Você está na página 1de 18

1

CURSO DE TEOLOGIA – FACULDADE DEHONIANA

EVANGELHO DE MARCOS E MATEUS

Prof. P. Claudio Buss,scj.

Obs.: o presente texto é um esboço do evangelho de Marcos e de introdução aos sinóticos.


Disponível para uso interno na Faculdade Dehoniana, no curso dos Evangelhos de Marcos e
Mateus. Muitas das reflexões apontadas de relance exigem do estudante uma posterior leitura de
obras com maior espessura exegético-teológica.

1. INTRODUÇÃO AOS EVANGELHOS SINÓTICOS1

1. O Novo Testamento
O Novo Testamento apresenta-se sob a forma de uma coletânea de vinte e sete livros,
todos escritos em grego e de dimensões muito desiguais. 2
Vamos primeiramente esclarecer alguns pontos conceituais. O sintagma “Novo
Testamento” tem um substantivo “Testamento” e um adjetivo “Novo”; este por sua vez,
coloca um outro problema, que é a relação com outro sintagma “Antigo Testamento”.
“Testamento” deriva do latim Testamentum, usado pela Vetus Latina para traduzir o
grego diathêkê (da raiz dia-tithêmi, “dispor”) para indicar a “disposição testamentária”.
O termo diathêkê, na linguagem bíblica, remete ao hebraico berit, que em si não significa
“testamento”, mas “promessa, juramento, empenho, pacto, aliança”, segundo o próprio
contexto.3 Antes de designar uma série de escritos, se referia ao relacionamento especial
de Deus com os seres humanos. Por exemplo, na história de Israel, ouvimos falar de uma
“aliança” (acordo ou pacto) por meio do qual Deus assumiu um compromisso com Noé,
Abraão ou Davi, prometendo ajuda ou bênçãos especiais. Segundo a tradição, porém, a
aliança mais importante foi a que Deus fez com Moisés e Israel (Ex 19,5; 35,10.27),
tornando este o povo predileto de Deus.4

1
Cf. Texto adaptado a partir de G. ROSSÉ, Os Evangelhos, São Paulo: Editora Cidade Nova, 1995.
2
Cf. Biblia TEB, Introdução ao Novo Testamento, p. 1837.
3
Cf. Massimo GRILLI, Vangeli Sinottici e Atti degli apostoli, p. 25.
4
Cf. Raymond BROWN, Introdução ao Novo Testamento, p. 55. Bem esclarece a TEB na sua Introdução
ao Novo Testamento: “a palavra ‘Testamento’ traduz o termo empregado em hebraico para designar a
aliança concluída entre Deus e Israel”. Na Bíblia, o divino berith é um evento, e não um ideal ou princípio.
A Aliança é um ato gracioso de Deus, realizado por iniciativa divina para o benefício da humanidade. Está
sempre associada a livramento, validação de vida e segurança, total bem-estar e paz. A Aliança é um ato
salvífico. Cf. M. Eugene BORING, Introdução ao Novo Testamento. Questões introdutórias do Novo
Testamento e escritos Paulinos, 2016, p. 3.
2
!

O sintagma palaia diathêkê, que traduzimos como “Antigo Testamento” se encontra


uma só vez na Bíblia (2Cor 3,14), enquanto kainê diathêkê5 (Novo Testamento) recorre
seis vezes: uma vez no Primeiro Testamento (Jr 31,31) e outras cinco vezes no Novo
Testamento: duas vezes nas narrativas da instituição eucarística (1Cor 11,25 e Lc 22,20),
uma vez em 2Cor 3,6 (“ministros da nova aliança”) e duas vezes na Carta aos Hebreus
(8,8 e 9,15).
A expressão “Antigo Testamento” remanda à aliança que Deus estabeleceu com o
povo hebraico e – por meio deste – com a humanidade inteira, enquanto “Novo
Testamento” indica a “Nova Aliança” estabelecida no sangue de Jesus (cf. 1Cor 11,25 e
Lc 22,20), fundamento do renovado e definitivo pacto de Deus com Israel e com toda a
humanidade. Formalmente, Jr 31 é o único texto antigo-testamentário que tem tal
caracterização, mas podemos dizer que outros textos análogos falam de “coração novo”
ou “aliança nova” (Dt 30,1-14; Jr 24,6-7; Ez 11,17-20; 36,26).
O fato de falarem numa “nova aliança” levou os cristãos a designarem,
consequentemente, a coletânea antes denominada “a Lei e os Profetas”, com o nome de
Antigo Testamento, indicando com isso que viam nela sobretudo a codificação da antiga
Aliança mosaica, que a seu ver, fora simultaneamente renovada e superada por Jesus.
Mas o que se entende por Novo? Qual a relação entre o Antigo Testamento e o Novo
Testamento? Novo, em primeiro lugar significa “renovado”, com referência ao antigo
pacto estipulado por Deus com Israel e ora renovado no sangue de Jesus. Também “novo”
pode significar “diverso” ou “único”, no sentido de que a aliança sinaítica tornou-se
“velha” e superada pela nova. Podemos enfim, nos perguntar: a “nova aliança” diverge
substancialmente da primeira a ponto de substituí-la, ou então, trata-se da mesma aliança,
mas “renovada” no sangue de Jesus?
Sobre este ponto é interessante o que nos diz M. Eugene BORING: “As Escrituras
Judaicas usam o termo novo em sentido absoluto, como um termo para o cumprimento
escatológico das promessas divinas. Assim no Deutero-Isaías, com base na fidelidade de
Deus à aliança, conclama Israel a perceber a ‘coisa nova’ que Deus está para fazer (Is
43,19) – a qual não é uma negação do passado, mas seu cumprimento escatológico”.6
Pergunta: quantas alianças temos na história da salvação? Somente uma, que
continuamente vem renovada pela fidelidade de Deus e definitivamente estabelecida no
sangue do Filho, ou duas ou mais? Uma estabelecida com Israel e outra com a
humanidade de Cristo Jesus? Em nível teológico a questão é espinhosa.
Do ponto de vista bíblico, temos que ter presente duas coisas: a fidelidade de Deus
às suas promessas e unicidade de Jesus no desígnio salvífico. A Bíblia Hebraica e a Cristã

