Você está na página 1de 11

Capítulo 1

Conceitos fundamentais sobre línguas e política.1

Adrián Pablo Fanjul


María Teresa Celada

Na primeira parte deste capítulo nos concentraremos em introduzir a concepção


sobre o político, tal como pode ser pensada no campo dos Estudos da Linguagem. Para
tanto, com o intuito de ir ao encontro da teoria, um dos seus autores recuperará uma
experiência pessoal com a linguagem relacionada ao nome próprio de pessoa, que irá
sendo vinculada a aspectos de sua história de migração e de sua formação em Letras. O
intuito é mostrar – mediante um caso que inclui questões que dizem respeito às
“políticas linguísticas” ou “políticas de línguas” – como o político se inscreve e se faz
presente de modo constitutivo no funcionamento da língua ou das línguas.
Essa reflexão inicial disparará perguntas que, nas partes subsequentes, nos
levarão a abordar a forma como no campo dos estudos da linguagem emergem
disciplinas que se colocam problemáticas ou perspectivas de trabalho capazes abordar a
diversidade linguística e colocá-la em relação com aspectos da dimensão social. Nesse
movimento, a partir de novas interrogações, recortam-se novos objetos (o de “variação
nas línguas”, por exemplo), fato que contribuirá para uma produção conceitual
relevante, incluindo noções como a de diglossia ou a de planejamento, todas elas
cruciais na reflexão sobre a língua e a dimensão do político.

1. Sobre o político no funcionamento da linguagem

Acreditamos que investir na apresentação deste caso será produtivo para pensar
em como a dimensão do político se inscreve na língua ou nas línguas ou ainda na
relação entre elas, afetando-as e atingindo, também, os próprios falantes enquanto
sujeitos da linguagem. Nesse sentido, o leitor deve estar percebendo que aqui já se
prefigura a necessidade de recorrer ao plural do substantivo língua, algo que, por sua

1
Fragmento do capítulo que faz parte do livro: Celada e Fanjul: Língua(s) e política. Conceitos e casos no
espaço da América do Sul. EDUSP, no prelo.
vez, antecipa uma outra necessidade: a de reconhecer que dificilmente – sendo afetados
pela linguagem – não sejamos sujeitos entre-línguas.
Quando dizemos o político, fazemos referência a algo que, assim como as
dimensões do social e do histórico – às quais está fortemente vinculado – afeta o
funcionamento das línguas ou a própria relação que os falantes mantêm com elas, o que
nos leva a assumir que afeta a linguagem2. A mobilização desse sintagma – com a
presença do determinante “o” que acompanha o adjetivo “político” – proporciona uma
vantagem, funcionando a favor de que nos desvencilhemos de sentidos mais
corriqueiros, altamente presentes no senso comum, segundo os quais “a política”
aparece vinculada a determinados objetos, com frequência antecipados de forma
disfórica: o jogo de táticas e estratégias que responde a interesses de uma figura política
determinada (designada como “o político X” ou “Fulano, o político que...”, “a classe
dos políticos), de um partido ou de um governo no exercício do poder – sentidos que
respondem ao que engloba a expressão “fazer política”. E, de forma genérica, pode-se
fazer referência a esse jogo mediante enunciados desqualificadores tais como: “a
medida responde a interesses políticos”, “isso é pura política” ou até “é politicagem” 3.
O caso central sobre o qual me debruçarei se relaciona com o espaço sul-
americano e, pelo viés de um processo migratório, tem seu início na Península Ibérica,
do lado espanhol.

