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Capítulo 4

Feminismos junguianos?

Eis então que agora resolvi… contar o meu mito pessoal. Eu posso
somente… “contar histórias”. Se as histórias são “verdadeiras” não
vem ao caso. A única questão é se o que eu vou contar é a minha
fábula, a minha verdade.
(Jung, Memórias, sonhos, reflexões, 1963)

Jung era inspirado pela anima, e essa condição deve necessariamente


empoderar aqueles que se sucederam a “sonhar o trabalho para
frente”… Se vamos aceitar ou não as revisões dos seguidores
inspiradas pela anime é uma outra questão.
(David Tacey, Remaking Men, 1997)

O capítulo 4 aborda o trabalho pós-Jung sobre gênero que não se insere na


tradição grande teoria do “feminismo junguiano”. Minha sugestão é que esse
pensamento mais plural e diverso sobre gênero constitui a evolução dos
“feminismos junguianos”.
A produção de “feminismos junguianos” se distingue do “feminismo
junguiano” do Capítulo 3 porque está ligada ao aspecto “mito pessoal” dos
escritos de Jung (apresentados no capítulo 2). Os feminismos junguianos
englobam formas revolucionárias de pensar sobre gênero, teoria e sociedade
trazidas por pessoas baseadas primordialmente na psicologia junguiana. James
Hillman e a psicologia arquetípica que ele promovia são fontes de tais
feminismos junguianos.
Também é necessário olhar o movimento masculino mitopoético,
inspirado pelo poeta Robert Bly, que se dizia “junguiano” no que se refere a
gênero. Meu objetivo é mostrar que tal afirmação não se sustenta. Além disso, os
feminismos junguianos se beneficiaram muito de pensadores aptos a usarem as
perspectivas de outras disciplinas. Entre eles: David Tacey, Andrew Samuels
(cujo trabalho foi tão influente), o agrupamento de acadêmicas feministas
conhecidas como teóricas arquetípicas feministas e a escola pós-junguiana de
psicologia do desenvolvimento. Termino o capítulo com um exemplo de como
trabalhos feministas históricos sobre Jung podem fornecer análises da função do
gênero em seus textos.

Introdução: feminismos junguianos

No campo de estudos junguianos pós-Jung, há algo conhecido


popularmente como “feminismo junguiano”. Esse rótulo se refere aos trabalhos
junguianos sobre gênero e o feminino abordados no capítulo anterior. O
“feminismo junguiano” tradicional, como já argumentei, está relacionado ao
desejo de Jung de produzir uma “grande teoria” sobre psique e cultura.
No entanto, há simultaneamente uma percepção crítica crescente daquilo
que denomino o elemento “mito-pessoal” na escrita de Jung. Refere-se a sua
tendência de explorar as consequências da natureza escorregadia e incognoscível
da psique. No mito pessoal, Jung é ciente da impossibilidade de produzir uma
versão única, imutável e definitiva da mente.
O elemento em comum dos trabalhos dos pós-junguianos neste capítulo é
a recusa de tratar Jung como um teórico cujos princípios básicos podem ser
estendidos, porém não contestados. Por isso, operam dentro da sua tradição de
“mito pessoal”. Conforme analistas e pensadores responderam a essas
qualidades no trabalho de Jung, eles produziram trabalhos sobre gênero e o
feminino que divergem explícita ou implicitamente daqueles que buscam bases
definitivas para uma psicologia da mulher.
Como consequência, grande parte do material deste capítulo deriva de
pensadores junguianos que não se identificam integralmente ou até mesmo
parcialmente como “feministas junguianos”. Seus trabalhos constituem uma
evolução dos “feminismos junguianos” e devem ser vistos no contexto mais
amplo dos estudos feministas e de gênero.
A esta altura, seria útil fazer um resumo dos desenvolvimentos, em linhas
gerais, dentro da teoria feminista contemporânea. Os estudos feministas
ganharam força a partir do momento em que as mulheres perceberam que
sistemas de saber criados por homens em todas as esferas – medicina, história,
religião, literatura, filosofia, psicologia – omitiram ou distorceram a
representação das mulheres. O resultado foi uma “crítica feminista” de normas
masculinas (previamente disfarçadas de verdades universais sobre seres
humanos) que se tornou a base do direcionamento das pesquisas feministas.
Neste livro a crítica feminista do pensamento de Jung sobre as mulheres pode ser
encontrado principalmente no capítulo 2. É também um traço significativo de
grande parte dos trabalhos junguianos sobre gênero pós-Jung, abordados nos
capítulos 3 e 4.
Reconhecendo que não era suficiente simplesmente criticar os textos
masculinos dotados de autoridade, a teoria feminista entrou numa fase de
“mulheres escrevendo”. As mulheres precisam representar a si mesmas
escrevendo a sua psicologia, sua história, sua arte, sua filosofia e religião. Grande
parte do trabalho discutido no capítulo 3 tem ligação com esse gênero de
autorrepresentação das mulheres.
No entanto, dentro e fora da atividade feminista surgiram desafios à ideia
de que uma única mulher pudesse escrever em nome de todas as mulheres, sem
problematização. Em primeiro lugar, o feminismo enquanto movimento político
e cultural mais amplo se tornou mais autocrítico. Percebeu-se que ele não
poderia sustentar uma única e simples categoria de “mulheres”. Diferenças
relativas a sexualidade, classe, raça, grupo étnico e localização cultural significam
que o feminismo precisava abordar questões de poder e identidade dentro do
próprio movimento. Do lado de fora, o impacto de teorias tais como psicanálise,
desconstrução e pós-modernismo culminou num verdadeiro ataque à noção de
um Eu único e unificado. A ideia de uma identidade fixa é necessária para manter
a ficção de um agrupamento não problemático de “mulheres”.
Em resposta a essa nova situação política e teórica, o “feminismo” virou
“feminismos”. Não pode haver um único grande relato unificado de “mulheres”; a
“teoria feminista” vira uma aliança estratégica de abordagens diferentes para
questões de gênero, identidade, cultura e poder.
Minha alegação é que os estudos junguianos atingiram o patamar de
oferecer feminismos junguianos ao invés de apenas feminismo junguiano. Este
livro se dedica a explorar as novas oportunidades decorrentes dessa expansão de
possibilidades feministas. O que vale especialmente a pena ressaltar aqui é até
que ponto o próprio Jung provoca esse desenvolvimento ao questionar as
concepções descomplicadas da teoria “dotada de autoridade” com os impulsos
que tenho chamado de “mito pessoal”.
Este capítulo abordará os feminismos junguianos já existentes dentro da
arena criativa de trabalhos sobre gênero que surgiram depois de Jung. Todos os
teóricos poderiam ser chamados de “imitadores” de Jung ao invés de
“seguidores”. Eles imitam a consciência “mito-pessoal” de Jung quanto às
dificuldades de escrever sobre algo que nunca poderá ser precisamente definido.
Eles não amplificam os preceitos de Jung com a ambição de uma grande teoria
sobre gênero, psique e cultura.
Essa caracterização dos teóricos junguianos significa que eu vou olhar
para duas das escolas pós-junguianas de Andrew Samuels: a arquetípica e a de
desenvolvimento. Essas duas escolas são pós-junguianas no sentido em que
Samuels define o termo: operando em diálogo com, porém a uma distância crítica
daquilo que é geralmente aceito como os princípios da psicologia junguiana (isto
é, Jung enquanto grande teoria). A terceira vertente, a clássica, tenta ser mais fiel
a Jung e então qualquer feminismo gerado por ela se encaixa na tradição
abordada no capítulo 3.
É claro que há um perigo real ao fazer uma divisão muito rígida entre
junguianos da “grande teoria” sobre gênero e autores alinhados com o “mito
pessoal” que abordaremos aqui. No capítulo anterior, há autores que são
altamente críticos das limitações de Jung com relação a gênero e às mulheres.
Assim como Samuels observa que não há uma divisão clara entre analistas
junguianos em qualquer uma das três escolas, alguns dos teóricos discutidos no
capítulo 3 poderiam alegar alguma conexão com qualquer uma das duas
tradições, a arquetípica ou a de desenvolvimento.
Por outro lado, David Tacey, discutido neste capítulo, é adepto da noção
“do princípio feminino”, uma característica dos junguianos descritos no capítulo
3. Na prática, este capítulo, ao tratar de pessoas que influenciaram o
desenvolvimento dos feminismos junguianos, aborda os autores que fazem uma
revisão radical das ideias centrais de Jung.
Pesquisas recentes sobre feminismos de todos os tipos frequentemente
destacaram o fato de gênero ser localizado historicamente. Este capítulo termina
com um exemplo de como a investigação histórica feminista pode lançar luz
sobre a caracterização acintosa/ irritante de anima do Jung. O capítulo 4 como
um todo trata da evolução não planejada de feminismos junguianos variados e
desafiadores para que eles possam ficar ao lado e servirem como crítica às
alegações excludentes do feminismo junguiano tradicional. Os demais capítulos
do livro explorarão possibilidades futuras nessa rede libertada e interligada
chamada “feminismos junguianos”.