5
Importante perceber que a graça de Deus precede e é base para o chamado à responsabilidade humana,
algo também presente na aliança do Antigo Testamento. O judaísmo compreendeu isto. A graça redentora
de Deus precede a exigência, e a iniciativa divina de fazer uma aliança precede a resposta humana. Contudo,
a aliança requer uma resposta humana, e a reclama. As boas novas da salvação oferecida por Deus, o ato
de fazer a aliança (indicativo) carrega consigo a exigência da resposta humana (imperativo). Cf. M. Eugene
BORING, op. cit. p. 4.
6
Cf. M. Eugene BORING, op. cit., p. 5.
3
!

falam de mais alianças (cf. Ef 2,12; Rm 9,4), mas – examinando a fundo os textos – se
pode perceber um filão comum que liga indissoluvelmente as várias intervenções de
Deus. Em Jr 31 quando fala de “nova aliança”, não quer dizer que a antiga venha
destruída. Aliás, Jeremias fala da “mesma aliança”, da Aliança Sinaítica, escrita em um
“novo coração”.
Então, com a vinda de Jesus, quantas alianças temos? O Novo Testamento dá uma
acepção diferente, porque a aliança estipulada – diz Jesus – é estipulada “no meu sangue”.
Se trata da oferta da própria vida: não mais touros e ovelhas, mas “eis que venho”! (Hb
10,8-9).
Podemos enfim, afirmar que a “nova aliança” no sangue de Jesus (Lc 22,19-20 e
1Cor 11,23-25) não abole a antiga (cf. Rm 11,29), mas torna escatologicamente e
definitivamente presente a promessa divina em favor “do seu povo Israel” (Lc 1,68.77) e
“de todos os povos da terra” (Lc 2,30-32).
“Mediante a morte e ressurreição de Jesus, os cristãos acreditavam que Deus renovara
a aliança com uma revigorada dimensão e chegavam à compreensão de que, daquela vez,
a aliança ultrapassava Israel e incluía os gentios no povo de Deus”.7
A primeira parte da Bíblia cristã é o fundamento básico, lançado primeiro e sobre o
qual o novo agir de Deus em e por meio de Jesus e naqueles que o seguem,
testemunhado no ‘Segundo Testamento’, se apoia, de tal modo que o Segundo
constitui a atualização renovada e definitiva do Primeiro Testamento.8

1.2 Os Escritos do Novo Testamento


Lentamente e mais precisamente no II século que a expressão “Novo Testamento”
começa a designar não somente a aliança estabelecida no “sangue de Jesus”, mas também
o conjunto de livros que vem designados como “escritos cristãos” e que pouco a pouco
vem equiparados em dignidade ao Antigo Testamento. Com o tempo, o Novo Testamento
se configura com um conjunto de 27 livros, todos escritos em grego, desiguais na sua
extensão, datação e gênero literário.
Como nos diz Raymond Brown:
Somente no século II temos deveras provas de que os cristãos usavam o termo “Novo
Testamento” para designar seus próprios escritos, o que levou, finalmente, ao uso da
designação “Antigo Testamento” para as Escrituras de Israel. Seriam necessários ainda
muitos séculos até que os cristãos nas Igrejas latinas e gregas chegassem a um acordo acerca
dos 27 livros a ser incluídos em uma coleção normativa ou canônica.9
Destes, 4 são classificados como “evangelhos”; 1 como monografia histórica (Atos
dos Apóstolos), 21 como cartas e 1 como Apocalipse. Se trata de gêneros diversos, assim
como os escritos do Primeiro Testamento.

7
Raymond BROWN, Introdução ao Novo Testamento, p. 56.
8
Erich ZENGER, Introdução ao Antigo Testamento, p. 20.
9
Raymond BROWN, Introdução ao Novo Testamento, p. 56.
4
!

