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Capítulo 1

Material para uso exclusivo de aluno matriculado em curso de Educação a Distância da Rede Senac EAD, da disciplina correspondente. Proibida a reprodução e o compartilhamento digital, sob as penas da Lei. © Editora Senac São Paulo.

Interações
filosóficas entre
arte e educação

Este capítulo trata da relação entre arte e educação, em diversos


aspectos. Começa com algumas considerações sobre os aspectos sub-
jetivos e sociais envolvidos na delimitação do que se entende por arte e
a constituição de seu campo no Ocidente. Destaca os principais desen-
volvimentos históricos da ideia de arte e suas ressonâncias no ensino
e na elaboração de um escopo teórico e prático da arte na educação.

Em seguida, atém-se às ideias do filósofo alemão Friedrich Schiller


sobre a formação estética, em especial aquelas desenvolvidas no livro
A educação estética do homem: numa série de cartas (1989), no qual
defende que a arte é matéria fundamental para a construção da mora-
lidade e, por extensão, da vida em sociedade. A escolha de Schiller não
é casual. Trata-se de um dos precursores da arte-educação, ao colocar
em debate as relações entre arte e formação para a vida em sociedade.

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A relação entre arte e educação pode se centrar em diferentes eixos.

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Nem todos queremos ser artistas, mas todos podemos reconhecer a
experiência estética que se manifesta em cada um no contato com as
obras. Na sala de aula, há lugar para desenvolver a experiência e a expres-
são artísticas, para cultivar valores e compreender melhor a si mesmo ou,
simplesmente, para reforçar ou ilustrar o conteúdo de outras disciplinas
por meio da arte.

Não existe uso ou presença mais ou menos nobre da arte na educa-


ção, e todas as possibilidades serão consideradas neste livro. Por isso,
a última parte do primeiro capítulo tratará da situação contemporânea
do ensino de arte.

1 A contribuição da arte para a educação


Arte é uma daquelas ideias difíceis de definir. Faltam palavras para
descrever a emoção diante de uma obra e os múltiplos sentidos que ela
pode suscitar. Essa sensação é o que se costuma chamar de experi-
ência estética, um aspecto simultaneamente subjetivo e social. Nossa
apreciação depende de uma série de fatores, incluindo o contato pré-
vio com conteúdos artísticos, nosso repertório e nossa formação. O
sociólogo francês Pierre Bourdieu (2007) desenvolveu pesquisas que
revelam como as escolas frequentadas durante o período de formação
determinam as preferências artísticas das pessoas. De um ponto de
vista subjetivo, há a experiência estética; de outro, as concepções de
cada época e cada cultura sobre o que é arte. Refletindo sobre o sig-
nificado de arte, o professor e crítico Alfredo Bosi (1989, p. 8) afirma:

É preciso refletir sobre este dado incontornável: a Arte tem repre-


sentado, desde a Pré-História, uma atividade fundamental do ser
humano. Atividade que, ao produzir objetos e suscitar certos esta-
dos psíquicos no receptor, não esgota absolutamente o seu senti-
do nessas operações. Estas decorrem de um processo totalizante,
que as condiciona: o que nos leva a sondar o ser da Arte enquanto
modo específico de os homens entrarem em relação com o univer-
so e consigo mesmos.

8 Metodologias em arte-educação
Como destaca Bosi (1989), a arte é uma forma de conhecimento
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baseada na percepção do mundo e no sentir das coisas. Analisando


sob a perspectiva da expressão estética, no ato de o artista traduzir
suas ideias ou emoções em formas plásticas ou outros processos cria-
tivos, há também uma multiplicidade de fatores envolvidos.

No ato criador da imagem, são postos em cena os elementos co-


nhecidos pelo sujeito que cria. Ao criar, ele os transforma em algo
novo que adquire significado na obra produzida. Como um jogo, o
criador transforma o percebido em linguagem plástica e reconstrói
a forma, dando-lhe significado. (PEREIRA, 2008, p. 17)

A maioria das pessoas que frequentaram o ensino básico tem


lembranças das aulas de artes. Muitas vezes, elas são associadas ao
tempo lúdico, à recreação e ao descanso, momentos “não sérios” das
horas passadas na escola. Também é comum que as artes apareçam
como ilustração ou complemento de outras disciplinas. Outras vezes,
elas são aplicadas na escola como forma de educação afetiva, para
tratar de problemas disciplinares ou, no ensino médio, de tópicos sen-
síveis da fase adolescente, como sexualidade, drogas e exposição nas
redes sociais. Raramente as artes são ensinadas como expressões
autônomas, com exceção da literatura, que tem um espaço nobre nos
currículos.

