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Peter Brook

D O AUTOR

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A porta aberta
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Janeiro Co1I1/.J1, jo Kranlctr i, lI'M ,
Reflexões sobre a
interpreta çã o e o teatro
£ TRADU çã O DE
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6* EDI ÇÃO

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CIMI. I / AÇÃO RRAMI.KIRA

Rio tie Janeiro


» 110
COPYRIGHT C Peter Brook, 1995

.
Irutlu^ tii » p 1 Nn. 4dj cm acordo com Pantheon Book , uiru
iltvrvio dc Random Muoc, In*. *
CAPA
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PRO ifTO GMMCO
E +lym Ummju’ h if SOH
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PPEPAAAÇÀO Ot OfeGMft
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Mtfjfxtr / MM Muntz

CDrtORAÇÀO UfT»l(VNlCA
Art Ltnc Para trina e Simon

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Todo* in dirctlut
rrurn udn% Proihtdj J reproduçã o, avmilMMMlltO c:o
iMnsm vuo .
de parret dn»lc livro, arrav é» Ae quaiKjucr mcnj®, urm prrvla
<moruitvdo poc cwntu
Direito* Jnta cdta io adautmim pel
EDITORA CIVI1^IZA Ç AO BRASILEIRA*
-
urn Mki da
tnrroiu JOS ê OI YUPIO I TT >A .
RUJ Argentina, |7| - Rio tie Janeiro, RJ - 20921 380 - T«IJ 2585 2000
* *

Sr|j urn Irítnr preferential Record.


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|Womoçòct . *
Atendinvntn c venda dart M lr»T»xi
mdircnrtftrtcwdarom br ou*(21J 2515*2002
.
IvirprruM) no hr aid
2010
Sum á rio

A timanhas do tcdio, 1
oBixe dourado,, 65
h á segredos 83
As artimanhas do tédio
Certo dia, numa universidade inglesa, quando dava as conferen¬
cias que serviram de base para meu livro O teatro e seu espaço, cu
me vi sobre o palco de um auditório, de frente para um enorme
buraco negro, distinguindo vagameme l ã no fundo do buraco
umas pessoas sentadas na escuridão. Quando comecei a falar, sen ¬
ti que tudo o que dizia não tinha o menor sentido. Fui ficando
cada vez mais deprimido, pois n ão conseguia achar um jeito natu ¬
ral de chegar ate cias.
Vi que elas estavam sentadas como aluno» atentos, A espera de
sá bios conselhos para escreverem cm seus cadernos; quanto a
mim, havia sido escalado para o papel de mestre, investido da
nurci-idade que cabe a quem fica qiwsc doi » metros acima do nível
.
dos ouvintes Felizmcntc, tive a coragem de parar e sugerir que f ôs¬
semos para outro lugar. Os organizadores saíram, procuraram por
toda a universidade c finalntcntc acharam uma salinha que era
estreita demais e muito desconfort á vel, mas onde foi possível esta¬
belecermos uma relaçã o natural e mais intensa. Falando nestas
novas condições, percebi imediatamenre que havia uma nova rela¬
ção entre mim e os estudantes. Daí por diante, consegui falar livre-
mente e a plateia ficou igualmente livre. As perguntas, assim como
.
as respostas, flu íram de modo muito mais f á cil A grande liçã o que
-
recebi nesse dia , no tocante ao espaço, tomou sc a base das expe ¬
,
riências que desenvolvemos muitos anos depois cm Paris cm nos
¬

so Centro Internacional de Pesquisa Teatral.


A TORTA A R f R T A
ARTIMA NHA ) 0 0 T I O I O

.
" Nos primeiros
fora do* edif ícios considerados como “ teatros , cafcs, em
Para que alguma coisa relevante ocorra, é preciso criar um
ções nas ruas cm
vazio. O espaço vazio permite que sur|a um fenômeno no¬ tr ês anos fizemos centenas de apresenta
espado , aldeias africanas,
S
vo, porque tudo que diz respeito ao conteúdo, significado, expres¬ hospitais, nas antigas ruínas dc Persépolis em
ões, entre as bancos de
são, linguagem c m úsica só pode existir se a experiência for nova c -
em garagens norte americanas, cm barrac
concreto de parques municipais... Aprend
emos muito, mas a expe¬
.
original Mas nenhuma experiência nova c original c possível se
atores foi a dr representar para
riê ncia mats importante para os
nâo houver um espaço puro, virgem, pronto para reecbè la - . um pú blico que eles podiam ver, ao contrá da
rio plateia invisível a
qse estavam acostumados. Muitos haviam trabalh
ado cm teatros
do choque estar
Um diretor sul-africano extremamente dinâmico, que criou um grandes, convencionais, e para eles foi um tremen
, tendo como ú nico
movimento de Teatro Negro nos distritos segregados da África do na Á frica cm contato direto com o pú blico
, unia espectadores e
Sul, disse- me: “ Todos nós lemos O ftufro e seu espaço, um livro rrcurso de ilumina çã o o sol que, imparcial .
atores sob a mesma luz. Cerra vez
, um dc nossos atores Bruce
que nos ajudou muito.** Fiquei contente, embora muito surpreso, no teatro profissio¬
Myers, disse: “ Passei dez anos de rainha vida
pois a maior pane do livro foi escrita antes de nossas experiências meu trabalho. De
na África c referia -se aos teatros de Londres, de Paris, de Nova nal sem jamais ver as pessoas para quem fazia
entrado em pâ nico pela
repente, posso vê-las. Um ano atrás teria
,
í York... O que poderiam ter achado útil naquele texto? Por que
sentiam que o livro nimbem se destinava a eles? Qual a relaçã o do
livro com a proposta de fazer teatro nas condições de vida de
sensação dc desnudamento. Teria perdido a
minhas defesas. Eu pensaria: Que pesadelo
*
mais importante dc
é ver o rosto deles! "
*

contrário, ver os espec¬


fara sua surpresa, ele descobriu que pelo
,
Soweto? Fiz esta pergunta e ele respondeu; “ A primeira frase!”
tadores dava um novo sentido ao seu trabalho
. Outra caractá -
erti
compar tilhado : O espaço é
Possa escolher qualquer espaçu vazio e considerá-lo um palco nu. ca desse tipo dc espaço c que o vazio r
Um hamem atravessa nte espaço vazio enquanto outro o observa, c o mesmo para todos que ah estã o .
isso é suficiente para coar uma ação cênica.

Na cpoca cm que escrevi O teatro e seu


espaço,aqueles que busca ¬

*i Eles estavam convictos de que fazer teatro nas condições de


que dispunham sena um desastre inevitá vel, porque nos distritos
segregados da Africa do Sul nà o existe nenhum “ edif ício teatral "
Achavam que nã o conseguiriam ir adiante se nâo tivessem teatros
.
vam um “ teatro popular” acrediravam que tudo
povo” era automaticamente vital, em contrap *
tinha vitalidade, denominado “ teatro dc elite
que fosse “ para o
osição a algo que nâo
. Ao mesmo tempo,
égio de participar de uma
de mil lugares, com panos de boca e bambolmas, equipamento de os da “ elite" achavam que tinham o privil
contrapunha totalmente ao
luz c projetores coloridos como em Paris, Londres c Nova York. E scriissima aventura intelectual, que se
os que trabalhavam nos
de repente veio um livro cuja primeira frase afirmava que eles bombástico c débil “ teatro comercial".Já
“ grandes textos clássicos” estavam conven
cidos de que a "alta cul ¬
tinham tudo que era necessá rio para fazer teatro. uma qualidade muito superior
No in ício dos anos setenta, começamos a fazer experiências tura ” inieta nas veias da sociedade
- Is i I' * *
rj

A PORTA ARIRTA
AS ARTIMANHAS DO Tt DIO

no aeroporto. A
a adrenalina chula da comédia vulgar Com o passar dos anos no . hem recebidos por lã , fui dar-lhes as boas- vindas
primeira pergunta dele* foi sobre Scofield “
: O que ele anda fazen¬
entanto, a experiência me emimm que tudo isso é falso, e que o

* bom espaço é aquele para o qual convergem muitas energias dife¬


rentes, e onde todas essas categorias desaparecem.
Feli/ menrc, quando comecei a fazer teatro, eu ignorava cora-
pletamente todas as classificações. Naquele tempo, a Inglaterra ofe¬
do ? Podemos vê-lo?" “ Claro", respondi
eles foram assistir ao espetáculo .
.
Arranjamos ingressos e

Os russos, principal mente nessa época, tinham


c sempre possí vel safar-se de qualquer constrang
aprendido que
imento teatral
pelo simples uso de uma palavra: interessante.Assistiram
ao espe¬
recia uma grande vantagem: não havia escolas, nem mestres, nem
táculo, cncnnrruram -sc com Scofield c afirmara
m, de forma pouco
.
exemplos O teatro alemã o era totalmentc ignorado, Stanislavski
interessados". Um ano de ¬
praticamcntc desconhecido, Brecht era apenas um nome e Artaud convincente, que tinham ficado “ muito
pois recebemos um exemplar
do livro escrito «obre a viagem pelo
nem isso. Não havia teorias; entã o quem fazia teatro passava tran - da Universida ¬
qitilamcntf de um gênero a outro. Grandes atores podiam ir de chefe da delegação, um especialista em Shakespeare
p ssima foro de
Shakespeare para uma farsa ou comédia musical. O pú blico c os de de Moscou. No livro, deparei- me com uma é
cm Expresso
críticos aceitavam de bom grado, sem achar que fosse uma traição Scofield usando seu chapéu de feltro meio de banda
.
a cies ou ã “ arte do teatro" .
Bongo, com 1 seguinte legenda: “ Ficamos muito
ta .
consternados
Que humilha ¬
No início da década de cinquenta apresentamos Hnmlct em pela trágica situaçã o do ator num pa ís capitalis
ser forçado a re¬
Moscou com Paul Scofidd, que vinha interpretando pape» centrais çã o para um dos maiores atores do nosso tempo
presentar numa coisa chamada Expresso
,
Bongo para poder sus¬
havia mais de dez anos e era conhecido na Inglaterra como um dos
mais brilhantes e completos atores de sua gera ção. Foi na velha tentar sua mulher c dois filhos!"

R ússia stalimsta, completamente isolada na verdade, acho que
fomos a primeira companhia inglesa que se apresentou lá. Foi um
Contei este caso para compartilhar com voces
,
damental: o teatro nã o tem categorias é sobre .
1 vida
uma ideia fun ¬
. F,$te c o ú ní-
é rcalmentt fundamental.
grande evento, e Scofield foi tratado como uma estrela pop . cojionto de partida, e além dele nada
Teatro é vida.
y Voltando à Inglaterra, continuamos a trabalhar juntos por
Por outro lado, não se pode dizer que n ão
haja diferença entre

I£ algum tempo, fazendo uma peça de Eliot, outra de Graham


Greene. Um dia, após o término de nossa temporada, ele foi con ¬
vidado para o papel de um empresá rio londrino numa comédia
musical, o primeiro dos musicais pré-ror íb. Paul ficou eufórico: "É
a vida c o teatro. Em 1 68 havia pessoas que
1
^
justificá veis, cansada » de tanto “ teatro morto"
“ a vida é um teatro", c portanto não luivrnu
, por motivos muito
, sustentavam que
necessidade dc arte,
toda pane, o team »
maravilhoso. Em vez de outra peça de Shakespeare, vou poder de técnica, de estruturas... “ O teatro est á em
acontece à nossa volta", diziam. "Todos n *
ó tomos atores, pode ¬
cantar e dançar. Chama -se Expresso Bongo!" Eu o encorajei a .
.
aceitar, ele ficou muito feliz e a peça foi um sucesso mos fazer qualquer coisa diante de qualquer um .tudo c teatro "
simples exercício
Durante a temporada, uma delegaçã o oficial russa composta O que há de errado com esta afirmaçã o? Um
para caminhar
por cerca de vinte atores, atrizes, diretores c administradores tea ¬ pode esclarecer a questão. Peçam a um voluntá rio
pessoa consegue.
trais chegou repeminamente de Moscou. Como havíamos sido tão de um lado para outro de um espaço. Qualquer
A POStA AIE0TA
AS ARTIMAIVHAS OO f í DiO

,
Ate um pcrfciro idiota é capaz de fazê-lo, só tem que andar. Não Na vida real usamos um palavrório desordenado e repetitivo
. embora este modo tão natural de nos expressarmos sempre tome
s precisa fazer esforço, nem merece recompensa Agora peçam lhe
um tempo enorme cm relaçã o ao conteúdo real do que queremos
* para imaginar que está carregando nas mã os um |arro precioso c
tem que caminhar com cuidado para não derramar uma só gota de
seu conte údo. Qualquer um também pode realizar este exercício — —
dizer. Mas é assim mesmo que se começa com a comunica
coloquial , exatamente como no teatro, quando se desenvolve
.
ção

-
de imaginaçã o e locomovcr sc de um modo mais ou menos convin ¬ uma cena improvisada, com falas muito prolixas
A compressão consiste em eliminar tudo que não i estritamen
-

——
cente. Mas, como nosso voluntá rio|á fez um esforço maior, talvez
tc necessá rio e intensificar o que sobra por exemplo: trocando
mereça agradecimentos e até uns trocados como recompensa pela , mas sempre preservan¬
.
ccnrativa Em seguida, peçam - lhe para imaginar que durante a
um adjetivo suave por outro mais forte •

do a impressão de espontaneidade. Sc esta impressão for


mantida,
caminhada o jarro escorrega de suas mãos e se espatifa no chão, de três
chegaremos ao ponto em que duas pessoas só precisarã
o
.
derramando o conte údo Aí ele vat *e complicar. Tentará interpre ¬ três horas.
tar a cena c seu corpo será possuído pela pior espécie dc atuação
minutos em cena para dtzcr o que na vida teal levariam
mpidos
^
artificial, amador ística, tornando a expressão de seu rosto “ tea ¬ Podemos observar claramente este resultado nos estilos lí
.
— .
tral " ou seja, horrivelmente falsa Realizar esta ação aparenrr-
mente simples de modo que pareça tão natural como uma simples
de Beckett, Pinter ou Tchckov
.
Em Tchekov parece que o texto vem de uma gravaçã
.
o, as
de
caminhada requer toda a competência de um artista alta mente falas parecem tiradas da vida diária Mas náo há uma só frase
Tchekov que nã o tenha sido burilada, polida , modificad a , por ém
.
profissional Qualquer ideia tem que se materializar rm carne, san ¬
com tanta habilidade c arte que o ator parece estar falando
real -
gue e realidade emocional: tem que ir alem da imitação, para que
a vida inventada seja també m uma vida paralela, que não sc possa
.
menre “ coroo na vida " No entanto, se tentarmos falar e agir
exa ¬

distinguir da realidade em nivcl algum. Agora entendemos porque


..
tamente como tx» vida rr il não conseguiremos representar
Tchc¬
.
kov O ator e o diretor t êm que seguir o mesmo processo do autor;
um ator de verdade merece os fabulosos caches diá rios que as pareça, náo
empresas cinematográ ficas lhe pagam para dar uma impressã o ou seja, saber que cada palavra, por mais ingénua que
que vem
plausível da vida cotidiona. c inocente. Contem cm si mesma, bem como no silêncio
oculta dc entre as
Vamos ao teatro para um encontro com a vida , mas se não hou ¬ ames c depois toda uma complexidade energias
, indo alem , bus¬
ver diferença entre a vida li fora e a vida cm cena, o teatro não te¬ personagens. Se conseguirmos descobrir isso c se
rá sentido. Náo há razão para fazê- lo. Sc aceitarmos, poré m, que a
-
carmos o modo artístico de ocult á lo, conseguiremos
.
finalmcntc
No fundo,
dizer essas palavras simples c dar a impressã o de vida
vida no teatro é mais visível, mais vívida do que lá fora, então vere¬ , conden¬
é a vida , mas uma vida cm forma mais concentrada mais
mos que c a mesma coisa e, ao mesmo tempo, um tanto diferente.
Convém acrescentar algumas particularidades. A vida no tea ¬ sada no tempo c no espa ço.
tro é mais compreensível e intensa porque e mais concentrada A . Shakespeare vai mais alé m. Costumava -se pensar que o verso
era uma forma de embelezar por meio da poesia. Depois
, numa
limitação do espaç o c a compressã o do tempo cnam essa con ¬ passa dc uma for-
centraçã o. reação inevit á vel, veio a ideia de que o verso não
AS ARTIMANHAS DO TtOlO

ma intensifiesda da linguagem votidiaiu . E darn que o verso deve E muito imporrante examinar simultaneamente e vem precon¬
, ator que ensaia
V
.
soar unatural " mos tsto nã o quer dizer col<K|uial ncm banal. Para ceitos o teatro clássico c o teatro comercial o
durante meses c aquele que se prepara em poucos dias, comparan ¬
achar o caminho, temos que enrender claramentc par que n verso o que dá
do o que se pode fazer quando hi muito dinheiro com
*1 existe e qual a função absolutamente necessá ria que deve cumprir.
Dc fato, Shakespeare, que era um homem pr á tico, fui forçado a
utilizar o verso para sugerir simultaneamente os movimentos psi ¬ rentes condições da representação teatral

para fazer quando ha muito pouco cm outros palavras
.
, as dife¬

cm um palco
cológicos, psíquicos c espirituais mats recônditos das personagens, Gostaria dc comparar o que pode ocorrer apenas
normal, com cená rio e iluminação, com o que só pode acontecer
sem perder sua realidade prosaica . Dificilmente a compressã o r que o
vem iluminação, sem cená rio, ao ar livre, a fim de demonstra
poderia chegar ma is longe.
A raiz do problema consiste em saber se a cada momento, no fenômeno do teatro vivo não depende dc condi
ções externas .
Podemos assistir a uma peça banal, com um tema medíocre, que
ato de escrever ou de atuar, existe uma faísca, uma pequena cente¬
esteia fazendo um grande sucesso dc
pú blico e de bilhctcna num tea ¬
lha que se acende e dá intensidade a esse momento comprimido,

1 tro absolutamcnte convencional, e às vezes


encontrar ai uma cente¬
destilado. Porque a compressã o c a condensaçã o n ã o bastam. embebi ¬
Mesmo se fazendo cortes numa peça longa demais ou muito proli ¬ lha de vida muito superior ao que acontece quando pessoas
os , apre ¬
xa, ela pode continuar sendo chata. O que imporia c a centelha, das de Brecht e Artaud, trabalhando com bons equipament
á vel mas carente de fas¬
que nessa peça surge muito raramente. E uma prova de que a for ¬ sentam um espetáculo culturalmemc respeit
ma teatral é terrivelmente frá gil c exigente, pois essa ccntclhazinfu cínio Quando nos deparamos com este tipo de espet
. ,
áculo geral -
uma em que tudo
mente passamos uma noite insípida vendo
coisa
de vida tem que estar presente a todo instante.
E um problema artístico que só existe no teatro e no cinema.
Uni livio pode let uechos maçante», mas no teatro pode-se perder
— .
está presente exceto a vida Ê muito importante
avaliar tudo isso
de modo frio, objetivo e inflexível, principalmenre para
influenciado pelo csnobismo dos chamados “ critérios culturais” ¬
nã o scr
.
o pú blico em questão de segundos se o ritmo nâo estiver certo .
» .
Se eu parar de (alar agora , vamos ouvir um silencio.. mas to¬ E por isso que insisto nos perigos contidos num autor pera
extraor
.A qua¬
ó
dinário como Shakespeare ou nas grande» obras da

i dos estão prestando atenção... Por um momento, eu os renho na


palma da mà o, mas daqui a um segundo suas mentes começarão
.
inevitavelmente a divagar. A n ã o ser que.. o que ? E um esforço
quase sobre-humana conseguir renovar cuntiruumcnte o interesse,
lidade cultural dessas peças pode gerar o melhor ou o pior
maior a obra, tanto maior é o tédio
ção não forem do mesmo nivel .
vc a realiza çã o

Isto c sempre muito dif ícil dc admitir para aqueles


c a
.
Quanto
interpreta

que vêm
¬

*
I
encontrar a originalidade, o frescor, a intensidade que cada novo
-
instante requer. Por isso é que existem cão poucas obras primas no
teatro universal, em comparação com outras formas dc arre. Como
lutando, grralmentc cora grandes dificuldades para
meios de levar obras de n ível cultural elevado
,
para
encontrar os
um pú blico
defender a ten ¬
a centelha de vida está sempre correndo o risco dc desaparecer, indiferent e. Scmimo-nos quase sempre obrigados a
dos porque as
temos que analisar com precisão os motivos de sua frcqiicntc au ¬ tativa, c ficamos frequentemente muito desaponta
plateias, cm todos os paises, geralmentc desdenham essas obras e
sência. Para tanto, devemos observar esse fenómeno com clareza .
ii
010 A PORTA AMRTA

.
preferem aquilo que consideramos de qualidade inferior Se obser ¬
\
varmos atenramenre, perceberemos o erro: apresentou se uma - a duas
grnnde obra, URU obra-prima, mas sem o único ingrediente capaz Costumo fazer a seguinte experiência diante do pú blico: peço
ível presen ça da vida. E assim vol¬
de ligá-ia a seu pú blico: a irresist pessoas escolhidas ao acaso que subam ao palco e digam simples
¬

tamos a questão do espaço vazio . mente "Olá!" uma a outra. [>irijt>me então ã plateia
e pergunto sc
c a coisa mais extraordiná ria que já viram. Evidentemcnte ã
Se o há bito no» leva a crer que o teatro tem por base um pal ¬ n o é.
co, cenário, luz, m úsica, poltronas... paramos do principio errado . Em seguida pergunto à plateia: podemos dizer que esses cinco
Para fazer filmes não podemos prescindir de uma camera, do celu - segundos possuíam tanta pureza, tanta qualidade, revelavam tan
¬

-
lóidc c dos meios para revelá lo, mas para fazer teatro somente ,
ta elegâ ncia e sutileza a cada instante que se tornaram inesquec í ¬

uma coisa é necessária: o elemento humano. Isto n ã o significa que veis? Vocês, como pú blico, poderiam
jurar que pelo resto da vida
o resto não tenha importância, mas n ão c o principal. órias? Apenas se
esta cena permanecerá indelével cm suas mem
, puderem dizer
J á afirmei, certa vez, que o teatro começa quando duas pessoas puderem responder que sim c se, ao mesmo tempo
se encontram. Se uma pessoa fica de pé c a outra a observa, já c um o que
que " parecia muito natural", só entáo poderão considerar
comcç n. Para haver um desenvolvimento é necessária uma terceira acabaram de ver como um fenômeno teatral. Mas então o que
, fal¬
transformar o
.
essenciais. —
pessoa, a fim de que haja um confronto. E então a vida se instau ¬
ra podendo chegar muito longe mas aqueles très elementos sã o

Por exemplo: quando dois atores ensaiam juntos, sem pú blico,


tava ? Este é o “ x" da questã o. O que é preciso para
banal em sublime ?
No teatro n ó, um ator leva cinco minutos para chegar ao centro
.
do palco Por que um "não-ator" é incapaz de prender nossa aten
¬
, a mesma coisa em rit ¬
podem »cr tentados a acreditar que sua rela ção é a única que exis¬ ção, enquanto um "ator de verdade" fazendo
, ao
te. é f ácil cair na armadilha de apaixonar-sc pelo prazer de contra ¬ mo duas rail vezes mais lento, consegue ser Uo atraente? Por que
.
cenar a dois esqucccndo-se de que o fundamental é o intercâ mbio contemplá-lo, nus sentimos comovidos, fascinados? E mais : como
ainda
c
a três. Um per íodo muita longo de ensaios pode acabar destruindo que um grande mesrre nó consegue tornar sua caminhada

I
a possibilidade ú nica trazida por esse terceiro clemenro. Quando ível do que a de um ator n
mais irresist ó menos expenente , que tenha
percebemos que uma terceira pessoa nos observa, as condições do
ensaio sempre se transformam.
Em nosso trabalho costumamos usar um tapete como zona de
eniaio, com ura objetivo muito claro: fora do tapete, o ator est á na
apenas um quarto de século de prá tica? Qual é a

nhar , c mesmo assim existe uma diferença fundamental


aquilo que produz intensidade de vida e o
diferen
Estamos falando do mais simples dos movimentos cami
— que é
ç

mero
a ?
— entre
lugar
¬

-
comum. Qualquer detalhe de um movimento servirá ao nosso pro
¬
vida entidiana, pode fazer o que quiser: desperdiçar a energia,
ção e
fazer movimentos que n ão expressam nada cm particular, coçar a pósito; podemos colocá-lo sob o microscópio de nossa aten
cabeça, tirar um cochilo... Mas assim que pisa no tapete está obri observar este processo elementar cm sua totalidade .
ajuda.
O olhar do p ú blico é o primeiro elemento que nos
gado a ter uma intençã o definida, a estar intensamente vivo, pela
simples razão de que há um pú blico observando. Quando sentimos esse escrut ínio como uma cxpcctat ê
íva aut ntica .
A t AITIMANHAS 0 0 T Í 0 I 0 A P O * TA ABIMTA

exigindo a todo momento que nada sc|a gratuito, que nã o haja .


