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1. O Novo Testamento
O Novo Testamento apresenta-se sob a forma de uma coletânea de vinte e sete livros,
todos escritos em grego e de dimensões muito desiguais. 2
Vamos primeiramente esclarecer alguns pontos conceituais. O sintagma “Novo
Testamento” tem um substantivo “Testamento” e um adjetivo “Novo”; este por sua vez,
coloca um outro problema, que é a relação com outro sintagma “Antigo Testamento”.
“Testamento” deriva do latim Testamentum, usado pela Vetus Latina para traduzir o
grego diathêkê (da raiz dia-tithêmi, “dispor”) para indicar a “disposição testamentária”.
O termo diathêkê, na linguagem bíblica, remete ao hebraico berit, que em si não significa
“testamento”, mas “promessa, juramento, empenho, pacto, aliança”, segundo o próprio
contexto.3 Antes de designar uma série de escritos, se referia ao relacionamento especial
de Deus com os seres humanos. Por exemplo, na história de Israel, ouvimos falar de uma
“aliança” (acordo ou pacto) por meio do qual Deus assumiu um compromisso com Noé,
Abraão ou Davi, prometendo ajuda ou bênçãos especiais. Segundo a tradição, porém, a
aliança mais importante foi a que Deus fez com Moisés e Israel (Ex 19,5; 35,10.27),
tornando este o povo predileto de Deus.4
1
Cf. Texto adaptado a partir de G. ROSSÉ, Os Evangelhos, São Paulo: Editora Cidade Nova, 1995.
2
Cf. Biblia TEB, Introdução ao Novo Testamento, p. 1837.
3
Cf. Massimo GRILLI, Vangeli Sinottici e Atti degli apostoli, p. 25.
4
Cf. Raymond BROWN, Introdução ao Novo Testamento, p. 55. Bem esclarece a TEB na sua Introdução
ao Novo Testamento: “a palavra ‘Testamento’ traduz o termo empregado em hebraico para designar a
aliança concluída entre Deus e Israel”. Na Bíblia, o divino berith é um evento, e não um ideal ou princípio.
A Aliança é um ato gracioso de Deus, realizado por iniciativa divina para o benefício da humanidade. Está
sempre associada a livramento, validação de vida e segurança, total bem-estar e paz. A Aliança é um ato
salvífico. Cf. M. Eugene BORING, Introdução ao Novo Testamento. Questões introdutórias do Novo
Testamento e escritos Paulinos, 2016, p. 3.
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Importante perceber que a graça de Deus precede e é base para o chamado à responsabilidade humana,
algo também presente na aliança do Antigo Testamento. O judaísmo compreendeu isto. A graça redentora
de Deus precede a exigência, e a iniciativa divina de fazer uma aliança precede a resposta humana. Contudo,
a aliança requer uma resposta humana, e a reclama. As boas novas da salvação oferecida por Deus, o ato
de fazer a aliança (indicativo) carrega consigo a exigência da resposta humana (imperativo). Cf. M. Eugene
BORING, op. cit. p. 4.
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Cf. M. Eugene BORING, op. cit., p. 5.
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falam de mais alianças (cf. Ef 2,12; Rm 9,4), mas – examinando a fundo os textos – se
pode perceber um filão comum que liga indissoluvelmente as várias intervenções de
Deus. Em Jr 31 quando fala de “nova aliança”, não quer dizer que a antiga venha
destruída. Aliás, Jeremias fala da “mesma aliança”, da Aliança Sinaítica, escrita em um
“novo coração”.
Então, com a vinda de Jesus, quantas alianças temos? O Novo Testamento dá uma
acepção diferente, porque a aliança estipulada – diz Jesus – é estipulada “no meu sangue”.
Se trata da oferta da própria vida: não mais touros e ovelhas, mas “eis que venho”! (Hb
10,8-9).
Podemos enfim, afirmar que a “nova aliança” no sangue de Jesus (Lc 22,19-20 e
1Cor 11,23-25) não abole a antiga (cf. Rm 11,29), mas torna escatologicamente e
definitivamente presente a promessa divina em favor “do seu povo Israel” (Lc 1,68.77) e
“de todos os povos da terra” (Lc 2,30-32).
“Mediante a morte e ressurreição de Jesus, os cristãos acreditavam que Deus renovara
a aliança com uma revigorada dimensão e chegavam à compreensão de que, daquela vez,
a aliança ultrapassava Israel e incluía os gentios no povo de Deus”.7
A primeira parte da Bíblia cristã é o fundamento básico, lançado primeiro e sobre o
qual o novo agir de Deus em e por meio de Jesus e naqueles que o seguem,
testemunhado no ‘Segundo Testamento’, se apoia, de tal modo que o Segundo
constitui a atualização renovada e definitiva do Primeiro Testamento.8
7
Raymond BROWN, Introdução ao Novo Testamento, p. 56.