Desafiando os estudos junguianos de dentro para fora

A anima radical de James Hillman


Quando James Hillman repensou radicalmente a anima de Jung, sua principal
conquista foi ter liberado para sempre as mulheres de terem as qualidades
inconscientes ardilosas da anima impostas sobre elas como prova da
inferioridade intelectual das mulheres. Em dois artigos importantes dos anos
1970s, Hillman recriou a psicologia junguiana. Ele estruturou suas revisões
através de uma releitura crítica dos textos do próprio Jung.
Explorando conscientemente a dimensão mito pessoal, Hillman defende
que a anima não deve ser condicionada pela tendência de Jung em pensar em
termo de opostos. A anima não é o aspecto contrassexual (do sexo oposto) da
psique masculina e “ela” também não está presente somente nos homens. Na
realidade, a anima ou “alma” (outro termo usado por Jung) é a estrutura
arquetípica da consciência. Ela é a consciência alinhada com, ou acoplada a, o
“outro”, o inconsciente.
Anima é, portanto, uma função de relacionamento, como Jung sugeriu,
embora não de relacionamentos humanos, como ele pensava. Anima se relaciona
à autenticidade mais profunda do inconsciente e distante das limitações banais
do ego interesseiro/ autocentrado. “Eros” não deve ser acoplado à anima: trata-
se de uma função completamente distinta da sexualidade.
Portanto, as mulheres não são as portadoras da anima ou da alma para os
homens. Elas têm as próprias almas e, como os homens, elas precisam se
desenvolver psicologicamente através do cultivo da anima feminina, que foi
negligenciada pela cultura. De modo semelhante, tanto as mulheres quanto os
homens têm acesso igual ao animus ou “espírito”.
A estrutura do ego tem como base o mito do herói, uma narrativa sobre
como aprender a desprezar e reprimir a anima feminina. No entanto, é a anima, e
não o ego, a verdadeira base da consciência. Ela caminha para longe do ego
imperioso em direção à incompreensível alteridade da psique. Agindo por meio
de imagens psíquicas, a anima almeja o sacrifício do ímpeto de controle do ego. A
dominação do ego inclui o controle do sentido. Consciência da anima significa
consciência da minha inconsciência. Significa que teoria e conhecimento em si
precisam ser levados em conta provisoriamente, sujeitos a testes e revisões
contínuos. “Teoria” só pode ser “mito pessoal”.
Hillman chama a sua anima de arquétipo da psicologia e de “fazer alma”.
Para ele, nem a anima nem o animus podem ser restritos ao singular ou ao
plural; eis a natureza evasiva de seres psíquicos. No lugar disso, a anima e o
animus encenam um casamento psíquico interior, e são as perspectivas através
das quais o outro é conhecido. Então a anima é frequentemente vista como
“uma”, não porque essa é a sua “essência”, mas porque ela é vista através de uma
lente condicionada a enxergar “uns e umas”.
Hillman é explícito quanto a sua imitação de Jung no seu modo mito
pessoal de escrever a psicologia. Na conclusão de seu segundo artigo ele escreve:
“Este ensaio é uma atividade mítica da anima percebido como uma atividade
crítica do animus”. Ao afirmar que não está produzindo grande teoria em
primeiro lugar (uma atividade do animus), Hillman desenvolve a escrita mito-
pessoal de Jung em algo que conscientemente desacopla Jung de seus
preconceitos não reconhecidos sobre gênero.
Para iluminar esse feminismo junguiano em mais detalhe, vou colocar a
revisão do anima de Hillman num contexto da escola pós-junguiana que ele em
especial inspirou: a psicologia arquetípica.

