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Iracema Brandão Guimarães

TELLES, Vera da Silva. A cidade nas fronteiras do legal ções do quanto essas novas relações escapam aos
e ilegal. Argvmentvm Ed.: Belo Horizonte, 2010.
espaços conceituais consagradas nos estudos ur-
banos dos anos 80, tal como é revisitado no Capí-
tulo 1, intitulado “A cidade e suas questões”. Ini-
ciado com a localização de um cenário da cidade,
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que apontava para “uma nova qualidade do con-
flito de classes” naquele período, o capítulo pros-
segue em busca de referências da “cidade como
questão”, as quais são definidas como um conjun-
to cruzado de proposições situadas a partir de te-
mas como produção e consumo, trabalho e repro-
Uma visão peculiar e atual da cidade de São dução social, ou exploração e espoliação urbana.
Paulo é oferecida nesse livro, cujo foco consiste Esse avanço termina por levar ao
em mostrar as alterações e transformações ocorri- enfrentamento de um duplo desafio, que se tra-
das em relação a décadas passadas, quando se duz no recurso metodológico inovador de cons-
observava a existência de linhas mais nítidas e truir parâmetros, tanto críticos, como descritivos,
definidoras de uma dinâmica urbana e política da capazes de revelar os pontos de mutação almeja-
cidade. Essa ênfase, em linhas pouco visíveis, ou dos – principal objetivo metodológico do livro – e,
pouco nítidas, não significa legitimação ou apolo- assim, oferecer um plano de referências de certas
gia desses novos tempos através de suas formas realidades redefinidas. Tais parâmetros se resumem
difusas e desfeitas, mas, ao contrário, significa in- nos quatro ângulos de observação apresentados no
terrogar o surgimento de certos traços que demar- Prefácio e na Introdução do livro. Um primeiro
cam ausências e perdas na relação entre Estado, parâmetro refere-se ao estudo das mobilidades ur-
economia e sociedade. O ponto de clivagem, con- banas, um recurso retomado atualmente pela lite-
forme a palavra da autora, está na revelação de ratura especializada, com vistas a uma superação
determinadas realidades que não mais poderiam das noções e parâmetros que definiam os proble-
ser descritas e discutidas nos termos dos estudos mas da segregação urbana, considerados a partir
urbanos consagrados em décadas anteriores, uma da forma como se dava a relação entre casa e traba-
vez que uma série de evidências nos é apresenta- lho e cujo registro era um mundo urbano-indus-

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da como prova das novas conexões e da escala de trial que se modificou e que se convencionou cha-
redefinições relativas a um mundo globalizado. mar de “cidade fordista”. Nesse ponto, a análise
Para captar a dinâmica dessas transforma- revela como a cidade é feita de cruzamentos e pas-
ções, esse ponto de clivagem é discutido com base sagens, o quanto a circulação na cidade passa a
em temas já contemplados nos debates teóricos e requerer diferentes estratégias e formas de partici-
agendas de pesquisas que lhe são concernentes, a pação que implicam, por exemplo, o acesso a re-
exemplo das relações entre cidade e fluxos des de sociabilidade, nas iniciativas e no trânsito
globalizados do capital e tantos outros, restando, em espaços sociais diversificados, o que aponta,
no entanto, aspectos a explicar, como as novas entre outros aspectos, para a experiência da juven-
dinâmicas societárias, ou as práticas e usos da ci- tude das camadas mais pobres, que tende a procu-
dade. Esse ponto de partida interpretativo supõe, rar outros caminhos e ultrapassar as fronteiras do
então, a necessidade de um corte nos nexos que, meio social de origem, diante das oportunidades
antes, articulavam pares conceituais consagrados, escassas e cada vez mais insatisfatórias do mercado
como trabalho e reprodução social, classes sociais de trabalho, ou diante do fator de atração exercido
e conflito, contradições urbanas e Estado, levando pelos equipamentos de consumo urbano.
à necessidade de avançar-se em busca de explica- Esse mesmo elemento se constitui, em se-