Ao interno do corpus neotestamentário um lugar peculiar e, podemos dizer, único, é


ocupado pelos Evangelhos, que são os primeiros quatro livros dos 27 que compõem o
Novo Testamento e são colocados logo após as Escrituras hebraicas. Autores como o
biblista francês Paul Beauchamp diz que o que os evangelhos constituem para os cristãos
é o mesmo que a Torah representa para os judeus, isto é, são textos fundadores. O que
nós sabemos de Jesus, sua missão e obra, sua paixão e morte, o aprendemos quase que
exclusivamente dos Evangelhos. Poucas informações são de outros escritos: Rm 1,3 fala
da descendência davídica, o hino de Fl 2,5-11 da sua obra redentora, 1Cor 11 da
instituição da eucaristia, Hb 5 coloca em relevo a agonia no Getsêmani, 1Cor 15 das
aparições do Ressuscitado, e poucos outros referimentos nos fornecem notícias sobre sua
figura histórica. Sem os evangelhos seria difícil dar corpo à vida de Jesus.
1.3 Os Evangelhos
Em sua origem, a palavra evangelho não se referia aos quatro escritos, mas aos
anúncios proclamados oralmente. “Evangelho” do grego euaggélion = boa notícia.
No Novo Testamento o substantivo euaggelion recorre 76 vezes (das quais 60 nas
cartas de Paulo) e o verbo euaggelizô/ euaggelizomai 54 vezes (21 nas cartas de Paulo).
O uso neotestamentário não faz referência à matriz grego-helenística, mas à hebraica,
testemunhada no Antigo Testamento. Na tradução grega da Bíblia hebraica, conhecida
como “LXX”, o verbo “euaggelizomai” (portar a boa-nova), traduz o verbo hebraico
bissar (forma piel), que está presente 21 vezes no texto massorético. Recorre sobretudo
nos textos do deutero-Isaías (Is 40–55), onde o verbo significa o anúncio da salvação que
Deus está preparando para o seu povo em exílio. Alguns textos manifestam esta
mensagem de salvação (Is 40,9; 52,7; 60,6; 61,1). O texto de Is 52,7, o profeta apresenta
um mensageiro, que sobre os montes, anuncia a Jerusalém o retorno do povo do exílio:
“como são belos os pés do mensageiro da boa-nova (euangelizomenou), que anuncia a
paz, promete o bem, proclama a salvação a Sião: o teu Deus reina”. O evangelista é,
portanto, o mensageiro da alegria e da salvação. O conteúdo semântico do substantivo
neotestamentário euaggelion e do verbo euaggelizomai é certamente um derivado da
literatura Deutero-Isaiana.
Em sentido kerygmático, ou seja, como anúncio salvífico, “o evangelho” vem
entendido por Paulo como aparece na propositio (termo da retórica grega que exprime o
anúncio do tema) da Carta aos Romanos:
... não me envergonho do Evangelho: ele é o poder de Deus para a salvação de todo aquele
que crê, do judeu primeiro, e depois do grego. De fato, é nele que a justiça de Deus se revela,
pela fé e para a fé, segundo o que está escrito: Aquele que é justo pela fé viverá.
Paulo delineia a identidade do Evangelho: poder de Deus, salvação, justiça de Deus.
É importante, também por outro lado dar o sentido complexivo do termo euaggelion na
literatura paulina: “refere-se à mensagem da obra salvífica de Deus em Jesus Cristo”.10

10
Cf. A.B. LUTER, “Evangelho”. In G. HAWTHORNE; R. MARTIN; D. REID, Dicionário de Paulo e
suas cartas, p. 518.
5
!

Para dizer que “o Evangelho” não designa inicialmente um livro, mas o anúncio de
salvação. Além disso, pode-se dizer que Jesus é o “primeiro evangelista”, porque anuncia
a obra salvífica de Deus aos pobres, como precisa bem Lc 4,18, que coloca na boca de
Jesus as palavras de Is 61: “O espírito do Senhor está sobre mim [...] me enviou para
evangelizar os pobres!”
Somente num segundo momento temos a passagem do “evangelho” entendido no
sentido kerygmático, para o evangelho entendido como “narrativa” daquilo que Jesus fez
e ensinou. Bem precisa Rinaldo FABRIS: “se em seguida aos quatro opúsculos surgidos
em torno do evento de Cristo foi aplicada a palavra ‘evangelho’ deve-se ao fato de que
nestes livros se reconhece aquela proclamação da boa notícia da salvação de Deus que se
realizou nas palavras e obras, na morte e ressurreição de Jesus, o Cristo”.11
O termo evangelho, para ainda precisar melhor, antes de designar um gênero escrito,
serviu para definir a atividade e o conteúdo de um anúncio e pregação pública itinerante,
primeiro da parte de Jesus, depois da parte da comunidade que a ele se refere. É
precisamente esta pré-história de tradição oral e comunitária que explica as características
literárias dos opúsculos que trazem o nome de “evangelho”.12

1.4 História da pesquisa bíblica dos evangelhos


Ao leitor comum dos Evangelhos é espontâneo pensar, sobretudo quando lê os textos
narrativos, que os acontecimentos da vida de Jesus se deram assim como são descritos.
Por muitos séculos foi convicção generalizada que os Evangelhos relatavam a vida
pública de Jesus exatamente como ela se desenrolou na realidade histórica. Essa
convicção foi reforçada pelo fato de os Evangelhos serem livros inspirados e, por isso,
imunes a erros.
Consideram-se os Evangelhos um relatório do ministério de Cristo, escritos de uma
só vez, em base em lembranças diretas de testemunhas oculares. Nessa ótica, era
fundamental que tivessem sido escritos por apóstolos-testemunhas (Mateus e João) ou,
ao menos, por discípulos dos apóstolos (Marcos e Lucas). O estudo dos Evangelhos
consistia, assim, no aprofundamento de seu conteúdo doutrinário e, quando necessário,
na conciliação daquelas informações aparentemente contraditórias.13
Em fins do século XVIII, o modo de conceber as coisas mudou, sob o impulso da
nova mentalidade que se difundia na Europa – o humanismo e o racionalismo. Como
consequência, os Evangelhos passaram a ser considerados não apenas livros inspirados –
e por isso menos intocáveis –, mas também documentos históricos da antiguidade e,
portanto, passíveis de serem analisados e estudados como qualquer obra do passado.