O feminismo da psicologia arquetípica: uma escola pós-junguiana

Entre os principais psicólogos arquetípicos estão Patricia Berry, Paul


Kugler, David L. Miller e Edward S. Casey. A psicologia arquetípica se alia ao pós-
estruturalismo e pós-modernismo (apresentados nos capítulos 5 e 6) ao fazer
duas quebras distintas com a teoria junguiana ortodoxa. Em primeiro lugar, ela
reformula a ideia central de Jung do arquétipo. Jung definiu o arquétipo como
uma possibilidade herdada de forma e sentido, representável somente através de
uma imagem psíquica influenciada pela cultura.
Ao invés disso, os psicólogos arquetípicos rejeitam a ideia da existência
prévia do arquétipo. A imagem por si só é real. A imagem arquetípica (que pode
ser qualquer imagem psíquica) é o arquétipo e é a realidade primordial. Ela é
mais confiável do que as percepções pretensiosas do ego.
Em segundo lugar, os psicólogos arquetípicos conscientemente se
recusam a enxergar Jung como um “mestre” teórico dotado de autoridade. Em
seu livro Ficções que curam, Hillman explora a lado mito-pessoal de Jung como
alguém que se curou através da “ficção” de suas imagens psíquicas. Dando
continuidade a esse reconhecimento, Hillman alega que o escritor que está
aberto à encenação da psique ficcional, como Jung, produz trabalhos teóricos
terapêuticos, na medida em que as imagens ficcionais direcionam e moldam suas
ideias (e Hillman também afirma que a anima moldou seus ensaios críticos sobre
a anima).
Esse entrelaçado de teoria e ficção possibilita a psicologia arquetípica a
fornecer um corpo de textos sofisticado e sútil, expressamente formulado para
minar afirmações dogmáticas sobre gênero, papéis de gênero e o feminino. O que
é especialmente útil para um feminismo junguiano na psicologia arquetípica é a
forma como ela minimiza o ego, que é tido como um produto de um mito do
herói imaturo, passível de ilusões do patriarcado como uma fantasia sem base.
A ideologia patriarcal depende da supressão do feminino enquanto
inferioridade. O “feminino” pode ser uma categoria imprecisa, simplesmente
referindo-se ao “outro” segundo o que os “pais” dominantes consideram
importante ou autêntico. Portanto a repressão do inconsciente pelo ego pode se
tornar um ingrediente chave para todo tipo de ideia patriarcal. A psicologia
arquetípica acredita que o crescimento do ego numa pessoa jovem (de qualquer
sexo) é estruturado sobre o mito do herói de conquistar e suprimir tudo aquilo
que é “outro”. O ego em desenvolvimento é especialmente passível de suprimir
anima-alma feminina. Ao condenar as alegações do ego de ser o modo autêntico
de subjetividade, e ao reconhecer uma ligação entre o ego-herói e as atitudes
sociais patriarcais, a psicologia arquetípica verdadeiramente apresenta um
feminismo junguiano.
Uma outra contribuição feminista da psicologia arquetípica é o seu
surpreendente aval ao politeísmo, a crença em muitos deuses e deusas. No
entanto, isso não significa uma fusão do feminismo junguiano da psicologia
arquetípica com o feminismo da deusa do último capítulo. Abandonar a noção de
um arquétipo antecedente que “produz” suas imagens significa que a psicologia
arquetípica não está se oferecendo para providenciar deusas. Ao contrário,
enxergar as imagens como arquétipos primários (a fim de frustrar o ímpeto do
ego de convertê-las em interpretações) envolve valorizar a imagem ao invés de
tentar reduzi-la a algo verbal.
Então, a fim de manter o privilegiamento das imagens psíquicas sobre o
ego, é continuamente necessário se submeter a sua numinosidade e
reverberação psíquica. Hillman chama essa atitude de politeísmo da mente,
porque significa dar uma maior sensação de realidade ou maior importância às
imagens. O politeísmo de Hillman não é a veneração de uma série de deuses em
algum lugar “lá fora”. O politeísmo, como já vimos no capítulo 3, dá uma
verdadeira oportunidade para o feminismo ao desfazer as exclusões patriarcais
inscritas no monoteísmo. Ele valida outros estilos, diferentes e femininos, de ser.
Mas o feminismo junguiano da psicologia arquetípica tem sim suas limitações.
Por exemplo, o desejo de dissolver as engenhosas alegações do ego nem
sempre pode ser recebida pelo feminismo com entusiasmo imaculado. Embora a
responsabilização teórica do patriarcado e seu repúdio explícito sejam um
projeto feminista, o ego é também onde mora a racionalidade. A razão faz parte
de pensar claramente sobre igualdade e justiça na sociedade. O feminismo não
pode se dar ao luxo de renunciar à razão e à justiça. A tentativa de rebaixar o ego
como órgão principal da consciência é, na verdade, uma dissolução da distinção
entre o racional e o irracional.
Isso pode ser uma jogada feminista se funcionar para tirar o verniz de
inferioridade do feminino como o outro irracional. Se isso gerar alianças e
conexões além da estrutura binária do Eu/ outro ou racional/ irracional, então
sugere que feminismos abracem diferenças de todos os tipos, sem privilegiar
uma sobre outra. Mas o perigo de dissolver a distinção conceitual racional/
irracional é a possível perda de engajamento político racional com as hierarquias
de poder existentes.
As possíveis consequências negativas do ataque ao ego conduzido pela
psicologia arquetípica estão relacionadas a outro fator inibidor para o
feminismo. A forma como a imagem psíquica é valorizada significa que a noção
de que a cultura molda a subjetividade e o gênero não é mais especificada
teoricamente, mas é praticamente destituída de poder. Eis o que Hillman diz sobre
o arquétipo enquanto imagem: “Qualquer imagem chamada de ‘arquetípica’ é
imediatamente valorizada como universal, trans-histórica, fundamentalmente
profunda, geradora, altamente intencional, e necessária”.
Por um lado, os psicólogos arquetípicos enfatizam que praticamente
qualquer imagem psíquica pode ser considerada arquetípica. Na verdade, isso
valoriza a diversidade cultural, visto que não tem cabimento sugerir uma
hierarquia de imagens que as pessoas “deveriam” vivenciar. Por outro lado, a
valorização da imagem sobre o ego significa que qualquer senso de localização
cultural fica desvalorizada. O fato do ego testemunhar a história e a cultura é
ignorado. O termo empregado por Hillman, “trans-histórico”, é hostil àqueles
feminismos comprometidos com as condições materiais.
Paradoxalmente, ao retornar à definição de Jung para arquétipo, eu
sugeriria que há uma estruturação da subjetividade que de fato conversa com
um feminismo interessado na questão de como cultura e questões materiais
moldam a identidade de gênero. O arquétipo sem forma fornece energia criativa:
a imagem subsequente é também moldada pela integração corporal e social do
sujeito naquela cultura.
Por exemplo, houve uma variedade enorme de métodos de maternagem
ao longo da história e através das culturas. Uma imagem arquetípica de “mãe”
partilha dessa diversidade porque é formada através de subjetividade, cultura,
sociedade e momento histórico particulares. Pode ser examinada como uma
manifestação da inefável multiplicidade do arquétipo e como o testemunhar de
condições materiais específicas.
Ao repudiar os aspectos transcendentes do arquétipo de Jung ao mesmo
tempo que enfatiza a autenticidade superior do inconsciente ou da alma, a
psicologia arquetípica produziu um feminismo de dimensões radicais, embora
relativamente estreitas. O que é ela não fez, como acabei de mostrar, foi esgotar o
potencial de ideias junguianas para gerar “outros” feminismos. O poeta e
inspirador do movimento masculino mitopoético, Robert Bly, tem interesse no
trabalho de James Hillman. Ninguém acusaria o movimento masculino
mitopoético de ser feminista. No entanto, a disseminação popular daquilo que o
movimento alega ser um tratamento “junguiano” de gênero merece algumas
considerações.

Robert Bly e o movimento masculino mitopoético

Robert Bly e seus seguidores acreditam que o feminismo emasculou os homens.


Eles almejam usar arquétipos masculinos “junguianos” para iniciar esses seres
vitimados num autêntico “patriarcado profundo”. A principal publicação desse
movimento em desenvolvimento é o livro de Bly João de Ferro, que deu origem a
vários best-sellers que prometem acessar os “arquétipos” do “homem profundo”
ou “guerreiro interior”.
Um episódio especialmente provocativo de João de Ferro pode dar uma
ideia do tom antifeminista da obra. Bly encoraja o homem iniciado que atingiu
seu patriarcado interior a “levantar ou mostrar sua espada” nas relações com a
mulheres. De forma dissimulada, ele diz: “Nessas primeiras sessões, era difícil
para muitos dos homens mais jovens a distinguir entre mostrar a espada e
machucar alguém”. Minha reação mais imediata à espada de Bly é que se trata de
um texto socialmente irresponsável. Se a “espada” não é violência, então será que
é a ameaça de violência? É uma simples busca por dominação ou é uma metáfora
para a pureza fálica superior da razão masculina? Na melhor das hipóteses, o
livro de Bly e seus sucessores implícita e explicitamente diminuem as mulheres.
Na pior, ele inspira uma reação antifeminista. É muito fácil interpretar Bly como
alguém que legitima formas regressivas e simplistas do patriarcado.
O movimento masculino mitopoético também é uma traição a Jung. Ele se
aproveita dos termos teóricos de Jung para tentar justificar uma tentativa de
recriar as relações sociais entre homens e mulheres do início do século XX. Bly e
seus seguidores não são fiéis a Jung e sua grande-teoria (o motivo pelo qual eles
aparecem neste capítulo) ao fazer uma perigosa e excessiva simplificação dos
arquétipos.
Para o movimento masculino mitopoético, um arquétipo é para homens
uma identidade de gênero heroica carimbada nas profundezas do inconsciente
onde a aterrorizante contaminação da modernidade feminista não pode o atingir.
Essa noção não é teoria junguiana: os arquétipos de Jung não são imagens
herdadas. Para Jung, um arquétipo não tem gênero fixo, não é uma imagem
estável preservada inalterada ao longo das gerações, e só pode ser conhecido
através de imagens arquetípicas que tenham um engajamento criativo com a
cultura. Bly transforma os arquétipos em estereótipos de gênero reacionários.
Infelizmente, o resultado frequente da popularidade do movimento
masculino mitopoético entre homens brancos confusos é que feministas não
junguianas enxergam a teoria junguiana como um todo com desconfiança
infundada. Felizmente, os estudos junguianos em si produziram refutações
poderosas de Bly, em A psique política de Andrew Samuels e extensivamente no
livro de David Tacey, Remaking Men (Refazendo os homens, em tradução livre),
um estudo junguiano da masculinidade que dialoga de forma progressista e
solidária com o feminismo.