1.1. Nomes próprios de pessoa e línguas

Desde criança, boa parte das vezes nas quais devo me apresentar a alguém,
ressoa em meu dizer um enunciado mais ou menos cristalizado: “Soy María Teresa” ou
“Mi nombre es María Teresa”, fragmento que, indefectivelmente, encontra continuidade
no seguinte: “pero todos me dicen Maite”. Agora, ao refletir sobre esse modo de dizer
de mim ou sobre mim, penso até que a ordem dos termos deveria ser outra: “Soy Maite,
pero mi nombre es María Teresa”, enunciado no qual o sintagma sublinhado poderia
sofrer uma especificação: “mi nombre ´oficial´”. Se, como diriam os analistas do
discurso e/ou os psicanalistas, o nome próprio concentra a memória de nossa entrada no
simbólico, materializando as projeções ou antecipações que se realizam sobre nossa
2
Com esse termo fazemos referência ao verbal e ao não verbal, pensando inclusive na necessidade de
contemplar um campo habitado pelas diversas línguas e práticas discursivas, tanto da dimensão escrita
quanto da oral – cada uma com suas tipologias de discurso e com seus modos de dizer específicos.
3
Como será possível ver mais adiante, a observação não invalida que se possa falar, no campo da
linguagem, de “a política”.
chegada ao mundo, neste caso a oposição indicada pelo pero (“mas”, em português) se
dá – no mínimo – entre duas dimensões: a que remete ao funcionamento de uma língua
oficial e a do universo linguístico que atravessava meu âmbito familiar, composto, a
meados da década de 1950, fundamentalmente por pai e mãe “espanhóis”, que
acabavam de migrar para Buenos Aires (Argentina) – cidade que já recebera várias
levas de diferentes imigrações desde a segunda metade do século XIX. Coloco o
gentílico (“espanhóis”) entre aspas para lembrar que quando eles se apresentavam,
mobilizavam um pero, também para introduzir um esclarecimento: “Somos de España,
pero de la zona vasca”. Tanto nesse caso como no do enunciado referido a meu nome
próprio é possível reconhecer que operam modos de afirmar certas identificações que
parecem restringir o escopo da afirmação presente na primeira parte da sentença e isso,
justamente, acontece a partir da oposição estabelecida pelo pero. Começarei por me
concentrar no último dos dois enunciados.
Meus pais eram da província de Vizcaya, no norte da Espanha, território que faz
parte do que hoje se conhece como a Comunidad Autónoma4 do País Vasco –
designação essa, convenhamos, bastante expressiva. No caso, seria possível interpretar
que o pero remetia, pensando no enunciado como um todo, à contradição experimentada
– na interioridade de um sujeito – entre o reconhecimento da soberania territorial de um
Estado e a afirmação de pertença a um espaço específico; sem dúvida, tal contradição se
vincula à complexa história da formação da nação espanhola e de tudo o que isso
implicou, inclusive no plano das diversas línguas vernáculas. No “espaço basco”, para
nomeá-lo de alguma forma, essa língua foi e é o euskera, em muitos momentos tratada
como uma ameaça à soberania nacional dentro do Estado espanhol, que de vários modos
instaurou sua autoridade para (como fosse possível) “banir essa alteridade”.
A sucinta referência que aqui realizo a respeito de uma história altamente
complexa5 já permite retomar o primeiro enunciado, no qual a oposição introduzida pelo
pero expressava uma contradição, no caso, diretamente vinculada ao nome próprio e,
portanto, à língua. Para compreendê-la é preciso esclarecer que, em vários momentos,
no que estou designando como espaço basco, os nomes em euskera eram proibidos e,
como parte de uma prática, as pessoas faziam o registro do nascimento com o nome em
espanhol e mantinham, no âmbito familiar6 – dentro de uma espécie de relação de
tradução – o correspondente na língua própria: por exemplo, um menino registrado
4
A designação se refere à divisão política da Espanha a partir da Constituição de 1978.
5
De fato, como meu foco é tomar o caso que abordo como base de uma reflexão, estou resumindo a um
breve relato uma história muito complexa como é a da Espanha e as das línguas que habitam esse espaço.
como Ignacio era chamado de Iñaki; ou uma menina, registrada como Encarnación, era
chamada de Gizane. No caso de Maite, o procedimento era um pouco diferente, tal
como aparece relatado hoje numa espécie de verbete da “Academia de la lengua vasca”
no qual, após afirmar que se trata de um nome “de origen euskérico” (“maitea,
maitatua: ‘amada, amado’”) – muito divulgado no mundo graças a uma música que se
tornou popular –, registra-se que quando os nomes em euskera eram proibidos foi muito
usual registrar as recém nascidas como Maria Teresa “para poder llamarles Maite”7.