11
Rinaldo FABRIS, “Introdução Geral aos Evangelhos Sinóticos”. In R. FABRIS; B. MAGGIONI, Os
Evangelhos I, p. 14.
12
Ibidem.
13
O século II atesta o uso de euaggelion para designar escritos cristãos. A pluralidade de escritos
evangélicos exigia a utilização de designações distintivas, de modo que, por volta do fim do século II,
inseriam-se introduções aos evangelhos canônicos, segundo o modelo “Evangelho segundo...”. Cf.
Raymond BROWN, Introdução ao Novo Testamento, p. 173.
6
!

Surgiram ou passaram a serem utilizados métodos de pesquisa literária que


permitiram detectar a existência de tradições orais ou escritas anteriores aos atuais
Evangelhos, inclusive ao de Marcos, e que constituíram suas fontes. Constatou-se que os
Evangelhos não foram escritos de uma só vez, mas resultaram de um longo processo
literário que durou cerca de quarenta anos. Os evangelistas trabalharam em cima de
tradições que já circulavam nas comunidades cristãs, utilizaram-se de fontes escritas e
orais. Eles reuniram de modo original um material preexistente, como aliás advertiu
Lucas no prólogo da sua obra.
Verificou-se que o Evangelho mais antigo é o de Marcos (escrito por volta dos anos
60 – 70) e que os de Mateus e Lucas foram publicados cerca de vinte ou trinta anos depois.
A pesquisa revelou também que as tradições mais primitivas sobre Jesus, contidas
nos atuais Evangelhos (como, por exemplo, o relato da Paixão, em Marcos), já são uma
interpretação feita à luz da fé da Igreja; tratam-se, portanto, de documentos teológicos e
não de documentos neutros, crônicas sobre Jesus.
Os estudiosos começaram, assim, a distinguir e a evidenciar uma característica
essencial dos Evangelhos. Em todas as suas partes, eles não são e não querem ser uma
reportagem, um relato preciso dos fatos. Mas são sempre, e sobretudo, um testemunho de
fé, ou melhor, são a interpretação cristã dos fatos e do ensinamento de Jesus, à luz da fé
pós-pascal.
Os Evangelhos não relatam a história de Jesus segundo os critérios de objetividade
da historiografia moderna. Esse fato – ou seja, a impossibilidade prática de encontrar nos
Evangelhos uma descrição exata, imparcial, cronológica e detalhada dos acontecimentos
da vida pública de Jesus – não deve, no entanto, induzir ao pessimismo e levar à conclusão
de que entre o Jesus histórico e o Cristo da fé, anunciado na Igreja e transmitido nos
Evangelhos, haja uma ruptura, um fosso intransponível e que, por isso, nada podemos
conhecer da autêntica face do Jesus da história. Se assim fosse, os Evangelhos se
revelariam, em última análise, um relato ideológico.
Um breve retrato histórico nos permitirá precisar melhor a questão:
• Old Quest: com Reimarius (1694 – 1768) que sustentava uma substancial
falsificação da figura de Jesus por parte dos discípulos e defendia um tipo de “religião
racional” contra a “fé eclesiástica”. O pressuposto desta “escola racionalista” era fundado
sobre o pressuposto de que Jesus fora vestido por “manto teológico”, do qual devia ser
despido: nos evangelhos devem ser aceites o que tem uma explicação racional. A. von
Harnack (1851 – 1930) em sua obra “A essência do cristianismo” diz que a natureza
histórica dos evangelhos deve ser vista numa tríplice dimensão: confiabilidade dos dados
biográficos, possibilidade de extrair deles ensinamentos universais e necessidade de
eliminar tudo aquilo que a razão não consegue controlar, como os episódios dos milagres,
reduzindo Jesus a um pregador de religião e moral.14 Este período é caracterizado como
dissociação entre o “Jesus histórico” e o “Cristo da fé”.