Usando as perspectivas de outras disciplinas

David Tacey: masculinidade e feminismo


Um dos parentes próximos da teoria feminista é o corpo de trabalho
interessado em questões políticas conhecido como Estudos de Gênero. Para ter
efeito social, o feminismo precisa que, além de mulheres, homens também
questionem as suposições sobre seu gênero e sua relação com a cultura e com o
poder. Apesar da aderência de David Tacey a noções do “princípio feminino”, seu
trabalho pertence a este capítulo por conta da sua assumida ambição de fazer
uma ponte para atravessar o abismo entre as teorias arquetípicas e os estudos
masculinos progressistas. Estudos de gênero e dos homens se baseiam em
especial em relatos de gênero pelo olhar materialista e socioconstrutivista.
A posição de Tacey é que o pensamento progressista junguiano se
beneficia da contribuição do estudos de gênero de orientação materialista. Essa
teoria tem uma função útil de prevenir perigosos lapsos nostálgicos, como é o
caso do movimento masculino mitopoético, ao qual ele faz uma crítica mordaz.
Por outro lado, os estudos dos homens precisam de Jung porque o materialismo
não é o suficiente. Não é suficiente como uma explicação para o apaixonado
envolvimento da psique com o gênero e nem como forma de trazer a energia
psicológica para que haja uma verdadeira mudança social.
Para Tacey, gênero é reproduzido socialmente através da ideologia. No
entanto, ideologia não é apenas o instrumento de forças materiais, visto que ela
possui uma base arquetípica. Tacey declara seu apoio aos objetivos sociais do
feminismo. Como a maioria dos feministas, ele enxerga o projeto político como
longe de estar completo.
Em termos junguianos, Tacey entende o feminismo como o inteiramente
bem-vindo crescimento do princípio feminino após séculos de supressão e
difamação. Cabe aos homens reconhecer sua dor psicológica pela perda de suas
fantasias do patriarcado. Homens precisam desenvolver uma consciência mais
elevada em si mesmos abraçando o seu feminino interior. A busca pelo feminino
interior no intuito de desenvolver a consciência não significa defender um
declínio à “anima enquanto mãe”. Tacey está bem ciente dos perigos políticos
para homens e mulheres progressistas de identificar a feminilidade como
materna. Pelo contrário, ao reavaliar a vinculação psicológica e social com o pai,
filhos e filhas podem ao mesmo tempo vivenciar psicologicamente e perceber
socialmente uma forma mais evoluída do feminino. Tacey imagina uma anima
que produza estilos mais variados e diversos de gênero para a psique e para a
sociedade.
Um potencial marcante para um feminismo junguiano é a forma com que
Tacey traz um elemento arquetípico à compreensão sobre mudança social. O
“pais ausente” (alvo de muita agonia nos estudos dos homens) faz falta literal ou
emocionalmente na vida dos filhos. Essa figura é “derivada da perda e
desaparecimento da autêntica ‘energia paterna’ no nível do arquétipo”.
Esse déficit arquetípico não é a lamentável consequência do feminismo.
Ele ocorre através do declínio da crença no patriarcado, que não é a mesma coisa
que sua ausência. Cabe aos homens, individualmente, e à psicologia progressista
revigorar o paterno arquetípico, aprendendo a descartar o patriarcado como
único modo viável de masculinidade ou de ser pai. Abraçar a anima feminina
mais elevada é o caminho para um estilo de gênero mais sustentável, flexível e
lúdico para os homens.
Muito curioso também é a narrativa junguiana de Tacey sobre as questões
e os problemas que os acadêmicos materialistas dos estudos dos homens estão
enfrentando. Dinâmicas arquetípicas podem ser moldadas através de mitos.
Tacey representa o patriarcado como Cronos que, temendo a previsão de que ele
será destronado por um descendente, engoliu seus filhos (homens e mulheres).
As crianças do mito representam os estilos de gênero mais múltiplos e livres.
Em termos psicológicos, Cronos o devorador está prevenindo outros
estilos de masculinidade (seus filhos Zeus, Poseidon, Hades) e outras formas
femininas (suas filhas Héstia, Deméter, Hera) de nascer. O fato de que Cronos
consome o novo indica que um único complexo arquetípico tomou o controle, e
que tudo na psique e na sociedade está subsumido por esse único estilo
ditatorial. É exatamente disso que se trata o estudo dos homens: liberando
estilos suprimidos ou devorados de masculinidade ou feminilidade do complexo
hegemônico devorador que chamamos de patriarcado.
No entanto, Tacey critica os estudos dos homens por algo que ele chama
de “deslizamento mitológico”. Ele percebe tanto uma hostilidade ao pai quanto o
foco superestimado no relacionamento com a mãe como um lapso com relação à
completude desejável do mito de Cronos. O que acontece a Cronos no mito é que
Zeus liberta os irmãos enganando o pai, e toda a heterogeneidade (arquetípica)
dos deuses e das deusas é libertada. O que parece estar acontecendo nos estudos
dos homens, de acordo com Tacey, é uma debandada do mito de Cronos até as
perigosas seduções de Édipo. Esse suposto herói azarado mata o seu pai para
melhor aproveitar os abraços proibidos com a mãe.
Tacey aponta que Freud, tão onipresente na teoria de gênero, teme o
destino de Édipo. Hostilidade pelo pai e a redução do feminino a somente o
maternal não são a resposta. Para Tacey, teóricos que estudam gênero foram
limitados por um único mito da psicanálise, o de Édipo, em que o feminino é
restrito à mãe. Bastaria os teóricos progressistas e feministas olharem para Jung
para descobrirem um feminino arquetípico que não se reduz ou restringe à
maternidade.
Tacey é um verdadeiro imitador de Jung também em seu uso da
metodologia “mito-pessoal”. Notando que o feminismo reivindica o valor do
pessoal no pensamento teórico, ele, assim como Jung, descreve o seu próprio
envolvimento com o gênero.
Considero o trabalho de Tacey uma contribuição estimulante aos
feminismos junguianos a despeito de e também por causa do seu foco na
masculinidade. Uma teorização junguiana da masculinidade visando a promoção
dos desafios sociais do feminismos é por si só uma atividade feminista. A ênfase
no elemento pessoal na teorização e na identidade de gênero nesse contexto não
é essencialista ao reivindicar uma compra segura sobre um eterno masculino. Ela
busca apoio de, e cria condições para, outros de todos os tipos.

Teóricas feministas olhando para Jung de outras disciplinas

Demaris S. Wehr
À primeira vista, o livro de Demaris S. Wehr publicado em 1987, Jung and
Feminism: Liberating Archetypes (Jung e feminismo: liberando os arquétipos, em
tradução livre), parece adotar uma perspectiva enviesada e reducionista de
ambos os temas. Ela cria uma oposição entre “feminismo” (definido, nesse
contexto, como gênero contextualizado culturalmente) e Jung/ junguianos para
quem, segundo ela, “o feminino é de fato biológico, inato e até ontológico [para
ser]”.
Uma redução da teoria de Jung para o essencialismo biológico,
praticamente desacoplando gênero da influência cultural (implícito no uso da
palavra “ontológico”), pode até ter o consentimento de Jung em seus momentos
mais preconceituosos e de parte do “feminismo junguiano” discutido no capítulo
3. Wehr cita Ann Ulanov na “irredutibilidade” do princípio feminino, mesmo se
estiver sujeito a algum nível de distorção cultural.
Porém uma oposição tão direta entre feminismo, entendido como
culturalmente construtivista com relação a gênero, e teoria junguiana, entendido
como completamente essencialista e conservadora, não se mantém após um
cuidadoso grau de escrutínio do trabalho de Jung (veja o capítulo 2), e nem é
justo para com alguns expoentes do feminismo junguiano metafísico do capítulo
3. A própria Wehr comenta sobre isso depois, ao analisar os arquétipos de Jung
permitindo mais nuances.
A maior contribuição da obra de Wehr está na forma como ela faz ligações
entre insights da teologia e a sociologia do conhecimento. Isso possibilita que ela
leia a descrição do processo arquetípico de conferir gênero como um retrato
condicionado socialmente conforme vivenciado na cultura patriarcal. Ela
interpreta grande parte dos relatos do próprio Jung com relação a gênero como
um espelho de estereótipos culturais. O perigo inerente à teoria de Jung é que
relatos de expressões arquetípicas em uma cultura patriarcal sejam lidos como
verdades atemporais sobre as mulheres. A criação do feminismo junguiano
“grande teoria” (termo meu, não de Wehr) do princípio feminino é um exemplo
de como ideias socialmente contingentes podem ser solidificadas em códigos
rígidos e restritivos.
No entanto, Wehr não é em primeiro lugar uma crítica feminista
materialista, como seu posicionamento relacionado à teologia feminista parece
indicar. Ela busca uma união produtiva entre Jung e o feminismo fazendo uso do
potencial da psicologia junguiana para explorar experiências religiosas de forma
positiva. Ademais, ela percebe o potencial da psique junguiana para tratar as
pessoas prejudicadas pelo patriarcado.
Sem empregar as palavras, Wehr desenha um “feminismo junguiano,”
mantendo apenas os aspectos mito-pessoal de Jung. Ela dá valor ao Jung que
oferece uma psique criadora de sentido, intrinsecamente religiosa, criativa e
culturalmente engajada. Ela distingue esse Jung do “grande teórico” que fez
pronunciamentos reducionistas sobre as mulheres.