Nesse caso, não opera uma correspondência ou equivalência a não ser a estabelecida por
uma prática dentro de uma tradição. O nome María Teresa respondia ao registro “para
poder” – resgato expressamente o modo de dizer no fragmento citado – atribuir a uma
filha, em euskera, o nome maite – um adjetivo que regularmente se traduz como
“amada” ou “querida”8. Pela repetição da prática, esse adjetivo que, como nome, soava
como um vocativo, parece ter se transformado em nome de pessoa – ao menos é isso o
que interpreto.
Desse modo, mediante a mobilização de significantes de uma língua com relação
à qual esses sujeitos da linguagem afirmavam sua filiação e, de modo específico,
mediante a nomeação eminentemente afetiva (maite), a criança ficava sujeita à
duplicidade na convivência desigual e, portanto, contraditória de dois nomes. O nome
registrado remetia à dimensão oficial enquanto Maite, que funcionava nos espaços que
fugiam ao olhar controlador do Outro que impõe uma normativa – termo que
mobilizamos num sentido amplo (como série de normas) ou inclusive como lei – 9, era
uma espécie de apelido; assim, ficavam delimitados claramente os lugares e o
funcionamento da língua oficial, nesse caso também nacional (o espanhol ou
castelhano), e da língua outra (o euskera): aquela que para muitos, nos momentos de
6
Disponível em: http://www.euskaltzaindia.eus/index.php?
option=com_oeh&view=frontpage&Itemid=340&lang=eu&sarrera=maite&xeh=41 ,acesso em: 15 abr.
2018.
7
Disponível em: http://www.euskaltzaindia.eus/index.php?
option=com_eoda&Itemid=204&lang=es&testua=Maite&view=izenak , acesso em 14 abr. 2018.
Apresentamos a seguir parte do verbete traduzido: Nome de origen euskérico muito utilizado. Trata-se de
um adjetivo (maitea, maitatua, em espanhol: “amada”, “amado”). Na época na qual os nomes em euskera
estavam proibidos, foi muito usual registrar as recém nascidas como Maria Teresa “para poder
llamarles Maite”.
8
Veja-se que o nome em euskera era o que prevalecia e “María Teresa” era a saída para o procedimento
de driblagem, que implicava se submeter a uma normativa.
9
Na teoria lacaniana, falar do Outro grafado com letra maiúscula implica estabelecer uma diferença com
“o outro”, que refere ao semelhante, ao interlocutor. A relação com o primeiro está marcada pela
determinação que nos afeta, como sujeito, pois esse Outro (que não é nosso semelhante) instaura uma
normativa, diversos códigos, enfim, a lei – observação com a qual já frisamos também o modo como
entendemos aqui “normativa”. A relação com o semelhante, da sua parte, já não guarda uma relação
marcada por esse grau de determinação.
forte exclusão, funcionava como materno-familiar 10. Essa tradição se fez presente até o
final da ditadura franquista (1939-1975). Lentamente, na transição à democracia e com
a sanção da Constituição de 1978 o nome Maite passou a ser regular. Nesse documento
se determinava “el castellano” como “la lengua oficial del Estado” espanhol e “las
demás lenguas españolas” como “oficiales en las respectivas Comunidades Autónomas
de acuerdo con sus Estatutos”11.
Ora, quando meus pais chegaram à Argentina, no início da década de 1950, de
acordo com o relato, havia listas de nomes permitidos e “Maite” não estava entre eles 12,
o que deve ter levado meu pai a repetir a tradição para ele natural(izada): o nome
registrado foi “María Teresa” e o apelido passou a ser Maite. A partir da série de
considerações introduzidas, me debruçarei agora sobre um aspecto específico do
funcionamento do pero, que aparece na minha enunciação quando me apresento: “Mi
nombre es María Teresa pero todos me dicen Maite”.
De fato, em português o “mas” é bem possível em sintaxes parecidas: “Meu
nome é Lúcia, mas pode me chamar de Lu” ou: “Meu nome é José, mas pode me
chamar de Zeca". No entanto, no caso abordado (que foi historicamente o de tantas
“Maites” e o de tantos outros sujeitos da linguagem), esse conector articula uma
adversativa que se filia a uma memória vinculada ao funcionamento do Estado nacional
cuja língua nacional e oficial era, nas épocas referidas, o espanhol e, por isso, significa
de modo específico. O caso mostra, de um lado, as políticas dos Estados e a
homogeneização que os processos de interpelação por eles instaurados implicam e, de
outro, os gestos de corte ou separação, nunca absolutos, praticados pelos falantes que,
desse modo, se afirmam em pontos de identificação específicos ou singulares com
relação à alienação que supõe a interpelação desse Outro, cuja figuração mais clara é, no
caso, o Estado nacional.
Nesse sentido, penso que o particular funcionamento dos nomes próprios de
pessoa aqui apresentado ilustra em vários sentidos como, num determinado espaço,