14
Cf. Benito MARCONCINI, Os Evangelhos Sinóticos. Formação, Redação e Teologia, p. 23.
7
!

O teólogo alemão Strauss, por exemplo, na sua monumental obra em dois


volumes “A vida de Jesus criticamente elaborada” (1835-1836), com o seu apriorismo
racionalista quer mostrar a interpretação mítica do aspecto sobrenatural dos relatos
evangélicos. A ressurreição do Crucificado, a ascensão ao céu do Ressuscitado, as curas
do Nazareno, o seu despertar dos mortos etc., são mitos, isto é, revestimentos narrativos
de ideias religiosas dos crentes da primeira hora que nesse modo expressaram sua fé em
Jesus, venerado no culto como filho de Deus celeste vindo à terra para salvar a
humanidade.
Em resumo, o florescimento de numerosas “vidas de Jesus” empenhou-se em
apresentar um Jesus moderno, grande personalidade proponente de uma religião racional
e de uma ética universal, depurado dos elementos particulares de sua origem hebraica e
desprovido de qualquer aura sobrenatural. Jesus é apresentado como um grande e
inigualável mestre de vida da humanidade, que ensinou verdades espirituais
fundamentais, como a paternidade de Deus e a consequente fraternidade humana, a
dignidade da pessoa humana e o valor inestimável da alma.15
• Um novo momento da pesquisa surge com a aparição da obra de R.
Bultmann (1921– 1953) “A história da tradição sinótica” com um endereço metodológico
e teológico: a importância dada ao kerygma. R. Bultmann bebe da fonte das pesquisas de
Gunkel (1862–1934) para o Pentateuco. Aplica estas pesquisas para analisar o processo
de formação dos evangelhos anteriormente à sua fixação escrita. Seus estudos o levaram
a perceber as diversas “formas literárias” com a qual o material evangélico foi transmitido
desde o início da tradição. Conclui que os autores não passam de meros compiladores das
tradições das comunidades. No plano teológico Bultmann chega à conclusão que a
literatura evangélica surge como necessidade de expressão da vida da comunidade cristã
primitiva e que a pesquisa sobre o Jesus histórico é uma estrada impossível e inútil.
Segundo Bultmann, o influxo criativo da comunidade na formação dos evangelhos, não
possibilita dizer “o que” ou o “como” da vida de Jesus. Entre a pregação da Igreja
primitiva e o Jesus histórico há um fosso instransponível. Os evangelhos, portanto, dizem
muito da comunidade primitiva e pouco do Jesus histórico.16
Para Bultmann, a pura fé, suscitada pela Palavra, não somente não tem
necessidade de apoiar-se sobre o Jesus terreno historicamente apresentado, como também
deve prescindir dele, se quer conservar sua pureza e integridade. O verdadeiro Jesus que
interessa aos crentes de hoje é o Cristo pregado, não o Jesus pregador. Somente naquele,
com efeito, hoje Deus oferece a salvação ao ouvinte da Palavra, chamando-o eficazmente
a decidir-se por uma autêntica existência de acolhida do dom divino oferecido em Cristo.
Sendo assim, do Jesus terreno o anúncio evangélico pressupõe somente o fato de sua
crucificação, não o conteúdo de sua existência histórica: o que ele disse, o que ele fez, e,
sobretudo, com qual intenção enfrentou a morte. Em resumo, podemos dizer que

15
Cf. Giuseppe BARBAGLIO, Jesus, hebreu da Galileia. Pesquisa histórica, p. 20.
16
“[a elaboração dos evangelhos] em linha de princípio não traz nada de novo, ou melhor, nada mais faz
do que levar a cumprimento aquilo que teve início com a primeira tradição oral” (R. Bultmann). Citado por
Benito MARCONCINI, Os Evangelhos Sinóticos. Formação, Redação e Teologia, p. 28.
8
!

Bultmann considera descontínuo o anúncio “teológico” do Reino por parte de Jesus e o


anúncio “cristológico” da Igreja centralizado na morte e ressurreição de Cristo.17
• New Quest: com o início de um novo período na pesquisa, com Käsemann
na celebre conferência de 1953 intitulada: “O problema do Jesus histórico”. Discípulo de
Bultmann, reage ao ceticismo quanto ao valor histórico e ratifica a capacidade dos escritos
em apresentar a autêntica figura de Jesus. Ele não vê apenas uma continuidade entre o
Jesus terreno e o Cristo anunciado depois da Páscoa, mas destacam como o kerygma se
tornaria inútil dissociado do nazareno. Denuncia o risco de reduzir o fato cristão a um
mito, dissociado da história.
Käsemann acentua a “relevância teológica” do Jesus terreno, presente nos
escritos do Novo Testamento, pois todos, mas sobretudo os evangelhos sinóticos, longe
de reduzirem o Cristo ressuscitado ao puro mito, preservaram-lhe intencionalmente o
rosto do Nazareno. Em outras palavras, não se pode separar o vere Deus do vere homo,
sem tornar-se supersticioso, para Käsemann. Como se pode perceber, a new quest, além
dos interesses genuínos sobre a pesquisa do Jesus histórico, “possui uma dimensão
dogmática”.18
Neste sentido, o estudo anterior, chamado de “estudo crítico das formas”
(Formigeschichte), mesmo que evidenciando elementos importantes da tradição, fazia
sentir o risco de reduzir os escritos a meras compilações artificiais e de considerar os
evangelistas como simples “recolhedores” e “transmissores”.
Depois da Segunda Guerra surge então o chamado “estudo crítico da redação”
(Redaktionsgeschichte), que não sublinhava unilateralmente o material da tradição, mas
colocava o mesmo em relação com a contribuição pessoal de cada evangelista, com as
suas intenções teológicas. Os textos mostram, portanto, um trabalho redacional com um
escopo teológico preciso. O trabalho do evangelista pode ser assim compreendido: a) nas
correções estilísticas dos textos; b) na omissão ou no ajunte de uma expressão ou
proposição; c) na transposição de uma perícope de um contexto para o outro ou mesmo
de um elemento ao interno da mesma perícope; d) na conexão entre as diversas perícopes;
e) nas indicações temporais ou geográficas; f) nas variações de natureza teológica.
• Third Question: esta pesquisa ainda não está bem delineada. Porém, é
possível apontar algumas questões: a) a consciência mais aprofundada da complexidade
do judaísmo; b) a redescoberta da judaicidade e galilaicidade de Jesus de Nazaré; c)
contributos da arqueologia; d) contributos da sociologia e da antropologia cultural; e)
equilibrada utilização crítica das fontes; f) melhor equilíbrio entre história e teologia.
Aponto aqui o importante biblista E. P. Sanders que escreveu obras importantes
como Jesus e o judaísmo (1985); Jesus: a verdade histórica (1993); Paulo e o judaísmo
palestinense. Ele abre novos caminhos à pesquisa histórica sobre Jesus. Primeiramente
insiste sobre os “fatos” atestados nos Evangelhos: Jesus batizado por João Batista/ galileu
que pregou e curou/ chamado dos doze apóstolos/ limitação da sua atividade a Israel/