Naomi R. Goldenberg
Naomi R. Goldenberg tem uma abordagem fascinante a Jung; partindo de uma
perspectiva feminista, ela aguçadamente acusa os “junguianos” de simplificarem
a complexidade textual dos escritos de Jung. Ela efetivamente acusa grande parte
dos estudos junguianos de reduzir Jung apenas à sua “grande teoria”, um ponto
com o qual concordo.
Ao contrário das feministas junguianas tradicionais, Goldenberg não
encontra nenhum potencial redentor na teoria do arquétipo transcendente,
talvez por considerá-lo ainda determinante em termos de gênero. Ao argumentar
que “acadêmicos feministas precisam examinar a própria ideia de arquétipo no
pensamento junguiano se pretendem confrontar o sexismo em sua base”, ela
parece sugerir que a cultura não tem um papel a desempenhar no gênero
psíquico para os junguianos. Essa posição não é uma consequência sine qua non
da teoria dos arquétipos, como já demonstrei. Para Goldenberg, a alternativa
para desafiar a noção de Jung do arquétipo é ou aceitar o sexismo patriarcal
como imutável ou buscar os arquétipos “femininos” (como no feminismo da
deusa). Essa última opção não lhe agrada, pois desacopla o gênero das condições
culturais.
Goldenberg parece ter caído na armadilha, que ela própria identifica, de
ler Jung exclusivamente na sua modalidade dogmática, e portanto perde as
possibilidades de seus arquétipos andróginos, que são representáveis somente
através de imagens arquetípicas influenciadas pela cultura.
Sua tentativa de encontrar um feminismo junguiano acaba com a mesma
posição adotada por James Hillman e sua psicologia arquetípica. Ela dá fim ao
arquétipo transcendente propriamente dito, substituindo-o pelo arquétipo
enquanto imagem. Apesar de referências a Hillman, a ênfase de Goldenberg é
bastante diferente ao insistir em manter a imagem arquetípica como um veículo
de expressão cultural. Cultura e história desempenham um papel formador nas
imagens geradas pela psique. Esse feminismo junguiano é uma junção de três
elementos: o desafio a Jung enquanto mestre teórico, a ênfase na psique como
sendo criativa e religiosa e, em terceiro lugar, um forte papel da cultura em
moldar subjetividade e gênero.

Teoria arquetípica feminista

Tanto Wehr quando Goldenberg estão associadas ao projeto interdisciplinar da


teoria arquetípica feminista, que é melhor representada no livro Feminist
Archetypal Theory: Interdisciplinary Re-Visions of Jungian Thought (Teoria
arquetípica feminista: re-visões interdisciplinares do pensamento junguiano, em
tradução livre), editado e apresentado por Estella Lauter e Carol Schreier
Rupprecht. Apesar da ligação assumida com a psicologia arquetípica, há
diferenças cruciais na abordagem desses acadêmicos feministas de áreas tão
diversas quanto religião, psicologia, literatura e artes visuais. Portanto, é
necessário neste livro manter o termo “psicologia arquetípica” para o movimento
inspirado por Hillman e “teoria arquetípica feminista” para os acadêmicos
classificados como tal no trabalho de Lauter e Rupprecht. Tanto a psicologia
arquetípica quanto a teoria arquetípica feminista rejeitam o arquétipo
transcendente como imagem imanente. A partir desse ponto, diferenças
começam a surgir entre elas.
A introdução de Lauter e Rupprecht descreve a convergência de
estudiosos e métodos teóricos através de congressos acadêmicos no final dos
anos 1970 e início da década de 1980. É interessante que, além da questão da
condensação do arquétipo em imagem de Hillman, Lauter e Rupprecht
acrescentam trabalhos de Erich Neumann de 1959 para sugerir que tais imagens
serão tingidas pela cultura.
Com essa herança deliberadamente dupla, a teoria arquetípica feminista
pode insistir na questão da pressão da sociedade e da ideologia no registro da
imagem psíquica. Isso possibilita a teoria arquetípica feminista a se situar como
uma intervenção feminista na área de humanas. Ela oferece relatos inovadores e
até mesmo emancipatórios à categoria “mulheres”. “No caso da teoria feminista,
se considerarmos o arquétipo não como uma imagem cujo conteúdo está
congelado... mas como uma tendência a formar e reformar imagens em relação a
certos tipos de experiências repetidas, então o conceito pode servir para
esclarecer preocupações distintamente femininas que persistiram ao longo da
história da humanidade”. Essa teoria possui ligações intrigantes a inúmeras
ansiedades e questões em torno de “feminismos” contemporâneos. Na superfície,
a teoria arquetípica feminina parece ser essencialista visto que presume um
agrupamento incontestável chamado “mulheres” que atravessa culturas e
momentos históricos. Não é bem assim. As “mulheres” na teoria arquetípica
feminista irão produzir imagens culturalmente condicionadas, assim
preservando e expressando “diferenças” de qualquer espécie, incluindo de raça,
sexualidade, cultura, história, saúde, idade.
Não há nenhuma base na teoria arquetípica feminista para produzir um
“padrão”, uma descrição de como as imagens “deveriam” ser, gerando então uma
hierarquia entre elas e, por extensão, entre as mulheres. Para esse feminismo
junguiano, e arquétipo não é capaz de ser plenamente conhecido “até que todas
suas manifestações – passado, presente e futuro – venham à luz”. Isso é a mesma
coisa que afirmar que ele jamais pode ser plenamente “conhecido”. Portanto, não
podem surgir modelos fundamentais ou ideais.
Da mesma forma, Lauter e Rupprecht não ditam nenhuma diferença
absoluta ou simples entre as imagens produzidas por mulheres e aquelas
oriundas da psique do homem, apesar de uma sugestão de essencialismo em sua
busca por “preocupações distintamente femininas” na citação acima. A teoria
arquetípica feminista se encontra conscientemente no território da teoria
junguiana em que a psique está em conexão vital com o corpo, porém não é
governada por ele. Lauter e Rupprecht argumentam que o contexto vivencial da
imagem é necessário para a discussão do mesmo (uma imagem psíquica não
pode simplesmente ser explicada, porque isso seria como negar a sua qualidade
imaginária primária, como Jung concordaria).
O “contexto vivencial” da imagem arquetípica pode incluir o corpo, mas o
corpo não deve ser visto como uma fonte transcendente da importância da
imagem. O que quer que o corpo “seja” também está sujeito a fantasias
arquetípicas. Algumas dessas fantasias podem conter distorções patriarcais. Mais
desafios na categoria do corpo dotado de sexo enquanto entidade “natural” em
contraponto ao gênero “cultural” são abordados no capítulo 6.
É claro que a teoria arquetípica junguiana repudia Jung enquanto
autoridade patriarcal, bem como o que Rupprecht chama de sua “casa-prisão de
linguagem”. A linguagem patriarcal está especialmente aparente quando Jung
descreve o animus da mulher (veja o capítulo 2 para exemplos). Rupprecht
inventou o termo “animidade” para se referir ao processo de “se tornar amigo da
alma” ou do inconsciente para substituir as limitações do binário anima/animus
de Jung.
A teoria arquetípica junguiana é um feminismo junguiano dedicado a des-
cobrir os traços do inconsciente das mulheres nas artes e atravessando
fronteiras culturais. Ela pode se orientar socialmente, procurando as pressões e
os efeitos culturais dentro da psique feminina. Mas ela nunca será um feminismo
materialista porque retém a noção básica junguiana da alteridade criativa do
inconsciente. As imagens psíquicas serão afetadas, porém jamais determinadas,
pela cultura e a forma como o ego a testemunha.
O que a maioria dos feminismos junguianos provavelmente terá em
comum é o conceito definidor de Jung sobre a “alteridade” irredutível e
transformadora do inconsciente. A teoria arquetípica feminista junta esse
princípio com uma bem-sucedida abdicação de hierarquias entre mulheres e
suas imagens enquanto arquétipos.