corpo Em todas as raças dc nosso planeta os corpos são mais ou
menos iguais; hi algumas diferenças de estatura e cor, mas basica
¬
desleixo e sim precisão, compreendemos final menrc que o pú blico
s .
n ão tem uma função passiva Não precisa intervir nem manifestar- ,
mente a cabeça está sempre sobre os ombros e o nariz
, os olhos, a
se para participar: participa constantemente por meio de sua pre¬ boca, a barriga c os pés ficam nos mesmos lugares O . instrumento
.
sença atenta Esta presença deve ser encarada como um estimulan¬ do corpo é o mesmo no mundo inteiro; o que muda são os
estilos
te desafio, como um ímà diante do qual não é possível proceder .
e as influências culturais
.
“ de qualquer jeito" Em teatro, "de qualquer jeito" è o maior e
mats suríl inimigo .
.
.
Na vida diá ria tudo sc faz “ dc qualquer jeito". Vamos dar três
exemplos Primeiro: quando fazemos uma prova ou falamos com
As crianças japonesas têm corpos infinitamentc mais desenvolvi
dos do que as ocidentais. Desde o» dots anos dc idade cias apren
¬
¬

ê anos a
um intelectual, tentamos nã o usar “ de qualquer jeito" o pensa ¬ dem a sentar se em perfeito equilíbrio; entre os dois tr
- c s
mento ou as palavras, mas, sem percebermos, esse “ dc qualquer crian ç a começa a inclinar-se reguljrmentc, o que constitui
um
jeito" estará em nosso corpo, que permanecera ignorado c deslei¬ .
excelente exercício para o corpo Nos hoté is de Tóquio , jovens lin ¬

do elevadores ,
xado. No entanto, sc estivermos com alguém que esti sofrendo, díssimas permanecem o dia inteiro de pc diante »
I nossos sentimentos não ficarão “ de qualquer jeito", sem d ú vida -
tnciinnnda se sempre que as porras se abrem ou fecham .
Sc algum
teatro,
seremos gentis e atenciosos, mas nossos pensamentos podem ser dia um diretor escolher uma dessas garotas para fazer
desen ¬
.
vagos ou confusos, assim como nosso corpo E no terceiro caso, podem ter certeza de que pelo menos seu corpo estará bem
quando guiamos um automóvel, o corpo inteiro pode estar mobi ¬ volvido .
.
lizado mas a cabeça talvez divague, à deriva, pensando "dc qual ¬
quer |cito" .
No Ocidente há poucas pessoas que chegam aos oitenta am»
em forma, com corpo» peildtamcnrc desenvolvidos; entre elas
,m

maestros. Durante toda a vida um maestro faz movunentos que


Para que as intenções do ator fiquem totalmemc claras, com
começam pela curvatura do torso, embora não encare isso
como
vivacidade intelcctuaL, emoção verdadeira, um corpo equilibrado e
dispon ível, os três elementos
— —
pensamento, sentimento e corpo
devem estar em perfeita harmonia. Só entã o ele cumprirá o
exercício. Como os japoneses, cie também precisa dc um ventre
me para que o resto do corpo possa realizar movunentm alta
men
ou
fir¬

do
-
requisito de ser mais intenso, em curto espaço de tempo, do que c tc expressivos. Não são movimentos como o» do acrobata
quais emo oçã
. ginasta, que panem da tensã o, mas movimentos no*
cm sua casa
—. —
Em nossa experiência anterior “ alguém atravessa um espa ¬
ço e encontra outra pessoa sob o olhar de uma terceira " hã um
potencial que vai sc realizar ou não Para entender o que isto sig ¬
dessa precisão dc pensamento para acompanhar
.
c precisã o de raciocínio estio entrelaçada* O maestro

pamtura, enquanto seus sentimentos dã o qualidade


cada
à m
necessita
detalhe
ú sica
da
, e
és do
nifica cm termos de arte, precisamos saber exaramente quais são «cu corpo, em permanente mobilidade, i o instrumento atrav
os elementos que criam este misterioso movimento de vida
quais os que impedem sua aparição. O elemento fundamental é o
— e qual ele se comunica com os músicos Por . isso é que um maestro
idoso desfruta de um corpo inteiramente ágil, embora nã execute
o
AS AUTIMAttHAS 0 0 TtOlO A POSTA A t E D T A

\
as dança* dc um jovem guerreiro africano ou as reverencias dos
japoneses.
Um grande maestro inglês do início do século afirmava que
ator

oriental que tanto o corpo gordo e molenga quanto o que
é jovem e agil tenham uma sensibilidade igualmente apurada.
Quando nossos atores fazem exercícios de acrobacia, é para
"na Europa continental os maestros t êm melhor preparo f ísico desenvolver a sensibilidade e nio a habilidade acrobá tica. Um ator
-
porque, quando encontram uma dama, curvam se para beijar-lhe que nunca faz exercícios só interpreta “ dos ombros para cima ".
a mio” . E aconselhava os estudantes de regência a se curvarem e Embora isso talvez funcione bem no cinema, impede que o ator
beijarem a mão dc todas as damas que encontrassem. comunique a totalidade dc sua rxpenência no teatro. De fato, é
Quando levei minha filha , que tinha três ou quatro anos, a muito f ácil ser sensível na fala, no rosto ou nos dedos, mas o que a
uma aula de dança, fiquei horrorizado com o estado dos corpos narureza não nos deu, c precisa ser desenvolvido através de exercí¬
das crianças. Vi meninas da idade dela|á enrijecidas, sem nano. O cio, é a mesma sensibilidade no resto do corpo: nas costas, nas per ¬
ritmo nã o é um dom especial. Qualquer um tem ritmo dentro dc si, .
nas, no traseiro “ Ser sens ível", para um ator, significa estar per -
a nã o scr que esteja bloqueado, mas com tres anos dc idade a _
manentemente cm coiitaio com a totalidade dc sctlíQlPQ- Quando
criança deveria mover-se com naturalidade. As crianças de hoje, iniciar um movimento, ele deve saber exatatnentc a posiçã o dc
porém , ficam horas imóveis diante da televisã o e depois chegam ãs cada membro.
aulas de dança com corpos que já estio duros. Entre nós, esse ins- No Mjbjbhiiratj t ínhamos uma cena extremamente perigosa,
nn escuro, em que todos carregavam archotes incandescentes. As
^
rrumento que é o corpo nin «g A gpvnlvr tã o hem durante i m
finda como no Oriente. Por isso, o ator ocidental deve compreen ¬
der que precisa compensar essa deficiência.
fagulhas e respingos de óleo fervente podiam ter incendiado facil¬
mente os mantos esvoaçantes das indumentá rias de seda leve. Ficá ¬
Isto não significa que o ator precise ter o treinamento dc um vamos apavorados, todas as vezes, pelo nsco que assumíamos. Por
.
dançarino O ator deve ter um corpo que reflua seu tipo, ao passo isso costumá vamos fazer exerc ícios cum ardiutes, para que cada
que o corpo do dançarino pode muito bem ser neutro. Os bailari¬ um de nós soubesse onde as chamas estavam cm cada momento.

nos refiro-me agora ao balé tradicional,1 dança clássica de¬

vem estar aptos a seguir as indicações do coreógrafo, de um modo
rclarivamcnte anónimo. Com o ator é diferente: para cie, é muito
Desde o início, o ator japonês Yoshi Oida demonstrou scr o mais
.
apto devido a seu rigoroso treinamento Em qualquer movimento
que execute, Oida sabe cxatamrntc onde estão situados os pés, as
importante ser fisicamente marcante, produzir uma imagem do ...
mã os, os olhos, o â ngulo da cabeça Nio faz nada por acaso Ma» .
mundo; devem existir atores baixinho* e gordos, altos c magros, se pedirmos a um ator comum que pare dc repente no meio de um
.
os que se mexem rá pido, os que sc arrastam pesadamente .. Todos movimento e diga, cm centímetros, a que distâ ncia estio seus pés
são necessá rios, pois o que mostramos é a vida, tanto a vida inte¬ ou suas mãos, ele provavelmente terá enorme dificuldade. Na Á fri ¬
rior como a exterior, insepar á veis uma da outra. Para expressar ¬ ca e no Oriente, onde os corpos das crianças não sio deformados
mos a vida exterior precisamos de tipos fortemente marcados, pois pela vida urbana e onde uma tradição viva os obriga, diariamente,
cada um de nós representa um certo tipo dc homem ou dc mulher. a sentarem com as costas retas, a se curvarem, a se ajoelharem, a

Mas é muito importanre e aqui se estabelece o vínculo com o caminharem discretamente, a permanecerem imóveis porém alcr-
tas, eles já
AS ARTIMANHAS DO TÉ DIO

possuem o que nós precisamos adquirir com uma série


T A C O»T A A S M T A

aldeia, representavam cenas de guerra, movendo-ce para diante cm


de exercícios. No enramo, e uma coisa perfeitamcnte possível de pequenos saltos. Pulavam olhando fixamente para a freme, e no
conseguir, porque a estrutura dos corpos ê semelhante. seu olhar existia uma força extraordiná ria, uma intensidade incrí¬
Um corpo destreinado é como uni instrumento musical desafi ¬ vel. Perguntei a seu mestre: “ Como conseguem isso? No que estão
nado, em cuja caixa de ressonâ ncia hi uma borulheira confusa c concentrados, para ter um olhar tão forte?" Ele respondeu: “ É
muito simples. Digo-lhes para nã o pensarem em nada só olharem
dissonante de ruídos in úteis, impedindo u audiçã o da verdadeira ,
melodia . Quando o instrumento do ator, seu corpo, é afinado para diante e manterem os olhos bem abertos." Percebi que nunca
pelos exercícios, desaparecem as tensões e os há bitos desnecessᬠteriam conseguido tal intensidade se estivessem concentrados em
.
rios Ele fica pronto para abrír-se às ilimitadas possibilidades do algo como “ O que estou sentindo?" ou se tivessem preenchido o
.
vazio Mas há um preço a pagar; diante desse vazio desconhecido vazio com ideias. E algo difkil de aceitar para a mentalidade
oci ¬
.
surge, naturalmcnte, o medo Ate mesmo um ator de larga expe¬ dental, que durante tantos séculos consagrou as “ ideias " e a men ¬

te como divindades supremas. A única resposta est


riência, sempre que vai retomar seu trabalho, quando se vê na bor ¬ á na experi ên ¬


da do tapete sente esse medo voltar medo do vazio dentro de si
mesmo e do vazio no espaço. Imediatamente, ele trata de preen ¬
cia direta, e no teatro é possí vel experimentar a
da extraordinária presença do vazio, em
realidade absoluta
contraste
.
com a confusã o
-
cher o vazio para livrar se do medo, tentando achar alguma coisa estéril dc uma cabeça entulhada dc pensamentos
para dizer ou fazer, Scnur-sc imóvel ou ficar quieto requer muita Quais sã o os elementos que perturbam o espa ço interior ? Um
coragem. A maioria das nossas manifestações exageradas ou des¬ deles é a racionalizaçã o excessiva. Enrà u por que insistimos em
necessárias provêm do pavor de não estarmos realmcntc presentes preparar tudo de antemão ? Em geral, é para combater o medo de
se nã o avisarmos o tempo lodo, de qualquer jeito, que dc fato exis¬ sermos apanhados desprevenidos. No passado, conheci atores
timos. isso jã c um grande problema no dia -a-dia, cm que pessoas convencionais que prclcnam receber todas as orientações do dire¬
nervosas e descontroladas podem nos infernizar a vida; mas no tor logo no primeiro dia dc ensaio c nã o serem ma» incomodados
.
teatro, onde todas as energias devem convergir para o mesmo fim, , quisesse mudar algum
Para eles, isso era o para íso e se a gente
a capacidade de reconhecer que se pode estar totaJmeme “ presen¬ detalhe duas semanas antes da estreia ficavam muito aborrecidos.
te", embora aparentemente sem “ fazer" nada , é fundamental. É ,
Como cu gosto dc mudar tudo, às vezes arc no dia do espetáculo
importante que uxlos os atores reconheçam e identifiquem tais nã n consigo mats trabalhar com esse tipo dc atores, se 6 que ainda
obstáculos, que neste caso são naturais c legítimos. Se perguntar ¬ existe. Prefiro trabalhar com atores que gostem dc *cr flexíveis
.
mos a um ator japonês sobre seu modo de atuar, dc admitirá que Mas ate alguns destes dizem, às vezes: " Não, é tarde demais i á
.
já enfrentou e superou essa barreira Quando atua bem, não é por ¬ nã o posso mudar mais nada", só porque sentem medo. Tendo
que elaborou previamenre uma composição mental, mas sim por ¬ construído uma estrutura definida, eles acham que
, se ela for reti ¬
que criou um vazio livre dê pânico dentro de si. rada, não lhes restará mais nada, ficarão perdidos. Nestes casos
,
Numa aldeia dc Bengala assisti a uma cerimónia muito pode¬ não adianta dizer- lhes “ Não se preocupem", pois essa é uma recei
¬

ta segura para deixá - los ainda mais apavorados. Somente


rosa chamada Chauu. Os participantes, que eram habitantes da com
A S A t t t M A W H A! 0 0 TtOlO A » 0 M A A a C* T A

ensaios preciso», repetidos, c com aexperiê ncia dos espetá culos, Vejamos o exemplo da .
reação do pú blico Sc, durante uma
V pode -se provar ao ator que, quando não sc procura segurança , a
verdadeira criatividade vem preencher o espaço.

Isso nos leva á questão do ator como arrista. Pode-se afirmar que
— —
improvisação, você sentir a presença das pessoas que o observam
como deve set, do contrá rio não faz sentido e as pessoas
rirem, você corre o risco dc que esse riso o leve numa direção dife¬
rente da que rena seguido sem ele. Você quer agradar, e o riso é a
prova de que estã conseguindo: AI você começa a tentar arrancar
o verdadeiro artista est á sempre disposto a qualquer sacrif ício «. . ida vez mais risadas, ate que seus v í nculos com a verdade, a rea ¬
para atingir um momento dc criatividade. O artista medíocre pre - -
lidade c a criatividade dissolvcm se impctccptivelmente na diver ¬
.
v fere nã o correr riscos, c por isso é convencional Tudo que é con - são. O essencial e ter consciê ncia deste processo e nã o cair cega -
vcnciorul, tudo que c medíocre, está relacionado a esse medo. O .
mrntc na armadilha Do mesmo modo, sc você tiver consci ê ncia
, ator convencional põe um lacre cm >eu trabalho, e lacrar c um ato .
do que lhe provoca medo pode observar como constrói suas defe¬
defensivo. Quem te protege “ constrói " c “ lacra ". Quem quer se .
sas Todos os elementos que dão segurança precisam »er observa ¬
abrtr tem qiie dcsrruirjis paredes . dos c questionados. Um “ ator mecânico" fará sempre a mesma
É uma questão complicada. O que chamamos de “ construção coisa, c portanto a relaçã o que estabelece com os colegas em cena
da personagem" é na verdade a produ ção de uma imitação plau ¬ n ã o pode ser sutil nem sensiveiTQuando parece iJlur p,ua p>
_
.
sível. Devemos, portanto, buscar outro caminho A opção criati ¬ outros atores ou cscutá - los , est á apenas fingindo. Escondc-sc cm
va consiste em produzir uma serie de imitações provisórias saben ¬ vua concha " mecâ nica " porque cia lhe dá segurança.
do que, mesmo que um dia você sinta que descobriu a persona¬ O mesmo sc dá com o diretor, que sempre hca tentado a pre ¬
gem, isso não pode durar. Naquele dia específico, talvez fosse o parar sua encena ção antes do primeiro dia de ensaio. Isso é natu -
melhor que você pôde fazer, mas deve lembrar que a verdadeira
| ral, e cu també m fa ço assim. Desenho centenas dc esboços do
forma ainda nã o está li. A forma verdadeira só chega no último cená rio e das marcações, mas apenas como exercício, pois sei que
instante, ás vezes ate depois. £ um nascimento. A verdadeira for - no dia seguinte nem vou prestar atenção neles. Isso não me impe¬
ma não é como a construção de um edifldo, em qoe cada a çã o é
.
um avançojõgiço cm relação a ação anterior Pelo contrário, o
verdadeiro processo de construção envolve simultaneamente uma
1

de de fazê-los, c uma boa preparação mas se pedisse aos atores
para utilizarem os esboços feitos três dias ou tr ês meses atrás, esta ¬
ria matando toda a vida que pode nascer no momento do ensaio.
cspccic dc demolição, que implica a aceitação do medo. Toda - .
£ preciso fazer a preparaçã o para jogi ln fora construir para
demolição cria um espaço perigoso, no qual há menos suportes e poder demolir. . .
menos BPQ10& . A regra fundamental c que, ate o ú ltimo momento, tudo é uma
Mais ainda: mesmo quando atingimos momentos de autêntica forma dc preparação, c portanto temos que correr riscos, sabendo
criatividade nas improvisa ções, nos ensaios ou durante utn es¬ que nenhuma decisão c irrevogá vel.
pet áculo, existe sempre o risco de borrar ou destruir a forma
emergente . '
~
.
rá U SfCjytt,
« «nb. j.
A i cte
Cvtdrtd*
A t A R T I M A N H A) D O TlOIO A AORTA AltRTA

Um dos aspectos inerentes a um espaço mio é a inevitá vel ausên ¬ habita o mesmo mundo da camera. No teatro pode-se imaginar,
cia de cená rio. Isto náo o toma melhor que os outros, pois náo por exemplo, um ator com roupas normais sugerindo que est á
estou julgando nada, apenas constatando o óbvio: num espaço representando o Papa porque usa um gorro branco de esquiador.
va / io náo pode haver cená rio. Se houver, o espaço náo estará Bastaria uma palavra para trazer o Vaticano ao palco. No cinema
vazio, haverá objetos ocupando a mente do espectador. Como a isso seria impossível. Precisaríamos de uma explicação plausível,
arca vazia não coma uma história, a imaginaçã o, a atenção e os como, por exemplo, dc que a história se passa num manicômio,
processos mentais de cada espectador ficam livres c desimpedidos. onde o paciente de gorro branco tem alucinações sobre a Igreja,
Neste caso, se duas pessoas adentrarem o espaço c uma delas pois do contrario a imagem nã o tena sentido. No teatro a imagi
¬

disser á outra : “ Bom du. O senhor é o Dr. Livingstone?", bastam nação preenche o espaço, ao passo que no cinema a tela represen ¬
estas palavras para nos rrazer a Á frica , palmeiras e tudo o mais. ta o lodo , exigindo que iudo que aparece nos fotogtanus esteja
Ou então se uma delas disser: “ Por favor. . . onde co metro?", o es¬ relacionado dc um modo lógico c coerente.
pectador visualizará um conjunto diferente dc imagens c a cena O vazio no teatro permite que a imaginação ptecncha as lacu¬
será numa rua dc Paris. Mas se a primeira perguntar “ Onde c o nas. Paradoxalmente, quanto menos *e ofcrccc ã imaginação, mais
metrã ?" c a segunda responder “ Metro? Aqui ? No meio da Á fri ¬ feliz ela fica , porque é como um m úsculo que gosta de se exercitar
ca ? ” , inúmeras possibilidades se abrem e a imagem dc Paris, for ¬ em jogos.
mada ein nossa* mentes, começará a se dissolver. Ou liem estamos O que queremos dizer quando falamos em “ participação do
na selva e uma das personagens é maluca , ou então estamos numa publico"? Nos anos sessenta sonhá vamos com uma plateia " parti ¬
rua dc Paris e a ouira personagem está tendo alucinações. A ausên ¬ cipante". Pensá vamos, ingenuamente, que participar envolvia de
¬

cia dc cená rio é um pré-requisito para a atividade da imaginação. monstrações fisicas como subir ao palco, movimentar-se nele e in¬
Sc nos limitarmos a colocar duos pessoas lado a lado num tegrar- se ao grupo de atores. Bem , tudo é possí vel , e este tipo de
espaç o va/ io, a atenção dos espectadores se estenderá aos menores happening às vezes pode ser muito interessante, mas “ participa ¬
detalhes . Para mim, aí está 4 grande diferença entre o teatro, na ção" é outra coisa. Consiste em ser cúmplice da ação e aceitar que
Ij sua forma essencial , e o cinema . Devido ã natureza realista da
fotografia , no cinema a pessoa está sempre num contexto, nunca
uma garrafa sc tome a Torre de Pisa ou um foguete a caminho da
na A imagina çã o, feliz, m |Ogo, desde que o
fora de contexto. Já houve tentativas de fazer filmes com cenogra ¬ .itõTnáo esteja “ em parte alguma ” . Se por trás dele houver um
ar#tl> fia abstrata , ou mesmo sem cenários, ou com fundo branco, mas
tirando Jeanne d' Au' , de Drcyer. raramenie deram certo. Sc pen¬
unico elemento ccnográíico para ilustrar uma “ nave espacial" ou
um "escritório em Manhattan” , imcdíaumcnie intervirá a veross í -
sarmos nos milhares de grandes filmes que |J foram feitos, vere¬ tnilhança cinematográfica c ficaremos trancafiados nas fronteiras
mos que a força do cinema reside na fotografia, c fotografia supõe lógicas do cená rio.
que alguém esteja em .tlgum lugar. Nesse sentido, o cinema não No espa ç o vazio podemos aceitar que uma garrafa seja o
pode ignorar por um momento sequer o contexto social em que se foguete que nos levará ao encontro dc uma pessoa real cm Vé nus.

l desenvolve. Ele impõe um certo realismo cotidiano, no qual o ator Depois, nunu fração de segundo, tudo pode mudar nõ tempo c no
A TOSTA «I I I T A
A » ARTIMANHAS 0 0 T âOIO

espaço. Basta que o ator pergunte: “ Há quantos séculos cheguei | estava escrevendo teatro para um espaço infinito cm um tempo
.
tqui? e J.ircmcis um giganosíco passo adiante O ator pode esr ir . indefinido .
^
cm Vénus, em seguida num supermercado, avançar e retroceder no
tos j unidade de lugar nem ã unidade
de tempo. O que prende
sujeb
Quando a ênfase está nas relações humanas, náo ficamos nos ¬

tempo, voltar a ser o narrador,partir de novo num foguete c assim


por diante, em poucos segundos, apenas com a ajuda de um míni¬ sa atenção è a interação entre uma pessoa e outra; o contexto
social, sempre presente na vida, náo é mostrado, mas sim estabele¬
¬

.
mo dc palavras Se estivermos num espaço livre, tudo isso ê possí¬
.
.
vel Todas as convenções são concebíveis, mas dependem da cido pelas outras personagens Se o tema da ação c o relaciona
mento entre uma mulher rica e um ladrão
, não é o ccnáno nem os
ausência dc formas rí gidas.
, ação em
Às experiências que fizemos nesta direção começaram nos anos adereços que criam esta relação, mas a própria história a
setenta, com o que chamamos The Carpet Show ( O espetáculo no .
si Ele c ladrão,ela è rica, chega um juiz a
: rela ção humana
. ,
entre a
sentido
tapete ). Em nossas viagens à Africa e a outras partes do mundo, só mulher, o ladr ão e o juiz cria o contexto O ccnáno no

levávamos conosco um pequeno tapete para delimitar nossa área essrncial da palavra, ê criado de um modo dinâmico c totaimente
.
de trabalho Foi assim que testamos as bases técnicas do teatro
.
livre pela interação das personagens A “ peça ” como um todo
,in ¬

cluindo o texto e suas implicações sociais e polí ticas, será uma


.
shakespeariano Descobrimos que o melhor modo de estudar Sha ¬ .
kespeare não era examinar reconstruções dc teatros elisabetanos, expressã o direta das tensões subjacentes
o ladrão
mas simplesmente fazer improvisações sobre um tapete. Percebe¬ Sc tivermos um cenário realista,com uma janela para
, para a dama rica
mos que era possí vel começar uma cena de pê, terminar sentados, entrar, um cofre para ser arrombado uma porta
...
abrir então o cinema pode fazer isso muito melhor ! Em condi ç ões
e ao levantar de novo nos vermos num outro país, em outra épo¬ nossas ativida ¬
.
ca, sem perder o nrmo da história Fan Shakespeare há cenas em que imitam a vida diária, o ritmo terá a flacidez de
o montador do
que duas pessoas caminham num espaço fechado e de repente es¬ des cotidianas mais elementarca,c c aí que intervém
fora todos os pedaços de
.
tão ao ar livre sem nenhuma mudança aparente Uma parte da ce¬
filme, usando sua tesoura para cortar
na c no interior, a outra c externa, sem qualquer indicação do pon¬
.
movimento que náo têm interesse O cineasta leva uma
vantagem
o cenário rea
. que o encenador teatral só conseguirá se abandonar
¬

to em que ocorre a transição


Vários especialistas em Shakespeare têm escrito volumes sobre
.
lista e assumir o palco nu Só então o teatro,an ser teatral
, voltará
que haja uma
este tema, geralmente levantando a quest ão do “ tempo duplo " . .
a viver Com isto, voltamos ao ponto de partida:para
c a vida tea ¬
diferença entre teatro c não- teatro, entre a vida diária
“Como é possível que este grande autor não tenha percebido seu tral, precisa haver uma compressão do tempo que é insepar
ável dc
erro, quando cm certo ponto do texto diz que uma ação durou três um vínculo for ¬
anos, em outro ponto um ano e meio,e na realidade durou apenas uma intensificação da energia. São ela que criam
*
.
tíssimo com o espectador E por isso que
na maioria das formas de
.
dois minutos ? ”, perguntam eles “ Como p<»de este autor inepto desempenha uma função
teatro dc rua e dc teatro popular a música
indicar, logo na primeira frase, que estamos ’dentro* e na frase .
Veja esta árvore’, o que implica estar ¬ essencial ao aumentar o ní vel de energia
seguinte escrever algo como ‘
mos numa floresta ? " Ê absolutamente óbvio que Shakespeare
.
O principio da música é o ritmo A simples presen
ça de uma
HORTA ADI ATA
AS ARTIMANHA S DO T é O I O

rata nos templos nunca perdem contato com a grandeza


do mito
pulsação ou “ batida ** já implica maior densidade da a ção e aguça ¬ -
mento do interesse. Depois surgem outros instrumentos para de¬ .
que estão fazendo reviver Têm um ouvido voltado para o seu mte


sempenhar funções cada ver mats sofisticados mas sempre rela ¬
.
cionadas com a a çã o. É preciso insistir neste ponto A m úsica no
.
rior e o outro para fora E o que devenaJijze todo ator
de: estar cm dois mundos ao mesmo tempo .
r dc verda ¬