17
Cf. Giuseppe BARBAGLIO, Jesus, hebreu da Galileia. Pesquisa histórica, p. 25-26.
18
Cf. Idem, p. 28-29.
9
!

controvérsia a respeito do templo/ crucificado pelas autoridades romanas/ depois da morte


os discípulos continuaram como movimento identificável. Portanto, diferente da New
Quest que se fundava sobre os “ditos” de Jesus.
Para Sanders, o estudo sobre Jesus terreno deve estar desvinculado de questões
teológicas, concretamente com o problema de sua continuidade-descontinuidade com o
Cristo do anúncio e da fé. A pesquisa histórica, para o estudioso, deve conduzir-se por si
mesma, sobre a base das fontes documentárias à nossa disposição, consciente de seus
limites pela natureza e escassez de testemunhos. É uma característica da Third Quest.
Para Sanders é importante também compreender Jesus à luz do judaísmo do
primeiro século, e aqui rompe com o Jesus na new quest, visto em radical descontinuidade
com o ambiente judaico da época e artificiosamente avulso de suas raízes histórico-
culturais.
Neste sentido, aponto apenas algumas conclusões quanto à esta pesquisa:
- Desenvolveu-se uma maior concessão à Formgeschichte, ou seja, as formas são
uma característica peculiar ao material evangélico. As parábolas, as narrativas de
milagres, os apotfemas (logia de Jesus ao interno das narrativas), as
controvérsias... Todas são bem testemunhadas nos evangelhos, mas estas
classificações podem ser incompreendidas, se não há uma relação com os
modelos narrativos hebraicos (mashal e midrash);
- Tem-se recuperado o contexto sociocultural judaico, na qual a vida de Jesus
vem inserida. É necessário analisar o ambiente sociocultural judaico do século I
d.C. com a sua polifonia de grupos e movimentos, para compreender a mensagem
de Jesus de Nazaré;
- Desenvolveu-se ainda uma abertura ao diálogo com outras ciências, sobretudo
as histórico-sociais, na atenção de reelaborar os critérios de análise histórica,
muitas vezes ideologicamente propostos.

1.5 Os Evangelhos: história interpretada pela fé e para a fé


Os próprios evangelistas fizeram questão de sublinhar que não há ruptura entre o
Jesus histórico e o Cristo da fé. A Igreja das origens sempre afirmou a defendeu a
identidade entre Jesus de Nazaré e o Senhor ressuscitado. Há uma clara continuidade entre
o fato histórico e a fé da comunidade cristã. A fé pós-pascal não falsificou a face de Jesus.
Aliás, ela não é outra coisa senão uma compreensão aprofundada do Jesus histórico,
graças ao evento pascal que o ilumina.
Surge daí a verdadeira natureza e o interesse dos Evangelhos: não querem ser uma
biografia em sentido moderno, mas obras escritas por pessoas que creem, a fim de
alimentar a fé em Cristo ressuscitado, vivo e presente na comunidade.
Para atingir esse objetivo não basta conhecer os fatos em sim mesmos. Não se trata
de adquirir um saber sobre Jesus mediante o relato exato da sua existência e da sua
atividade, mas encontrá-lo pessoalmente em sua realidade profunda, tal como Ele se
10
!