8
Erich ZENGER, Introdução ao Antigo Testamento, p. 20.
9
Raymond BROWN, Introdução ao Novo Testamento, p. 56.
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10
Cf. A.B. LUTER, “Evangelho”. In G. HAWTHORNE; R. MARTIN; D. REID, Dicionário de Paulo e
suas cartas, p. 518.
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Para dizer que “o Evangelho” não designa inicialmente um livro, mas o anúncio de
salvação. Além disso, pode-se dizer que Jesus é o “primeiro evangelista”, porque anuncia
a obra salvífica de Deus aos pobres, como precisa bem Lc 4,18, que coloca na boca de
Jesus as palavras de Is 61: “O espírito do Senhor está sobre mim [...] me enviou para
evangelizar os pobres!”
Somente num segundo momento temos a passagem do “evangelho” entendido no
sentido kerygmático, para o evangelho entendido como “narrativa” daquilo que Jesus fez
e ensinou. Bem precisa Rinaldo FABRIS: “se em seguida aos quatro opúsculos surgidos
em torno do evento de Cristo foi aplicada a palavra ‘evangelho’ deve-se ao fato de que
nestes livros se reconhece aquela proclamação da boa notícia da salvação de Deus que se
realizou nas palavras e obras, na morte e ressurreição de Jesus, o Cristo”.11
O termo evangelho, para ainda precisar melhor, antes de designar um gênero escrito,
serviu para definir a atividade e o conteúdo de um anúncio e pregação pública itinerante,
primeiro da parte de Jesus, depois da parte da comunidade que a ele se refere. É
precisamente esta pré-história de tradição oral e comunitária que explica as características
literárias dos opúsculos que trazem o nome de “evangelho”.12
11
Rinaldo FABRIS, “Introdução Geral aos Evangelhos Sinóticos”. In R. FABRIS; B. MAGGIONI, Os
Evangelhos I, p. 14.
12
Ibidem.
13
O século II atesta o uso de euaggelion para designar escritos cristãos. A pluralidade de escritos
evangélicos exigia a utilização de designações distintivas, de modo que, por volta do fim do século II,
inseriam-se introduções aos evangelhos canônicos, segundo o modelo “Evangelho segundo...”. Cf.
Raymond BROWN, Introdução ao Novo Testamento, p. 173.
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14
Cf. Benito MARCONCINI, Os Evangelhos Sinóticos. Formação, Redação e Teologia, p. 23.
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15
Cf. Giuseppe BARBAGLIO, Jesus, hebreu da Galileia. Pesquisa histórica, p. 20.
16
“[a elaboração dos evangelhos] em linha de princípio não traz nada de novo, ou melhor, nada mais faz
do que levar a cumprimento aquilo que teve início com a primeira tradição oral” (R. Bultmann). Citado por
Benito MARCONCINI, Os Evangelhos Sinóticos. Formação, Redação e Teologia, p. 28.
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17
Cf. Giuseppe BARBAGLIO, Jesus, hebreu da Galileia. Pesquisa histórica, p. 25-26.
18
Cf. Idem, p. 28-29.
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revela na fé, no autêntico significado da sua ação salvífica e do mistério da sua pessoa.
Compreendeu-se, assim, por que a comunidade cristã (e, por conseguinte, os Evangelhos),
ao falar de Jesus, jamais se tenham interessado pelos fatos em si, nem os tenha descrito.
Como consequência, não se pode ler os textos evangélicos como se fossem descrições
exatas e detalhadas do fato (narrado). Não convém interrogar esses escritos fora do âmbito
da fé que os fez serem escritos. Sua fidelidade ao Jesus da história é grande e merece toda
a confiança, mesmo que a natureza do texto que se tem nas mãos não permita mais um
conhecimento objetivo, descritivo, do fato. As tradições primitivas recolhidas pelos
evangelistas baseiam-se em acontecimentos reais vividos pelo Mestre, mas elas os
relatam segundo aquela inteligência mais profunda (que, por sua vez, se baseia na
interpretação dos apóstolos-testemunhas) surgida depois da ressurreição de Jesus, ou seja,
à luz da fé cristã.
A forma literária dos Evangelhos recebeu influência da própria originalidade da
experiência cristã, o encontro com o Cristo ressuscitado. Os evangelistas estavam
conscientes de que, através das palavras escritas no Evangelho, o Jesus ressuscitado se
dirige, hoje como ontem, ao leitor e quer estabelecer com ele um diálogo vital.