.
teatro — como as formas populates sempre perceberam imuitiva - Isto c muito dif ícil e complexo, e nos leva ao segundo desafio
-

menre só existe em relação á energia do espetáculo. Não tem
qualquer conexãocõm as questões estilísticas referentes à compo¬
Mesmo que o ator, ao interpretar Hamlet ou o Rei l ear
atento às reações que o miro provoca nas áreas tnais rec
, esteja
ônditas de
sição musical tradicional, que evolui cm sucessivas escolas através sua psique, também deve estar totalmente envolvido com os outros
atores. No momento em que interpreta, uma parte dc sua
vitalida¬
.
dos séculos Qualquer instrumentista pode entender isto facilmen ¬
te, desde que tenha interesse cm acompanhar c desenvolver as de criativa deve estar voltada para seu interior. Como pode conse¬
guir uma interiorização 100% verdadeira sem deixar que
cia cor¬
.
energias de um ator Mas para um compositor é algo muito dif ícil
está dian ¬
.
de aceitar Nà o estou criticando os compositores, de modo algum, te, por um momento sequei; a relação com a pessoa que
te dc si ? E algo extremamente dif ícil, que desperta
uma tentação
apenas explicando que, ao longo dc muitos anos, constatamos que
.
os instrumentistas participantes das atividades do grupo desde o
início chegavam u uma forma musical intmumrntc relacionada ao
trabalho dos atores. Ê clato que um compositor pode dar contri¬

grandes atores c sobretudo cantores de ópera
sua reputação, toralmcntc absortos cm si mesmos apenas
do contracenar com seus parceiros. Não podemos
, e—.
quase irresist ível dc trapacear E comum vermos atores ã& vezes
,
conscientes de
fingin ¬
desqualific ar
buições magnificas, mas só sc reconhecer que deve se integrar à . Pelo
linguagem unificada do espetáculo, e n ão tentando encantar os este mergulho interior como simples vaidade ou narcisismo
profunda preocupa ção
ouvidos do espectador com uma linguagem pró pria e autónoma. contrá rio, pode ser consequência de urna
-
artí stica, que infehunente não chrga an ponto dc
incluir rotalmen
.
tc a outra pessoa Um Lear pode fingir que est
dc
á contracen
quem
ando
olha e escuta,
O teatro talve2 seja uma das artes mats dif íceis porque requer três ,
com sua Cordélia numa imitação perfeita
,
conexões que devem coexistiram perfeita harmonia: os v ínculos mas na verdade esti apenas tentando ser um profissional correto
do ator com sua vida interior, com seus colegas c com ixpú hlico . o que é muito difereute dc ser parte dc uma dupla
. -
envolvida
se a ser apenas o disci¬
na
Em pnmciro lugar, o ator tem que manter uma relaçã o profun ¬ criação conjunta dc um mundo Limitando
,
da c secreta com suas fontes mais íntimas de significaçã o. Os gran ¬ plinado colega dc cena, que se desliga quando não c sua vez ele
do
não poderá cumprir a principal obrigação ator
, que consiste cm
des contadores de histó rias que conheci nas casas de chi do impul
manter o equil íbrio entre o comportamento externo
c seus ¬
Afeganistã o c do Irà relembram os mitos ancestrais com muita ale¬ , exce¬
gria, mas também com profunda gravidade. A todo instante rela ¬ sos mats íntimos. Quase sempre ocorre algum desequil íbrio
to em momentos privilegiados, quando n ão há tensã
o nem subdi ¬
cionam se diretamente com seus ouvintes, não para agradá-los,
- , unida ¬
mas para partilhar com eles as qualidades de um texto sagrado. Na visões, e todo o elenco contracena como uma equipe com
India, os grandes contadores dc histórias que narram o Mahabha - de c pureza .
u
AS ARTIMANHAS 0 0 T É DIO A POSTA A l t B TA

No per íodo de ensaios c preciso cuidado para n ã o avançar com a plateia. É f á cil perguntar: “ Como?" Nã o existe uma receita
. -
dentais .unes do tempo Muitas vezes atores que se exibem emo- .
pronta O tríplice equil íbrio é uma noçã o que nos remete imcdia -
s cionalmente logo no iiucio perdem a capacidade dc descobrir rela ¬ .
tamenre a imagem do acrobata|»a corda bamha Klc sabe dos péfi -
.
ções autênticas entre si Na França, tive que insistir neste ponto gos, treina para conseguir super á - los, mas só vai alcan çar ou per -
por causa da press.» dc muiros atores em mergulhar dc imed í am no der o equilí brio a cada vez que pisar no arame .
-
prazer dc deivar sc arrastar pela emoçã o. Mesmo que o texto
tenha sido escrito para ser falado cm altos brados, geralmente é
melhor começ ar os ensaios no clima inais intimo possível, para O grande princ í pio que me onenra no trabalho, e ao qual sempre
não dissipar a energia No entanto, quando os atores estão acostu ¬ presto a maior aten çã o, c o t édio. Como um demó nio astuto, o
mados a começar amontoados cm torno dc um.» mesa, protegidos tédio pode aparecer no teatro a qualquer momento. Sempre a es¬
por cachecó is c xícaras dc caf é, c essencial, pelo contrá rio, liberar preita e voraz, cosruma atacar ao menor pretexto, infiltrando se -
a criatividade corporal através Jo movimento e da improvisação. .
sorratetramente num » a çã o, num gesto ou numa frase. 1’ara cn -
/0 A fim de ficarmos suficientemente livres para sentir uma relaçã o, -
frcnti lo, temos que acionar a capacidade mata de aborrecimento
.
em geral c ú til acrescentar ao texto outras palavras, outros movi¬ -
que todos os seres humanos possuem e usá la como critério E im ¬
mentos. Mas tudo isto, evidentemente, é uma etapa provisó ria, pressionante: quando digo a mim tnesmo, durante um ensaio ou
servindo apenas para chegarmos à quela meta tã o dif ícil e fugidia: exercício, “ Estou chateado, logo, deve haver um motivo ” , fico
I
- desesperado para descobrir o porquê. Ai, dou uma sacudidela c
mantermo nos em contato com nosso conte údo interior e ao mes¬
mo tempo falarmos cm voz alta. Como se consegue lazer com que
essa expressão í ntima cresça até preencher um amplo espa ç o, sem
traiçã o ? Como se eleva o tom da voz sem distorcer a rela ção ? t
surge uma nova ideia
. —que sacode outra pessoa, que mc sacode
dc volta O tédio, quando aparece, é como um sinal de alarme.
É claro que cada um tem um quociente pró prio dc aborreci
extremamente dificiJ: eis a í o paradoxo da interpretação. mento. O que precisamos desenvolver, porem, nada tem a ver com
Como se não bastassem os dois desafios dific ílimos que men ¬ .
a impaciê ncia ou com um baixo nivcl de atençã o O abocrectmen -
cionei, devemos agora examinar o terceiro requisito. Os dois aro- to a que mc refiro c a sensaçã o de desinteresse pela açã o que trans
¬

res que estão em cena devem ser simultaneamente personagens e corre ã nossa frente.
/
ip* contadores de histórias. Contadores m últiplos, de vá rias cabeças, Ha muitos anos, em nosso Centro cm 1’anv, criamos uma tra ¬

pois ao mesmo tempo que interpretam uma reia çã o íntima entre si, diçã o que se tornou important í ssima para nós. Quando chegamos
est ã o falando direiamentc aos espectadores. Lear c Cordelia n ã o a cerca dc dois tetços do periodn de ensaios, sa í mos c apresenta ¬
apenas contracenam do modo mais autentico possível como rei c mos publicamente o trabalho tal como esta, inacabado , t icr.ilmen ¬
filha , mas també m , como bons atores, devem sentir que estã o te, vamos a uma escola e representamos para uma plateia de crian ¬
envolvendo o pú blico . .
ças sem aviso pré vio; nu maioria dos casos, elas ná n conhecem a
Assim, o ator é permanentemente obrigado a lutar para desco¬ peça. nem são informadas anres do que se trata . N ã o levamos
brir e manter esta tríplice rela ção: comigo próprio, com o outro e objetos de cena nem figurinos, nã o utilizamos recursos de encena -
DO TIOIO A PORTA ASIRTA

ção, apenas improvisamos com os objetos que estiverem à mio no mule e eleve seu grau dc interesse. Esta é a base da vitalidade do
v “ espa ço vazio” da sala de aula. teatro comercial, mas o grande desafio surge quando a meta não é
Nio se pode fazer isso no inicio dos ensaios: todos ainda estão fazer sucesso e stm revelar significados profundos sem tentar agra ¬
muito inseguros, bloqueados c despreparados
mente normal
— , mas quando já fizemos boa
—o que c absoluta-
parte do trabalho
temos condições de testar o que descobrimos para vrr onde con¬
,
dar a todo custo.
Num palco italiano, quando nunca houve platéla presente aos
ensaios, na noite em que a coruna sobe pela primeira vez n o
ã se
pode contar com uma rela çã o preestabelecida entre o p ú blico eo
seguimos despertar o interesse dos outros e onde só causamos
tédio. Nã o há critico melhor do que um publico de crianças: elas grupo que está no palco apresentando a hist ria ó . _
Muitas vezes ,o
-
não t ém ideias preconcebidas, interessam se de imediato ou se _
espetáculo começa num deicrmiiiadq íiUHO» c tLpública est á cm
aborrecem na hora, e quando não são envolvidas pelos atores o u t r o . Quando uma | i u u i t r dr e s t r e i a , pode - se
"
ficam impacientes. constatar que os atores t ém um ritmo que cada espectador tem seu
,
Diante do pú blico normal, o melhor barómetro é o n ível do próprio ritmo c que todos esses movimentos discrepantes nunca se
silêncio. Quando se escuta com atenção, pode-se saber tudo sobre harmonizam entre SJ .
um espetá culo com base no grau dejúlcncio que ele cria . Há mo¬ .
Por outro lado nos espetá culos em cidades pequenas, basta a
mentos em que determinada emoçã o percorre a plateia c a qualida ¬ primeira batida dc bumbo para que m úsicos, atores c espectadores
.
de do silêncio se transforma Depois de alguns segundos pode-se passem a compartilhar do mesmo mundo, pulsando cm un íssono.
estar num silêncio completa men te diferente e assim por diante, pas¬ O primeiro movimento, o primeiro gesto |á cstahelece a rela çã o, e
sando de um momento de grande intensidade para outro menos da í por diante a história transcorre num ritmo comum . Estivemos
intenso, em que o silêncio será inevitavelmente mais tênue. Alguém muitas vezes nesta situação, nã o só durante nossas experiências na
vai tossir ou se mexer na poltrona c o t édio, á medida que se espa ¬ Africa, mas também quando nos apresentamos cm ccouus comu ¬
lha, expressa -se por meio dc pequenos ruídos, de alguém que muda nitá rios, quadra* de esportes e outros espaçoa. Ê uma prova cabal
de posição fazendo as mulas do assento rangerem e as dobradiças da necessidade de se estabelecer uma relação, da qual depende a
chiarem ou, pior ainda, do som de mã os folheando o programa
Nunca sc deve presumir, portanto, que aquilo que se faz é
automaticamente interessante, nem jamais redamar que o pú blico
. estrutura í
tendemos melhor por que uma peça em arena ou em qualquer

rtmica do espetáculo. Consciente* desie princí pio, en ¬
espaço diverso do palco italiano, com o publico rodeando os ato
¬

c ruim. Ê verdade que existem, às ve2es, plateias muito ruins, mas


nã o irmos o direito de reclamar, pelo simples iato de que nupea

res geralmenrc possui uma naturalidade e uma vitalidade muito
superiores às condições oferecida» por palcos frontais semelhantes
.
devemos esperar que o pú blico seja bom. Existem apenas plateias a molduras de quadros
tnais fá ceis e outras menos fáceis; nossa tarefa c fazer com que
.
toda plateia seja boa (Jm p ú blico fácil é uma bê nção dos céus, mas
o pú blico difícil não é um inimigo. Pelo contrário, o pú blico é Os motivos que levam à encenaçã o de uma peça costumam ser
resistente por natureza, e devemos procurar sempre algo que esti - obscuros. Justificamos dizendo: “ Escolhemos esta peça porque
*1 A R T I M A N H A * 0 0 T É OIO A PORTA AR I r A

nosso gosto, ou nossos ideais, ou nossos valores culturais exigem ser representadas na clandestinidade cm trezentas ou quatrocentas
.
que montemos peças deste tipo " Mas por que razão? Sc não res¬ -
vilas. A peça a que íamos assistir chamava se Hossem, mas não
pondermos a esta questão básica, surgirão milhares de razões sub¬ sabíamos nada sobre cia: a ideia dc um drama islâmico, alem de
sidiá rias: o diretor quer revelar sua concepção da peça, há uma não sugerir coisa alguma, fazia -nos lembrar vagamente, com certa
experiência de estilo a ser demonstrada, uma teoria pol ítica a ser desconfiança, que os países árabes não tem teatro tradicional por¬
ilustrada... Milhares de explica ções concebíveis, mas secundá rias que a representação da forma humana c proibida pelo Alcorã o.
cm relação ao ponto fundamental! o tema conseguirá atingir uma Sabíamos que até as paredes das mesquitas são decoradas com
inquietação ou uma necessidade essencial do p ú blico? mosaicos e inscrições caligrá ficas cm lugar das enormes cabeças e
O teatro pol ítico, quando não é feito para os já convertidos, olhos inquisitivos da cristandade.
freq úentemente tropeça neste obst áculo; mas não há melhor exem ¬ O m úsico sentado aos pés da árvore começou a bater um rit¬
plo do que um espetáculo tradicional retirado de seu contexto . mo insistente no tambor e um dos aldeões dirigiu -se ao centro do
Quando visitei o Irá pela primeira vez, em 1970, assisti a um .
círculo Calçava botas dc borracha e tinha uma bela expressão de
tipo de teatro extremamente forte chamado Ta’awch. Nosso grupi - coragem . Trazia sobre os ombros um pano de um verde vivo, a cor
nho de amigos havia percorrido um longo trajeto através do Irá, sagrada, a cor da terra fé rtil, que indicava, como nos disseram, que
indo de avião ate Mashhad, depois de tixi, embrenhando-se pelas .
de era um homem santo Começou a cantar uma longa frase meló¬
amplidões ondulada» da zona rural, abandonando a única estrada dica composta de pouquíssimas notas, num padrão que se repetia
principal e descendo por uma trilha lamacenta só para ter a opor ¬ continuamente, com palavras que não pod íamos entender mas
tunidade, que pareda imprová vel, de assistir a um espetáculo tea ¬ cujo sentido se tornou imediaiomcntc claro pelo som que vinha
tral. De repente, está vamm dunce da muralha cor dc terra que cer ¬ das entranhas do cantor. Sua emoção não lhe pertencia, não era
cava n vilarejo, onde duzentos ou trezentos aldeões estavam em .
sua Era como se ouv íssemos a voz de seu pai, e a do pai dc seu pai,
circulo junto a uma á rvore. De pé ou sentados sob o sol escaldan ¬
.
te formavam um anel humano tão integrado que nós, os cinco
forasteiros, fomos totalmente incorporados em sua unidade. Ha ¬
via homens c mulheres com trajes tradicionais, jovens usando

de todos os antepassados. Ele permanecia dc pé, pernas afastadas,
poderoso, rotalmcntc compenetrado dc sua função era a encar ¬
nação daquela figura que em nosso teatro é sempre a mats indefi ¬
n í vel: o herói. Havia muito tempo que cu duvidava da possibilida ¬
team apoiados cm suas bicicletas e crianças por toda parte. de de representar heróis: para nó», os heróis, como todos os perso¬
Sua atitude era dc grande cxpcctuuva, porque sabiam tudo o
que ia ocorrer, nos m ínimos detalhes; nós, que não sabíamos de
-
nagens bonzinhos, costumam tomar se pálidos c sentimentais, ou
monocórdios e ridículos, c só quando no» deparamos com os
nada, é ramos uma espécie dc plateia ideal. Só havíamos sido in¬ vilões é que começa a surgir algo interessante. Enquanto pensava
formados de que o Ta’azieb é a forma islâ mica dos “ mistérios" nisso tudo, outra personagem, agora envolta em um pano verme¬
medievais, c que havia muitas peças deste gênero, tratando do lho, entrou no círculo. A tensã o foi imediata: tinhj chegado o ban ¬
martírio dos doze primeiros imãs seguidores do profeta. Embora dido. Ele não cantou, não tinha direito a melodia, limitou-se a de¬
proibidas pelo xa durante muitos anos, essas peças continuaram a clamar num tom forte e áspero: iniciava-se o drama.
A S A R T I M A N H A S D O T É 0 1O A PORTA AR ( AT A

A trama ficou clara: por ora, o imã estava a salvo, mas tinha forte que não poderíamos romper o circuito, c assim nos vimos na
que viajar para mais longe. No percurso, teria que atravessar as posição privilegiada dc observadores no âmago de um evento dc
terras de seus inimigos, que já estavam preparando urna embosca ¬ uma cultura estrangeira, sem provocar nenhum transtorno ou dis ¬

da. Enquanto estes urravam c berravam suas intenções maléficas, tor ção. O circulo funcionava de acordo com algumas leis básicas,

o pavor e o desalento se alastravam entre os espectadores. e um fenómeno autentico ocorria diante dc nossos olhos: a “ repre ¬

Evidcntcmcnte, todos sabiam que o imã seguiria sua viagem e sentação teatral ". Um fato do passado longínquo estava em pro¬
seria morto, mas no inicio parecia que naquele dia, dc algum mo ¬ cesso de “ re- presentaçáo ", dc sc tornar novamente presente; o pas¬
do, ele talvez pudesse escapar ao destino. Seus amigos insistiram sado estava acontecendo aqui c neste momento, a decisão do herói
com ele para que não viajasse. Seus filhos, dois garotinhos cantan¬ era para este momento, sua angústia era por este momento c as
do cm uníssono, entraram no círculo muito aflitos e imploraram lágrimas da plateia eram por este mesmo momento. Não era uma
para que não saísse. O mártir sabia do destino que o aguardava. descrição ou ilustração do passado, o tempo havia sido abolido. A
Olhou para os filhos, cantou algumas palavras pungentes dc des ¬ aldeia participava diretameme, campleumenie, aqui e agora, da
pedida, apenou-os contra o peito e partiu em passadas largas, com morte real dc uma personagem real que havia morndo há milhares
as largas botas de fazendeiro cruzando o chão com firmeza. Os dc anos. A história havia sido lida para eles muitas vezes, traduzi¬
garotos permaneceram de pé, lábios trémulos, vendo o pai afastar- da cm palavras, mos somente a forma teatral poderia realizar a
se. De súbito, não podendo conter-sc, dispararam atrás dele, lan ¬ façanha de tomá- la parte de uma experiência viva.
çando-se no chio, a seus pés. Repetiram mais uma vez sua suplica Isto só é possível quandunào sc pretende que determinada coi¬
com a mesma frase musical aguda. Mais uma vez ele respondeu sa seja mais do que é, quando não há um pcrfecciorusmo inútil.
com seu canto de adeus, abraçou-os mais uma vez, partiu mais Sob certo ponto de vista, o perfeccionismo pode ser considerado
.
uma vez mais uma vez eles hesitaram, e então correram atrás dele, como homenagem e devoção — o homem tentando reverenciar um
mais dcscspcradamcntc ainda, para se atirarem mais uma vez a ideal, que o faz levar sua perícia c arte até o limite. Sob outro pon¬
seus pés, enquanto repetiam a mesma melodia mais uma vez... to dc vista, pode- se considerá-lo como a queda dc ícaro, que ten¬
Mais uma vez, mais uma vez, de um lado a outro do círculo, a cena tou voar acima de suas possibilidades c chegar aos deuses. No
sc repetia, idêntica. Lá peta sexta vez, percebi um murmúrio aba ¬ TaVandl» cm termos de teatro, n.io sc tenta lazer nada excepcional-
fado ao meu redor, e desviando meus olhos da ação por um mente bem: a interpretação nã o requer caracterizações deinisiada-
momento vi lábios trémulos, mãos e lenços tapando as bocas, ros ¬ mente precisas, detalhadas ou realistas. A tendência dç embelezar
tos contorcidos em paroxismos de dot, e então os velhos e velhas, c substituída por outro crucrio; a necessidade dc encontrar o ver ¬
depois as crianças e finalmente os jovens das bicicletas, todos, dadeiro eco interior. Não sc trata, é claro, dc uma atitude intelec ¬

começaram a soluçar copiosamcntc. tual ou conscicntcmemc deliberada, mas no som das vozes distin¬
Somente o nosso grupinho de estrangeiros permaneceu de guia- se a inconfundí vel ressonância dc uma grande tradição. O
olhos secos, mas fclizmcntc éramos tão poucos que nossa falta de segredo era evidente. Na base dessa manifestação estava um modo
participação não chegou a atrapalhar. A carga de energia era tio de vida, uma existência que deitava raízes na religião, onipresente .
AS AHTIMAMMAS 0 0 TtOlO A f O H f A A lí fiTA

impregnando tudo. O que na religiã o é gcralmcnte abstra ção, dog¬ interesse real, c que não .
lhes acrescentou nada Não perceberam
-
ma ou crença, romava sc all a própna realidade da fé dos aldeões. I ,
nada porque a coisa foi apresentada como "culrura", e no final as
O eco interior não provem da fc: a fc c que desponta dentro do eco autoridades sorriram e todos seguiram-nas alegremente em dire¬
-
ifltprior .
çã o ao buf ê
Um ano depois, quando o xá tentava vender ao exterior uma O espetá culo ficou totalmente “ aburguesado", mas o que nele
-
bela imagem liberal de seu pais, decidiu se apresentar o Ta’azieh .
havia dc ma ís luguhrc, insuportá vel c fatal era a plateia A grande
.
ao mundo no Festival Internacional das Arres em Shiraz Obvia - tragédia das atividades culturais oficiais foi exemplarmcnte sinte¬
mente, este primeiro Ta’azieh internacional teria que ser o melhor .
tizada naquela noite Não c so um problema da Pé rsia, o mesmo
de todos os Ta'aziehs. Enviaram observadores aos quatro cantos -
acontece em toda pane onde entidades bem intencionadas c pater¬
.
do pa ís para escolher os melhores elementos Assim, reuniram ato¬ nalistas tentam, de cima para baixo, preservar uma cultura local e
res c m úsicos de aldeias muito distantes e levaram-nos para Teerã, - .
difundi la pdo resto do mundo É a prova cabal dc que o elemen ¬
onde foram cspccialmcntc vestidos e paramentados por ftgurinis - to mats vital e menos considerado do processo teatral é o público.
tas, ensaiados por um diretor profissional, treinados por um maes¬ Isto porque o significado do Ta’azieh não provém do p ú blico pre¬
tro c finalmcntc despachados num ònihus para se apresentarem sente ao espet áculo, mas do modo dc vida desse p úblico Um .
em Shiraz. Ai, na presença da rainha c de quinhentos convidados modo dc vida imbuído dc uma religião que ensina que Aiá é tudo
internacionais do festival em train de gala e totalmente indiferen ¬
tes ao conte ú do sagrado da obra, pela primeira vez na vida os

c está em tudo c esta a base que sustenta a existência cotidiana,
o sentimento religioso que impregna tudo. Por isso as preces diá ¬
aldeões foram postos num palco frontal, sob a luz ofuscante dos rias e o espetáculo anual são apenas formas diversas do mesmo
refletores, que mal deixava que percebessem a plateia dc coluná ¬ fato. Dcstj unidade essencial pode surgir um evento teatral total-
. .
veis Lspcrava -sc que eles “ dessem conta do recado" As botas de mente coerente e necessá rio; mas o tutor que d á vida ao evento è o
borracha, usadas com unta elegâ ncia pelo comerciante da aldeia,
haviam sido substituídas por botas de couro, um iluminador havia
.
publico Como vitnos, a plateia pode absorver pessoas estranha»,
desde que numa proporção minima cm relação ã massa do* espec ¬
preparado efeitos dc luz. os objetos de cena improvisados haviam .
tadores Quando a n .uiirr /.. r ,i motivaçã o do pú blico mudam, a
sido trocados por ourros bcm-fcí tos, mas ninguém havia parado
^
oeca perde totalmcntc seu significado 1 . 1 .
para perguntar qual o "recado" que esperavam deles. E por quê? O mesmo fenômeno ocorreu em Londres durante o Festival da
Para quem ? Perguntas que nunca foram feitas, porque ninguém es¬ índia, com o Chauu de Bengala que mencionei antes. Na India a
tava interessado nas respostas. Então soaram as longas trombetas, peça c apresentada à noite, com m úsica, ru ídos, assobios fantásti ¬
o$ tambores rufaram, c tudo era absolutamente sem sentido. cos, c as crianças da vila empunhando archotes para iluminar o
Os espectadores, que esperavam assistir a uma graciosa exibi ¬ espet á culo. O vilare|o fica a noite toda num estado de excitação
çã o dc folclore, ficaram encantados. Não perceberam que haviam ível, as pessoas dão saltos, há uma grande sequência acrobá tt
incr -
sido enganados, nem que aquilo que viram não era um Ta’azieh. ' ca cm que cruzam o ar sobre as cabeças das crianças e elas gritam
Era uma coisa muito vulgar, meio tola, desprovida de qualquer .
assustadas, e assim por diante No entanto, foram apresentar o
AS AMtIMAIHIAt 0 0 Tf 0 IO A POSTA AHATA