revela na fé, no autêntico significado da sua ação salvífica e do mistério da sua pessoa.
Compreendeu-se, assim, por que a comunidade cristã (e, por conseguinte, os Evangelhos),
ao falar de Jesus, jamais se tenham interessado pelos fatos em si, nem os tenha descrito.
Como consequência, não se pode ler os textos evangélicos como se fossem descrições
exatas e detalhadas do fato (narrado). Não convém interrogar esses escritos fora do âmbito
da fé que os fez serem escritos. Sua fidelidade ao Jesus da história é grande e merece toda
a confiança, mesmo que a natureza do texto que se tem nas mãos não permita mais um
conhecimento objetivo, descritivo, do fato. As tradições primitivas recolhidas pelos
evangelistas baseiam-se em acontecimentos reais vividos pelo Mestre, mas elas os
relatam segundo aquela inteligência mais profunda (que, por sua vez, se baseia na
interpretação dos apóstolos-testemunhas) surgida depois da ressurreição de Jesus, ou seja,
à luz da fé cristã.
A forma literária dos Evangelhos recebeu influência da própria originalidade da
experiência cristã, o encontro com o Cristo ressuscitado. Os evangelistas estavam
conscientes de que, através das palavras escritas no Evangelho, o Jesus ressuscitado se
dirige, hoje como ontem, ao leitor e quer estabelecer com ele um diálogo vital.
O Cristo ressuscitado que encontramos na fé é idêntico ao Jesus de Nazaré; para
conhecer o Ressuscitado é preciso conhecer Jesus. A fé no Senhor ressuscitado repousa
necessariamente sobre a realidade histórica de Jesus de Nazaré.
Daí a originalidade literária desses escritos. Não são uma reportagem, não são uma
simples coleção de lembranças, mas um testemunho e um anúncio feitos sob a forma de
relato histórico (porque baseado em fatos históricos). São um anúncio dirigido às
comunidades cristãs para alimentar-lhes a fé.
Para se entender a natureza dos Evangelhos e lê-los na perspectiva correta, é preciso
ter presentes os seguintes dados, aparentemente em conflito uns com os outros:
a) a fé cristã não nasceu numa escrivaninha. Tal como a fé bíblica, trata-se de uma
fé essencialmente histórica e enraizada na história, ou seja, baseada na aceitação e na
compreensão das intervenções divinas na história de Israel e mediante a palavra dos
profetas. Essa vinda de Deus entre os homens culmina na existência histórica de Jesus.
Sua vida, em todos os seus aspectos (palavras, atividades, comportamento, a própria
identidade), tem, pois, uma importância fundamental e perene para a vida de fé.
Lembremos o início da Epístola aos Hebreus: “Muitas vezes e de modos diversos
falou Deus, outrora, aos Pais pelos profetas; agora, nestes dias que são os últimos, falou-
nos por meio de seu Filho...” (Hb 1,1-2).
Por isso os Evangelhos, testemunho de fé, não têm a forma sistemática de um tratado
de teologia, mas de um relato que se ocupa das palavras de Jesus de Nazaré e dos fatos
sobre sua vida; são interpretações de acontecimentos reais. A atenção à história é
essencial.
b) justamente porque os Evangelhos se destinam a alimentar a fé e a proporcionar
um relacionamento com o Senhor ressuscitado nas várias situações da vida das
11
!

comunidades, os relatos evangélicos apresentam-se como interpretação (à luz da fé, ou


seja, da nova ou mais plena compreensão do agir de Deus em Cristo, suscitada pelo evento
pascal) e não como uma biografia ou uma descrição exata dos fatos.
Os Evangelhos são livros históricos enquanto transmitem a tradição daquilo que
Jesus realmente fez e ensinou; mas não são relatos literais, que narram com exatidão
objetiva esses fatos.
Por terem os Evangelhos nascido da fé e a serviço da fé, uma mera informação
jornalística ou uma descrição detalhada dos fatos não serviriam, de modo algum, a esse
fim. Ao contrário!
Imaginemos a reportagem de um jornalista que testemunhasse o milagre da
multiplicação dos pães e dos peixes. Teríamos certamente um belo relato, com muitos
detalhes que hoje não temos mais como conhecer: o número exato dos participantes, as
várias movimentações dos presentes, a localização precisa, a hora exata, o tempo
empregado para a distribuição dos pães multiplicados e assim por diante. Em suma,
teríamos muitos dados e um detalhado conhecimento do que aconteceu, mas
permaneceríamos na superfície e não captaríamos o significado do episódio para a vida
de fé.
O relato evangélico, porém, não quer tanto transmitir informações, mas levar-nos a
descobrir o valor do evento para a fé, favorecer o encontro com aquele Jesus que
ressuscitou e agora vive.
c) consideremos, enfim, que, filhos de seu tempo, os evangelistas também
acompanharam a mentalidade dominante na historiografia da antiguidade, bem diferente
da mentalidade positivista que, mesmo contra a nossa vontade, nos impregna.
Hoje, quando o historiador relata um fato, quer ser exato, dar informações precisas;
escreve a história pela história. O importante é ser objetivo, chegar o mais possível à
totalidade e à exatidão histórica dos acontecimentos.
O escritor antigo, por sua vez, quando falava de um fato histórico, perguntava-se
antes de tudo qual o seu significado, e não tanto como ele havia se desenrolado.
Interessava-se pela história e não história em si, mas para ensinar, para edificar o leitor,
para buscar satisfação etc. Ao leitor não importava tanto se o fato narrado ocorrera
daquele modo; interessava-lhe sobretudo a verdade nele contida.
O historiador antigo e o moderno não têm, portanto, o mesmo conceito de “verdade
histórica”.
O historiador moderno diz que sua explicação é “verdadeira” quando consegue captar
a exatidão cronológica de um acontecimento, quando sabe detectar suas causas e o
descreve o mais objetivamente possível.
O historiador antigo dizia que era “verdadeiro” quando lhe parecia ter captado o
sentido, o valor e a lição contida no acontecimento. Por essa sua intenção fundamental,
ele escolhia, desprezava, sublinhava, exagerava, omitia, talvez mesmo inventasse
detalhes e diálogos, para dar mais relevo ao significado do fato relatado.
12
!