O Cristo ressuscitado que encontramos na fé é idêntico ao Jesus de Nazaré; para
conhecer o Ressuscitado é preciso conhecer Jesus. A fé no Senhor ressuscitado repousa
necessariamente sobre a realidade histórica de Jesus de Nazaré.
Daí a originalidade literária desses escritos. Não são uma reportagem, não são uma
simples coleção de lembranças, mas um testemunho e um anúncio feitos sob a forma de
relato histórico (porque baseado em fatos históricos). São um anúncio dirigido às
comunidades cristãs para alimentar-lhes a fé.
Para se entender a natureza dos Evangelhos e lê-los na perspectiva correta, é preciso
ter presentes os seguintes dados, aparentemente em conflito uns com os outros:
a) a fé cristã não nasceu numa escrivaninha. Tal como a fé bíblica, trata-se de uma
fé essencialmente histórica e enraizada na história, ou seja, baseada na aceitação e na
compreensão das intervenções divinas na história de Israel e mediante a palavra dos
profetas. Essa vinda de Deus entre os homens culmina na existência histórica de Jesus.
Sua vida, em todos os seus aspectos (palavras, atividades, comportamento, a própria
identidade), tem, pois, uma importância fundamental e perene para a vida de fé.
Lembremos o início da Epístola aos Hebreus: “Muitas vezes e de modos diversos
falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos, falou-
nos por meio de seu Filho...” (Hb 1,1-2).
Por isso os Evangelhos, testemunho de fé, não têm a forma sistemática de um tratado
de teologia, mas de um relato que se ocupa das palavras de Jesus de Nazaré e dos fatos
sobre sua vida; são interpretações de acontecimentos reais. A atenção à história é
essencial.
b) justamente porque os Evangelhos se destinam a alimentar a fé e a proporcionar
um relacionamento com o Senhor ressuscitado nas várias situações da vida das
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No entanto, para conhecer a intenção do evangelista, é preciso, na prática, situar o trecho no seu contexto.
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Os exegetas procuram classificar assim essas formas: a) as sentenças de Jesus distinguem-se em palavras
de sabedoria (como os provérbios e as máximas, Mt 6,34, Mc 6,4 etc.), palavras proféticas (p. ex., as bem-
aventuranças, os anúncios sobre a proximidade do Reino de Deus), palavras de cunho jurídico (as sentenças
sobre o divórcio, a correção fraterna), parábolas etc.; b) os relatos dividem-se em: apoftemas ou paradigmas
(relatos breves, cuja parte narrativa está a serviço da palavra de Jesus que se encontra no seu centro ou no
ápice; como, p. ex., Mt 12,46ss), relatos de cunho biográfico (ex.: batismo de Jesus, transfiguração), relatos
de milagres, discussões com escribas e fariseus etc.
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Em Mc 9,33-50, por exemplo, que é uma instrução aos discípulos, feita em Cafarnaum, encontramos
palavras de Jesus que Lucas, por sua vez, situa na última ceia (a palavra sobre o serviço: Mc 9,35 = Lc
22,26); Mateus, no “discurso missionário” (Mc 9,37 = Mt 10,40) e no “discurso comunitário” (a palavra
sobre o escândalo: Mc 9,42 = Mt 18,6ss).
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c) o ponto de partida dessa tradição (à medida que for possível captá-la), ou seja, o
ensinamento e a atitude originais de Jesus, tais como foram transmitidas pelas
testemunhas pré-pascais.
Assim, podemos encontrar:
a) o sentido que as palavras de Jesus e os fatos sobre Ele tinham para o próprio Jesus
e para os seus discípulos durante a vida pública do Mestre;
b) o significado que adquiriram na vida das comunidades pós-pascais;
c) o sentido que receberam dos evangelistas, quando os redigiram.
É preciso, pois, superar uma leitura “plana” e passar para uma leitura “em
perspectiva”, que leva em conta a tríplice profundidade, que seja, as três etapas de
evolução que vão do Jesus histórico à redação do Evangelho escrito.
Não devemos pensar que na evolução de um texto evangélico, apenas o sentido mais
primitivo tenha valor, por ser aquele que mais se aproxima do Jesus histórico. O esforço
do leitor consistiria, assim, em eliminar constantemente o significado que um trecho foi
adquirindo nas várias etapas pós-pascais, para chegar “finalmente” ao sentido original.
Na realidade, tudo tem valor. É o que explica claramente o exegeta J. Dupont: “A
exegese de um texto evangélico supõe que se lhe atribua uma tríplice profundidade [...].