Na formação universitária, arte e educação constituem, hoje, cam-


pos de investigação distintos, e, muitas vezes, a associação entre uma
e outra não é tranquila, ainda que se fale de arte nos cursos de peda-
gogia e haja disciplinas “da educação” nas licenciaturas em artes.
A história da educação, no entanto, traz elementos instigantes para
pensarmos a contribuição das artes na formação dos alunos, con-
forme veremos panoramicamente a seguir.

As artes estão presentes em toda a história da educação. Entre


os gregos, a paideia (literalmente, “criação de meninos”) incluía a ini-
ciação musical como uma forma de educação e tinha como princípio

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a transmissão de costumes coletivos. Ao longo do tempo, passou a

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incluir a dança e a literatura como instrumentos para o desenvolvi-
mento de virtudes.

Ainda que repleto de proibições, o ensino de artes continuou na Idade


Média por meio da Igreja. O ensino escolástico1 incluía em seu currículo
aulas de música e retórica. Como esse ensino dependia da autorização
dos bispos, que, por medo de perder o poder, dificultavam a proliferação
das escolas, surgiram as universitas, associações de professores e alu-
nos que deram origem às universidades. Nestas, o ensino era dividido
em quatro faculdades: direito, medicina, teologia e artes, sendo a última
dirigida diretamente pelo reitor.

Na Baixa Idade Média (séculos XII a XV), surgem as guildas, associa-


ções profissionais que funcionam como corporações de ofício e exer-
cem, entre outras funções, o ensino de atividades artesanais. Nessa
época, os artistas plásticos não se diferenciavam de outros trabalha-
dores manuais – o status dos artistas só passaria a ser diferenciado a
partir do Renascimento.

Tomemos como exemplo as duas pinturas a seguir. Ambas têm


o mesmo título, Maestà, nome que os artistas da Idade Média e do
Renascimento usavam para se referir às representações de Maria, mãe
de Jesus, entronizada. As obras foram pintadas praticamente na mesma
época: a primeira, por volta de 1290, e a segunda, por volta de 1306.
Reparemos que, apesar de retratarem o mesmo tema, há diferenças sig-
nificativas entre elas. Na primeira, os anjos são todos do mesmo tama-
nho e não olham para Maria. Esta, por sua vez, segura frouxamente um
Jesus bebê de tamanho desproporcional, muito maior do que se supõe
ser uma criança de colo, parecendo prestes a escorregar. Na segunda
pintura, os anjos do fundo são menores do que os da frente, criando a
ilusão de profundidade. Eles olham para Maria, compondo uma cena.

1 O termo “escolástica” se refere ao ensino feito pela Igreja na Idade Média, que gerou um modelo repetido
em instituições judaicas e muçulmanas.

10 Metodologias em arte-educação
A imagem de Jesus bebê também é desproporcional, mas com uma
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diferença: ele está sentado com segurança no colo de sua progenitora.


A ilusão de profundidade trazida pelas técnicas de perspectiva passa a
sensação de paz e conforto. Para nossa surpresa, Cimabue, autor da
primeira pintura, foi professor de Giotto, autor da segunda.

Figura 1 – Maestà, Cimabue

Fonte: Mei (2006).

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Figura 2 – Ognissanti Maestà, Giotto

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Fonte: The Yorck Project (2002).

O que causa tanta diferença entre uma imagem e outra? Cimabue


é um pintor da Baixa Idade Média, época em que a perspectiva ainda
não havia sido inventada e os critérios que definiam uma obra de arte
bem-feita eram diferentes daqueles que Giotto, um dos precursores
do Renascimento, viria a defender. Não se trata de julgar qual deles
era mais avançado ou pintava melhor. Ambos foram mestres em seus
estilos. Neste e nos próximos capítulos, vamos refletir sobre como
Giotto, tendo sido discípulo de Cimabue, pôde se diferenciar do seu
professor, e, assim, pensaremos as relações entre arte e educação.