Chauu no Teatro Riverside, um bom espaço, mas na hora do chã plástico, que ela carrega nos braços de um jeito especial, c uma lin ¬
da tarde, para uma plateia composta por cerca de cinquenta da criança. É preciso ser uma atriz de alto nível para realizar esta
-
senhoras e cavalheiros idosos, assinantes de revistas nnglo india - alquimia, na qual uma pane do cérebro vê a garrafa e a outra par ¬
.
nas, interessados pelas coisas do Oriente. Educadameute, eles te, sem contradição, sem tensão, mas com alegria, vê o bebe a mãe
assistiram ao espetáculo que havia acabado de chegar a Londres segurando o filho c a natureza sagrada de sua rela çã o. Esta alqui ¬
via Calcutá. Embora neste caso nã o tenha havido uma tentativa de mia só é possível se o objeto for tã o neutro c comum que possa
incrementar a produ çã o, nem a contrataçã o dc um diretor, e os refletir a imagem que o ator lhe atribui. Poder íamos chamá lo de -
•‘obicco vazio".
atores fizessem exatamente o mesmo que faziam em seu vilarejo, o
espirito estava ausente, só havia restado um espetáculo, um espe¬ O que nosso grupo do Centro Internacional tem procurado ao
táculo sem nada a dizer. longo dos anos sã o os meios de determinar qual destes dois metodos
corresponde melhor às exigê ncias dc cada tema. Quando apresenta ¬
.
mos Ubu Ret a farsa aná rquica c sat írica de Jarry, sua forma, ate
Isto nos leva a uma escolha que sempre permanece em aberto Sc . mesmo cm nosso reatro dc Pans provinha dc uma energia desen ¬
quisermos tocar profuudamcntc u espectador, e com. sua ajuda freada e de improvisa ções livres. Decidimos excursionar pela
desvelar um mundo que está ligado ao seu próprio mundo, mas França, utilizando espaços que nada tinham dc “ má gicos", c nos
que também o toma mais rico, mais amplo, rrnis misterioso do deparamos com uma série de salões dc colégios, giná sios c quadras
que aquele que vemos todo dig, jJiipomos dc dois métodos. .
de esporte, cada qual mais feio e inóspito que o anterior Era um
O primeiro consiste na busca da beleza. Grande parte do tea - desafio excitante para os atores transformar momentaneamente
tro oriental haseia -se neste principio. Para fascinar a imaginação, -
jquclcs lugares pouco convidativos e torná los resplandecentes de

os exemplos do kabukt no Japão ou do kathakah na índia ; a im ¬


-
procura -sc extrair o má ximo de beleza de cada elemento. Vejam sc —
vida; por Uso, a chave desse trabalho era a “ rudeza" agarrar a
feiura com ambas as mã os. Foi unva opção adequada para este pro -
portâ ncia da maquiagem, a perfeiçã o dos menores adereços de - jeto especifico, mas n ã o pode ser aplicada a todas as peças nem a
.
vcm-sc a razões que superam o mero cstcricismo Ê como se atra ¬ todas as condições. Quando se consegue uma transformaçã o,
vés da pureza dos detalhes se tentasse atingir o sagrado. No cená ¬ poré m, a impureza surge como o maior trof éu <fo teatro; â iculã tfo,
rio, na m úsica e nos figurinos, tudo c feito de modo a refletir um a devoçã o pela pureza parece dcpíoravclmcnte ingénua .
.
outro nivcl da existência O mais simples gesto é estudado para se Os verdadeiros problemas muitas vezes se expressam por meio
eliminar tudo o que possa conter de banal e vulgar. -
dc paradoxos, e é impossível resolvê lo». Deve-sc encontrar um
O segundo método, diametralmente oposto, parte do principio equil í brio entre aquilo que tenta ser puro c aquilo que se torna
de que o ator possui um extraordinário potencial para criar v íncu ¬ puro através de sua rela ção cum o Impuro. Assim, podc-sc consta ¬
los entre a sua imaginaçã o e a do pú blico, fazendo com que um tar at é que ponto é inviá vel a existência dc um teatro idealista que
objeto banal possa transformar-se num objeto mágico. Uma gran ¬ teuna em permanecer à margem da rude textura deste mundo. No
de atriz pode fazer- nos acreditar que uma horrenda garrafa de teatro, o puruj>o pude ser expresso através de algo cuja natureza é
>- «1 A K t i M A N H A t 0 0 T ( 0 ) O
A AORTA ASINTA

rias. Convidamos um ator baiinés, Tapa Suciaria , para trabalhar


essenculiticmc impura. Devemos lembrar que o teatro c feito .por
conosco No primeiro du ele nos demonstrou como se trabalha
.
pessoa % e apresentado por pessoas por meio dos ú nicos instruroen - com a máscara, como cada personagem possui uma serie muito
tos de qw < - iJivpiH- m : iiv \cres humanos. Portanto, a forma c. por
precisa de movimentos determinados pela máscara e atualmentc
sua própria natureza, uma mistura cutnposta por elementos puros .
fixados pela tradição Os atores observaram com interesse e res
¬

c impuros. Este misterioso casamento está na base de toda expe¬ capaz de fazer
peito, mas logo perceberam que nenhum deles seria
riência autê ntica, na qual o homem concreto e o homem m ítico
podem ser captados conjunramenre, no mesmo instante do tempo.
.
o que Tapa havia mostrado Ele usava a máscara como na tradi
ção
ásse ¬
balinesa, com base cm rituais milenares. Seria ridículo se tent
/ t k ,
mos ser o quo não éramos, hnalmente perguntamos a ele n que
•r
poderíamos fazet
Em O teatros seu espaço escrevi que toda forma, uma ezinada, é o mo
^
já esta moribunda. E dif ícil explicar o que isto significa, por isso “ Para o$ balmcscs, o que verdadciramcntc importao era uma
, respondeu . J á n ã
mento cm que sc coloca a mascara "
vou tentar dar exemplos concretos. , dado essencial “.Pegamos a máscara
indica çã o estil í stica mas um
í No primeiro encontro que tive com nosso ator japonês Yoshi sua
Otda, em 1968, ele me disse: “ No Japã o, fui educado no teatro nó, e ficamos olhando para ela por muito tempo, até sentirmos
face com tanta força que possamos começar a respirar com ela

tive um mestre de nó. Trabalhei com o bunraku e o nó, mas sinto " A. partir da í, cada
só neste momento que a colocamos no rosto
que essa magnífica forma |á nã o está rcalmcnte cm contato com a máscara,
um dc nós tentou encontrar sua pró pria relação com a
vida atual. Sc ficar no Japã o, não vou conseguir encontrar a solu ¬
observando c sentindo sua natureza específica. Foi uma expcri
èn
ção deste problema. Tenho um grande respeito pelo que aprendi,
cia surpreendente perceber que, para além dos gestos codificados
.
mas também preciso conhecer outras coisas Vim para a Europa na
da tradi çã o balinesa , havia milhares dc formas e movimentos
esperança de encontrar um meio de me desvencilhar dessa forma dc
novos que correspondiam á vida da m áscara. Tudo isso estava
que, embora magnifica, já não tem significado suficiente para nós
rcpcme ao nosso alcance, porque nã o passava pelos codigos
imu ¬
ho|e cm du». Deve existir outra forma " . .
tá veis da tradição Em outras palavras : a forma havia sido rompi ¬
Era uma conclusã o tão profundamente arraigada em seu ínti ¬
mo que mudou a forma de sua vida: uma forma magnifica nã o é .
da e uma nova torma havia surgido de modo espont â neo c natu ¬

ral, como uma fénix a partir das cinzas.


necessariamente o veiculo apropriado para transmitir uma expe¬
. Posso dar um terceiro exemplo: a primeira vez que assisti a
riência de vida quando o contexto histórico se modifica , numa escola dc teatro da
uina demonstração de dança katlhikali
O segundo exemplo é de uma experiência que tive durante A
California A demonstra çã o divídia-sc cm duas partes Na primei
. . ¬
.
confereneta dos pássaros Sempre detestei máscaras, que para mim .
ra o dançarino estava catjctcrizado com indumentá ria e maquia -
são intrinsecamente f ú nebre». No entanto, para esta peça era inte ¬
ressante reavaliar a questã o, c encontramos unt conjunto de mis - .
gcm apresentando uma dança katkjkali tradicional como um
.
Era
ver ¬
dadeiro espetáculo, com m úsica gravada c tudo o mais muito
caras balincsas muito próximas das fciçòcs humanas, nus imla - ,o
bonito, muito exótico. Quando voltamos depois do intervalo
grutamente livres de associações mórbidas com máscaras mortuá ¬
I 00 TtOIO A PORTA AMATA

atur .
havia tirado a maquiagem Vestido com jeans c unu camise¬ Quando começamos a ensaiar uma peça, é inevitável que de
.
ta começou a explicar algumas coisas. Para tomar as explicações
, início cia não tenha forma; são apenas ideias ou palavras no papel
mais vivas, fazia demonstrações, representava as personagens,mas O espetáculo consiste em dar forma a uma forma. O que chama
¬

sem a obrigação de reproduzir exatamente os gestos tradicionais . mos de “ trabalho" c a busca da forma adequada . Sc a peç a fizer
Esta nova forma mais simples e humana de imediato revelou- se sucesso, o resultado pode cvcntualmentc durar alguns anos, não
infmitamentc mais eloquente do que a tradicional . .
muito mais Quando fizemos nossa própria vcrsãci de Carmen .
Em termos gerais, podemos concluir que ttadifão, no sentido demos à obra uma forma cornpletamente nova que durou quatro
.
que damos á palavra, significa "imutabilidade” É uma forma imu ¬
.
ou emeo anos até sentirmos que havia atingido seu Umire A forma
tá vel, mais ou menos obsoleta, reproduzida por automatismo. já não possuía a mesma energia: simplesmente, seu tempo havia s
ç

Existem raras exceções, como no caso cm que a qualidade da mti-


^
esgotado .
ga forma é tão extraordinária que ainda hoje preserva sua vitalida É por isso que não se deve confundir a forma virtual com a for ¬
de, como certas pessoas muito velhas que permanecem inert vclrnen
¬

.
ma realizada A forma realizada é o que chamamos dc espetáculo .
tc vivas e comoventes. Nb entanto» toda forma é mortal, Não há Sua forma externa provem de todos os elementos presentes cm seu
forma,inclusive a nossa,que não esteja sujeita à lei fundamental do .
nascimento Sc a mesma peça fosse encenada hoie cm Pari», ein
.
universo: a lei do desaparecimento Toda religião, todo conheci ¬ Bucareste ou cm Bagdá, tena formas muito diferentes. O local, o
mento, toda tradiçã o, toda sabedoria supõem nascimento c morte . contexto social e polí tico, o pensamento e a cultura dominantes
blico
Nascimento é assumir uma forma, quer se trate de um ser têm que influir na criação de uma ponte entre o tema e o pú
.
humano ou de uma frase, palavra ou gesto E o que na índia se na determinação do que afeta as pessoas.
.
chama sphota Este antigo conceito hindu c notável porque seu As vezes mc perguntam qual e a relação entre A tempestade
. .
sigmficadu | í está lio jn ópi io MJIII da palavra Entre u que não está que dirigi trinta anos atra i cm Straiford-upon- Avon « a que mon
.
¬

manifesto c o já manifesto existe um turbilhão dc energias infor ¬ ,


tei recentemente no teatro Bouffes du Nord em Paris A pergunta
mes, c em certos momentos há uma espécie de explosão que cor e absoluramente ridícula! Como seria possí vel haver a menor
responde a este termo: “ Sphota!" Esta forma pode denominar-se semelhança formal entre unu peça encenada cm outra época, em
.
“ encarnação” Alguns insetos duram apenas um dia, outros ani¬ outro pais, com atores que eram todos da mesma raç a e
, a versão
mais vários anos, os seres humanos vivem mais e os elefantes mais atual criada cm Pari» com um elenco internacional , dois japoneses,
.
ainda Todos rem os seus ciclos,c o mesmo ocorre com as ideias ou .
ura iraniano, africanos, etc, que rrazem ao texto visões tão dife¬

com as memórias . rentes c que compartilharam de tantas e t ão diversas experiências


?
.
Todos nós temos memórias, que são formas Algumas dessas A forma nã o precisa ser inventada exclusivamcutc pelo diretor,
formas de memória, como "Onde estacionei meu carro? ", rara - .
é uma sphota dc v ários componentes Essa syhota c como uma
.
mente duram mais que um dia Quando você vé uma peç a idiota pl.int.i que brou c lluresst, Jura certo tempo, murcha c depois
ou um filme rolo, no dia seguinte já nem lembra sobre o que eram . cede lugar a outra planta, Volto a insistir neste ponto porque há
Mas existem também outras formas que duram muito mais tempo um grande equivoco que trcqúcntcmcntc bloqueia o trabalho tea -
AS A « TIMANHAS DO TtOtO t

trai: a crença de que aquilo que o autor de uma peça ou composi¬ vida, defronta -sc com as regras, e é aí que o impulso *c integra a
tor de uma ópera um dia escreveu no papd é uma forma sagrada. uma estrutura dc palavras. Ao ser impressa , a forma *c converte
Esquecemos que o autor, quando escreve o diálogo, está expres¬ em livro. No caso de um poeta ou romancista c o bastante. Mas
sando movimentos ocultos que estã o profundamente imersos na para o teatro é apenas a metade do caminho. O que está escrito e
natureza humana; e quando escreve as rubricas está sugerindo téc ¬ impresso ainda n ão tem forma cénica. Sempre que achamos que
nicas de produção baseadas nos teatros de sua cpoca. É fundamen¬ “ essas palavras têm que ser pronunciadas dc determinado modo,
tal ler nas entrelinhas. Quando Tchekov descreve um interior ou .
têm que ter determinado tom ou ritmo ..", infclizmcme, ou talvez
exterior com muitos detalhes, o que est á dizendo na verdade é: fclizmcnte, cometemos um grande erro. Ca ímos no que há dc mais
“ Quero que pareça real." Após sua morte surgiu uma nova forma terrível na tradiçã o, no pior sentido da palavra. Uma infinidade de

— —
de teatro a arena circular que Tchclcov nunca chegou a co¬
nhecer. Desde então, muitas produções já demonstraram que as
relações tridimensionais e cinemáticas dos atores com um minimo
formas inesperadas pode surgir a partir dos mesmos elementos, e a
tendência natural dc recusar o inesperado leva inevitavelmente à
redução desse universo potencial.
de mobiliá rio c acessórios num palco vazio parecem ínfinitamenre Chegamos assim ao â mago da questão; na vida, nada existe
mai» reais, tio sentido tchekoviano, do que os abarrotados cenᬠsem forma. A todo instante, cspecialmcntc quando falamos, somos
rios frontais do palco italiano. forçados a procurar a fomta. Mas devemos ter em mente que essa
Omsuiamos também neste ponto o grande equivoco a respeito forma pode ser um obstáculo total à vida, que não tem forma em
-
dc Shakespeare. Há muiros anos costumava se afirmar que era pre¬ .
si mesma Não há como escapar desta dificuldade, e a batalha é
ciso “ representar a obra tal como Shakespeare a escreveu ". Hoje em permanente; a forma é necessária, porem não é rudo .
dia muitos já reconhecem o absurdo dessa afirmação; ningué m sabe Diante desta dificuldade, não adianta adotar uma atitude pu ¬
. .
qual a forma cênica que ele imlt i cm incute Sabemos apenas que ele rista e esperar que a forma perfeita u u do céu, pois nesse c a s o
escreveu uma sucessão de palavras que contém em vi mesmas a pos¬ nunca far íamos coisa alguma. Seria uma atitude est ú pida. E assim
sibilidade de gerar formas constantemente renováveis. Não há limi ¬ voltamos ã questão da pureza e da impureza. A forma pura não cai
ts para i form is virtu i - propina num grande ccxw. Um texto do céu. O processo de dar forma c sempre um compromisso que
mediocre so pode gerar poucas formas ao passo que um grande tex¬ temos que aceitar, dizendo ao mcsmQ tempo: I provisó ria, tem

to, uma grande obra musical , a partitura dc uma grande ópera sã o -


_ ser renovada.” Trata se dc uma dmá micaquc nunca terá firo
que .
.
verdadeiros n úcleos de energia Tal como a eletricidade e todas as Quando começamos a trabalhar em Carmen, só concordá va ¬
demais fontes de enctgia, a energia em si mesma nã o texn forma, mas mos num pomo: hoje, Bizet não lhe teria dado necessariamente a
tem dirccã o c potência. .
mesma forma Achá vamos que a situa ção de Bizct se assemelhava
Todo texto tem uma estrutura, mas nenhum poeta de verdade à de uin roteirista contemporâ neo, contratado por um grande
pensa cobre ela a prinri. Mesmo que esteja imbu ído dc algumas est údio dc Hollywood para fazer um filme cpico baseado numa
-
regra », uiti impulso irresist ível força o a dar sida a determinados .
hist ó ria bel íssima . O roteirista , conhecendo as regras do jogo
.
significado» Ao tentar fazer cum que esses elementos ganhem aceita o fato de que será obrigado a levar cm conta os crité rios do
A I A R T I M A N H A! 0 0 T t O I O A PORTA ABtRTA

cinema comercia)
.
riamente Sent
— um requisito que seu produtor lhe repete dia ¬
íamos que Bizet ficara profundamente comovido ao
ler a hist ória de M é rimcc, que c uma novela extremamente enxu ¬
cantada suavemente, com leveza, sem excessos, sem exibicionismo
e sem grandes virtuosismos. Desse modo, optando pela imunidade,
no fundo procurá vamos a qualidade.
ta, com um estilo ngorosamente desprovido de ornamentos, sem
|| complicações, sem artificia, dumetralmente oposto aos floreios de
! um autor barroco. £ muito simples e muito curta. Embora toman ¬ Já me referi anteriormente ao t édio como o meu maior aliado.
do a novela como base de seu trabalho, Bizct viu sc obrigado a - Agora gostaria dc dar um conselho a voccs: quando forem ao tea¬

|
fazer uma ópera para sua época c para um teatro cm particular
o Opera Comiquc, onde havia, como há em Hollywood hoje, con-
ven ções especificas que deviam ser observadas, tais como cen á rios
— tro e se aborrecerem, não procurem disfarçar, nâ o fiquem com
cara de réus, achando que a culpa é sua. Não $c deixem amorda ¬
.
çar pela fascinante ideia dc “ cultura " Perguntem a seus botões:
|
.
pitorescos, partes corais, danças e cortejos Como éramos un â ni ¬ “ Será que está faltando alguma coisa cm mim ou no espetáculo?"
^ mes cm achar que as montagens da Carmen cm geral slo profun¬ Vocês têm todo o direito dc questionar essa idéia insidiosa, muito
damente cntedtantcs, tentamos descobrir a natureza desse tédio e cm voga hoje em dia, dc que a “ cultura" c auromaticamente “ su ¬
.
suas causas Chegamos à conclusão de que, por exemplo, a inva¬ .
perior ” Ê claro que cultura c uroa coisa muno importante, mas
sã o do palco por oitenta pessoas que cantam e depois saem sem uma vaga noçã o dc cultura que não c revista, renovada, passa a
.
qualquer motivo era profundamente chata Discutimos, entã o, se funcionar como mordaça para impedir que as pessoas protestem
o coro era realmcntc necessá rio para contar a história de Mcriméc . com razão .
Má uma tendência pior ainda: a de considerar a cultura como
Reconhecemos també m , sacrilegamente, que a m ósica n ão
mantinha uma qualidade uniforme. Era absolutamente excepcion il
quando expressava as relações entre os protagonistas, e ficamos
. um carro de luxo ou a “ melhor mesa ” num bom restaurante
.
isco é, como um signo exterior de sucesso social Ê a eoncepçã o

impressionados ao constatar que nessas partes da m úsica c que básica do “ patrocínio" { sponsoring ) empresarial, cujo esquema é
Bizct deixou fluir seus sentimentos mats profundos c sua pcrccpçáo muno mediocre. A ú iuca motivação fundamental para o patroci ¬
mais sutil da verdade emocional. Assim, decidimos nos aventurar a nador de um espetáculo teauaJ c ter uro evento para o qual possa
extrair das quatro horas da partitura aquilo que denominamos pro - .
convidar seus clientes Como isso tem sua lógica própria, o espetá ¬
positalmcnte A tragédia de Carmen , por referência às imcr- rclaçóes culo deve estar dc acordo com a idéia que eles têm de cultura: uma
concentradas dc um pequeno n úmero de protagonistas na tragédia coisa que dá prestigio e um reconfortante aborrecimento .
.
grega Ou seja, cortamos todos os enfeites a fim dc preservar os Um pequeno teatro dc Londres, o Almeida, que goza de exce¬
.
relações mais fortes e trágicas Sentíamos que a í se encontravam as lente reputação, queria apresentar nossa Tragédia de Carmen A .
mais belas passagem da m úsica, que só poderiam ser apreciadas na
.
intimidade Quando uma ópera é montada num grande teatro, cm
escala monumental, pode ter vitalidade e vivacidade, mas nem sem¬
pre uma qualidade exceptional Queríamos m úsica que pudesse ser
administra ção do Almeida havia pedido apoio financeiro a um
.
grande banco, que ficou encantado cm participai “ Carmen oh,

que idéia formidável!" Quando todos os preparativos da viageui já
haviam sido feitos, o administrador do teatro recebeu um telefone -
AS ARTIMANHAS 0 0 TlOlO A P O S T A A I 1S T A

ma do encarregado de eventos culturais do banco; “ Acabei de


..
receber seus prospcctos, e c esquisito . seu teatro nio fica no cen ¬
tro de Londres? t nos arredores da cidade? E Carmen vai ser apre¬ Sempre me pedem para explicar o que cu quis dizer em O leatro e
sentada só com quatro cantares e dois atores ? A orquestra foi re¬ teu espaço quando escrevi sobre dois tipos de teatro, o “ sagrado"
duzida para catorze m úsicos ? E o coro? Nã o tem coro!?! Mas c o “ r úsrico", que se integram numa forma que chamei de “ ime¬
quem o senhor pensa que somos? Acha que este banco vai levar diata". No tocante ao ‘teatro sagrado", o essencial é admitir a
seus melhores clientes a um sub ú rbio para assistir a Carmen sem existência de um mundo invisí vel que c preciso tomar visiveL O
.
coro e com a orquestra reduzida ?" E desligou Nunca nos apresen ¬ invisível tem diversos ní veis. No século XX conhecemos dc sobra
tamos cm Londres . o nível psicológico, essa area obscura entre o que se expressa e o
Ê por isso que insisto na diferença entre uma cultura viva e .
que se oculta Quase rodo teatro contemporâneo aceita o grande
esse outro aspecto da cultura , extremamente perigoso, que está universo freudiano sub|accntc ao gesto ou às palavras, no qual se
começando a se difundir pelo mundo moderno, pnncipalnicnte a encontra a zona invisí vel do ego, do superego e do inconsciente.
partir da ampliação das rela ções entre espetá culo e patrocinador, Este nivel de invisibilidade psicológica nada tem a ver com o tea ¬
bto náo significa que nã o precisemos de patrocinadores. Como os tro sagrado. “ Teatro sagrado" implica a existência de algo mais,
abaixo, em volta e acima, uma outra zona ainda mais invisível,
t*. subsidios governamentais estio diminuindo no mundo inteiro, o
ainda mais distante das formas que conseguimos identificar ou
registrar, e que contêm fontes de energia extreraamente poderosas.
patrocí nio é a única alternativa; o teatro nio pode manter seu
dinamismo e ousadia se depender cxclusivamentc da bilheteria . Nesses campos dc energia quase desconhecidos existem impul ¬
Mas os patrocinadores devem ser pessoas esclarecidas N ào c . sos que nos guiam para a “ qualidade". Todos os impulsos huma ¬
pedir o impossível, tanto que cm nosso trabalho, felizmente, temos
nos direcionados para o que chamamos, de modo impreciso c
recebido excelentes apoios culturais. No entanto, c uma questão
canhestro, de "qualidade" provêm dc uma fonte cuja verdadeira
de sorte: nã o se pode ensinar algu ém a ser esclarecido, mas é pre ¬ natureza c totalmente desconhecida, mas que somos pcrfcitamente
ciso estimular essa atitude sempre que ela se manifeste. capazes de reconhecer quando se manifesta em nós ou nos outros.
Como o negócio dos homens de negócios é ser espertos, remos Ela nâo se comunica por sons ou ruídos, mas através do silêncio. É
-
que estar preparados para vence los em seu pró prio jogo. Anos
atrás, quando fiz Rei Lear na TV americana , havia quatro patroci¬
.
nadores, o que implicava quatro intervalos comerciais Argumentei
o que chamamos
— —
já que temos que usar palavras de “ sagra ¬
do". Só há uma questão importante: o sagrado é uma forma ? As
religiões entram em declí nio ou decadê ncia quando confundem
que eles teriam muito mais publicidade se desistissem, voluntaria ¬ uma energia, uma luz, que não têm forma, com cerimónias, rituais
mente, de interromper Shakespeare. De fato, foi algo tão surpreen¬ e dogmas, que são formas cujo significado se perde rapidamente .
dente na época que houve até editoriais enaltecendo a integridade Determinadas formas que eram pcrfcitamente adequadas para cer¬
dos parrocinadores. Mas o truque só podia funcionar uma vez. Em tos povos durante alguns anos, ou para uma sociedade inteira
cada ocasião temos que inventar algo novo. durante um século, ainda hoje est ão presentes e são defendidas
com “ respeito". Mas que respeito é esse ?
ilDFH
00 TlOIO A AOSTA A l £ ATA