10
A distinção entre língua materna e língua nacional, tão complexa e importante para um estudioso da
linguagem, será abordada no item 3 do presente capítulo. É preciso dizer que, dependendo do momento
histórico e das relações de força, nos diversos pontos do espaço habitado por essa língua no norte da
Espanha, o euskera podia atravessar o espaço público. Atualmente, pelo estatuto de oficialidade, que lhe
foi atribuído pela Constituição de 1978 (à qual se fará referência imediatamente), e por todo um processo
de resgate encampado – não sem fortes dificuldades de várias ordens – pelo governo dessa comunidade e
por outros atores sociais, é uma língua presente na documentação do espaço público, nas escolas, na
mídia – dentre outros vários pontos desse espaço.
11
Cf. http://www.lamoncloa.gob.es/documents/constitucion_es1.pdf, acesso em: 30 abr. 2018.
12
Esse aspecto provavelmente cause surpresa ao leitor brasileiro, pois difere do modo como é praticada a
atribuição de nomes próprios de pessoa no Brasil.
operam as relações entre línguas ao redor da oficialidade de uma língua nacional 13, no
caso, numa clara disputa entre movimentos que implicam inclusão e exclusão de
formas. De um lado, a normativa estabelecida por um Estado nacional e, de outro, os
gestos de resistência produzidos pelos falantes, como indivíduos dentro desse espaço.
Será produtivo, neste ponto, estabelecer relações com o conceito de o político,
central na Análise do Discurso de limnha materialista, a partir de sua constituição como
disciplina na França do final da década de 1960. Nessa linha, no Brasil, Orlandi, já em
1988, afirmava no prólogo de um livro chamado “Política linguística na América
Latina”, por ela organizado, que “Falar é, em si, uma prática política. No sentido largo
do político, que assim considera as relações históricas e sociais do poder”14. E, de
acordo com essa concepção, é preciso que não consideremos o poder apenas como o
institucionalizado (o de um Estado, por exemplo) mas, como observa Lagazzi-
Rodrigues, que concebamos “o político como um espaço de relações que
necessariamente se constituem enquanto relações de força, instituindo um domínio de
poder em que há possibilidade de se pensar a mudança, a resistência do sujeito” 15.
Assim, a pesquisadora – inspirada pela leitura de um belíssimo texto de Courtine 16,
quem compreende o político justamente como um espaço de relações – supera
identificações redutoras que projetam o termo apenas como “exercício do poder” e o
vincula a “heterogeneidade” e a “funcionamento”. Numa formulação especialmente
expressiva, alguns anos depois Orlandi consegue amarrar essa trama conceitual: “o
político, simbolizando as relações de poder, reside na divisão dos sujeitos e dos sentidos
já que a nossa formação social é regida pela diferença, pela divisão, pela dispersão”17.
Em letra itálica, marco as formas que trazem justamente a heterogeneidade e a dinâmica
do funcionamento apontadas por Lagazzi-Rodrigues 18 e que colocam “o político” em