12 Metodologias em arte-educação
No livro O olhar renascente: pintura e experiência social na Itália da
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Renascença (1991), o historiador Michael Baxandall elucida questões


centrais sobre a mudança radical operada pelo Renascimento no que
se entende por arte e o seu impacto no ensino, com o qual lidamos
até hoje. Baxandall (1991) dedica o segundo capítulo do livro à pers-
pectiva e às formas criadas por essa técnica de desenho e pintura,
um estilo cognitivo que é ensinado até hoje. No entanto, a revolução
mais importante é a valorização da autoria, que definiu os contornos
do campo artístico, criou as instituições de ensino de arte existentes
ainda hoje, propiciou o aparecimento da crítica de arte e estabeleceu
critérios de separação entre a Arte erudita (com inicial maiúscula) e as
artes chamadas de populares.

Analisando contratos entre artistas e mecenas, Baxandall cons-


tata que houve, entre o final da Idade Média e o Renascimento, uma
mudança na relação da sociedade com os artistas. Se antes os pinto-
res eram contratados por encomenda para realizar tarefas específicas,
sem ter os seus nomes reconhecidos, no Renascimento eles se torna-
ram, sobretudo, criadores cujas obras precedem as relações comerciais
de compra e aquisição. O pintor deixa de ser apenas um trabalhador
manual para adquirir outro status, mais valorizado socialmente. Deixa
as guildas para pertencer às academias, locais que promovem o ensino
das artes e os dispositivos de consagração de um artista. A pintura, por
sua vez, ganha espaço na filosofia e na história, passando a ser vista
como uma forma de conhecimento.

Não é por acaso que nos lembramos com mais facilidade de pin-
tores que surgiram a partir do Renascimento e temos dificuldade,
ou sequer conhecemos, artistas da Antiguidade ou da Idade Média.
A autoria trouxe a ideia de que uma obra, para ser considerada Arte
(com inicial maiúscula), deve ser única e exclusiva. Se hoje falamos
em restauração de obras de arte – para que se aproximem, séculos
depois, do que o artista fez em sua época –, é porque ainda valoriza-
mos a autoria e a singularidade de cada criação. Ao contrário, a arte

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chamada de popular é anônima, reprodutível, pode ser modificada por

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quem a adquire e tem valor utilitário.

Com esse novo sistema de funcionamento do campo artístico, as


instâncias de aprendizado e legitimação também mudam. Surge a
figura do crítico de arte, um conhecedor especializado que julga as
obras a partir dos critérios determinados pelas academias, locais de
aprendizagem e avaliação do fazer artístico. Ambos, crítica e aca-
demia, concebem a ideia de “belas artes”, limitando as expressões
artísticas que merecem ser chamadas de Arte (com inicial maiúscula)
a certas linguagens (a princípio, pintura, escultura, música, dança e
literatura). As demais linguagens eram consideradas artes aplicadas,
desprestigiadas como mero trabalho manual, à exceção do teatro,
cuja parte escrita era válida como literatura, ao passo que os artistas
da cena (incluindo atores) não eram igualmente reconhecidos.

Até o final do século XVIII, a crítica e as academias consolidaram o


processo, iniciado no Renascimento, que criou regras para o fazer dos
artistas. Ao mesmo tempo, o ensino de artes era objeto de investigação
de filósofos que se dedicavam a entender a expressão e a experiência
estéticas. Um deles, Friedrich Schiller, notabilizou-se por suas reflexões a
respeito da aprendizagem artística, como veremos a seguir.

2 Schiller e a educação estética


Friedrich Schiller foi um poeta, filósofo e historiador alemão que
exerceu grande influência no pensamento estético da segunda metade
do século XVIII até meados do século XIX. Uma de suas principais
obras é A educação estética do homem: numa série de cartas (1989),2
um conjunto de cartas que escreveu em 1793 ao seu amigo, o Duque
de Augustemburgo. Nelas, apresenta os seus ideais educativos,

2 A tradução utilizada neste livro é a de Roberto Schwarz e Márcio Suzuki (SCHILLER, 1989).

14 Metodologias em arte-educação
inseparáveis de suas concepções sobre a arte e contribuições para a
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formação das pessoas.3

A educação estética é um dos temas centrais do pensamento de


Schiller. Suas ideias são precursoras do Romantismo, vindas do movi-
mento literário alemão Sturm und Drang (Tempestade e Ímpeto), do
qual fez parte. Esse movimento voltava-se contra o racionalismo ilu-
minista, que colocava a razão acima de qualquer afeto, e o classicismo
francês, que impunha regras rígidas para o fazer artístico.