Há milhares de anew o homem compreendeu que nada c mais “ Não temos recursos externos, nem um centavo, nem formação
rcrrívcl do que cultivar a idolatria, porque o ídolo não passa de um técnica, nem qualificações estéticas, nã o temos verba para belos
1 pedaço de madeira. Ou bem o sagrado está presente sempre, ou figurinos ou cenários, não temos palco, não remos nada que não
n ão existe. Ê ridículo pensar que o sagrado existe no topo da mon¬ sejam nossos corpos, nossa imaginação e os meios que estã o à
tanha c n ão no vale, no domingo ou no shabbath mas nã o no res¬ mão."
to da semana. O grupo do Centro Internacional, quando viajava com The
' O problema é que o invisível nã o precisa se tornar vis ível. Carpet Show , que já mencionei, trabalhava justamente com esses
Embora não tenha que se manifestar, o invisível pode surgir em meios disponíveis. Em muitos países, foi interessante constatar que
qualquer lugar, a qualquer tempo, por meio dc qualquer um des¬ . seguíamos a mesma tradição dot grupos de teatro popular que
de que as condições sejam propicias. Nào hi ratio para reprodu - encontrá vamos, embora nã o cttivcsscmos realmcnte buscando a
air os rituais sagrados do passado se eles não parecem nos condu ¬ .
tradiçã o No» mais diverso» recantos descobrimos que os esqui¬
zir ao invisível. Só a consciência do presente pode nos ajudar. Se o mós, os balineses, os coreanos e nós próprios está vamos fazendo
momento presente for acolhido dc modo particularmente intenso exatamente a mesma coisa. Na Índia conheci um grupo maravilho¬
e se as condições forem favorá veis para uma spbota, a fugidia cen ¬ so, um teatro dc província com muita gente talentosa c inventiva.
telha da vida pode despontar no som certo, no gesto certo, no Se hoje eles tivessem que apresentar uma peça aqui, usariam ime -
olhar e na rea ção certas. Assim, em mil formas totalmente inespe¬ dutamente as almofadas em que vocês est ã o sentados, esta garra ¬
radas, o invisível pode aparecer. Quem anseia pelo sagrado deve ..
fa, este copo, estes duis livros. porque são os ú nicos meios dispo¬
procurar com aten ção. .
níveis. Esta é a essência do "teatro r ústico"
O invisível pode aparecer nos objetos mats banais. A garrafa de Em seguida, quando falei sobre o “ teatro imediato* cm O
plástico ou o pedaço de pano que mencionei antes podem translor - teatro e seu espaço, foi para mostrai como eia relativo tudo o que
mar-se e impregnar-se do invisível, desde que o ator esteja cm estado eu havia dito até então. Não se deve tomar tudo que está no livro
de receptividade e seu talento seja igualmente apurado. Um grande como dogma , nem como classificação definitiva, tudo está sujeito
dançarino indiano pode tornar sagrado o mais profano dos objetos. ao acaso e á mudança. No fundo, a expressão “ teatro imediato"
O sagrado é uma transformação qualitativa do que oríginal - sugere que devemos descobrir, aqui e agora, os melhores meios de
dar vida a um tema qualqucc. £ evidente que isso requer experi ¬
-
metue não era sagrado. O teatro baseia se cm relações entre seres
.
.
humanos que por serem humanos, nào são sagrados por definição. mentação permanente, caso a caso, dependendo das necessidades
A vida de um ser humano é o visível através do qual o invisível pode Quando sc entende isso, todas as quest ões dc estilo e convenções
aparecer. -
vão pelos ares, porque são limita ções,- deparamo nos então com
/ O “ teatro r ústico", teatro popular, i diferente, E a celebração .
uma enorme nqueza, porque tudo é possí vel Tanto os recursos do
dc todos os tipos de “ meios dispon íveis" e traz consigo a aniquila ¬ “ teatro sagrado” como os meios do “ teatro r ústico" estão á dispo¬
ção de tudo que tenha a ver com a esté tica. Isto n ã o significa que a siçã o. Por isso o " teatro imediato" pode ser definido como "o
beleza esteja ausente, nus os “ rústicos" são aqueles que dizem: teatro do que c necessá rio ” , isto é, o teatro que abre um espaço
At ARTIMANHAS DO Tt 0 J O A POSTA AtlATA

legitimo para os elementos mats puros c para os mais impuros. O ú nica questão será quanto à eficiência. O espaço vazio c insuficien ¬
melhor exemplo, como sempre, está cm Shakespeare, te ? Se a resposta for “ sim", então começaremos a estudar quais
Asstm, voltamos novamente ao conflito entre duas necessida ¬ são os elementos indispensá veis. A base do of ício do sapateiro c
des: de um lado, a liberdade absoluta de abordagem, a aceitação de laz.cr sapatos que não machuquem; a base do oficio teatral consis¬
que “ tudo é possível ” , e por outro laoo o rigor e a disciplina, fazen ¬ te em estabelecer com o p ú blico , a partir de elementos muito con ¬
do ver que “ tudo" não pode ser simplesmente “ qualquer coisa ” . cretos, uma relaçã o que funcione.
Como devemos nos situar entre “ rudó é possível" e “ qualquer Vamos tentar discutir este ponto de outra maneira, pela ques¬
coisa n ã o é aceitável "? A disciplina , em si, pode ser tanto negativa t ão da improvisação. J á faz muito tempo que todo inundo vem
como positiva. Pode fechar rodas as portas, negar a liberdade ou, usando esta palavra , c um dos cliches dc nossa época , por toda
no extremo oposto, constituir o rigor indispensá vel para emergir .
parte há gente “ improvisando” Convêm notar que essa palavra
.
do lamaçal de “ qualquer coisa ” Por isso é que n ão há receitas engloba milhares dc possibilidades, boas e más.
prontas. Permanecer muito tempo na profundidade pode se tomar Mas atençã o: em certos casos, até o “ de qualquer jeito ” fun ¬
aborrecido. Permanecer muito tetnpo no superficial logo se toma cional No primeiro dia de ensaio, c praticamcnte impossí vel inven ¬
banal . Permanecer muito tempo nas alturas pode ser intolerá vel . tar alguma coisa realmente imbecil, porque até a idéia mais sim ¬
Temos que estar cm movimento o tempo todo . -
plória pode servir para mobilizar as pessoas e levá las à a ção. Vou
dizer, por exemplo, a primeira coisa que me vem á cabeça: “ Levan¬
tem, peguem as almofadas em que estão sentados e troquem de
A grande pergunta que os seres humanos fazem etemamente é: lugar, rá pido!"
“ Como devemos viver ? " Mas as grandes quest ões permanecem É muito fácil, divertido, melhor do que ficar sentado e tettso na
complctamcntc ilusórias c abstratas se não houver uma base con ¬ cadeira, c por isso todos obedecem a esta sugestão infanulóidc com
creta para sua aplicação na prá tica . O teatro é maravilhoso porque entusiasmo. Posso continuar: “ Mais uma vez, e hem mats rá pido,
c justamente o ponto de encontro entre as grandes questões da hu ¬ .. .
sem esbarrarem um nos outros . devagar.. formando um círculo!”
— —
manidade a vida, a morte ca dimensão artesanal, extrema
mente prá tica. É como fazer louça dc barro. Nas grandes socieda ¬
- .
Como veem, pode-se inventar qualquer coisa Eu disse a pri¬
meira coisa que me veio ã mente. Não perguntei antes: “ Será que
des tradicionais, o oleiro é visto como alguém que vive às voltas é imbecil, muito imbecil ou complctamcntc imbecil ? ” Nãuiiz
com questões transcendentais, ao mesmo tempo que fabrica sua nenhum juízo dc valor sobre minha pr ópria ideia no momento em
bilha. Esta dupla dimensã o é poisivcl no teatro; na verdade, é o .
que surgi u E logo a atmosfera ficou mais descontra ída |á nos
^
que lhe confere todo o seu valor. .
conhecemos melhor Agora estanto* prontos para rentar outras
Vamos supor que estejamos preparando uma produção e co¬ coisas. Algum exercícios, portanto, são úteis como jogos, simples¬
meçando a imaginar o cená rio. 1 lá uma pergunta simples e básica mente porque relaxam. Mas se desgastam rapidamente, e um ator
que c muito prática: “ É bom ou não é? Funciona? Serve ou não inteligente logo vai se aborrecer ao ser tratado como enança O .
serve? ” Se tomarmos como ponto de partida um espaço vazio, a diretor tem que se antecipar a dc c parar de dizer a pntneira coisa
AS ARTIMANHAS DO TtOIO A »O* TA AQIATA

que lhe vem à cabeça . Agora precisa fazer proposta» que envolvam Joguem a almofada para o ar, desloquem -sc para a sua direita,
autênticos desafios e que sejam ú teis para o trabalho, como os apanhem a almofada do vizinho e tentem manter o círculo giran ¬
exercícios que forçam o ator a trabalhar as partes de seu organis¬ do suavemente, sem agitação, sem movimentos in ú teis .
mo que estã o mais letá rgicas ou as á reas de seu universo emocio¬ Agora já não c tão £ádl, mas não vamos levar esrc exercício à
nal ma is ligadas aos temas da peça, c que ele tem medo de explo¬ .
perfeiçã o Basta notar que estamos um pouco mais animados e
rar. Então por que improvisar ? Em primeiro lugar, para criar uma com o corpo mais aquecido. Não se pode dizer, porém , que haja
atmosfera, uma relaçã o, para deixar todo mundo ã võritlde para. .
ngor e precisão no que estamos fazendo Como em cantas impro -
que cada um possa se sentar ou ficar dc pé sem que isso se tome .
vnações, o primeiro passo é importante, mas não suficiente Ê pre¬
.
um suplício Jã que o medo é inevitá vel, o primeiro passo é criar ciso tomar cuidado com as in ú meras armadilhas contidas no que
confiança. E como o que mats apavora as pessoas atualmente é .
chamamos dc exercícios e jogos teatrais A possibilidade de usar o
falar, n ão se deve começar com palavras nem com ideias, mas com corpo com mats liberdade do que na vida diá ria gera dc imediato
.
o corpo. Ê no corpo livre que tudo vive ou morre Vamos pôr logo uma sensa ção de euforia, mas se nã o houver concomitantemcntc
isso cm pr á tica, começando peta noção dc que tudo — quase tudo uma dificuldade real, a experiê ncia não levari a pane alguma. Isto
— .
que faz nossa energia fluir deve ser ú til Entã o não vamos inven ¬
.
tar nada dc extraordinário Vamos fazer alguma coisa juntos e, se
.
é válido para rodas as formas de improvisação Os grupos de tea ¬
tro que improvisam regularmcntc costumam adotar o princí pio de
parecer bobagem, que importa ? Muito bem: levantem-se e formem nunca interromper o desenvolvimento de uma improvisação Se .
um círculo! Há almofadas no chão; cada um pegue uma almofada, quiserem mesmo saber o que é o tédio, assistam a uma improvisa¬
jogue para cima c apanhe de volta . .. ção em que dois ou três atores resolvem “ desenvolver sua propos¬
Agora que já tentaram, viram que não dá para errar, e como .
ta " inf í ndavrlmcnte, sein serem interrompidos É inevitá vel que
estão rindo juntos j á se sentem um pouquinho melhor. Mas se em pouco tempo eles comecem a repetir clichés, geralmente com
ficarmos jogando almofadas a esmo, em pouco tempo deixaremos uma lentidã o mortal, que suga a vitalidade de todos os observado¬
dc nos divertir e começaremos a perguntar aonde isso está nos .
res A improvisaçã o mais estimulante, cm certos casos, não preci¬
levando. Para manter o interesse temos que inventar um novo de¬ sa durar mais do que alguns srgundos, como no sumô, pois nesta
safio. Vamos enrão introduzir uma pequena dificuldade, joguem a luta japonesa o objetivo é clara, as regras são rígidas, mas tudo é
almofada para cima, dêcm uma volta em torno de si mesmos c decidido com a rapidez de um relâmpago na* opções improvisadas
apanhem a almofada! Também c divertido, porque quando erra ¬ dos braços c pernas, no» primeiros momentos do combate .
mos, e deixamos a almofada cair, scutimo-nos provocados a acer¬ Agora vou sugerir um novo exercício, mas antes utn aviso: não
tar da próxima vez. E se aumentarmos o ritmo, jogando e girando tentem reproduzir o que estamos fazendo aqui cm outro contexto.
cada vez mais rá pido, ou daudo várias voltas ames de pegar a al- Seria uma tragédia sc no ano que vem, em todas as escolas dc tea ¬
mohnbi , aumentará também nossa excitação. tro, jovens atores começassem a jogar almofadas para o ar, alegan ¬
Mas vocês logo perceberão que já estio quase dominando este do que sc trata do “ célebre exerc ício dc Paris". Há coisas muito
movimento, e portanto um novo elemento deve ser acrescentado. mais divertidas para inventar.
* »0 » t A A « E»TA
> 10

exercício especial que vocc faz todo dia." Eu quis saber o que era,
Agora, os quinze que estão sentados em círculo vã o cantar em
e entã o cie me descreveu o que acabamos de fazer. Eu nunca tinha
voz alta, um após outro, começando pela garota da esquerda. Um, ouvido falar disso antes, c ate hoje não sei de onde veio. Mas fiquei
..
dois, três, etc. .
Agora tentem contar de um a vinte sem levar cm conta sua
posição no circulo. Ou seja: quem quiser pode começar. Mas há
- —
feliz em adotá lo c desde então nós o fazemos constantcmcnte e
.
o consideramos como nosso Pode durar uns vinte minuto* ou
meu hora; neste caso, a tensão aumenta muito c a capacidade de
uma regra: temos que contar de um a vinte sem que duas pessoas
escutar do grupo *c transforma. £ um exemplo do que poderíamos
.
falem ao mesmo tempo. Alguns terão que falar rn iis de uma vez . chamar dc exercícios dc prepara çã o.
Passemos agora a um exemplo muito diferente para ilustrar o
Um, dois, três, quatro
mesmo princípio. Façam um movimento qualquer com o braço
quatro .
I direito, deixem que ele vá aonde quiser, dc qualquer íeito seni pen ¬
sai: Quando eu der o sinal, soltem o braço, e a í parem o movimen ¬
Não. Duas pessoas falaram ao mesmo tempo, então temos que
to. J á!
.
começar de novo Vamos recomeçar untas vezes quantas forem
Agora mantenham o gesto como está, não mudem nem aper¬
feiçoem nada, apenas temem sentir o que cie está expressando.
necessá rias, e mesmo que cheguemos a dezraovc c duas vozes
.
falem “ vinte ” , teremos que volur ao Início Nã o errar tem que ser
Percebam que a atitude de seu corpo causa inevitavelmente algum
nosso ponto de honra.
tipo dc impressã o. Fico olhando vocês e, embora n ão tenham ten¬
.
Observem com atençã o o que está em jogo Por um lado, a
tado "contar" nada nem “ dizer" nada , deixando apenas o braço
.
liberdade é total Cada qual diz um n ú mero quando quiser. Por
-
mover se à vontade, vejo que cada um está expressando alguma
outro lado, há duas condições que requerem uma grande discipli ¬
. .
coisa Nada é utrutru VAIIK» » experi ência: não se esque¬
repetir
na: a primeira é preservar a ordem ascendente dos n úmeros c a
outra é nã o falar ao mesmo tempo. Isto exige uma concentração
çam, é um movimento do braço sem premeditaçáo .
Mantenham agora a atitude exatamente como está e tentem,
muito maior do que antes, quando só tinham que dizer seu n úme¬
sem mudar de posição, sentir a relação entre a mio, o braço, o
ro na ordem cm que estavam no círculo. É um exemplo simples da .
ombro, até os m úsculos do olho Percebam que tudo isso tem um
relaçã o entre concentra ção, atenção, capacidade dc escutar e Uber ¬ -
.
dade individual Demonstra também as caracterCsticas do ritmo
.
significado Agora deixem que o gesto se desenvolva , tomando se
mais completo através dc um movimento m í nimo, apenas um
quando c vivo e natural, pois as pausas nunca são artificiais, nem
pequeno ajuste.
há duas pausas iguais, e todas são preenchidas pelo pensamento e
Sintam como essa min úscula mudança transforma alguma coi ¬
pela concentra ção, como pomes que atravessam o silêncio.
sa na totalidade do corpo e como a atitude ficou mais completa e
Gosto muito deste exercício, era parte por causa do modo
expressiva.
.
como cheguei a ele Certo dia, num bar de Londres, um diretor
N ão podemos ignorar que expressamos inccssantemcntc
americano me disse: " Meus atores sempre fazem seu ‘grande
exercício’." Fiquei surpreso. “ Quecxcrcicio? ", perguntei. “ Aquele
milhares dc coisas com todas as partes de nosso corpo Não temos.
AS 0 0 Tf D I O » 3« T A A 1 1S T A

consciência disso na maior parte do tempo, o que lesa o ator a


uma atitude corporal difusa, incapaz de magnetizar a plateia .
transforma na passagem de uma para a outra
extremamente importante por n o ser
ã verbal nem

um significado
intelectual .
.
Vamos è outra experiência Levantem de novo o braço num Continuando, tentem encontrar variações pessoais neste movi ¬
gesto simples, mas agora com uma diferen ça fundamental Em . ..
mento: palma para cima, palma para baixo. Articulem o gesto
vez de um movimento pró prio, façam o que cu disser: coloquem a como quiserem, buscando seu próprio ritmo. Para encontrar uma
mão bem aberta à sua frente, com a palma virada para fora. Não ,
qualidade vital remos que ser sensíveis ao eco á ressonâ ncia que o
estão fazendo isso porque t êm vontade, mas porque eu pedi, e movimenro produz no resto do corpo.
estão prontos para continuar me seguindo sem saber aonde O que acabamos de fazer se inscreve na categoria geral dc
vamos chegar “ improvisação". Existem, portanto, duas formas de improvisação:
-
Bem vindos, portanto, ao oposto da improvisa ção: se antes a que parte da liberdade total do ator c a que leva em conta elemen¬
fizeram um gesto espontâ neo, agora estio fazendo outro que lhes tos predeterminados, à» vem ate restritivos. Nestc úlumu çasQ^o
foi imposto. Acatem fazer este gesto sem perguntar, de um modo ator terá que “ improvisar * cm cada espctáculo^racutandti. navá -
intelectual e analí tico, “ O que significa ? "; do contrário, ficarão mente e com sensibilidade os eco» interiores dc cada dctalhe_cm si
“ de fora ". Temem sentir o que o gesto provoca cm vocês. Alguma .
mesmo c nos outros Assim fazendo, verá que nos detalhes mai»
coisa do mundo exterior lhes foi dada; ela c diferente do movimen ¬ sutis nenhuma apresentaçã o pode ser exatamente igual a outra; é
to livre que fizeram anteriormente, mas sc a assumirem por com¬ esu consciência que lhe permite uma renovação comtarmt .
pleto vcrào que c a mesma coisa , que se tornou parte de vocês, As experiê ncias que acabamos dc compactar em alguns minu ¬
como vocês se tomaram parte dela. Experimentar essa sensa ção .
tos normalmcntc levam semanas c ate meses Durante os ensaios e
ajuda a esclarecer ioda a questão do texto, da autoria, da direçã o . antes de cada espetáculo, um exerc ício ou uma improvisaçã o
podem ajudar a ahrir nnvnmente cada ator para si mesmo c o gru¬
O verdadeiro ator sabe que a liberdade só existe realmente quart
do o que vem de fora c o que sai de dentro forniam uma comhina - .
po entre si A diversão c uma grande fontcjlc energia. O amador
.
yâo perfeita c indissociá vel leva uma vantagem sobre o profissional: como só trabalha dc vez
.
Levantem a mão novameute Tentem sentir como este movi ¬ cm quando e cxclusivamentc por prazer, mesmo que n ã o tenha
.
mento está ligado â expressã o dos olhos Não façam caretas . .
talento sempre terá entusiasmo O profissional precisa sc revigorar
Procurem não franzir o cenho só para que os olhos e o rosto façam sc quiser evitar a entorpecente eficiência do profissionalismo .
qualquer coisa, apenas permitam que a sensibilidade guie seus -
No ci nem,i pode se ver outro aspecto da diferença entre ama¬
menores m úsculos.
Escutem agora, como se ouvissem m úsica, como a sensaçã o do ou algué m que descobrimos na rua
——
dor e profissional. Atores amadores uma criança, por exemplo,
muitas vezes representam
movimento muda se girarem lentammte a mão, sc passarem dessa tã bem
o como atores profissionais. No entanto, quem disser que
posição, com a mã o espalmada para a frente, para esta outra, cora ,
todos os papéis etn todos os filmes, podem ser desempenhados
a palma da mão virada para o teto. O que estamos tentando nã o é igualmente por amadores ou profissionais estará mentindo Qual é.
apenas sentir as duas atitudes, mas perceber como o significado se a diferença ? Se pedirem a um amador para fazer na frente da

« •
At All TIM AN N At DO TtOlO A POMA AliMA

camera as mesmas a ções que ele pratica na vida diá ria, é prová vel do que era também de Louis Jouvet e cerramcntc de Moliè re e Sha ¬
que ele se saia muito hem. Isto vale para quase todas as atividades, kespeare: para compreender a personagem não se pode ter ideias
.
dt» oleiro ao batedor de carteira Um exemplo extraordiná rio íoi A preconcebidas. E para isso vocc tem que repetir o texto in úmeras
batalha da Argélia, cm que os argelinos que haviam sobrevivido ãs vezes, de um modo completamente neutro, até que ele entre em
batalhas c lutado na clandestinidade durante a resist ê ncia eram você, até que a compreensão se torne pessoal c orgânica.”
capazes de representar alguns anos depois os mesmo» gestos, que A sugest ão de Jean Renoir é excelente, mas como todas a 9
por sua vez evocavam as mesmas emoções. Geralmente, porém, sugestões è inevitavelmente incompleta. Ouvi falar dc um grande
quando pedimos a um não-profissional que não se limite a repro¬ diretor de Tchckov que ensaiava as peças durante semanas em sus¬
duzir movimentos profundamente enraizados em seu corpo, mas surras. As leituras dc texto tinham que ser feitas em voz muito bai ¬
tente enar em si mesmo um estado emocional, o amador costuma xa e suave, impedindo assim que os « tom interpretassem e polu ís¬
ficar totalmcnte perdido. A habilidade especifica do a ror profissio¬ sem as palavras com impulsos prematuros ou inadequados, tais
nal consiste cm provocar cm si mesmo, sem esfor ço nem artificia
lidade perccptiveis, rsi . ulns nroounais que n ã o pertencem a cie c
. .
sim ã personagem Isto é muito raro Em geral, podc-sc norar a

como demonstrar, expressar, ilustrar ou mesmo ter prazer no
ato dc ensaiar. Pedia - lhes que murmurassem durante semanas, até
que o papel se enraizasse profundamente no ator. Parece que essa
defasagem entre o ator como pessoa e o estado que ele está cons¬ técnica dava bons resultados cora Tchckov, mas eu a considero
.
truindo com maior ou menor perícia Nas mãos dc um verdadeiro muito perigosa, a não ser que houvesse, diariamente, momentos
artista tudo parece naturaL nacsmo uuc a forma exterior seia tão cm que os murm úrios sigilosos fossem contrabalançados por exer ¬
artificial que não tenha equivalente na natureza. cícios c improvisações para mobilizar um grande potencial de
É um equívoco supor que os gestos da vida cotiduna são auto¬ energia.