13
Neste ponto, cabe ao menos deixar registro de uma observação da qual o leitor deve estar sentindo falta:
o confronto aqui abordado pode se dar no interior de “uma língua”, na relação entre o que se conhece
como “norma padrão” – fortemente vinculada à língua nacional e oficial – e outras formas dessa língua,
sempre heterogênea.
14
Orlandi, 1988, p. 7, grifos nossos.
15
Suzy Lagazzi-Rodrigues. A discussão do sujeito no movimento do discurso, 1998, p. 43.
16
Jean-Jacques Courtine, Chronique de l'oubli ordinaire. In: Sediments 1, Montreal, 1986.
17
Eni Puccinelli Orlandi, Educação em direitos humanos: um discurso. In: Eni Puccinelli Orlandi,
Discurso em Análise. Sujeito, sentido, ideologia, 2012, p. 152.
18
Considero relevante registrar que Lagazzi-Rodrigues também lê Arendt, quem reivindica a necessidade
de não ficar “na ignorância do conteúdo real da vida política, da alegria e da satisfação que nascem do
fato de estarmos em companhia de nossos semelhantes, de agirmos em conjunto e aparecermos em
público, de nos inserirmos no mundo pela palavra e pela ação, e assim conquistarmos e sustentarmos
nossa identidade pessoal [...]”. O texto de Arendt mobilizado por Lagazzi-Rodrigues é: Hanna Arendt,
Vérité et Polítique, In: Hanna Arendt, La crise de la culture. Gallimard, 1972.
clara relação com sentidos tais como “confronto” e “luta” nos diferentes níveis e esferas
das práticas sociais.
Na sequência dessas formulações, que já permitem tecer relações para retomar o
caso sobre o nome próprio aqui apresentado, parece-me produtivo trazer à baila as
considerações realizadas por Guimarães19, numa interlocução explícita com a Análise do
Discurso, pelas inflexões ou especificações às quais submete o conceito. Para o autor,
que trabalha dentro de uma semântica histórica da enunciação, o político deve ser
considerado tanto como conflito – no sentido formulado por Orlandi20 – quanto como
dissenso – de acordo com a reflexão elaborada por Rancière 21. A partir desse duplo
reconhecimento e da consideração de alguns conceitos desenvolvidos por esse filósofo,
Guimarães22 afirma que o político é caracterizado “pela contradição de uma
normatividade que estabelece (desigualmente) uma divisão do real e a afirmação de
pertencimento dos que não estão incluídos”. Desse modo, explicita, “é um conflito entre
uma divisão normativa e desigual do real e uma redivisão pela qual os desiguais
afirmam seu pertencimento”.
No caso aqui apresentado, a contradição radica no fato de haver uma normativa
que proíbe o uso do euskera num espaço no qual os indivíduos – como sujeitos de
linguagem – se sentem no direito de enunciar nessa língua; por sua vez, ela se
materializa na duplicidade de que os pais, ao “nomear” seus filhos, realizam o registro
no idioma oficial (e nacional) para poder llamarles – lembremos desse modo de dizer já
destacado – com as formas (os significantes) da língua própria. A partir do
procedimento do registro, instala-se aí um percurso social que justamente vai na
contramão do efeito de “unicidade” – segundo o próprio Guimarães – do nome próprio
de pessoa23.
A duplicidade da nomeação implicada pelo registro de nascimento opera na
filiação de uma memória de exclusão do euskera e instala um vaivém, um
funcionamento equívoco fortemente vinculado ao modo de ser sujeito, de se fazer