O Sturm und Drang defendia o sentimento e a emoção contra a frieza


do racionalismo. Além disso, Schiller valorizou o teatro, linguagem que,
em sua época, não fazia parte das belas artes. Schiller se tornou um
autor bastante lido no século XIX e na virada para o século XX, quando
suas ideias também foram consideradas para pensar o cinema como
linguagem artística.

Assim como a maioria dos intelectuais alemães do período, Schiller


tinha muitas expectativas em relação à Revolução Francesa. A educa-
ção estética do homem: numa série de cartas (1989) é uma obra que, em
larga medida, busca entender o fracasso dessa revolução, que se trans-
formou em um regime de terror e não levou adiante o lema “liberdade,
igualdade e fraternidade”. Para Schiller, faltou elevar o caráter moral dos
franceses, tocando suas almas com a beleza. A Revolução Francesa foi,
para ele, um grande momento, mas que encontrou homens fracos. Era
necessário, portanto, educação estética para chegar ao conhecimento
e para desenvolver padrões morais elevados por meio da beleza.4

3 Sempre que possível, será evitado neste livro o uso da palavra “homem” como sinônimo de humanidade.
Outras possibilidades, menos sexistas, terão preferência.

4 A ideia de beleza e o conceito de belo mudam conforme o período, o autor e a escola filosófica. Para
Schiller, a beleza está diretamente relacionada com a liberdade, quando as formas expressam uma vontade
pura, livre de qualquer interferência externa. Schiller também desenvolveu o conceito de beleza moral,
expressão de uma bela alma.

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Para Schiller (1989), pela beleza, o homem sensível é conduzido à

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forma e ao pensamento e o homem espiritual é reconduzido à matéria e
ao mundo sensível. Em outras palavras, a razão, sozinha, não conduziria
os indivíduos à moralidade e à ética. Antes, a formação estética levaria à
formação moral. É por meio da estética que o ser humano chegaria à sua
humanidade máxima, pois a arte é o corolário da vida. É preciso que a
beleza interfira em nossa realidade física para chegarmos à moralidade.
Nesse sentido, Schiller ia contra o utilitarismo vigente em sua época. O
belo suscita uma dimensão lúdica, essencial para a fruição estética. O
homem deve ser moral, nem totalmente espírito, nem totalmente maté-
ria. É preciso alcançar um equilíbrio entre o impulso sensível e o impulso
racional, entre a forma e a matéria.

Assim, o ensino de artes é uma formação ao mesmo tempo estética


e moral, pois prepara os indivíduos para a liberdade. Só é realmente livre
aquele que cultiva sua sensibilidade sem submeter-se cegamente aos
imperativos da lei e da sociedade. Teatro, música, romance e poesia são
tratados por Schiller como indispensáveis para a educação.

PARA SABER MAIS

Devido a problemas de saúde, Schiller morreu muito jovem, aos 46


anos. Sua importância para a cultura ocidental, porém, é tão vasta que
pode ser observada em situações inusitadas:

• Seu poema Hino da alegria (em alemão, An die freude), escrito


em 1795, é a letra do quarto movimento da muito conhecida 9a
Sinfonia de Ludwig van Beethoven. Uma versão legendada em por-
tuguês está disponível no YouTube (BEETHOVEN..., 2018).

• As ideias de Schiller chegaram ao Brasil no século XIX, vindas de


traduções publicadas na França e em Portugal. Gonçalves Dias,
autor da Canção do exílio, foi um grande fã de Schiller e preferiu
ler suas obras diretamente em alemão. Especialistas apontam a
influência de Schiller nas obras teatrais de Dias.

16 Metodologias em arte-educação
3 A arte em diferentes abordagens
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pedagógicas contemporâneas
Os fundamentos do campo artístico erigidos a partir do Renascimento,
assim como as instituições para o ensino e a legitimação do fazer artís-
tico deles decorrentes, começaram a ruir no final do século XIX. Em 1863,
a Academia Francesa de Pintura e Escultura rejeitou uma quantidade
tão grande de artistas em seu salão anual que o imperador Napoleão III
determinou a abertura de uma exposição paralela, apelidada de Salão
dos Recusados, que atraiu grande público e notabilizou artistas como
Claude Monet e Édouard Manet. Uma das telas expostas, Almoço na
relva, de Manet, foi ridicularizada pelos membros da Academia. Em res-
posta, o pintor teria dito: “Riam, imbecis de Paris. Nós vamos conquistar
vocês”. E, de fato, conquistaram. O Impressionismo abriu caminho para
o surgimento das vanguardas e até mesmo da arte contemporânea.