Psicologia do desenvolvimento: uma escola pós-junguiana

A psicologia do desenvolvimento junguiana é uma das três escolas pós-


junguianas estabelecidas por Andrew Samuels em 1985. Ele descreveu as
pessoas dedicadas a manter as técnicas de Jung (a escola clássica), aquelas que
modificaram a teoria do arquétipo (psicologia arquetípica) e aqueles que
buscaram uma reaproximação criativa com a tradição freudiana (a escola do
desenvolvimento).
O que caracteriza a teorização desenvolvimentista junguiana é a
reconsideração de conexões e dessemelhanças entre Jung e Freud e pioneiros da
psicanálise que vieram depois de Freud. A psicologia do desenvolvimento tem
um interesse especial nos relatos freudianos da primeira infância. Psicanalistas
da “relação de objetos” como Melanie Klein, Wilfred Bion, Donald Winnicott e
John Bowlby seguiram esse caminho. Pensar a primeira infância usando a
relação de objetos leva à considerações sobre a transferência e
contratransferência em análise.
Transferência significa a forma como um/uma paciente, de modo não
intencional, projeta sua inquietação interior no/na analista. O/a analista se
torna, efetivamente, uma tela onde parte da psique do paciente se revela. Freud
percebeu que a transferência desempenharia um papel vital na cura pela fala.
Contratransferência é o ato recíproco por parte do analista. Jung foi o primeiro
praticante a argumentar que a psique do analista também participaria sem
querer da transferência, e que isso também poderia ser uma ferramenta valiosa.
Apesar do anseio da psicologia do desenvolvimento de construir pontes
entre a prática psicanalítica e o legado junguiano, as diferenças perduram. A
teoria freudiana é ao mesmo tempo reducionista e voltada para o passado com
sua ênfase em estados infantis como o “cenário” primordial de investigação. Em
contrapartida, Jung defendia uma noção mais prospectiva da psique, mais
motivada para a frente. Sonhos e sintomas psíquicos são orientados para a
evolução futura da personalidade. O que a pessoa pode se tornar é ainda mais
importante do que onde ela esteve.
Como consequência, embora Jung estivesse satisfeito incluindo a
estruturação edipiana dentro de seu esquema geral, a primeira infância de uma
pessoa jamais poderia ter uma importância tão esmagadora. São os encontros
criativos e prospectivos com os mais elevados potenciais do inconsciente que
Jung enxergava como os princípios primordiais.
A teoria da relação de objetos deriva da psicanálise freudiana com uma
mudança crucial. Enquanto, para Freud, o bebê é motivado por instintos, na
teoria da relação de objetos a criança possui uma habilidade de se relacionar
com seus cuidadores desde recém-nascido. Aqui o “objeto” ganha dois
significados: é a pessoa com quem a criança busca se relacionar e é também um
conjunto de motivações atribuídas ao “outro” pelo bebê (mas que são de fato
localizadas na criança).
Ao sugerir que uma criança traz, desde o nascimento, a habilidade de
interagir com seus cuidadores, a teoria da relação de objetos se aproxima mais
de Jung e de sua crença em um potencial herdado para certas capacidades
mentais. A teoria de desenvolvimento junguiana identificou paralelos sugestivos
e diferenças prolíficas nas ênfases de Melanie Klein e Jung na formação do
vínculo mental com a mãe na primeira infância.
Conforme aponta Hester McFarland Solomon, a linguagem de Klein sobre
a forma como o bebê percebe a mãe como “objetos parciais” e não como um
“outro” espelhado, separado, pode ser traduzida para linguagem junguiana como
imagens arquetípicas da mãe. Essas imagens são formadas através das primeiras
experiências da criança com o corpo da mãe. Enquanto Klein sugere que a
fantasia do bebê produzirá ideias oscilantes do seio “bom” e do seio “mau”, Jung
oferece aspectos duplos do arquétipo da mãe como ao mesmo tempo cuidadora
e destruidora.
Embora haja divergências entre esses dois conjuntos de posições, em se
tratando da teoria de desenvolvimento junguiana não é preciso que Jung e Klein
se divorciem. Ao mapear a psique do bebê, as ideias de Klein sobre objetos
parciais se referem principalmente ao estado paranoico da criança antes de
atingir um senso de Self separado. Imagens irracionais e memórias de receber
cuidados maternos são reprimidas e entram no inconsciente, podendo ser
revividas mais tarde em análise.
Jung tem uma noção mais rica, mais romântica, da mãe cuidadora/
destruidora. Ela mora no inconsciente da pessoa de maneiras dedicadas ao
crescimento futuro da personalidade, mesmo em seu formato destruidor. A
psicologia do desenvolvimento permanece sendo junguiano ao manter a
criatividade que impulsiona para a frente dos pais arquetípicos. Mas a conexão
com a teoria da relação de objetos significa que a psicologia do desenvolvimento
tem um método que pode focar nas primeiras interações pai ou mãe e filho em
análise.
Ao colocar os arquétipos de Jung no contexto do desenvolvimento
psicológico na primeira infância, pensadores desenvolvimentistas não estão
contradizendo Jung. Eles estão meramente revertendo sua preferência em focar
na segunda metade da vida.
Um resultado da psicologia do desenvolvimento é a possibilidade para
feminismos junguianos que sejam mais coerentes com as teorias feministas da
psicanálise freudiana. O capítulo 5 fala mais sobre isso. Já é possível enxergar
como uma abordagem da mãe segundo Jung/Klein pode ser usada criticamente
para examinar o investimento psicológico do sujeito nos cuidados maternos e
seu papel na pessoa emergente. Tal feminismo Jung-Klein estaria aberto a
explorar o processamento social e psíquico da mãe literal, corporificada.
Também poderia buscar uma forma de desenvolver um senso significativo de
“mãe” na psique, que não seja limitado em riqueza à experiência real do ego.
Se a “mãe” pode ser criativamente revisada, então o gênero também pode
ser libertado ou das deficiências da história pessoal ou das convenções
modeladores da uma sociedade específica. Como uma forma de explorar em mais
detalhe os feminismos junguianos cujo foco é na criança em desenvolvimento,
vou me voltar brevemente aos trabalhos de Andrew Samuels sobre “o pai”.

A visão de Andrew Samuels sobre gênero e teoria (para o feminismo)