19
Eduardo Guimarães, Semântica do acontecimento: um estudo enunciativo da designação, 2002.
20
A obra citada corresponde à que consta em nossas referências bibliográficas como Orlandi (1990).
21
Jacques Rancière, La mésentente, Paris, Galilée, 1995. (Há tradução ao português: Jacques Rancière, O
desentendimento. Política e filosofia. Tradução de Ángela Leite Lopes, São Paulo, Editora 34, 1996.)
22
Guimarães, op. cit., p. 16.
23
Idem, p. 33. O autor refere-se à questão de que pensar no nome próprio de pessoa nos
obriga a estabelecer uma oposição a respeito da relação nome/coisa, trazendo a
diferença implícita na comparação: no primeiro caso somos pegos pelo efeito pelo qual
consideramos que estamos diante de “um nome único” para fazer referencia a um objeto
também único – e não algo comum).
sujeito, pensando, por exemplo, nos processos de identificação ou não com um ou outro
nome. Para dar um exemplo claro, retomo que o Maite (que foi possível ver que
funcionava como um apelido) transpôs – por exemplo, no âmbito acadêmico, no registro
da autoria de artigos ou em algum congresso – as fronteiras inicialmente traçadas com
relação ao nome com o qual eu fora juridicamente registrada (María Teresa). É possível
ver claramente como pode operar o deslizamento

María Teresa - sobrenome


María Teresa / Maite - sobrenome
Maite / María Teresa - sobrenome
Maite - sobrenome

Dessa forma, tento deixar registrado o modo como o nome em espanhol, em alguns
momentos, barrou a aparição do nome em euskera e, em outros, este último foi se
impondo e se naturalizando no uso, inclusive acompanhado do respectivo sobrenome.
Da perspectiva apresentada, essa ordem morfossintática – como se diz na Análise do
Discurso: essa “materialidade”, que é linguística e histórica e que, portanto, não é
transparente – está atravessada pelo político.
Para concluir, considero importante dizer que o conceito sobre “o político”,
formulado por Guimarães em 2002, se relaciona com noções previamente formuladas
pelo autor, como a de “relações de línguas”, registrada na Enciclopédia das línguas do
Brasil. Esse verbete24, no qual o sintagma que refere ao objeto definido é em si mesmo
muito expressivo, deságua no conceito de “espaço de enunciação”.

Os espaços de enunciação são espaços de funcionamento de línguas, que se dividem, redividem, se


misturam, desfazem, transformam por uma disputa incessante. São espaços habitados por falantes, ou
seja, por sujeitos divididos por seus direitos ao dizer e aos modos de dizer25.

Neste ponto seria possível acrescentar, com base no caso abordado: “divididos
por seus direitos às línguas nas quais dizer”. A formulação permite deslocar certos
sentidos que com frequência se apresentam a nós em sua evidência pois, ao colocar o
político no centro do cenário, focaliza-se, de um lado, o funcionamento não apenas da