— —
maticamente tnais “ rears" do que os que encontramos na ópera ou Conheci uma companhia americana que cxcursionava com
num bale. Basta ver os produtos do velho Actors Studio ou tal¬ uma peça de Shakespeare cujos atores me descreveram orgulhosa ¬
vez dc um estilo distorcido do Actors Studio para entender que mente seu m étodo de trabalho: viaiando pela lugoslá via, todas as
o supernaturalismo ou o hipcr-rcalismo são convenções que podem

.
.
parecer tão artificiais como o bel-canto na ópera Todo estilo ou
convenção é artificial, sem exceção Qualquer estilo pode parecer
falso. A tarefa do ator é tornar qualquer esnlojiatyraL Voltamos
— —
noites sa íam pelas ruas gritando um determinado verso de seu
papel por exemplo, “ Ser ou não ser ” sem se permitirem pen ¬
sar em absolutamente nada! Eles també m acabaram ficando
impregnados pelo texto, mas quando vi o espetáculo, o resultado
ao principio: uma palavra ou gesto me são dados, e ao assimila - los era uma bagunça sem sentido. Neste caso, evidentemente, tratava -
eu os torno “ naturals'*. Mas, no fundo, o que significa " natural"? se dc uma técnica levada ao c ú mulo do absurdo .
Algo é natural quando, no momento em que acontece, não há aná ¬ Na verdade, devemos conpigar as duas abordagens Quando .
lise nem coment á rio, simplesmente parece devcrciáde . examinamos uma cena pela pnmeira vez, é muito importante ter
Vi certa vez na televisão um trecho dc filme em que Jcan uma experiência direta da ação, ficando dc pc c interpretando co¬
Rcuoir dizia para uma atriz: “ Aprendi com Michel Simon o mero- .
mo numa improvisação, sem saber aonde vamos chegar Descobrir
AS ARTIMANHAS DO TtOlO
A AORTA ARIRTA

o texto de um modo dinâmico c ativo é um processo cnnquecedor Este esclarecimento analítico só é importante sc estiver indis¬
-
de explorá lo, e que pode dar novas dimensões à investigaçã o inte¬ soluvelmente ligado a uma compreensão intuitiva. O ensaio de
lectual, que por sua vez umhcnj é necessária. Mas tenho pavor da mesa atribui a um ato mental, a análise, uma importância muito
técnica da Europa central, em que todos se sentam ao redor de uma maior do que à intuição. Esta é uma ferramenta mais sutil, que vai
mesa durante várias semanas para esclarecer os significados do tex¬ .
muito mais longe do que a análise É claro que usar somente a
to antes de se permitirem senn -lo com o corpo. Esta teoria supõe intuiçã o també m pode ser inuito perigoso. Quando abordamos
que ninguém esteja autorizado a se levantar antes de traçar uma um problema difícil dc uma peça, temos que recorrer tanto à intui ¬
espécie de esquema intelectual , como se não soubesse que direçã o ção como ao raciocínio. Ambos sã o imprescindíveis .
Já discutimos acima algumas experiências que visavam a co
¬
tomar, É um princípio que errtamente %c adapta muito bem ãs ope¬
rações militares, pois um bom general deve reunir seus aliados cm municar a maior emoçã o possível com um mínimo de recursos. É
volta da mesa antes dc determinar que os tanques invadam o terri¬ muito interessante notar como a expressão mai» simples, sc|a uma
tório inimigo, mas teatro é outra coisa.. . palavra ou um gesto, pode ser vazia ou cheia. Pode-sc dizer “ Bom
Voltemos por um momento ãs diferenças entre amadnr c pro¬ dia " a alguém sem sentir o " bom " nem o “ dia ", e até mesmo sem
fissional. No cato do canto, da dança ou da acrobacia a diferen ça sentir a pessoa com quem se fala. Um aperto de mã os pode scr um
é patente porque as técnicas sã o muito óbvias. No cantua nota é gesto automá tico ou uma saudaçã o que irradia sinceridade
.
afinada ou desafinada, o bailarino vacila au não, o acrobata se Em nossas viagens temos tido grandes discussões com antro¬
equilibra ou cal. No trabalho do ator as exigências també m sã o pólogos a respeito deste tema. Para eles, a diferença entre O gesto
imensas, mas c quase impossível definir os elementos envolvidos. europeu do aperto dc mãos c a saudação com as palmas das mãos
,
Podc-sc ver imediatamente o que está “ errado", mas o que é neces¬ juntos, á tnoda indiana, ou a mã o no coração ã maneira islâ mica
é uma questão cultural. Do ponto de vista do ator, rst » iwiria
e
sário para que fique certo è tão sutil c complexo que se toma mui¬
to dif ícil dc explicar. Por isso é que o mé todo analítico, militar, n ão absolutameiire irrelevante. Sabemos que c possível ser igualmcntc
funciona para encontrar a verdade da relação entre duas persona ¬ hipócnta ou sincero com qualquer desses gestos. Podemos atribuir
gens, pois n ã o alcan ça o que está por trás dos conceitos c para qualidade e significado a um gesto, mesmo que não pertença á
alé m das definições, naquela imensa área da experiência humana nossa cultura . O ator prcciv.i ttl CPtlSciêtlcU < je que q ualquer
que vive envolta em sombras. movimento que execute p» >dr continuar sendo uma casca varia ou
algo que ele preencha conscicntrmcntc com uma significa çã
o
Quanto a mim, gosto de programar no mesmo dia vá rias ativi¬
dades diferentes, poré m complementares: exercícios preparat órios .
autentica So depende dele.
que devem ser feitos regularmente, como quem capina c rega um A qualidade reside no detalhe. A presen ça do ator, aquilo que
jardim; depois, trabalho prá tico na peça, sem idéias preconcebi ¬ dá qualidade ao seu ato dc escutar ou dc olhar, é uma coisa miste¬
riosa, mas nã o indecifrável. Não é algo que esteja inteiramcntc
aci ¬
das, mergulhando profundamente c experimentando; finalmente
ma de suas capacidades conscientes e voluntárias. Ele pode desco
¬
uma terceira fase, de análise racional, que pode tornar mais claro
o que foi feito. brir essa presença num certo silencio cm seu í ntimo . O que pode -
AS AATIM á HHAI oo rtoio

mos denominar de “ teatro sagrado", o teatro no qual o invisível


aparece, tem por base esse silêncio, a partir do qual podem surgir
todos os tipos dc gestos, conhecidos c desconhecidos. Pelo grau de
sensibilidade no movimento, um esquimó será capaz de identificar
imediatamente se um gesto indiano ou africano é de boas vindas
ou de agressividade. Qualquer que seja o código, a forma pode ser
preenchida por um significado e a compreensão será imediata. Q _
teatro é sempre a busca dc uma significaçã o, bem como um modo
.
dc tom á -la significativa para outros Este c o misteno . O peixe dourado
Aceitar o mistério é muito importante. Quando u homem per ¬
.
de sentimento do assombro, a vida perde o sentido Não é ã toa
o
que cm suas origens o teatro era um “ mist é rio". O oficio do tea ¬
.
tro porem , nã o pode permanecer misterioso. Se a mã o que empu ¬
nha o martelo não ttvcr um movimento preciso, atingirá o dedo c
.
nào o prego A antiga funçã o do teatro deve ser sempre respeitada,
mas não com aquele respeito que dá sono. Há sempre uma escada
.
a ser galgada, levando a n íveis superiores de qualidade Mas onde
encontrar essa escada ? Seus degraus sã o os detalhes, detalhes
min úsculos, a cada instante. A arte dos detalhes c que conduz ao
coraçã o do mistério.
Toda vez que falo em pú blico é uma experiência cénica. Procuro
chamar a atenção do pú blico para o fato de que estamos, aqui c
agora, numa situaçã o teatral. Sc observarmos com cuidado o pro¬
cesso cm que vocês e eu estamos envolvido* neste momento, con ¬
seguiremos entender o significado do teatro de um modo muito
menos teórico. Mas a experiência de hoje c bem ma is complicada.
Pela primeira vez, em vez de improvisar, concordei em escrever
previamente uma palestra, porque precisavam do texto para a
publicaçã o. Espero que isso não prejudique o processo e a|ude a

. —
enriquecer ainda mais nossa experiência comum.
Ao escrever estas palavras, o autor o “ eu n" 1" está no

sul da França, num dia quente tlr vrr ào u*n » ndn e tentando imagi ¬

nar o desconhecido: uma plateia japonesa cm Quioto *em saber
qual o tipo dc sala, quantas pessoas, como será o relacionamento.
E por mais que eu escolha cuidadosamente as palavras, alguns dos
-
ouvintes irão escutá las através de um tradutor em outra lingua.
Hem, mas para vocês, neste momento, o “ eu n'.’ 1", o autor, já desa ¬
pareceu; foi substitu ído pelo “ e« n" 2", o orador. Sc o orador ler o
texto de cabeça baixa, debruçado sobre o papel, transmitindo o
conte ú do num tom monocórdio c pedante, as mestnas palavras
que pareciam tão vivas quando as escrevi no papel se perderã o
numa melancolia insuportável, uma das principais causas da má
fama das conferências acadêmicas. Assim, o “ cu n? 1" c como um
dramaturgo que tem que confiar que o “ eu n" 2" trará novas ener -
O f ílXt DOURADO a r o u t* A S E » *A

I gus c nuanças ao texto e ao evento. Para aqueles que entendem cando este á tomo do tempo, vemos o universa inteiro contido cm
inglês, são as mudanças no som da voz, as alterações imprevistas tua infinita pequenez. Aqui, neste momento, aparentemente nada
de tom, crescendos fortissimo, pianissimo, as pausas, o silêncio, dc especial está acontecendo. Eu ( alo, vocês escutam. Mas esta
em suma, a m úsica vocal concreta que traz consigo a dimensã o imagem superficial é um reflexo verdadeiro de nossa realidade pre¬
humana , deixando - nos ansiosos por ouvir, e essa dimensão huma ¬ sente? Claro que não. Nenhum dc nós trouxe ã tona tudo o que
na c jusramente o que nõs e nossos computadores ainda não con ¬ compõe a textura de sua vida: embora momentaneamente inertes
seguimos compreender de um modo preciso e cientifico. Ê senti ¬ nossas preocupações, nossas relações, nossas comédias tolas ou
mento, sentimento que conduz à paixã o, paix ão que transmite tragédias profundas estão a í, sempre presentes, como atores que
convicçã o, convicçã o que c o ú nico instrumento espiritual capaz
esperam nos bastidores. Aí estão não apenas os protagonistas de
de fazer os homens se preocuparem uns com os outros. Nem mes¬ nossos dramas pessoais mas também, como um coro de ópera,
mo aqueles que neste momento me ouvem por interm édio de um multid ões de personagens secundários prontos para entrar em
tradutor estã o isentos de uma certa energia que gradualmcntc cena, ligando nossa hist ória particular com o mundo exterior, com
começa a unir a atençã o de todos, pois é uma energia que sc espa ¬ o coniunto da sociedade. E dentro dc nós, a cada momento, como
lha pela sala através do som e també m do gesto,- cada movimento um gigantesco instrumento musical h espera de ser tocado, há cor ¬
que o orador fat com a mio ou com o corpo, consciente ou in -
*
I

conscicntemente, é uma forma de comunica çã o como qualquer
ator, tenho que ter consciência disso, é minha responsabilidade
c voces també m desempenham um papel ativo, pois dentro do seu

das cujos tons e harmonias são nossa capacidade de responder às
vibrações emanadas do invisível mundo espiritual que írequente
mente ignoramos, mas com o qual entramos em contato toda vez
-
que respiramos.
silencio existe um amplificador oculto que remeie de volta a emo - I Sc fosse possível liberar de repente no espaço deste auditório
, çã o particular de cada um através do nosso espa ço comum, cnco- I todas as nossas fantasias e impulsos ocultos, seria como uma
-
rajando me sutilmente, fazendo com que cu fale cada vez melhor. explosão nuclear, um caótico turbilhão de impressões, tão violen ¬
O que tem isto a ver com o teatro? Tudo. to que nenhum dc nó* poderia absorvc-lo. Ê por isso que o teatro,
Vamos definir claramente nosso ponto de partida. Teatro é I liberando no presente o potencial coletivo de pensamentos, de
uma palavra tã o vaga que ou não significa nada ou só cria confu - t imagens, de sentimentos, dc mitos e traumas que estava oculto,
sã o, porque quando algu é m fala sobre um aspecto logo vem outro I tem tanto poder c pode scr tã o perigoso.
falando de algo complctamente diferente, £ como falar sobre a I A opressão pol ítica sempre prestou ao teatro sua maior home¬
vida . São termos amplos demais para terem significado. O teatro I nagem. Nos pa íses dominados pelo medo, o teatro é a manifesta ¬
nã o tem a ver com edifícios, nem com textos, atores, estilos ou for - I ção que os ditadores mais temem c vigiam mais atentamente. Por
' mos. A essê ncia do teatro reside num misté rio chamado “ o mo - I isso, quanto maior for nossa liberdade, maior será a necessidade
i mento presente” . de compreendermos c disciplinarmos cada evento teatral. Para ter
I “ O momento presente* é surpreendente. Como o fragmento I significado, o teatro deve obedecer a regras muito precisas.
1
.
retirado de um holograma, sua transparência c enganosa Disse - I -
Desde logo, o caos que se instauraria sc cada indiv íduo liberas
O PEIXE DOURADO A POATA AIEATA

se seu mundo secreto deve ser unificado numa experiência comum. çã o precisamos dc uma cadeia de momentos que começam num
Em outras palavras: o aspecto da realidade que o ator está evocan ¬ nível simples, natural , para nos levar à intensidade e depois nos
do deve despertar uma reação na mesma á rea cm cada espectador, afastar dela novamente. O tempo, que costuma ser nosso inunigo
fazendo com que, por um momento, o p ú blico viva uma impressão na vida , pode també m *c tornar nosso aliado se percebermos
coletiva. Assim, a função principal do material básico apresentado
— —-
a história ou tema é propiciar uma base comum, um campo
potencial em que cada integrante da plateia, de qualquer idade ou
forma çã o, possa sentir se unido a seu vizinho, compartilhando a
como um momento sem brilho pode levar a outro momento res ¬
plandecente, e deste, por sua vez, a um terceiro momento de
absoluta limpidez, antes dc cair dc novo num momento dc simpli¬
cidade cotidiana.
mesma experiência . Compreenderemos melhor este raciocínio se pensarmos num
Claro que c muito fácil encontrar uma base comum que seja pescador tecendo uma rede. Enquanto trabalha, o esmero c a
.
apenas trivial, superficial c portanto sem grande interesse Obvia - inten çã o guiam cada volteio de seus dedos. Entrela ça o fio amar ¬
,
mente, a base que unifica a todos tem que ser interessante. Mas, ra os nós, envolvendo o vazio com formas cujas configura ções
no fundo, o que significa tntereftantti Ha uni modo de verificar. exatas correspondem a funções exatas. E ent ão a rede c lançada ao
Naquela fração dc milésimo de segundo em que o ator e a plateia mar, arrastada de um lado a outro, a favor da marc, contra a marc,
sc inter-relacionam como num abraço f ísico, o que importa é a em padrões múltiplos e complexos. Um peixe cai na rede, um pei ¬
densidade, a espessura, a pluralidade dc niveis, a riqueza ou
seja , a qualidade do momento. Assim, qualquer momenro pode
— xe não-comcsuvcl, ou um peixe comum bom para assar, talvez um
peixe multicor, ou um peixe raro, ou um peixe venenoso ou, em
ser superficial , sem grande interesse, ou, pelo contrá rio, profundo momentos de graça, um peixe dourado.
em qualidade. Quero irisar que este uivei de qualidade em cada No entanto, é preciso notar uma distinção sutil entre o teatro
momento é a ú nica referencia pela qual um evento teatral pode -
e a pesca. No caso da rede bem feita, é a sorte que determina se o
ser julgado. pescador vai apanhar um peixe bom ou ruim. No teams, aqueles
que d ão os nós são també m responsá veis pela qualidade do
Vamos agora examinar melhor aquilo que chamamos de
momento. Se pudéssemos penctrat no âmago de um momento,
cerramcntc descobrir íamos que ali nã o h á movimento, que cada
momento que acabam capturando cm suas redes. Ê fantástico
ação do “ pescador", ao dar us nós, determina a qualidadejí o
—- a
pei¬

momento c o conjunto de todos os momentos possíveis e portan¬ xe que apanha em suã rede!
.
to o que denominamos “ tempo" despareccria Mas à medida que O primeiro passo c decisivo, e muito mais dif ícil do que pare¬
sa ímos dele para as á reas em que existimos normalmcme, vemos ce. Curiosamente, não se dá a este passo preliminar o respeito que
que cada momento de tempo está relacionado ao momento ante¬ merece. Enquanto aguarda o início do espet áculo, o p ú blico geral -
rior c ao momento seguinte, numa corrente incessante c infinita. mente espera se interessar por ele, deseja ficar interessado, conven -
Assim, em todo espet áculo teatral deparamo-nos com uma lei cc sc dc que deve sc interessar. Mas só ficará irresistivelmente inte¬
-
inevitável: o espetáculo c um fluxo que tem uma curva ascenden¬ ressado se as primeiras palavras, sons ou ações do espetáculo libe¬
te e descendente, Para atingir um momento de profunda significa - rarem no intimo de cada espectador um eco inicial dos temas oeul -
A PORTA ARfRTA
O MUI OOUMDO

( os que vão sc desvendando graduaImcnte. Não $c trata de um sível para o mundo concreto das formas e ações visíveis e reconhe¬
processo intelectual, muito menos racional. O teatro não tem nada cíveis. Shakespeare não faz concessões em nenhum dos extremos
a ver com um debate entre pessoas cultas. Através da energia do da escala humana. Seu teatro não vulgariza o espiritual para que o
som, da palavra, da cor c do movimento, o teatro aciona uma tecla homem comum o assimile mats facilmente, nem re|cita o sujo, o
emocional que por sua vez envia dcscjrgas para o intelecto. De¬ feio, o violento, o absurdo e a gargalhada vulgar. Passa de um a
outro sem esforço, momento a momento, enquanto numa grande
pois que o ator estabelece um vínculo com a plateia, o evento pode
tomar vá rios rumos. Há teatros que só querem oferecer um bom
investida vai intensificando a experiê ncia, até que toda resistência
explode e a plateia «e defronta subitamente com um instante de
peote comum, que se possa comer sem causar indigestão. Há tea ¬
tros pornográficos que pretendem deliberadamente servir um pei ¬
aguda pcrccpçâo da textura da realidade. Esse momento não pode
durar. A verdade nunca pode ser definida ncra imobilizada, mas o
xe com entranhas cheias de veneno. Mas vamos supor que tenhj - teatro é um mecanismo que permite a todo» os participantes sabo
¬
mo* a mais elevada das ambições: no espetáculo, só queremos apa ¬
nhar o peixe dourado . .
rear por um momento, um aspecto da verdade o ; teatro c uma
.
Dc onde vem o peixe dourado ? Ninguém sabe Deve ser de má quina para subir c descer pelos níveis da significação.
Agora nos deparamos com a verdadeira dificuldade. Para cap
¬

algum lugar do inconsciente coletivo mí tico, daquele vasto oceano


cujos iinme* nunca foram descoberto», cujas profundezas nunca tar um momento da verdade c preciso que o ator, o diretor, o autor
foram sufictcriirmcmc exploradas. E onde estamos nós, as pessoas e o cenógrafo, dando o melhor dc si, esteiam unidos em um esfor ¬
ço comum; ningu é m pode conseguir sozinha. Na espetáculo não
comuns da plateia ? Estamos no mesmo lugar cm que estivamos ao
pode haver estéticas diferentes, objetivos conflitantes. Todas as
entrar no teatro, cm nós mesmo», era nossas vidas corriqueiras.
técnicas da arte e do of ício tem que estar a serviço daquilo que o
Tecer a rede é construir uma ponte entre nós, como somos habitual
mente em condições normais, trazendo conosco nosso mundinho
- poeta inglês Ted Hughes chama de “ negociação" entre O nosso

.
dc todo dia, c um mundo invisível que só pode sc rcvcl tr quando a nível comum e o nível oculto do mito. Essa negociação sc dá pela
lunçá o do que é Imut á vel com a permanente
mutabilidade do
insuficiência da pcrccpçâo ordiná ria c substituída por outro tipo dc cada espetáculo. Ê
consciência cuja qualidade é infinitamente mais aguda. Mas essa mundo comum, que c justamente onde se passa
rede ê feita de buracos ou de nás ? Esta questão é como um kuun,* com esse mundo que estamos cm contato a cada segundo de nossa
e para fazer teatro devemos conviver com cia o tempo todo. vida consciente, quando a informação registrada no passado cm
Na hist ória do teatro, nada expressa tã o plcnamcntc este para ¬ nossos ncurómo» é rearivada no presente. O outro mundo, que
está pemunentemente presente, é invisível porque nossos sentidos
doxo como as estruturas que encontramos em Shakespeare. Seu
não têm acesso a ele, mas pode ser percebido dc muitas maneiras e
teatro c cssencialmente religioso, pois traz o mundo espiritual invi - em muitas ocasiões pela intuiçã o. Todas as prá ticas espirituais nos
conduzem ao invisível, ajudando- nos a sair do mundo das impres¬
*
atrav és
-
Questã o em forma dc paradoxo utilizada pelo zen budismo para ,
da contemplação, levat a uma petcepçã o maior da realidade.
sões para a tranquilidade c o silêncio. O teatro, no entanto, não
(N . do T. ) equivale a uma disciplina espiritual. O teatro é um aliado externo
, 00 POSTA AIERTA

",
da via espiritual , c existe para oferecer relances, inevitavelmente vital. O problema consiste cm rejeitar a "solução consagrada
fugazes de um mundo invisível que interpenetra o mundo cotuiia - mas sem visar à mudança apenas para mudar.
A questão central, portanto, é relativa à forma, a forma preci
¬
no c é norma Imeme ignorado pelos nossos sentidos.
O mundo invisível não tem forma, não muda nunca, ou pelo sa, a forma adequada. Não podemos passar sem ela a , vida n ã o
pode prescindir dela . Mas o que significa forma ? Toda vez que
vol ¬
menos n ã o sofre modificações como nós as entendemos. O mun ¬
do visível está sempre em movimento, sua caracteristica c a flu ¬ to a esta quesrâo vou levado inevitavelmente à sfihoUi , uma pala ¬

.
idez. Suas formas vivem c morrem O ser humano, que c a forma .
vra da filosofia indiana cfássica *cu|o significado está no seu som
mais complexa, vive c morre, as células vivem c morrem

mesmo modo as l ínguas, os padrões, as atitudes, as ideias, as
estruturas nascem, decaem e desaparecem. Em raros momentos
e do
— uma ondulação que aparece de repente na superf ície dc águas
.
tranquilas, uma nuvem que emerge no cé u claro A forma é o vir
tual que se toma manifesto, o espirito que se faz carne, o som pri ¬
¬

da história humana houve artistas capazes de estabelecer uma


união tão autêntica entre o visível e o invisível que suas formas
templos, esculturas, pinturas, histórias ou m úsica — —
parecem
sobreviver crema mente. Mas ate nestes casos devemos scr pru ¬
mordial, o big bang.
Scia na índia, na África, no Oriente Médio ou no Jap
artistas do teatro estão fazendo a mesma pergunta: qual é u nossa
forma, hoje ? Onde devemos procur á- la ? A situação é confusa a
tendem a
ã o, os

,
cair
questã o c confusa, as respostas sã o confusas mas
,
dentes c reconhecer que a pró pria eternidade morre, não dura
para sempre. em duas categorias. Por um lado , há quem acredite que as grandes
Quem trabalha em teatro, em qualquer parte do mundo, deve
encarar as grandes formas tradicionais, cspecialmcnte as do Orien ¬
potências culturais do CXidentc
|á resolveram o problema, e que basta
—Londres , Paris c
apenas utilizar
Nova
sua
York
forma,

te, com a humildade e o respeito que merecem. Elas podem levar
nos para muito alem dc nós mesmos muito alem da inadequada
- do mesmo modo que os países subdesenvolvidos adquirem
so» industriai» e tecnnlngía. A outra atitude é oposta. Muitos
proces¬
arris -
tas dos poises do Terceiro Mundo acham que perderam suas raí¬
capacidade dc compreensã o c de criatividade que os artistas do
século XX devem admitir como sua condição atual. Um grande zes, que foram apanhados pela grande onda vinda do Ocidente
com toda a sua muigístíca do século XX, e por isso senrem -sc
obri¬
ritual ou um mito fundamental c uma porta, uma porta que nã o
está li para ser observada e sim experimentada. Aquele que puder
.
gados a rejeitar a imitação dc modelos estrangeiros A consequ n
ê ¬
cia disso c um arrogante retomo ãs raízes culturais c às antigas
tra ¬
experimentar a (Hirta dentro dc »i mesmo passará através dela com
con
dições. Como se vê, tudo é reflexo dos dois grandes impulsos
¬
maior intensidade. Por isso não devemos ignorar arrogantemente
frag¬
.
o passado Mas també m n ã o podemos trapacear Se roubarmos traditórios de nossa época, tendendo à unidade extema e à
seus rituais c símbolos, tentando explorá-los em beneficio próprio, mentação interior .
Nenhum desses dois mé todos, porém, produz bons resulta
¬
c possível que eles percam as virtudes c se tomem apenas enfeites
.
reluzentes e vazios O grande desafio é saber discernir, a todo dos. Em muitos países do Terceiro Mundo há grupos dc teatro
.
momento Em certos casos a forma tradicional ainda está viva; em tentando encenar peças de autores europeus como Brecht ou
. se utiii -
outros, a tradiçã o c a mã o mona que estrangula a experiência Sartre Geralmcnte não levam era conta que esses autores