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RESENHA

guida, no segundo parâmetro de investigação, cujo tos e mobilidades impliquem transitar entre práti-
objetivo é revelar a expansão de um mercado in- cas legais e ilegais, envolvendo desde o trabalho, à
formal de bens de consumo e serviços voltados moradia, e aos demais.
para as camadas populares, implicando principal- Cabe dizer uma última palavra em relação
mente o surgimento de novas oportunidades de à pesquisa desenvolvida pela autora desde o ano
trabalho, redefinidas a partir do conhecido setor de 2001, a qual contou com toda uma equipe de
informal, mas passando pelo setor de transportes, estudantes e profissionais inseridos em um pro-
com as vans e os motoboys, que possibilitam a grama de intercâmbio com a França, que se desdo-
certa camada da população o acesso à cidade, ou brou em diferentes fases e propiciou um esforço
pelo setor de comércio, que possibilita o acesso de leitura das mudanças em foco, situadas através
dessas camadas a certos bens de consumo, como da identificação dos traçados, os quais foram obti-
os telefones celulares e equipamentos eletrônicos, dos como resultados da análise das trajetórias ur-
paralelamente a um acesso ao contrabando ou à banas de indivíduos e famílias. Eles são conside-
pirataria. Um terceiro parâmetro é constituído tam- rados como indicadores da transitividade, da mo-
bém pela expansão do consumo, mas, dessa vez, bilidade e dos movimentos seguidos no curso de
para discutir um outro aspecto, que consiste na vida dos moradores, nos seus espaços sociais, nos
financeirização do consumo popular através do uso diferentes códigos e percursos localizados entre
generalizado dos cartões de crédito e do conseqüen- fronteiras ilustrativas de um mundo urbano que
te endividamento das camadas mais pobres da po- se quer captar com seus novos parâmetros, a exem-
pulação, o que revelaria certos elos com a indústria plo dos circuitos entre moradia e cidade, ou os
financeira e com outra face da globalização, também percursos do trabalho, ou ainda os agenciamentos
presente nas trilhas das redes de subcontratação da vida cotidiana, reveladores da cidade, confor-
que se desdobram em atividades e lugares na cida- me o conteúdo do Capítulo 2 do livro, intitulado
de, ou fora dela. Ainda nesse plano, a autora cha- “Perspectivas descritivas”. Enquanto o Capítulo 3,
ma a atenção para um elenco de outras transfor- “Deslocamentos: percursos e experiência urbana”,
mações interligadas pelos circuitos do mercado e nos apresenta o resultado das projeções obtidas a
dos grandes equipamentos urbanos, como os partir de locais ou de famílias analisadas em pers-
shoppings centers, que afetam tanto os espaços pectiva, de modo a oferecer a chave para a apreen-
como as dinâmicas locais e familiares, englobando são das dinâmicas urbanas e das “malhas” de
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uma proliferação de muitos outros circuitos e trân- ilegalismos já citados. O livro se compõe ainda de
sitos, que vão desde o acesso aos programas soci- uma segunda parte cujo título “Deslocando o pon-
ais, à articulação com as associações comunitárias, to da crítica”, nos aproxima da preocupação cen-
e mesmo os partidos e igrejas nas periferias. Tudo tral da autora, que é conhecer essas tramas da ci-
isso estaria a demonstrar que o “universo da po- dade, percebendo a existência de certo desloca-
breza” também se encontra alterado e distanciado mento da ordem das coisas, apontando para a ne-
das imagens construídas anteriormente (desampa- cessidade da mudança dos registros concebida a
ro, isolamento), o que nos leva ao quarto e último partir de referências de Francisco de Oliveira, a
parâmetro de investigação que se refere à existên- exemplo da “exceção que se tornou regra”, ou “a
cia de uma malha de ilegalismos, sendo esse con- era da indeterminação”, para dar conta do que esse
ceito retirado de Michel Foucault para designar uma autor chamou de incompletudes de nossa
visão da lei como variável de ajustamento das rela- modernidade, como uma exceção do subdesenvol-
ções de poder. Assim, a autora busca identificar o vimento. Nessa segunda parte, encontramos ain-
que chama de “embaralhamento” das fronteiras da da uma interessante localização das perspectivas
legalidade, posto que se trata de um fator transver- abertas pela autora para novas investigações, res-
sal a todos os outros, fazendo com que os trânsi- saltando o sentido de “disputa” e dos seus deslo-

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camentos, as novas formas abertas de conflitos, a Finalizando, é interessante registrar que o


relação entre legal e ilegal e como é possível captá- cenário apresentado em relação à cidade de São
la através de diferentes trajetórias de vida. Essas Paulo não se restringe a ela, advertindo-se que não
questões estão postas no último capítulo do livro, se trata de uma particularidade paulistana, mas
que, não por acaso, se intitula “Nem conclusões, sim de problemas que, em graus diversos e devi-
nem considerações finais”, apontando para pis- damente situados, devem estar presentes nas mais
tas, perguntas e interrogações reabertas a partir dos diferentes cidades.
pontos e linhas localizados no que a autora consi-
dera uma cartografia não previamente definida do
(Recebido para publicação em 27 de fevereiro de 2012)
social.
(Aceito em 05 de abril de 2012)

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Iracema Brandão Guimarães - Doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Professor Associado
I da Universidade Federal da Bahia. Tem experiência na área de Sociologia, com ênfase em Teoria Sociológica,
atuando principalmente nos seguintes temas: família, trabalho, gênero, familia e trabalhadores. Coordenadora
do Centro de Recursos Humanos da UFBA no período de 2009 a 2011. Pesquisadora do CNPq, desenvolvendo
projeto no Centro de Recursos Humanos da UFBA. iracema@ufba.br

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