24
Na sua página oficial, o projeto de a “Enciclopédia de Línguas no Brasil”
(https://www.labeurb.unicamp.br/elb2/pages/artigos/lerArtigo.lab?id=1) se apresenta mediante a seguinte
formulação: “tem como objetivo produzir, reunir e fazer circular conhecimento sobre o grande número de
línguas praticadas no país. Com esse objetivo, esta enciclopédia procura atender a todos os interessados
nos aspectos ligados ao grande número de línguas praticadas no Brasil.” O verbete “relações de línguas”
está disponível em: https://www.labeurb.unicamp.br/elb2/pages/noticias/lerArtigo.lab?
categoria=12&id=76, acesso em: 30 abr. 2018.
25
Guimarães, op, cit, p. 18.
língua ou de uma língua, mas das línguas e, de outro, os falantes, como sujeitos
marcados pela complexa relação que travam com as mesmas.
Neste ponto, considero pertinente retomar uma formulação já citada de Orlandi,
segundo a qual “Falar é, em si, uma prática política. No sentido largo do político, que
assim considera as relações históricas e sociais do poder” 26. A partir dela, a autora
estabelece uma oposição que considero produtiva: “Paralelamente a essa presença geral
do político na linguagem, podemos falar de algo mais circunstanciado e, de certa forma,
‘administrativo’: a política da linguagem ou política linguística”, passando a concluir:
“Certamente”, anuncia, “haverá muitos sentidos a dar à noção de política linguística”.
Resgato a oposição não porque considere que é possível de ser observada sempre numa
distinção bem delimitada, mas porque me parece que deixa mais claro ainda o caráter
constitutivo do político com relação ao funcionamento da linguagem.
Também aproveito essa formulação para passar a formular alguns
desdobramentos do caso apresentado e ir abrindo para esses vários outros sentidos já
apontados por Orlandi.

1.2. Mais arestas e desdobramentos

Retomamos aspectos relativos à experiência como filha de imigrantes na


Argentina da década de 1950 – no caso, falantes de espanhol de uma específica região
da Espanha – para observar que ela foi marcada pelo jogo que se materializava entre a
língua falada no âmbito familiar, no qual eram mobilizados modos específicos de
dizer27, e as formas dessa “mesma língua espanhola” na quais eu ia lentamente me
afirmando: as do espaço rioplatense, com seu sotaque, sua pronúncia, suas formas de
tratamento, seu léxico etc. Esse fato, em vários momentos, me levou a vivenciar um
confronto entre dois espaços e suas respectivas práticas de linguagem: de um lado, a
escola, na qual eu às vezes mobilizava formas próprias da fala, especialmente de minha
mãe, que a professora não reconhecia como sendo do espanhol – e, portanto, corrigia –
e, de outro, minha casa, onde minha mãe me instigava a “falar direito”, abandonando os
modos de dizer que ela avaliava como incorretos28.

26
Orlandi, op, cit, 1988, p. 7. As remissões ao texto que faremos imediatamente correspondem a essa
mesma página.
27
Cabe observar que fui criada a 40 km da Cidade de Buenos Aires num pequeno bairro de operários
vinculado a uma fábrica majoritariamente de italianos (na época, a primeira imigração em número na
Argentina) com algumas famílias provenientes da Espanha (duas bascas, uma valenciana e uma catalã).
O fato de conviver com essa heterogeneidade que se apresenta – aproveitando
formulações de Orlandi29 – como um duplo fundo habitando “uma mesma língua” tem
seus efeitos e, no meu caso, interpreto que alentou um amor da ou pela língua 30 que,
após terminar a faculdade de Letras na Universidade Nacional de Buenos Aires
(Argentina), se vinculou a um amor pelo “discurso”, o que me trouxe ao Brasil, em
1988, para fazer uma pós-graduação no “Instituto de Estudos da Linguagem”, da
Unicamp. De fato, na linha da Análise do Discurso presente nesse Instituto foi possível
– em resposta a um velho desejo meu – ver como as dimensões do linguístico e do
extralinguístico se entrelaçam num enunciado ou fragmento textual visto como discurso.
E essa migração, também, implicou outro rico confronto: o de tornar-me sujeito do
português do Brasil. A especificidade do caso – já que é preciso reconhecer que a
experiência de mergulhar numa nova língua quase sempre é, em si mesma,
enriquecedora – se deu pela singularidade de como o português “roçava” meu espanhol,
numa relação marcada pelo soar e ressoar que trazia o jogo entre o familiar e o estranho
já que, pelo específico trabalho de separação a que foram submetidas na história, cada
uma (espanhol, português) guarda memória da outra31.
Os amores foram se multiplicando e, no Brasil, voltei a experimentar, como
falante, o “duplo fundo” que habita, como diz Orlandi 32, a língua do brasileiro: “no
mesmo lugar há uma presença dupla”, pois “o português do Brasil e o português do
Portugal se recobrem como se fossem a mesma língua”, no entanto, acrescenta,
apresentam funcionamentos diferentes e significam de modo diferente 33. “Nós,
brasileiros” – acrescenta – “ao falarmos português estamos sempre nesse ponto de
disjunção obrigada. A nossa língua significa em uma filiação de memória
heterogênea”34.