Figura 3 – Almoço na relva, Édouard Manet

Fonte: Lejeune (2017).

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Não era somente nas artes visuais que o campo artístico começava a

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mudar. No teatro, surgiam os autores da chamada “crise do drama”, que
escreviam sem se importar com o que ditavam as academias de letras.
Na dança, Isadora Duncan libertava os movimentos da rigidez do balé
clássico. Na mesma época, as inovações musicais de Debussy influen-
ciavam compositores como Béla Bartók, Ravel e até mesmo o brasileiro
Heitor Villa-Lobos. As academias deixavam de ser o local privilegiado de
aprendizagem artística, abrindo espaço para os ateliês e as escolas livres.

Foram surgindo métodos de ensino específicos para cada lingua-


gem artística, para além do virtuosismo e do ensino da técnica, unindo
as novas manifestações de vanguarda a inovações pedagógicas. É
o caso do espontaneísmo de Isadora Duncan e dos estudos coreo-
gráficos de Rudolf Laban, que foram determinantes para o ensino da
arte-educação aplicada à dança por Maria Duschenes, no Brasil.

No campo da filosofia, destaca-se John Dewey, filósofo estaduni-


dense que colocou as experiências estéticas como ponto de partida
para o ensino de artes. Para Dewey (2010), a arte propiciaria uma expe-
riência consumatória no processo de ensino-aprendizagem. Ana Mae
Barbosa, um dos nomes mais importantes da arte-educação no Brasil,
lembra, porém, que uma visão equivocada sobre as artes na educação
permeou o projeto modernista da Escola Nova no Brasil. Anísio Teixeira,
que foi aluno de Dewey no Teachers College, da Columbia University,
compreendeu que esse conceito se referia a uma parte final das ativida-
des didáticas; Dewey, no entanto, pensava a experiência consumatória
não como uma fase, mas como um procedimento que permeava todo
o processo, fazendo uma ponte entre o teórico e o empírico, entre o
vivido e sua reflexão crítica. Segundo Barbosa (2011), esse equívoco
levou Teixeira a relegar a arte à função de ajudar a criança a organizar e
fixar noções apreendidas em outras áreas de estudo.5

5 De acordo com Ana Mae Barbosa, Anísio Teixeira não foi o único a compreender dessa forma a ideia de
experiência consumatória, que também esteve presente nas Escolas Progressistas da década de 1930, nos
Estados Unidos.

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Nos próximos capítulos, vamos abordar diferentes vertentes para
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refletir sobre o ensino de arte e para propor novas abordagens inclusi-


vas e abrangentes. São muitas as possibilidades de ensino de arte. Há
iniciativas focadas na formação da cidadania por meio do fomento a
atividades culturais. Pari passu, movimentos sociais têm incorporado
expressões artísticas como veículo para denúncias e reivindicações. Da
mesma forma, oficinas de arte visam empoderar segmentos estigmatiza-
dos. A arte não é estática, mas está sempre em processo de renovação, e
temas antes ignorados nos currículos passam a fazer parte dos espaços
de ensino. Abordagens decoloniais, feministas, queer e não capacitistas
ganham espaço tanto no ensino formal quanto nas instituições culturais.

Figura 4 – The blue bra girls, Ghada Amer

Uma escultura como The blue bra girls (Garotas do sutiã azul), de
Ghada Amer, é uma expressão dessas novas demandas. A artista,
nascida no Egito, teve como disparador para essa obra a foto de uma
muçulmana durante os protestos na Praça Tahrir, no Cairo, em 2011.
A imagem, que viralizou nas redes sociais, mostrava a mulher sendo
arrastada por sua vestimenta, deixando à mostra suas roupas íntimas.

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A obra de Ghada Amer traz a imagem de várias mulheres em pé e se

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dando as mãos, remetendo à ideia de sororidade cara ao feminismo
contemporâneo. Formada em belas artes, a artista encontrou formas
de expressão bem diferentes daquelas ensinadas nas academias até
o século XIX. Um trabalho como esse, relacionando a expressão subje-
tiva, a formação em artes e a trajetória pessoal da artista, só é possível
em nosso tempo.