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O M I M DOURADO A AORTA ARIRTA

znrnm de um complexo sistema de comunicação que pertencia à rente, deparamo- nos novamente com o mesmo fenômeno de um
sua pr ópria época c lugar. Em um contexto totaimente diferente, teatro que não atrai mats .
as resson â ncias se perdem. As imitações do teatro experimental No tempo da opressão totalitá ria, o teatro era um dos raros
de vanguarda dos anos sessenta enfrentam a mesma dificuldade. lugares onde, por algumas horas, o espectador podia senur-sc
Por ivso, alguns autênticos homens de teatro do Terceiro Mundo, livre, escapando para uma existência mais româ ntica c poctica ou
movidos por orgulho c desespero, mergulham no passado na ten ¬ ent ã o, protegido pelo anonimato da plateia, unir-sc pelo riso ou
tativa de modernizar seus mitos, rituais c folclore, mas infeliz- .
pelo aplauso a ato» dc desafio ã autoridade Linha após linha, ura
mente o resultado costuma ser uma coisa hibrida que “ nã o c car¬ texto clássico consagrado oferecia ao ator a oportunidade dc enar
ne nem peixe ” . uma cumplicidade secreta com o espectador, pela ê nfase sutil íssi ¬
Como poderemos, então, ser fiéis ao presente ? Recentemente, ma numa palavra ou por um gesto quase imperceptivel, expressan¬
minhas viagens me levaram a Portugal, à Tchccoslovã quia e à Ro¬ do assim o que dc outro modo seria perigoso demais expressar .
.-
ménia. Em Portugal, o pais inais pobre da Europa ocidental, disse Agora que já não existe essa necessidade, o teatro é forçado a de¬
ram - me que “ as pessoa» não vão num ao teatro ou ao cinema ” frontar-se com uma verdade amarga: a» gloriosas plateias do pas¬
“ Ah” , comentei an tom compreensivo, "o pú blico nã o tem dinhei ¬ sado ficavam lotada » por muitas razões válidas, mas que nada ti ¬
ro por causa da crise econ ómica." "De modo algum!", foi a sur ¬ nham a ver com uma experiê ncia teatral verdadeira da obra em si.
preendente resposta. “ Ê |ustamentc o contrário. A economia esta Voltemos à situação na Europa . Da Alemanha em direção ao
melhorando aos poucos. Antes, com o dinheiro escasso, a vida era leste, incluindo o vasto continente russo, c também no rumo oeste,
muito cinzenta , portanto era necessá rio satr para o teatro ou eme através da Itilia para Portugal c Espanha, houve uma longa é rie
s
.
ma e é claro qur economizá vamos para isso. Ho|e as pessoas |á de regime» totalitá rios. A caractcrisnca comum a todas as ditadu ¬
podem gastar um pouco muiue todo o arsenal de posai I’ll idades de ras c a imobilização da cultura. As formas, quaisquer que sejam ,
consumo do século XX esta ao %eu alcance. Há fitas de vídeo, apa ¬ deixam de ter ai a possibilidade dc viver, morrer e substituírem
-
relhos de vídeo cassete, compact Jiscs, e para satisfazer a eterna umas ás outras segundo leis naturais. Hi um certo n úmero de for
¬

necessidade de estar com outras pessoas há restaurantes, v òos mas culturais que são aceitas como seguras c respeitá veis tornan-
,
charter , pacote» dr turismo. E ainda roupas sapato», cabeleirei¬ do-sc institucionalizadas, enquanto todas as demais são considera
¬

ros... C inema e teatro continuam a existir, mas cairatn para o fim das suspeitas e condenadas â clandestinidade ou cnmpletamcntc
Ja lista de prioridades.” banidas. As décadas de vinte c trinta foram um período de extraor ¬
Deixando o Ocidente mercantilism, segui para Praga e Buca - diná ria animação e fertilidade para o teatro europeu. As principais
restr . E lá ouvi novamente, como também tu Polónia, na Rússia e
em quase todos os antigos países comunistas, o uiesmo grito dc
desespero. Há alguns anos, as pessoas brigavam paru conseguir

inovações técnicas palcos girat órios, espaços modificáveis, efei
tos de luz, projeções, cená rios abstratos, construções funcionais—
¬

ção,
surgiram durante esse periodo. Alguns estilos de interpreta
ingressos nos teatro»; hoje, eles funcionam muitas vcz.es com ape¬ certas relações com a plateia, determinadas hierarquias tais como
,
.
nas 25% dc sua lotação Em um contexto social totaimente diíc - a posição do diretor ou a importância do cen ó grafo, ficaram con-
O f t l I X f DOU ft ADO A F O* T A A I I F R A

solidados nessa cpnca. Esravam afinados com seu tempo. Em posta do diretor, do cenógrafo e do ator c usar reproduções natu ¬
seguida, houve enormes convulsões sociais: guerras massacres, ralistas de imagens contempor â neas como forma, eles acabarão
revolu ções e contra -revolu ções, desilusã o, rejeiçã o de velhas descobrindo, com grande frustração, que dificilmente poderão ir
ideias, fome de novos est ímulos, uma atraçã o hipnótica por tudo além do que a televisão apresenta a todo instante.
.
que fosse novo e diferente. Tudo isso vek» à tona Mas o teatro, Para viver no presente, uma experiência teatral tem que acom ¬
com uma fé inabalá vel em suas velhas estruturas, náo mudou. Já panhar a pulsaçã o dc seu tempo, tal como um grande desenhista
não faz parte dc seu tempo. Em consequê ncia , por in ú meras de muda, que nunca fica procurando ccgomente a originalidade,
razões, o teatro está em crise no mundo inteiro. E isso é bom, é mas combinando misteriosamcnte sua criatividade com a superf í¬
necessá rio. cie mutá vel da vida. A arte do teatro tem que ter uma faceta coti -
Ê de vital importâ ncia estabelecer uma distinçã o clara. “ Tea ¬
tro" é uma coisa, ao passo que “ os teatros* são outra muito dife¬

diana histórias, situações e temas que devem ser reconhecíveis,
pois o ser humano se interessa, acima dc tudo, pela vida que cie
rente. “ Os teatros" são como caixas, e uma caixa não equivale ao conhece. A arte do teatro també m precisa ter subst ância e signifi ¬
seu conteúdo, assim como o envelope náo è a carta. Escolhemos os cado. A substâ ncia c a densidade da experiê ncia humana; todo
envelopes dc acordo com o tamanho e a extensão de nossa comu ¬ artista anseia por captá - la em seu trabalho, dc um modo ou dc
.
nicação O paralelo, infclizmcntc, falha no seguinte aspecto: c f ácil outro, c talvez pressinta que o significado surge da possibilidade
jogar um envelope no lixo; é muito nuus dif ícil jogar fura um pré¬ dc contato com a fonte invisível que fica além de suas limitações
dio, ainda ruais quando é um belo pr édio, e mesmo sabendo instin - normais c que dã significado ao significado. A arte é uma toca
uvamente que ele )á ná o corresponde â sua finalidade. E ainda girando cm torno de um eixo im óvel que não podemos pegar nem
mai dif ícil descartar os há bitos culturais gravados em nossas men ¬ .
definir
*
tes, há bitos dc estética, praticas artística » e tradições. O "teatro", Qual é, então, o nosso objetivo? É encontrar n teddo da vida .
porém, é uma necessidade essencial do ser humano, enquanto "os .
nem mais nem menos O teatro pode refletir todos os aspectos da
teatros" e suas formas e estilos sâ o apenas caixas temporá rias e exist ência humana, c por isso toda forma viva é vá lida, toda forma
.
descartá veis pode ter um lugar potencial na expressão dramática. Formas são
Voltando ao problema dos teatros vazios, vemos que nào se como palavras: só adquirem significado quando usadas correta -
trata de uma questã o dc reforma
— palavra que significa exata -
mente refazer velhas formas. Enquanto a aten çã o permanecer cir ¬
mente. Shakespeare tinha um vocabul á rio mais amplo do que
todos os poetas ingleses, c constantemente acrescentava outras

cunscrita ã forma, a resposta sera puramente formal c dccepcio
nante na prá tica. Estou insistindo na questã o da forma para frisar
- palavras àquelas dc que já dispunha, combinando obscuros termos
filosóficos com as obscenidades mais chulas, até dispor de mais dc
que a busca dc novas formas, por si só, não pode ser a solução. O . .
25 ttul vocábulos No teatro há além das palavras, infinitas lin ¬
problema é idêntico nos pa íses com estilos teatrais tradicionais. Sc guagens através das quais se estabelece e se manté m a comunica ¬
acharmos que modernizar significa colocar o vinho velho em gar ¬ .
ção com o pú blico Há uma linguagem corporal, uma linguagem
rafas novas, continuaremos presos na armadilha formal. Se a pro - do som, a linguagem do ritmo, da cor, da indumentá ria, do cená-
a PEIXE D O U fl AO o A r O A T A AIEATA

rio, a linguagem da luz


— e rodas podem ser acrescentadas àque¬
las 25 mil palavras disponíveis. Cada elemento da vida é corno
ro no presente, permite que tenhamos uma distâ ncia entre nós c
aquilo que normalmente nosxoddate elimina a distâ ncia entre nós
uma palavra num vocabulá rio universal. Imagens do passado, c o que normalmcntc está longe. Uma noticia do jornal de hoje
i m a g e n s da tradiçã o, imagens dc hoje, foguetes para a lua, rev ólve¬ pode parecer muito menos próxima e verdadeira do que algo de
res, palavrões, tuna ptlha de tijolos, uma chama, a mão no cora ¬ outra época, de outras terras. O que importa é a verdade do mo¬
ção, um grito visceral, os infinitos matizes musicais da voz são
como substantivos e adjetivos com os quais podemos fazer novas
— mento presente, a convicção absoluta que só pode surgir quando o
.
intérprete e o p ú blico formam uma só unidade E cia aparece
frases. Sabemos uriiizá -los bem ? Será que são necessá rios, será que quando as formas transitórias atingem seu objetivo e nos levam
são os meios para tomar mais vívido, mais pungente, mais dinâmi ¬ àquele momento ú nico c irrepetível cm que uma porra se abre e
co, mais preciso, mais verdadeiro aquilo que expressam ? nossa visão se transforma.
O mundo de hoje nos oferece novas possibilidades. Este gran ¬
de vocabulá rio humano pode ser enriquecido por elementos que
nunca estiveram juntos no passado. Cada raça, cada cultura pode
trazer sua própria palavra para uma frase que una a humanidade.
Não há nada mais vital para a cultura teatral do mundo do que o
trabalho conjunto de artistas de diferentes raças e origens.
Quando se|untam tradições diferentes, de início há barreiras .
-
Mas quando, através do trabalho intenso, descubrc se um objetivo
comum, as barreiras desaparecem. No instante em que as barreiras
desaparecem, os gestos c os tons de voz dc cada um c de todos tor¬
nam -se parte da mesma linguagem, expressando por um momento
uma verdade compartilhada inclusive pelo pú blico: é para este mo¬
mento que se direciona todo teatro. As formas utilizadas podem
ser novas ou velhas, comuns ou exóticas, simples ou complexas,
sofisticadas ou ingé nuas. Podem provir das fontes mais inespera ¬
das, podem parecer totalmcntc contraditórias, podem até mesmo
.
dar a impressão de serem mutuamente cxdudentcs O fato dc ter¬
mos formas que se entrechocam e confluam entre si, cm lugar da
unidade de estilo, pode ser algo saudá vel c revelador .
O teatro não deve ser chato. Não deve ser convencional. Tem
i .
" ’sgerado. O teatro nos leva á verdade através c í.i surpre ¬

sa , da excitaçã o, dos jogos, da alegria. Integrao passado c o futu -


Nã o há segredos
Há um momento cm que nâo dá para continuar dizendo nã o. Já
fa2 muitos anos que, quando as pessoas me perguntam “ Podemos
assistir a um de seus ensaios?” , eu respondo “ Não". Sou obrigado
a agir assim por causa de algumas experiências desastrosas.
Bem no inicio da carreira, eu deixava visitantes assistirem aos
.
ensaios Permiti que um estudante, muito calado c modesto, ficasse
discrctamcnrc sentado no fundo da plateia durante os ensaios de
uma pe a dc Shakespeare. Ele não me causava problema algum, cu
^
nem notava sua presença, ate que um dia cnconrrcio no bar do pub
local explicando aos atores como deviam inrcrpretar seus papéis.
Apesar dessa experiência, poucos anos depois deixei que um auror
muito Ncisu observasse o processo, ji que ele havia me convencido
da importância disso para suas pesquisas. Só impus uma condição:
que ná o publicasse nada do que visse. Apesar da promessa, mais
tarde apareceu um livro cheio dc impressões equivocadas, traindo o
pacto essencial dc confiança que constitui a base indispensá vel ao
.
trabalho conjunto entre o ator c o diretor Anos depois, quando
estava encenando pela primeira vez uma peça na França, descobri
que a proprietá ria do teatro achava perfeitamente normal entrar na
plateia no meio do ensaio e sentar nas primeiras filas com suas ami ¬
gas ricas, cobertas de peles c jóias, conversando animadamente
enquanto observavam o trabalho daquelas estranhas c divertidas
criaturas chamadas atores, sem se inibirem de fazer comentá rios em
voz alta e ate gozações sobre aquilo que viam .
NAO »1 SEGREDOS A PORT * ABIRTA

" Nunca mats!'*, jurei. E À medida que vão passando os anos, após ler um livro do médico Oliver Sacks chamado O homem que
compreendo enda vez melhor como é importante para os atores, que confundiu SUJ esposa com um chapéu, vislumbrei a possibilidade
sã o inseguros e ultra -sensí veis por natureza, saber que estão total
mente protegidos pelo silencio, pelo intimidade e pelo segredo.
- de dramatizar esse mistério por meio dos padrões comportamen-
tais de certos casos neurológicos. Nosso grupo ficou muito interes
¬

Havendo essa segurança, pode-se experimentar livremente, cometer sado no novo campo de trabalho que se abria .
erros, fazer bobagens, com a certeza de que fora das quatro paredes Mas quando se trabalha a partir de um tema que não tem for¬
ningu ém vai ficar sabendo. A partir dai o ator começa a sentir a for¬ ma nem estrutura aparentes, é fundamental dispor de um tempo
ça que o agida a se abrir, tanto para si mesmo como para os outros. ilimitado. A vantagem de uma peça pronta é que o autor já con ¬
Descobri que a presença de uma ú ruca pessoa no escuro atrás de cluiu seu trabalho, o que torna possível determinar a duração dos
.
num é uma permanente fonte de distração e de tensã o A presença .
ensaios e marcar a data da estreia No fundo, é esta a ú nica dife
¬

de um observador pode ate fazer com que o diretor fique tentado a rença entre um projeto experimental e a encenaçã o de uma peça já
se exibir, a inrervir quando deveria permanecer calado, para não existente. Os dois processos têm que SCT igualnientr experimentais
,
dccepcionar o visitante ao parecer in útil. só o tempo necessá rio é que é diferente: no segundo caso, o teatro
f por isso que eu sempre digo não aos constantes pedidas para já pode anunciar a temporada, no primeiro as datas devem ficar
observar nosso trabalho, Compreendo, no entanto, que a « pessoas cm aberto.
desejem conhecer o processo, saber o que fazemos na prá tica . Assim, vendo que precisá vamos de tempo para nossos estudos
.
Assim, hoje, nesta oficina , resolvi dizer "Sim não há segredos" . neurol ógicos e para o desenvolvimento das pesquisas, c reconhe¬
Vou tentar descrever, passo a passo, o nosso processo de trabalho, cendo também a responsabilidade prá tica de manutenção de um
c para maior clareza vou usar minha recente encenaçã o de A tem¬ teatro c da organização, comecei a procurar uma peça adequada
pestade, em Paris, como exemplo . ao nosso grupo internacional, que tivesse uma qualidade capaz de
Em primeiro lugar, a escolha do texto. Somos um grupo inter¬ inspirar os atores c simultaneamente oferecer alguma coisa valiosa
nacional que, em sua maioria, vem trabalhando junto há muito para o p ú blico, algo que tivesse relação com as carências c realida ¬
tempo. Havíamos conclu ído um longo ciclo de trabalho de muitos .
des de nossa era Como sempre, esse raciocínio me levou de ime¬
anos com o Mahabharata cm francês, n Mahabharata em inglês e diato 3 Shakespeare. Shakespeare continua sendo um modelo insu ¬
o Mahabharata cm filme. Depois havíamos feito uma temporada perá vel, sua obra c sempre relevante e sempre contemporâ nea .
-
de peças e musicas sul africanas cm nosso teatro de Paris, cm co¬ A tempestade t uma peça que conheço liem; há cerca de urina
memoraçã o ao bicentená rio da Revolução Francesa c ao Ano dos e cinco anos eu a dirigi pda primeira vez em Stratford com o gran ¬
Direitos Humanos. Senti entã o a necessidade, tanto para o grupo de ator inglês John Gielgud como Pr óspero. Voltei a ela em cará ter
de atores como para mim, de tomar um rumo totalmente novo e experimental alguns anos depois, no mesmo teatro, em colabora ¬
deixar para trás todas aquelas imagens do passado que haviam se ção com outro diretor inglês. F.m 1968, quando fiz a primeira ofi ¬
tomadu uma parte tão forte de nossas vidas. Eu andava interessa ¬ cina com atores de várias culturas em Paris, e que acabarta levan ¬
do nas estranhas e nebulosas relações entre o cérebro e a mente, e do ã criação do Centro Internacional, escolhi cenas de A tempesta -
H A O HA »1 8 *1 0 0 » A POSTA ABE 8 T A

-
de como maté ria prima para desenvolver nossas improvisa ções c Paul Scofield, o ú nico ator inglcs capaz dc dar conta da tarefa,
pesquisas. Portanto, essa peça sempre esteve muito presente cm .
estava maduro e preparado No caso dc A tempestade, vi que
meu espirito. Curiosamente, porem, nunca havia pensado cm A tínhamos entre nós um ator africano, Sorigui Kouyaté, que pode¬
tempestade como sendo a solução para o problema que enfrentava ria trazer ao protagonista, o mágico Próspero, algo novo, diferen ¬
agora , até que um dia, conversando com um amigo num jardim dc te e talvez ma » autêntico do que qualquer ator europeu , c que os
Londres sobre minha dificuldade cm encontrar o tema certo para ourros membros do grupo, de culturas não-inglesas, poderiam ilu¬
nosso grupo de atores, ele sugeriu A tempestade. No mesmo ins¬ minar as ambiguidades da peça com a luz de suas próprias tradi ¬
tante, compreendi que era justamente o que precisá vamos, a peça ções, às vezes mais próximas da espiritualidade da Inglaterra clisa-
perfeita para nossos atores. Nã o foi a primeira vez que percebi betana do que os valores urbanos da Europa contemporâ nea.
Assim, o ponto de paruda estava claro. Só precisá vamos de
como todos os fatores para a tomada de uma decisão já estavam
preparados na parte inconsciente de minha mente, sem que a parte
consciente tivesse participado da deliberação. Por isso é tão dif ícil
. —
uma data Calculei o período dc ensaios catorze semanas
mas subestimei o tempo necessá rio à preparaçã o. Depois de alguns
dias fiquei preocupado c reformulei todos os planos, adiando por

responder ã primeira pergunta que sempre me fazem: “ Como se
escolhe a peça ? " P. um acaso ou uma escolha ? É um capricho ou o dois meses o inicio dos ensaios.
resultado de profunda meditação? Acho que nos preparamos para Jcan-Claude Carrière começou a preparar uma tradução cm
.
escolher rejeitando as opções que nâo «ervem are que n verdadeira francês enquanto cu iniciava a discussão dos aspectos visuais com
solução, que já estava lá, dc repente vem à tona. Nossa vida obede¬ a cenógrafa Chloé Obolensky. Esta c sem d ú vida a parte mais deli¬
- -
ce a uma direção: ignorá la é extraviar se por muitos caminhos . cada do processo, pois encerra uma contradição. É preciso que a
Mas quando o movimento oculto é respeitado, é ele quem nos guia, cenografia seja adequada, que haja figurinos e é ó bvio que tudo
e depois, em rctrospectiva, podemos reconhecer claramentc as eta ¬ isto requer planejamento c organiza ção. No entanto, a experiência
pas de um plano em permanente processo de revelação . demonstra reiteradamente que as decisões tomadas pelo diretor e
Quando minha mente tomou consci ência de que A tempestade pelo cenógrafo/figurinista antes do in ício dos ensaios são invaria ¬
podia ser a solução, as vantagens dessa opçã o tomaram -se eviden¬ velmente inferiores às decisões tomadas mais tarde, durante o pro¬
tes, a começar pelo fato de que uma peça de Shakespeare só pode .
cesso Neste momento, o diretor c o cenógrafo não estarão mais
ser montada quando temos a convicçã o de contar com os atores sozinhos com suas visões c estéticas pessoais, mas alimentados por
certos. Ê bobagem um diretor dizer "Quero encenar Hamlete só uma visã o infinitamente mais profunda, tanto da obra como dc
ent ã o começar a pensar em quem poderia fazer o papel. Pode- se suas possibilidades cênicas, que provêm da riqueza e integração
passar anos com a ideia fixa de encenar um grande texto, mas a das experiências dc um grupo de indiv íduos inspirados c crianvos .
decisão objetiva só pode ser tomada quando se tem diante dos Por inelhor que seja, o trabalho do diretor e do cenógrafo/figu -
olhos os parceiros indispensá veis, os intérpretes dos papéis princi¬ rinista antes dos ensaios é limitado c subjetivo; pior ainda, impõe
.
pais Piquei obcecado por Ret Lear durante muito tempo, mas o formas r ígidas, tanto à a ção cênica como á aparência externa dos
momento de dar forma concreta a esse fantasma só surgiu quando atores, e muitas vezes pode destruir ou castrar um dcscnvolvimen -
MAO HA ffGREOOt A PORT A A S I A T A

natural. Por isso, o melhor método dc trahalho envolve utn sugestão com recursos m ínimos continuava vá lido. O problema

——
lo
equil í brio muito sutil que nã o tem regras preestabelecidas e era se dev íamos sugerir a natureza com uma superf ície natural,
depende de cada caso entre o que deve ser preparado de ante¬ -
coroo terra ou areia, ou evocá la apenas na imaginação, usando
mão c o que pode ficar cm aberto com segurança. Para começar, uma superf ície comum como madeira ou tapete.
recordei minhas encenações e experiê ncias anteriores com a peça c Logo no inido da peça, todos os cenógrafos c diretores dc A
tempestade veem se às voltas com uma grande dificuldade. Existe
-
vi que nã o queria conservar nada:elas pertenciam a outro mundo,
.
a outra visão Quando reli a peça neste novo contexto, certas for¬
mas fugidias começaram a dançar nebulosamente cm minha ca ¬
—-
uma unidade dc lugar: a ilha exceto pela primeira cena, que
transcorre num navio cm alto mar, durante uma tempestade É
.
necessá rio violar essa unidade, criando uma complicada imagem
-
beça A primeira montagem que fiz cm Stratford tinha seguido a
corrente dominante, que vé A tempestade como um grande espetá ¬ cênica realista para os primeiros momentos da peça ? Quanto mais
culo, que deve ser apresentado com intrincados efeitos cênicos. Di - se fizer isso, menor a possibilidade de evocar depois a ilha dc modo
não naturalista, e mais difkil a interpretação da segunda cena, uma
verti-me concebendo momentos visuais dc grande impacto, com ¬ -
pondo m úsica de fundo eletrónica, introduzindo deusas e danças longa c está tica narração cm que Próspero conta sua vida à filha. Sc
dc pastores. Agora, sentia intuitivamente que o espetacular nã o a convenção escolhida for uma cenografia pictoricamente elabora ¬
era a soluçã o, que camuflava as qualidades inais profundas da da, a solução c fácil: faz se um naufrágio espetacular e depois colo-
-
peça c que a nova montagem, qualquer que fosse, devia ter a for¬ ca-sc no palco uma ilha deserta. Mas caso sc rejeite esse enfoque, c

mais literal

ma dc uma série de jogos iogas cénica» dos atores, no senudo

realizado» por um pequeno grupo de atores/ jogado¬
preciso descobrir algo que possa facilmente ser o mar num momen
to c a terra firme no momento seguinte Resolvemos
. deixar este pro¬
¬

