afonso, como rei de Nápoles: que- decurso do pontificado de Alexandre VI, cuja fama
ria que estivesse sob o domínio direto de Roma. ensombrou a reputação de todos os seus.
Afonso ameaçou depô-lo; ele fez o mesmo. Após A verdade é que Afonso Bórgia foi elogiado em
a morte de Afonso, enviou o seu sobrinho, Pedro vida pelo seu rigor, sobretudo na forma como tratou
Luís de Bórgia, para tomar Nápoles, em junho de Joana d’Arc. Foi um “vulcão” inesperado na sua
1458. Não era surpresa: o seu nepotismo tornara- velhice, ardente e duro, e a morte surpreendeu-o em
-se lendário, mas avaliou mal as forças. Milão não Roma (recusou deixar a cidade, assolada pela peste)
estava de acordo, e Calisto III acabou por ter de em 6 de agosto de 1458, precisamente no dia da
ceder, perdendo muita energia pelo caminho. Transfiguração do Senhor que instaurara. Tê-lo-ia
como foi o caso de Francesco Filelfo, porque lhes considerado um sinal da conformidade de Deus.
INCULTO OU MAU MECENAS? retirou os fundos concedidos pelo papa Nicolau V, V.C.
Afonso de Borja não era inimigo das artes, como para poder consagrá-los à sua cruzada. Outros NR – Este texto é uma adaptação de um dos artigos
muitos pensam. A sua formação não fora má, mas defenderam-no, como o seu protegido Lorenzo da edição especial Os Bórgia, que pode encontrar
muito rudimentar em termos de humanismo. Valla, pioneiro em crítica histórica e filosófica. Che- numa banca perto de si ou ler na versão digital (€1,60)
Algumas celebridades da época vilipendiaram-no, gou a extrair de alguns códices os metais preciosos em https://bit.ly/3fpj1JF

98 SUPER
Não
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