Concomitantemente, o advento de novas tecnologias é outro fator


que impõe reflexões tanto sobre o estatuto da arte quanto sobre seu
ensino. Essa discussão já se fazia quando surgiu o cinema, mas inten-
sificou-se em anos recentes com as tecnologias digitais e on-line.
Redes, algoritmos, inteligência artificial (IA), token não fungível (NFT),
metaverso, realidade ampliada e outras novidades colocam em xeque
até mesmo as rupturas do final do século XIX.

Apesar do ambiente inovador, algumas vertentes modernas e con-


temporâneas ainda instrumentalizam as artes na escola, fazendo-as de
suporte ou ilustração para outras disciplinas. É o caso do uso de cinema
em aulas de história ou de música em aulas de língua estrangeira. Esse
uso instrumental descarta os aspectos afetivos da aquisição de conheci-
mentos. Ainda que válidos – se bem conduzidos –, esses procedimentos
se limitam ao uso aplicado das artes, impedindo os alunos de compreen-
der as linguagens artísticas como expressão ou experiência.

PARA SABER MAIS

Livros para quem quiser aprofundar os tópicos desenvolvidos neste


capítulo:

• Isso é Arte? 150 anos de arte moderna do impressionismo até


hoje, de Will Gompertz (2013).

• A transfiguração do lugar-comum, de Arthur C. Danto (2011).

• John Dewey e o ensino da arte no Brasil, de Ana Mae Barbosa (2011).

• As regras da arte, de Pierre Bourdieu (1996).


20 Metodologias em arte-educação
Considerações finais
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A história da arte tem uma relação íntima com a filosofia da educa-


ção e com os processos de ensino-aprendizagem. O conceito de arte
muda conforme a cultura e o período histórico, e isso afeta diretamente
a forma como a arte é inserida na educação. Neste capítulo, tratamos
de quatro possibilidades:

1. A arte como ilustração ou aprofundamento de conhecimentos


oriundos de outros campos disciplinares.

2. O ensino de arte como veículo para a formação de valores, agindo


sobre o comportamento dos alunos.

3. A arte apresentada como forma de expressão dos alunos, condu-


zindo-os para o aprendizado e o domínio técnico das linguagens.

4. O ensino da arte para ampliar as possibilidades de fruição e expe-


riência estética dos estudantes.

Cada professor, em sua prática – e de acordo com seus objetivos


–, poderá enfatizar um ou outro aspecto, ou combiná-los entre si. Ao
longo deste livro, essas quatro possibilidades serão apresentadas em
relação às diferentes linguagens artísticas, em diferentes perspectivas
históricas, metodológicas e didáticas, incluindo temas transversais
como as questões identitárias e as novas tecnologias.

É possível traçar uma linha que vai de Cimabue a Ghada Amer, pas-
sando por Giotto e Manet, artistas que tiveram obras analisadas neste
capítulo. As quatro obras remetem a diferentes momentos da história,
com técnicas de composição próprias e visões diferentes sobre o ensino
de arte. Cimabue viveu em um tempo no qual os artistas não se diferen-
ciavam dos trabalhadores manuais, realidade diferente da encontrada
por seu aluno Giotto. As regras da arte do tempo de Giotto, por sua
vez, foram subvertidas pelo impressionista Manet, que rompeu com a

Interações filosóficas entre arte e educação 21


Academia Francesa. Ghada Amer é uma expoente da arte contemporâ-

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nea que trouxe temas atuais como o feminismo e a Primavera Árabe.
Sua educação formal quase não tem impacto sobre sua produção.

Predominam na história da arte-educação didáticas pensadas para o


ensino das artes visuais. No entanto, cada linguagem tem suas vertentes,
o que será tema do próximo capítulo. Além disso, como fica a posição do
educador quando ele mesmo é um artista? Essa questão é crucial para
a compreensão mais ampla dos processos de ensino e aprendizagem.

Referências
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2011.

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GOMPERTZ, W. Isso é arte? 150 anos de arte moderna do impressionismo até


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22 Metodologias em arte-educação
LEJEUNE, G. Le déjeuner sur l’herbe, Edouard Manet, 1863. Marked with CC0
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PEREIRA, K. H. Como usar artes visuais na sala de aula. São Paulo: Contexto,
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SCHILLER, F. A educação estética do homem: numa série de cartas. São Paulo:


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THE YORCK PROJECT (2002) 10.000 Meisterwerke der Malerei (DVD-ROM),


distributed by DIRECTMEDIA Publishing GmbH.

Interações filosóficas entre arte e educação 23

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