As afinidades de Andrew Samuels com a escola do desenvolvimento


contribuíram para uma análise radical da relação com o pai de maneiras
positivas para o feminismo. Cada vez mais preocupado em relacionar ideias
junguianas com políticas progressistas, tendendo à esquerda, seu projeto em
andamento juntando a política e a psicologia tem sido influente e revisionária.
Um crítico da ênfase praticamente exclusiva na interface mãe e filho da teoria da
relação de objetos, a abordagem de Samuels em se tratando dos cuidados do pai
sugere possibilidades para um pensamento pró-feminista sobre o papel de
gênero na sociedade. Aqui vamos abordar somente uma parte do seu trabalho
que diz respeito aos feminismos junguianos.
Como muitos dos teóricos junguianos sobre gênero, Samuels é cético
quanto aos vieses culturais de Jung com relação às mulheres, inclusive quando
ele cai no essencialismo corporal em se tratando de gênero. Embora ele não
descarte os conceitos de anima e animus, Samuels argumenta que imagens
contrassexuais na psique são metáforas para o “outro”, não representações de
um conjunto especial de características dotadas de gênero. Uma imagem de um
ser com outra anatomia representa qualquer coisa que é atualmente
desconhecido ou que pode, talvez, ser incognoscível. Relações entre a
consciência e a anima ou o animus não devem ser confundidas com a
corroboração dos estereótipos de gênero. “A diferença entre você e o seu animus
ou sua anima é muito diferente daquela entre você e um homem ou uma
mulher”. Samuels também tem uma enorme desconfiança daquilo que ele chama
de “feminismo junguiano,” se referindo aos adeptos da grande teoria discutidos
no capítulo 3. Ele é especialmente crítico dao foco no “princípio feminino”,
enxergando-o como falho tanto teórico quanto politicamente. É falho do ponto de
vista teórico porque amplia a fantasia de Jung de opostos sobre o gênero,
levando-a a proporções ainda mais teológicas. “Presume-se que há algo eterno
sobre a feminilidade e, consequentemente, sobre as mulheres; que as mulheres
portanto demonstram certas características transculturais e a-históricas; e que
essas podem ser descritas em termos psicológicos”. O resultado, politicamente
falando, é que a contribuição cultural com relação a gênero é ignorada, e então o
objetivo do “feminismo junguiano” é apenas uma inversão das posições de poder.
Tal oposição é suavizada pela cuidadosa análise de Samuels sobre os motivos que
levaram os estudos junguianos a sentirem necessidade de ampliar “o princípio
feminino”. Esse tema e sua variação mais inflada, o feminismo da deusa,
proveram uma maneira de celebrar as mulheres sem sair das ideias de Jung,
além de trazer um ponto de partida para críticas à cultura patriarcal capitalista.
Samuels reconhece que o feminismo da deusa pode ter um papel prático de gerar
imagens para lidar com a dor e a luta das mulheres, se for usado como uma
metáfora. Se essa terapia se torna literal, com afirmações sobre as qualidades
eternas das mulheres, corre o risco de se tornar essencialista e prescritiva.
Samuels não se intitula um feminista junguiano. Em parte porque ele
enxerga o feminismo junguiano como uma entidade única que gira em torno da
noção do princípio feminino (ele ainda não está pensando em termos de
“feminismos junguianos”). Além do mais, o vínculo de Samuels com causas
progressistas é mais amplo que as relações de gênero e o rótulo feminista seria
muito limitante. No entanto, uma parte do trabalho de Samuels de fato oferece
uma estrutura para um feminismo junguiano ao fazer uma re-visão de gênero em
um diálogo criativo com a psicanálise.
Em primeiro lugar, o que Jung chamou de anima e animus está disponível
igualmente a mulheres e homens – não há um questionamento sobre as
mulheres serem “alienígenas” ao pensamento lógico e intelectual. Ele também
enfatiza a necessidade de questionar a visão da heterossexualidade inata, uma
posição implícita no inconsciente coletivo andrógino de Jung. Samuels prefere
repensar a noção de Freud do bebê como sexualmente indeterminado ou
“perverso” como “uma visão de que está disponível para todos uma variedade de
posições relativas ao papel de gênero – sem recorrer à ilusão da androginia”.
No livro A psique plural, Samuels descreve sua posição teórica como a do
“pluralismo”, o que significa um apanhado de diferentes psicologias sem
tentativa de sintetização ou de estruturação de acordo com uma hierarquia
comparativa. Esse modelo teórico é explicitamente parte de um projeto político:
ele oferece uma maneira de se engajar com diferenças de todos os tipos entre
pessoas de gêneros, etnias e classes sociais diferentes, bem como diferenças
dentro da psique do indivíduo. Essa atitude é implicitamente um chamado para
feminismos junguianos, não um feminismo junguiano exclusivo.
É crucial destacar que no livro A psique plural Samuels sugere que
dificuldades com relação à paternidade/ ao cuidado paterno podem gerar uma
“certeza de gênero” de maneiras que são problemáticas para filhas e filhos. “O
pai” é uma relação criada, e não biológica. A paternidade é predominantemente
psicológica e cultural. Seu papel construído impacta a condição mãe-bebê
(originalmente biológica) e a converte numa relação mãe e filho cultural.
O reconhecimento do pai construído socialmente permite uma percepção
maior da relação maternal como socialmente contingente. O pai não precisa ser o
homem, o pai biológico. Enxergá-lo como uma relação criada permite a Samuels
postular um pai de qualquer sexo; “outros”, inclusive mulheres, podem construir
esse papel.
A questão chave com relação à paternidade no que se refere a gênero é
que a sensação de uma “falta” no pai, como sendo de alguma forma deficiente,
pode resultar numa solidificação psicológica de identidades de gênero. Isso
acontece porque uma vinculação insuficiente com “um pai” resulta em ideias
sobre o feminino centradas exclusivamente na mãe como apenas esse único
papel. Feminilidade é igual à maternidade, espremendo as possibilidades de
gênero em convenções estreitas que prejudicam tanto as filhas quanto os filhos.
O que as filhas também precisam, argumenta Samuels, é daquilo que ele
chama “playback erótico” de seus pais. A energia emocional do pai deve conter
sexualidade para dar à filha um senso de self emocional e psicológico para além
da maternidade. Isso não significa sancionar atos sexuais de fato entre pais e
filhas: o incesto literal é incontestavelmente nocivo.
Na verdade, ao ser aparentemente “freudiano” por entender emoções e
energias psíquicas como sexuais, Samuels é igualmente junguiano por sugerir
que a energia erótica pode vir a significar algo a mais: possibilidades de gênero
mais plurais. O valor do playback erótico entre pais e filhos é que podem surgir
versões de gênero mais imaginativas, e até mesmo “confusão de gênero”.
Samuels reivindica uma prática analítica que permite a uma pessoa viver com a
tensão entre a confusão de gênero (que faz com que o gênero seja repensado à
luz das normas sociais, embora possa envolver sofrimento) e a certeza de gênero
(necessária para uma sensação de estabilidade, mas tendendo a se ancorar em
expectativas tradicionais de gênero).
Esse “feminismo junguiano” desenvolve um conceito libertador da
paternidade de formas intimamente relacionadas à psicanálise freudiana.
Continua sendo feminismo junguiano ao usar uma noção da psique motivada
pelo futuro, além de falar do inconsciente criativo plural para reorientar
convenções de gênero restritivas.
A criatividade do inconsciente também ajuda Samuels em A psique
política, quando ele busca um paternal que seja politicamente libertador na
sociedade. Esse ser pode mitigar os efeitos restritivos do pai fálico de Jacques
Lacan, por tanto tempo culpado pela formação social e perpetuação do
patriarcado. Samuels oferece um pai da confusão de gênero para se contrapor ao
pai simbólico da certeza de gênero de Lacan. O próximo capítulo irá olhar para
outras oportunidades para feminismos junguianos nessa leitura revisionista de
Lacan.