. blema em suspenso, para ser esclarecido quando vfssanos o mate


¬
res Do ponto dc vista intelectual, isso me levou a concluir que a
peça nao tem bases realistas na geografia ou na história, e como a rial produzido pelo trabalho dos atores no espaço
-
ilha é simplesmente uma imagcm simholo, nã o pode ser represen ¬ A maioria do elenco já havia trabalhado no Centro Internacio¬
tada por nenhuma forma de ilustração literal. Quando terminei de .
nal O crité rio da escolha dos atores foi J reintcrpreta çSo da peça
er a peça, rascunhei no verso da última página o esboço dc um jar¬ ã luz dc cultura» tradicionais. Assim, í
t nhamos um Próspero afri¬
’ .
dim zcn como o dc Quioto, onde uma ilha e sugerida por uma cano, um Ariel africano, um espirito balmcs c um jovem ator ale¬
rocha c a á gua por pednnhas secas. Talvez fosse este o espaço for¬ mão, que trabalhava «mosco pela primeira vez, no papel dc Cali ¬
-
mal cm que os atores, tendo apenas a imaginaçã o para ajudá los, ban, gcralmeme apresentado como um monstro feito de borracha
pudessem sugerir com clareza todos os níveis do tema. -
e plástico ou como um negro, cxplorando sc a cor da pclc para
Quando Chloé Obolensky e eu fuemos a primeira reuniã o, só ilustrar de modu muito banal a ideia de um escravo. Eu queria
mostrar uma nova imagem dc Caliban, que tivesse a rebeldia feroz
,
conseguimos ver desvantagens nessa soluçã o. Andar sobre os sei¬
xos é dif ícil, eles vão ranger o tempo todo e distrair o publica, e perigosa c incontrolá vcl dc um adolescente dc hoje.
sentar sobre cies c desajeitado e incómodo. Descartamos então o Miranda, como Shakespeare a concebeu, é realmcnte muito
.
jardim zcn mas permanecemos convictos dc que o principio da jovem, tem catorze anos dc idade, e Fcrdinando pouco mais que
M O MA ftOAIOOt A POATA AS IAPA

isso. É óbvio que csrcs papeis só revelarão toda a sua beleza sc depois, no mesmo dia, pode haver també m momentos dc repouso
forem interpretados por arores da idade certa, e especinlmentc se .
cm que a mente vai exercitar calmamente sua fun ção específica Só
Miranda possuir aquela graça que provem de uma educação tradi ¬ .
assim a aná lise c discussão do texto estarã o no lugar certo
cional. Encontramos uma menina indiana, treinada como dançari ¬ Depois desse tranquilo período inicial de concentração, volta¬
na pela mã e desde tenra idade, e outra garota bem jovem que era
em parte vietnamita.
mos para nosso teatro cm Paris, o Boulfes du Nord. Chloé, a cenó -
grafa e figunnista, não havia preparado elementos cênicos para o
Para iniciar o processo, saímos de nosso ambiente normal e primeiro ensaio, mas sim “ possibilidades": cordas pendendo do
-
com todo o elenco, os assistentes e Jean Claude Carriè re fomos
para Avignon , onde nos haviam oferecido acomoda ções e um
urdímonto, escadas, pranchas e cubos de madeira, caixas de emba ¬
lagem. E também tapetes, montes dc terra de diversas cores, pás e
amplo espaço para ensaios no antigo claustro de um mosteiro
desativado. Aqui, em meio à paz c na mais absoluta reclusão, pas¬
samos dez dias de prepara ção. Todos trouxeram seus textos, mas

enxadas obietos que não estavam ligados a nenhuma concepção
estética, servindo apenas como elementos que os atores podiam
.
pegar, usar c jogar fora
.
de» nunca foram abertos Não tocamos na peça uma vez sequer . Cada cena foi improvisada de in úmeras maneiras e os atores
Primeiro exercitamos nossos corpos, depois as vozes. foram estimulados a usar com ampla liberdade tudo que o espaço
e a profusão dc objetos sugerisse á sua imaginação. Eu, como dire¬
Fizemos exercícios de grupo cujo ú nico objetivo era desenvol ¬
ver reações rá pidas, o contato de mã os, ouvidos c olhos, uma per
cepção coletiva que se perde facilmente e tem que scr constante
mente renovada para unir os indivíduos e transform á -los numa
-
-
- —
tor, fazia sugestões, dava lhes novas idéias e volta e meia tinha
-
que criticar minhas pró prias propostas e descartá las, depois de
-
vê las realizadas pelos atores. Se houvesse um observador durante
equipe sensível e vibrante. As ncccssidjdcs e regras são iguais às do esse período, teria a impressão dc uma confusão absoluta, de deci ¬
esporte, só que uma equipe de atores deve ir alé m: o jogo não sões que eram tomadas e logo depois abandonadas segundo um
envolve apenas os corpos nus também os pensamentos c sentimen ¬ método absurdo. Até mesmo os atores perdiam o rumo, e o papei
.
tos que precisam manter-se entrosados. Isso requer exercícios de do diretor é manter controle do que está sendo explorado e do
voz e improvisações, tanto cómicas como sérias. Após alguns dias, .
objetivo final Sc agir assim, esta primeira explosão dc energia nã o
nosso estudo passou a incluir palavras: palavras soltas, depois será tão caótica como parece, já que produz uma enorme quanti¬
sequê ncias de palavras e por fim frases inteiras em inglês e francês, dade dc material bruto a partir do qual podem se desenvolver as
para tentar fazer com que a natureza especial do texto shakespea
riano adquirisse vida para todo mundo, inclusive para o tradutor.
- formas finais.
.
A própria peça é um desafio que ajuda nesta tarefa A qualida ¬
Pela minha experiência, é sempre errado começar o trabalho com de da obra c o enigma que encerra fazem dela um juiz implacá vel .
os atores por uma discussão intelectual, porque a mente racional é A peça é o rigor, a austeridade que ajuda a separar o valioso do
um instrumento de descoberta muito menos potente do que as in ú til naquela massa de idéias incipientes. No caso dc A tempes¬
faculdades mais secretas da intuição. A compreensão intuitiva atra ¬ tade, a qualidade do texto é tamanha que qualquer invenção ou
vés do corpo pode ser estimulada dc muitas maneiras diferentes, e adorno parecem desnecessários c até vulgares. Assim , dc repente se
I E 6 N E D O* A POSTA AlflTA
NAO HÁ

cai numa terrí vel armadilha: tudo o que se faz, depois de um pri ¬
-
meiro momento de entusiasmo, revela se inadequado e sem cabi ¬

nada sc perde coinplcramente permanece um vesrigio que pode
ressurgir inesperadamente semanas depois, numa cena diferente
.
.
mento. O oposto, porém, é ainda pior pois sem fazer nada não há Por exemplo: se não tivéssemos gastado tanto tempo experimen ¬
.
saída: nenhum texto pode “ falar por si mesmo" O caminho mais tando com o barquinho na cena inicial, Ariel nunca teria tido a
simples é sempre o mais dif ícil de achar Falta de inventividade não idéia de interpretar sua primeira cena com Próspero equilibrando
.
c simplicidade, é teatro insípida Portanto, c preciso intervir, mas um barco dc vela vermelha sobre a cabeça; aí sim o acessório era
também manter uma atitude implacavelmente critica quanto às .
genuinamente útil um elemento necessá rio para dar maior vivaci
dade à s suas ações. As cordas, que pareciam excessivas na cena do
¬

nossas tentativas de intervençã o.


navio, tornaram -sc muito ú teis num momento espec ífico, três
E assim inventamos, experimentamos, exploramos, discuti¬
mos. O naufrá gio da primeira cena foi improvisado de pelo menos
vinte modos diferentes. O tombadilho do navio foi sugerido com

cenas depois, quando Caliban subia numa delas e como nunca
se «pcraria que ele fosse subir, isso causava grande surpresa. Do
pranchas de madeira que os atores, agachados colocavam sobre mesmo modo, sc um dos m úsicos não tivesse descoberto em sua
os joelhos para criar os ângulos pronunciados de um convcs incli ¬ sacola de “ possibilidades" um tubo oco cheio de pedrinhas, que
.
nando-se Anel e os espí ritos tentaram vários logos estéticos, jo¬ fazia uma espécie de marulho, como as ondas do mar, talvez nun¬
gando por cima da cabeça dos atores um barquinho de brinquedo, ca tivéssemos descoberto o recurso mais simples para substituir
esmagando - o com uma pedra ou mergulhando o num balde - todas as tentativas canhestras que havíamos feito para evocar a
d'igua. Marinheiros subiam pelas escadas ou escalavam os bal ¬ tempestade c indicar ao pú blica, logo nos primeiros segundos, que
-
cões da plateia, os concsá os apinha vam se em exíguos camarotes o espetáculo vai sc passar na ilha da imaginaçã o.
sob a luz de lanternas oscilantes, enquanto espíritos mascarados Nosso principal trabalho, dia após dia, consistia em lutar com
-
divertiam se tomando o lugar dos marinheiros amotinados No . as palavras c seus significados. O significado também emerge do
instante cm que as ideias surgiam, tudo era muito cstutmlunte, mas texto lenramentc, por tentativa e erro. Um texto só ganha vida
nada convincente sob um olhar mais frio no dia seguinte, c acaba ¬ através de detalhes, e os detalhes são fruios da compreensão. No
va sendo invariavelmente descartado sent dó nem piedade. inicio, o ator só pode dor uma impressão muito vaga e genérica do
Desesperados, abandonamos todas as formas de ilustração e mar ¬ conteúdo de uma fala, e muitas vezes precisa de aiudj, que pode
.
consistir cm conselhos c criticas Há também uma técnica que
apenas as vozes para imitar o som do vento e das ondas o que

camos os atores em grupos está ticos, como num orat ório, usando

parecia ser uma idéia promissora, até que tomamos a olhar e per ¬
cebemos que era uma solução solene c desumana.
.
desenvolvemos com os cantores em Carmen Quando o cantor não
conseguia convener sua atua ção genérica cm ações significativas e
detalhadas, um dc meus colaboradores < quc é também um ótimo
.
Nada nos parecia apropriado Toda imagem tinha um incon ¬ .
atorl interpretava o papel para cie Pode parecer que está vamos
veniente: muito convencional, muito artificial, muito intelectual, seguindo os métodos das piores produções da velha escola, em que
.
muito batida Um a um, todos os acessórios foram jogados fora: o cantor era obrigado a copiar servdmcntc o que lhe mostravam .
tá buas, cordas, escadas de aço, barquinhos dc brinquedo. Mas .
Mas a finalidade era outra Quando o cantor conseguia dominar
A PORTA ARERTA
NAO MA SEGREDOS

incongruência da situação dos nobres num mundo de ilusões, por


.
com ê xito a imir.i ç io, rompia com a velha técnica, c então lhe
pedíamos para jogar fora tudo que havia aprendido Era infalível:
- —
meio da presença constante dos espíritos confundindo os huma ¬
-
nos, enganando os com seus truques e incitando os a revelar suas
pretaçã o detalhada

como havia experimentado em si mesmo o que significa uma inter ¬
algo impossível de traduzir em palavras ,
o cantor podia agora descobrir seus próprios detalhes, à sua
maneira. Este método também foi útil aos atores de nosso elenco
— intenções ocultas. Para isso foram necessá rias muitas improvisa¬
ções e invenções concebidas pelos próprios espíritos, e graças à sua
ajuda sentimos que está vamos descobrindo o modo de evocar dife¬
que nunca haviam interpretado Shakespeare: através da imitaçã o,
.
rentes imagens da ilha com recursos muito simples Mal imagin
á¬

conseguiam "sentir" uma cena de modo objetivo, ao assumirem


vamos que esta seria a fonte de nossa maior crise.
.
um padrã o preciso criado por um ator mais experiente Tendo ser¬ Para explicá la, tenho que voltar à questã o do cená rio. Duran ¬
-
te as primeiras semanas, vendo a peça ganhar vida, a cenógrafa e
vido a seu propósito, esse padrã o podia ser descartado, como a
bóia que a criança joga fora quando aprende a nadar. Também é eu fomos ficando cada vez mais convencidos dc que só precisá va ¬
possível estimular a compreensã o fazendo com que os atores tro¬ mos de um espaço vazio, dc um campo livre para o jogo da imagi ¬
quem de papéis nos ensaios, e assim recebam novas impressões das nação. J á havfamos rejeitado as cordas e outros acessórios dos pri¬
personagens que pretendem habitar. O que se deve evitar é que o meiros dias, assim como o piso de madeira ou tapete, certos de que
diretor demonstre como ele gostaria que o papel fosse representa ¬ a textura da história exigia que fosse montada com elementos na¬
turais. Num fim de semana, Chloc trouxe vá rias toneladas de ter
¬
do, forçando o ator a assumir essa construçã o alheia e imposta ,
rcstnngindo se a ela. O ator, ao contrário, deve ser sempre estimu - ra vermelha para o teatro. Para dar mais vida e variedade aos
movimentos dos atores, moldou cuidadosa mente a terra, forman ¬
lâdo a encontrar seu próprio caminho.
Entre as m úifas dificuldades desta peça, as cenas com a corte do pequenos montes e elevações, abriu um buraco profundo num
. dos montes, c como resultado o teatro se transformou numa im¬
dos nobres n á ufragos sã o particularmcnte desconcertantes Ao
escrever estas cenas, Shakespeare deixou as personagens apenas pressionante arena rubra de proporções épicas .
Mas quando começamos a ensaiar descobrimos que a grandio¬
esboçadas, em situações sem dranuticidade. É como se, na sua
última peça, tivesse dcliberadamente abandonado todas as técni¬ sidade do espaço fazia com que nossas ações parecessem med ío¬
cas que havia aprimorado durante a carreira para despertar o inte¬ cres c irrelevantes. A essa altura, está vamos sugerindo o barco com
algumas varetas de bambu na horizontal, que mais tarde, quando
resse do público e sua identificaçã o com as personagens. Por isso, . Os
essas cenas correm um grande risco de ficar insossas e chatas; postas na vertical, bastavam para evocar com clareza a floresta
espíritos só precisavam de algumas folhas de palmeira , punhados
quanto mais a interpretação tender ao realismo psicológico, tanto
de grama ou ramos de arbustos para fazer truques com a imagina
¬
mais se revelará a fragilidade da caracterizaçã o. Parccia - nos evi ¬
çã o. Ficamos frustrados ao descobrir que o novo cená rio se recu
¬
dente que Shakespeare, ao escrever A tempestade como uma fá bu ¬ . rea n ã o evocava
la, queria manter uma leveza do tom em toda a obra, como um sava a colaborar nesse trabalho de sugestão A á

contador de histórias do Oriente, evitando os momentos de maior


-
uma ilha na mente; totnara se uma ilha dc verdade, uma paisagem
trágica á espera de um Rei Lear. Tivemos que remontar todas
as
dranuticidade que suas tragédias contêm . Tentamos explorar a
MAO « A SE 6 REDOS A ROR tA ARERtA

cenas para adaptá -las ao cená rio c equipará -las às suas propor ¬ .
mentais sobre a encenaçã o do espetáculo As crianças sio muito
ções, usando longas varas c objetos infinitameme maiores. Para a melhores c mais objenvas do que a maioria dos amigos e criticos
cena do barco, pensamos até em cobrir o palco com fumaça, por¬
-
que aquela paisagem real n ã o podia transformar se em mar so¬

dc teatro elas não tem preconceitos, nem teorias, nem ideias
fixas. Chegam querendo sc envolver por inteiro no que estão ven¬
mente pelo poder da interpretação. Fmalmentc, Chloé e cu fica ¬ do, mas se perderem o interesse não precisam disfarçar a falta dc
mos apavorados ao perceber que está vamos caindo na clássica
armadilha de ter que adaptar a peça ao cenário, tentando justificar
aten çã o
— nós percebemos imediatamente e levamos a sério, como
um fracasso de nossa parte.
a própria tempestade da peça com uma sucessão de imagens realis¬ No caso dc A tempestade, quando nos apresentamos sobre o
tas. Não enxergá vamos sa ída. A imagem cínica e a imagem criada tapete num espaço mínimo, a peça ganhou vida na mesma hora.
pelos atores não combinavam, e não havia soluçã o aparente. Como nem sc podia cogirar da utilização de elementos decorati¬
O que nos salvou foi um fato que unha se tomado, havia mui ¬ vos, a imagina çã o da plateia ficava livre para reagir a cada suges¬
tos anos, parte de nossos métodos dc ensaio. Em dado momento, .
tã o Os atores bateram portas balançaram grossas cortinas dc
após cerca de dois terços do período dc ensaios, quando os atores plástico para evocar a tempestade, pilhas de sapatos viraram os
já decoraram o cexto, entenderam a história, descobriram as rela ¬ troncos que Fcrdtnando tem que juntar, Ariel rrouxe uma tela de


ções essenciais entre as personagens e quando a montagem está arame do jardim para prender os nobres e assim por diante. A
apresentação nã o tinha estilo esté tico, foi tosca, imediata e coroa ¬


tomando forma cm termos dc marca ções, objeto* de cena, mobiliá ¬
rio, cená rio, elementos dc indumentá ria , abandonamos rudo e da de êxito, porque os meios serviam aos fins, e nestas condições a
história da peça pôde ser revelada com total clareza . Foi um alerta
vamos numa tarde para um colégio onde, em algum porão exíguo
e apertado, rodeados por uma centena de crianças, improvisamos
.
na hora uma versão da peça explorando as possibilidades do espa ¬
ço que nos foi dado, usando apenas o» objetos existentes na sala,
sobre vá rias questões novas para a cenógrafa c para mim na
verdade, ficamos muito preocupados.
É comum vermos espetá culos dc grupos jovens, que fizeram

com total liberdade, para suprir todas as necessidades da peça. grande sucesso em lugares muito pequenos, parecerem canhestros
A finalidade desse exercício é fazer como os bons contadores e medíocres quando se transferem para um palco maior Muitas .
de histórias. Em geral, as crianças nunca ouvirotn falar da peça vezes, energia e qualidade são insepará veis do contexto em que
que lhes vamos apresentar; portanto, nossa tarefa consiste em estio inseridas. Por causa disso, Chloé e eu chegamos a uma con ¬
encontrar os meios mats imediatos de captar sua imagina ção e não clusão óbvia: as invenções divertidas, que funcionavam brilhante¬
deixar que ela escape, fazendo com que a história flua com vivaci¬ mente numa sala pequena, pareceriam infanris c amadorísticas se
dade e frescor a cada momento. A experiência c sempre muito fossem reproduzidas literalmenrc na desafiadora amplidão do nos¬
reveladora, c esse par dc horas faz com que nosso trabalho d ê um so teatro, que naturalmcnrc exige outra espécie de invenção. Ao
.-
salto de várias semanas podemos ver daramente o que é bom, o mesmo tempo, havíamos presenciado a comprovação prá tica de


que é ruim, o que compreendemos bem, quais as idéias que não
funcionam e assim, juntos, descobrimos muitas verdades funda ¬
nossa teoria básica: esta peça deve ser despojada de qualquer pro¬
posta decorativa que limite a imagina ção.
HXO H A ItStIPOl » 0 « T* A «!RT*

Para mim, a solução seria voltar à ideia do tapete, uma á rea rando diversos tipns de piso em construções, parques e descampa ¬
neutra mas atraente em que tudo pode acontecer. Chloé era con ¬ dos. Quando voltei, Chloc tinha emoldurado nosso tapete com
tra, mas ambos concordamos cm testar sem demora esta proposta. varas de hamhu . Depois removeu o tapete, mas seu formato per ¬
Para surpresa dos atores, quando voltaram ao teatro encontraram maneceu como um carimbo no chão, um retâ ngulo perfeito demar¬
no centro «ia terra vermelha nosso grande rapctc persa, que havia .
cado por bambus Chloé cobriu de areia o retâ ngulo. Continuava
sido a área onde apresentá vamos A conferência dos pássaros mui ¬ sendo um tapete, mns um tapete dc areia. Vendo os atores ensaia ¬
to tempo atrás. Fizemos imediaramente um ensaio corrido usando rem nele, sabíamos que nosso problema central fora resolvido.
todos os elementos com que hav íamos ensaiado no teatro, mas Depois, para dar ao espaço um ponto dc referência forte, Chloé
confinando a a ção aos limites do tapete. Os resultados foram colocou duas rochas Li dentro. Mais tarde tiramos uma delas.
estranhamente contraditórios. Por um lado, a peça teve um enor¬ Postenormcnte, para grande alegria nossa, alguns crídcos cha¬
me ganho com a redução da área de interpretação. A maior con¬ maram esse espaço de playing field , expressão que sc usa na
centração da ação, que nã o sc espalhava mats até as paredes do Inglaterra somente para esportes, ou playground , nome que sc dá
. - -
tearro libertou nos de um certo naturalismo: o tapete tornou sc
um espaço formal, o espaço da interpretação, e dc repente o uso
das varetas de bambu c dc obietos pequenos voltou a fazer senti ¬
do. O que havia pareado ridículo num espaça amplo recuperava
. —
ao pá tio dc recreio numa escola, dois termos que correspondem
exatamente ao que pretend íamos desde o in ício um lugar para
o jogo cênico ou cm outras palavras, um lugar em que o teatro
não pretendesse ser nada mais que teatro. Quando alguém escre¬
agora seu significado natural. Por outro lado, como Chloé temia, . .
veu “ Ê um i trdim zcn " lembrei -me dc meu primeiro ponto dc par¬
os desenhos do tapete persa, rào sugestivos para o poema sufi de A tida. Como sempre, temos que ir ã floresta e depois voltar para
conferência dos pássaros, aqui se mostravam ímtanrcmcntc dis¬ acharmos crescendo pinto â nossa porta a planta que queríamos.
persivos. Quando quer íamos que o espectador imaginasse mar, N ão e raro encontrar, muno depois dc terminar a encenação de
areia e ccu, os intrincados desenhos orientais negavam - *c a coope¬ uma pcça, uim anotaçã o ou um pequeno esboço que haviam sida
ínseca tornava impossíveis outras ilusões;
rar, pois sua beleza intr descarudúStLCOmpletamenie esquecidos, provando que cm algum
era como sc estivessem falando com o público cm voz alta numa lugar do subconsciente estava a resposta que levamos meses dc
outra lingua . No col égio, evidentemente, o tapete tinha ficado investigaçã o para rcdcscobnr.


invisí vel era apenas o tapete comum da sala de aula, velho c sem
graça, e portanto náo existia .
Descrevi esta experiência com um dos aspectos da produção, a
cenografia, para que a compreendam como uma clara metá fora
Pensamos então em usar um tapete simples sem desenhos, mas dos demais aspectos. É sempre o mesmo ptocessode tentativa e
logo vimos que ficaria igual J um carpete dc escritório ou hotel, erro, pesquisa, elabora çã o, rejei çã o c acaso que faz com que a
gerando associações irrelevantes com a atualidade. Tentamos jogar interpreta çã o do ator tome forma, que o trabalho dos m úsicos ou
um pouco de areia sobre o t4 petc persa, mas o resultado foi lamen ¬ tio i|uinuiador >e_ jnt egrejn num todo orgânico.
.
tá vel Felizmcme, havíamos planejado alguns dias de folga justa- Falei em “ acaso", um termo que pode ser mal interpretado. O
menre nessa época. Passei esse tempo olhando para o chão, compa ¬ acaso existe; náo é o mesmo que "sorte", obedece a regras que não
N A O HA S E G A E D O S

podemos compreender, mas ccrtamcntc pode ser estimulado c Fontes


fomentado. É preciso haver muitos esforços, todos eles criando um
campo de energia que cm dado momento critico atrai para si a
solução. Por outro lado, a experimentação caótica, pelo simples
prazer da experiência, pode prolongar-se indefinidamente sem
.
jamais chegar a uma conclusão coerente O caos só c útil sc levar à
ordem .
É aí que se torna claro o papel do diretor Desde o início, ele
" As Artimanhas do Tédio" é uma adaptação de UU Duble c
' eU
deve ter o que chamo de “ pressenrimento sem forma”, isto é, uma nos
1’EnttHi”, transcrição dc uma oficina ministrada em Paris
espécie de intuição indistinta mas poderosa apontando para uma
forma básica, que é a fonte da atração que a peça exerce sobre cie.
dias 9 e 10 de março dc 1991.
“ O Peixe Dourado” e “ Não Há Segredos" são adaptações
dc pa¬

O que o diretor mais precisa desenvolver em seu trabalho é o sen do


lestras proferidas em Quioto por ocasi da ã o
¬
outorga
.
tido da escuta Dia após dia, quando ele interfere, comete erros ou
prémio da Fundação Inamori em novembro dc 1991 .
apenas observa o que está ocorrendo na superfície, por dentro
deve estar escutando, escutando sempre os movimentos secretos
.
do processo oculto Ê essa capacidade de escutar que o deixar á
,
constantemente insatisfeito ora aceitando ora rejeitando soluções,
até que de repente seu ouvido escuta o som secreto que estava
aguardando c seu olho vê a forma oculta que tanto esperava.
Questões de visibilidade,andamento,clareza, articulaçã o, energia,

musicalidade, variedade, ritmo tudo isso deve ser observado de
.
modo estritamente prático c profissional É o trabalho dc um arte ¬

são, não há lugar para falsas mistificações, para pretensos méto¬


. . .
dos mágicos O teatro é um oficio O diretor trabalha e escuta Ele
ajuda os atores a trabalhar e escutar .
Esta c a diretriz. É por isso que um processo que muda a todo
instante não é um processo de confusão, mas de crescimento. Esta
.
é a chave Este é o segredo. Como vèem, não hi segredos .

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