Não se trata de isolar o pensamento de Jesus para conservá-lo como o único elemento
autêntico e rejeitar suas ressonâncias seguintes na tradição apostólica e na redação
evangélica. Ao querer determinar o significado de um texto segundo os vários momentos
da sua história, nosso desejo é compreender toda a sua riqueza, e não eliminar aquilo que,
na nossa opinião, possa ser atribuído à comunidade ou ao trabalho redacional.
Tudo é sagrado nesse texto: o ensinamento de Jesus, o ensinamento dos apóstolos,
pois estes receberam a missão, não de repetir mecanicamente aquilo que escutaram, mas,
de transmitir reagindo diante das novas situações, à luz do Espírito de Jesus; e o
ensinamento dos evangelistas, inspirados pelo Espírito Santo para transmitir à Igreja as
tradições apostólicas” (Dupont).
1.8 A questão sinótica
Dos quatro livros canônicos que retratam a “Boa Nova” trazida por Jesus, os três
primeiros apresentam entre si tais semelhanças que podem ser colocados em colunas
paralelas e abarcados “com um só olhar”, de onde seu nome de “Sinóticos”. Mas eles
oferecem também entre si numerosas divergências. Como explicar este fato?
Primeiramente constata-se as concordâncias entre os três sinóticos. Quanto ao
material, eis um levantamento aproximativo do número de versículos comuns a dois ou
três evangelhos:22
Mateus Marcos Lucas
Comum aos três 330 330 330
22
Cf. Bíblia TEB, Evangelhos Sinóticos: Introdução, 2015, p. 1851.
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Dentro dessas quatro partes, Mateus distribui as suas perícopes numa ordem que lhe
é peculiar até o cap. 14; a partir daí, apresenta perícopes comuns a ele e a Marcos, na
mesma ordem que este. Lucas intercala as perícopes que lhe são próprias no meio de um
quadro geral que é idêntico ao de Marcos (assim, Lc 6,20–8,3 ou 9,51–18,14). Deve-se,
contudo, notar que, no interior desta concordância de conjunto, há discrepâncias, por
vezes, no seio de passagens comuns (assim, em Lucas, o chamamento dos discípulos ou
a visita a Nazaré).24
Entre diversas teorias que explicam o fato sinótico, ganhou preponderância a
chamada “teoria das duas fontes”. Este modelo explicativo, elaborado no fim do século
XIX, recebe, atualmente, a aprovação de um grande número de pesquisadores. Esta teoria
trabalha com três princípios:
a) Marcos é o Evangelho mais antigo;
b) uma fonte denominada Q está na origem da tradição dupla;
c) Mateus e Lucas se beneficiaram, cada um, de tradições particulares.
Vamos trocar em miúdos esta questão:
a) A tradição tríplice se explica pela prioridade marcana
A estrutura de Mateus e Lucas mostra que esses dois evangelhos retomam e adaptam
o argumento biográfico adotado por Marcos. Em compensação, eles divergem um do
outro quando se afastam da narração marcana. O início e o final do relato são
significativos a este respeito: Mateus e Lucas divergem consideravelmente em seus
evangelhos da infância (Mt 1 – 2; Lc 1 – 2), mas se reencontram quando abordam a
atividade do Batista (Mc 1,2 ss). Os ciclos pascais concordam quanto à descoberta do
túmulo vazio (Mc 16,1-8 // Mt 28,1-8 // Lc 24,1-9), mas se afastam logo depois, sem o
suporte comum de Marcos.
23
Seguimos o esquema de Rafael Aguirre MONASTERIO; Antonio Rodríguez CARMONA, Evangelhos
Sinóticos e Atos dos Apóstolos, 2012, p. 60.
24
Cf. Bíblia TEB, Evangelhos Sinóticos: Introdução, 2015, p. 1851.
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b) A tradição dupla tem por origem uma segunda fonte, uma fonte de logia dita “Q”,
que Mateus e Lucas consultaram independentemente
Mateus e Lucas têm em comum um abundante material de uns 235 versículos (cerca
de 4.000 palavras), totalmente ausente em Marcos; trata-se essencialmente, de palavras
de Jesus, com alguns textos narrativos (a tentação de Jesus, a cura do filho do centurião
de Cafarnaum). Essa fonte, hoje perdida, nos é conhecida somente por sua recepção nos
evangelhos; foi originalmente designada pela sigla “Q”, da primeira letra do alemão
Quelle (= fonte), para indicar sua natureza mal conhecida.
Em prospecto:
Tradições orais
Tradições escritas
Doc. Q Marcos
Mateus Lucas