28
Na zona basca da Espanha da década de 1920, minha mãe, que havia perdido seu pai – falante de basco,
com pouco saber do espanhol – conseguiu fazer apenas a escola primária e exclusivamente em espanhol.
29
Eni Puccinelli Orlandi, A língua brasileira, In: Trabalhos em lingüística aplicada, 1994a e Eni
Puccinelli Orlandi, A língua brasileira, In: Eni Puccinelli Orlandi, Língua e conhecimento linguístico,
2002b.
30
Estou parafraseando o título do instigante livro de Jean-Claude Milner, O amor da língua, 1978.
31
Como diz Perlongher (1992, p. 9): “Há entre as duas línguas um vacilo, uma tensão, uma oscilação
permanente: uma é o “erro” da outra, seu devir possível, incerto e improvável”.
32
Orlandi, op. cit, 1994a e 2002b.
33
Orlandi, op. cit., 2002b, p. 23.
34
Idem, ibidem. Galves, numa outra linha de estudo, chegará a afirmar que “os falantes de português
europeu e de português brasileiro não têm a mesma gramática, ou Língua-Interna”. A autora retoma essa
afirmação em seu livro de 2001. Ainda numa outra tradição de trabalho, Mattos e Silva, deixava registro
dessa separação no expressivo título de seu livro: O Português são dois: novas fronteiras, velhos
problemas (São Paulo, Parábola, 2004).
O caso apresentado no subitem anterior, aqui retomado e ampliado pelo processo
de migração sobre o qual realizei apenas algumas considerações, permite distinguir
diversos aspectos relativos à dimensão da linguagem dentre os quais destaco a seguir
alguns em especial:
- a questão do nome próprio de pessoa e da duplicidade que nele se inscreve a partir do
conflito entre duas línguas (uma delas oficial) que cruzam um espaço de enunciação e
afetam um falante, como sujeito da linguagem;
- as políticas de um Estado nacional, que implicam em “políticas linguísticas” – um
sintagma que já está na hora de submeter a uma apresentação e definição, inclusive ao
colocá-lo em relação com outros sintagmas também possíveis;
- a “minorização” que afeta as línguas, por efeito de processos de censura, proibição ou
exclusão, como é o caso do euskera na Espanha;
- os fenômenos de diglossia35 que afetam os falantes de um espaço no qual as línguas
são proibidas e minorizadas;
- os processos de migração que implicam que um sujeito seja afetado por uma relação
“entre línguas”;
- o fato de uma língua funcionar numa memória de colonização como vimos,
claramente, no caso do português brasileiro.
Esses aspectos são alguns dos tantos que podemos compreender como fatos da
linguagem e como objetos de estudo do que se costuma chamar de “política linguística”
(no singular), “políticas linguísticas” (no plural), planejamento linguístico, “políticas de
língua(s)” e – inclusive, sem querer fechar a enumeração – “intervenções
glotopolíticas”. Faz-se necessário, neste ponto, passar a tratar de alguns dos sintagmas
que – com diversas estruturas – designam lugares ou conceitos que, dentro do campo
dos Estudos da Linguagem – especialmente no que se designa como Sociolinguística,
Sociologia da linguagem, Glotopolítica – foram surgindo para tratar o leque de
considerações que o político implica na dimensão da linguagem.

35
O conceito será abordado na próxima seção deste capítulo.

Você também pode gostar