História, feminismo e Jung

Quero terminar este capítulo sobre trabalhos existentes nos feminismos


junguianos com um exemplo das possibilidades de críticas feministas históricas
de Jung, levantando a discussão de Samuels sobre confusão de gênero.
Nos capítulos 1 e 2, eu mostrei como o envolvimento pessoal de Jung com
médiuns mulheres revelou uma política de gênero na gênese de sua psicologia.
As mulheres na vida de Jung e em seus textos são deslocadas para as
características da anima, a parte feminina da psique do homem. A atração de
Jung pela médium mulher não se tratava simplesmente de um fascínio por um
tipo de personalidade feminina, apesar de ter se repetido mais tarde com Sabina
Spielrein e Toni Wolff, que tinham um quê de médium. Na verdade, a atração
dele por médiuns parece estar atrelada ao deseja de se tornar médium em seus
trabalhos posteriores. O médium continua sendo mulher na vida emocional de
Jung na figura de Toni Wolff.
É importante reconhecer que Jung se torna altamente mediúnico quando
faz contato com as figuras inconscientes interiores, em especial com sua anima.
Uma política de gênero que marcou a psicologia junguiana como uma teoria
masculina redefine os excessos inquietantes do espiritualismo, associado
predominantemente às mulheres. Em termos de gênero temos uma psicologia
escrita pelo masculino que busca neutralizar o seu próprio “outro” (feminino),
fenômenos mentais que até o momento não têm explicação “científica”.
O que é “outro” para a mente racional e teórica do ego é o inconsciente.
Para Jung, a imagem primária para o inconsciente é a anima feminina. Ele
assume o papel de médium para postular uma relação teórica com o outro
enquanto feminino. Na teoria junguiana, o feminino enquanto mulher de verdade
é deslocado para o feminino enquanto anima, o “outro” da teoria e do
pensamento claro em si.
Mas essa crítica feminista historicamente situada precisa reconhecer a
ambivalência em Jung, em sua história pessoal e psíquica. Em suas alternâncias
entre desejar a médium mulher e assumir o papel de médium culturalmente
definido como “feminino”, ele está, na terminologia de Andrew Samuels,
traçando um contínuo entre “certeza de gênero” e “confusão de gênero”.
Na medida em que o médium é marcado como uma posição feminina (na
prática típica e porque é “outro” para as ortodoxias médicas prevalecentes), a
psique do Jung também confere um gênero ao médium na persistência de
mulheres com um quê de médium em sua vida pessoal. Jung se movimenta entre
a certeza de gênero no seu fascínio pelo feminino como uma pessoa outra,
separada, e a confusão de gênero ao assumir ele mesmo a posição “feminina” de
médium, a fim de se aproximar de seu “outro” interior.
Certamente é relevante que, quando ele mesmo se torna médium, Jung
foca acima de tudo na sua anima feminina, como se ele precisasse que o
inconsciente fosse feminino para tentar proteger seu ego (masculino) de ser
sobrecarregado e dominado por ele, a fim de manter a masculinidade do ego.
Talvez a sua tendência de pensar em termos de opostos dotados de gênero, que é
mais evidente na ênfase da anima como um inconsciente ardiloso em oposição a
seu consciente absolutamente masculino, demonstre uma vulnerabilidade
interior. Revela uma necessidade de dar sustentação a sua identidade contra o
caos da ameaça da confusão de gênero.
A teoria da anima de James Hillman sugere que abandonemos o ego
heroico masculino e tenhamos como meta uma consciência baseada na anima,
vinculada ao inconsciente e ao feminino. Talvez Jung já tivesse chegado a esse
ponto em sua confusão de gênero entre seu desejo por e seu desejo de ser a
médium “feminina” ligada aos espíritos enquanto poderes inconscientes.
Ademais, a oscilação em Jung entre confusão de gênero (como médium) e
certeza de gênero (rigidamente definindo sua consciência como razão masculina,
reduzindo suas ideais sobre as mulheres à anima inconsciente) é uma versão de
sua dupla tendência à grande teoria e ao mito pessoal. Os conceitos que
compõem a grande teoria dependem fortemente da tensão entre opostos, em
especial opostos estruturados como gênero. A grande teoria é, portanto, o
produto do ímpeto em direção à certeza de gênero, enquanto o mito pessoal, ao
reconhecer a incapacidade de reduzir a alteridade do inconsciente a um conjunto
de conceitos simétricos, poderia ser lido como a lealdade pessoal de Jung à
confusão de gênero.
Os estudos junguiano podem demorar a reconhecer a situação, mas eles
agora embarcaram na era dos feminismos junguianos. Eles servem para mitigar e
diversificar o feminismo junguiano influenciado pela grande teoria abordado no
capítulo 3. O capítulo 5 dará seguimento ao interesse da psicologia arquetípica
no pós-estruturalismo e da troca positiva entre a psicologia do desenvolvimento
e a psicanálise. Vamos considerar novos feminismos junguianos em
desconstrução e as teorias de gêneros pós-freudianas, duas áreas proeminentes
na esfera mais ampla do debate feminista. Em seguida, o capítulo 6 irá estudar os
potenciais para uma leitura junguiana da alquimia e do corpo. A partir disso, fará
um desenho do papel junguiano para questões importantes feministas: sobre
narrativa, o gótico, o sublime e o pós-modernismo.

Resumo e conclusão

O pensamento pró-junguiano sobre gênero evoluiu da criação de uma psicologia


para todas as mulheres, conhecido como “feminismo junguiano”, até os mais
diversos e diferenciados “feminismos junguianos”. Eu relaciono os feminismos
junguianos ao aspecto “mito pessoal” dos escritos de Jung porque isso possibilita,
e até mesmo promove, evoluções das ideias de Jung que se negam a tratá-lo
como um “grande teórico” com autoridade absoluta.
Duas escolas pós-junguianas, a arquetípica e a de desenvolvimento,
podem ser associadas ao aspecto “mito pessoal” por adotarem a dimensão
reflexiva e autocrítica de Jung para estruturar feminismos. Nenhuma das escolas
se define primordialmente como “feminista”. Além disso, tanto dentro dos
estudos junguianos quanto da perspectiva de outras disciplinas, tratamentos
críticos da masculinidade agora conectam Jung a debates progressistas sobre
gênero. O efeito bem-vindo disso é fazer um contraponto à simplificação
excessiva e reacionária das ideias de Jung.
E, por fim, pesquisas feministas historicamente situadas podem colocar
Jung no contexto das ansiedades culturais contemporâneas (dele) quanto a
gênero, mulheres, psicologia e o status de uma “teoria” com validação
institucional. O feminismo que busca uma aliança de feminismos teóricos
(devido a “diferença” e contextos culturais singulares) encontra no mito pessoal
de Jung uma voz digna de resposta. Além de ser o progenitor do monólito que é o
“feminismo junguiano”, com sua tendência de enxergar gênero como “um”, Jung é
também patrocinador dos “feminismos junguianos”.

LEITURA RECOMENDADA

A anima de James Hillman e a psicologia arquetípica

Hillman, James. “Anima,” Spring: A Journal of Archetype and Culture (1973), 97-132.
Hillman, James. “Anima II,” Spring: A Journal of Archetype and Culture (1974), 113-146.
Textos envolventes e persuasivos que repensam a anima de Jung de maneira simpática à
análise feminista.

Hillman, James. Archetypal Psychology: A Brief Account (Dallas, Tex.: Spring Publications
Inc., 1983).
Uma introdução acessível à psicologia arquetípica; inclui uma bibliografia completa das
obras de James Hillman publicadas até 1983.

Feminismos junguianos nas ciências humanas

Barnaby, Karin e D’Acierno, Pellegrino (editores). C. G. Jung and the Humanities: Towards
a Hermeneutics of Culture (Londres: Routledge, 1990).
Um compêndio fascinante com textos influentes de outros psicólogos arquetípicos como
Paul Kugler e a teórica arquetípica feminista Carol Schreier Rupprecht, e uma debate de
mesa redonda que inclui Robert Bly.

Goldenberg, Naomi R. “A feminist critique of Jung,” em Robert L. Moore e Daniel J.


Meckel (editores), Jung and Christianity in Dialogue: Faith, Feminism and Hermeneutics
(Mahwah, NY: Paulist Press, 1990), pp. 104-111.
Uma crítica ferrenha das limitações de Jung com relação a gênero, junto com um
chamado para um feminismo mais orientado por arquétipos.

Tacey, David. Remaking Men: Jung, Spirituality and Social Change (Londres: Routledge,
1997).
Diz tudo que você precisa saber sobre o movimento mitopoético masculino e o que tem
de errado com ele. Uma leitura acessível e uma tentativa convincente de juntar os
estudos dos homens acadêmicos e a teoria junguiana progressiva.

Wehr, Demaris S. Jung and Feminism: Liberating Archetypes (Boston: Beacon Press,
1987).
Excessivamente simplifica uma “oposição” entre Jung e o feminismo. Termina com um
argumento valioso em prol de sua integração ao pensamento feminismo nas ciências
humanas.

Lauter, Estella, e Rupprecht, Carol Schreier. Feminist Archetypal Theory: Interdisciplinary


Re-Visions of Junguian Thought (Knoxville, Ten.: University of Tennessee Press, 1985).
Uma introdução abrangente para esse importante feminismo junguiano. Inclui ensaios
sobre literatura, as artes visuais e a terapia feminista.
Psicologia de desenvolvimento junguiana e Andrew Samuels
Samuels, Andrew. A psique plural: personalidade, moralidade e o pai (Editora Imago,
edição original Londres: Routledge, 1989).
Esse chamado para que o “pluralismo” abrace os estudos junguianos defende a ideia de
“feminismos junguianos” sem empregar o termo. Um trabalho muito inovador e
progressista sobre gênero no contexto de Jung, Freud e seus legados.

Samuels, Andrew. Politics on the Couch: Citizenship and the Internal Life (London:
Profile Books, 2001).
Uma leitura fascinante e otimista sobre a junção da psicologia e da política. Muito
acessível e combina as abordagens política e psicológica de gênero.

Young-Eisendrath, Polly, e Dawson, Terence (editores). Compêndio da Cambridge sobre


Jung (Editora Madras, edição original Cambridge: Cambridge University Press, 1997).
Contém introduções úteis às escolas arquetípicas e de desenvolvimento, com
bibliografias extensas.

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