Para um evangelista, especificamente, a verdade não consistia na exatidão do


descrito, mas em expor o significado autêntico (à luz da fé e para a vida cristã) dos fatos
sobre Jesus. Os elementos narrativos de um relato evangélico estavam essencialmente a
serviço desse significado (para a fé), e não visavam tanto à descrição objetiva do que
aconteceu.
Por isso, se o leitor de hoje quiser descobrir a intenção do autor sagrado, deve
questionar o texto sobre o significado que ele contém. Se perguntarmos aos textos
evangélicos se o que é narrado realmente aconteceu tal como está descrito, formulamos
mal a pergunta (isto é, segundo uma mentalidade remanescente do positivismo do século
passado). O exegeta vê-se constrangido a responder: “Não sei”! Não por colocar em
dúvida a realidade histórica que está na base da narração evangélica, mas por saber que o
evangelista não pretendia descrever um fato histórico e, sim, comunicar o significado,
para a fé e para a vida, da pessoa e da obra de Jesus, significado que transparece nesse
fato.
1.6 Formação literária dos evangelhos sinóticos
Gostaria de chamar agora a atenção para outro aspecto dos Evangelhos: a forma
característica de muitos trechos e sua disposição no interior da obra que constituem.
Percorrendo qualquer um dos Evangelhos sinóticos, nota-se facilmente que, embora
se apresente como uma história desenvolvida em várias etapas, numa sequência
cronológica que situa a atividade de Jesus entre a pregação de João Batista e a morte de
cruz, ele não se mostra como uma narração contínua, mas como uma sucessão de unidades
literárias isoláveis.
Um Evangelho (sinótico), do ponto de vista literário, é formado substancialmente por
trechos mais ou menos longos: uma palavra de Jesus, uma parábola, um relato de milagre,
uma cena de sua vida – como, por exemplo, a transfiguração ou a negação de Pedro – e
assim por diante.
Cada uma dessas unidades literárias é completa em si, tem autonomia própria. Para
entende-la, teoricamente nem o texto anterior nem o posterior ajudam19. Diversamente de
um livro de história ou de um romance, pode-se abrir um Evangelho em qualquer página
e entender o trecho que se tem diante de si, sem necessidade de conhecer o que vem antes.
Isso demonstra que originalmente os trechos – mais tarde recolhidos em determinada
forma literária20 – podiam ser transmitidos e circular independentemente um do outro.
Essas unidades autônomas devem ter perdido logo a ligação com o contexto original em
que surgiram – ou seja, a circunstância histórica em que a ação ou a palavra de Jesus

19
No entanto, para conhecer a intenção do evangelista, é preciso, na prática, situar o trecho no seu contexto.
20
Os exegetas procuram classificar assim essas formas: a) as sentenças de Jesus distinguem-se em palavras
de sabedoria (como os provérbios e as máximas, Mt 6,34, Mc 6,4 etc.), palavras proféticas (p. ex., as bem-
aventuranças, os anúncios sobre a proximidade do Reino de Deus), palavras de cunho jurídico (as sentenças
sobre o divórcio, a correção fraterna), parábolas etc.; b) os relatos dividem-se em: apoftemas ou paradigmas
(relatos breves, cuja parte narrativa está a serviço da palavra de Jesus que se encontra no seu centro ou no
ápice; como, p. ex., Mt 12,46ss), relatos de cunho biográfico (ex.: batismo de Jesus, transfiguração), relatos
de milagres, discussões com escribas e fariseus etc.
13
!

estavam colocadas – permitindo assim ao evangelista inseri-las como quisesse dentro da


sua obra21.
A mesma frase de Jesus podia ser colocada em vários contextos. Por exemplo, a
expressão: “Aquele que se exaltar será humilhado, e aquele que se humilhar será
exaltado” encontra-se numa exortação sobre a verdadeira grandeza (Mt 23,12), na
conclusão da parábola do “último lugar” (Lc 14,11) e no final da parábola do fariseu e do
publicano (Lc 18,14). Nesses casos, fala-se em “sentenças vagantes”.
O mesmo vale para a localização dos fatos relativos a Jesus. Não é de se admirar que
episódios inteiros, ao perderem sua localização original na vida e no ministério do Mestre,
tenham sido inseridos pelos evangelistas onde lhes pareceu melhor, em vista das
exigências narrativas ou teológicas. No Evangelho de João, por exemplo, Jesus começou
oficialmente sua missão expulsando os vendilhões do Templo (Jo 2,13ss); o mesmo
episódio foi colocado pelos sinóticos depois de sua entrada solene em Jerusalém, durante
a última semana de vida (Mc 11,15ss).
A visita de Jesus a Nazaré situa-se, em Marcos, no final do período galilaico do
ministério de Jesus (Mc 6,1ss), enquanto em Lucas ela inicia esse período (Lc 4,14ss).
Em uma coleção de milagres em Mateus (Mt 8-9), o episódio da tempestade
acalmada vem depois da cura da sogra de Pedro (Mt 8,23ss). No evangelho de Marcos
(Mc 4), o mesmo episódio conclui o discurso em parábolas. Essas unidades literárias que
constituem os Evangelhos sinóticos não estão, porém, espalhadas desordenadamente. A
tendência da tradição oral e dos Evangelhos foi agrupá-las em coletâneas.
Assim, em Marcos sucedem-se cinco discussões de Jesus com vários adversários (Mc
2,1-3); os capítulos 4 de Marcos e 13 de Mateus recolhem uma série de parábolas sobre
o Reino de Deus; os capítulos 8 e 9 de Mateus constituem um conjunto de dez milagres
ligados um ao outro, quase sem interrupção.
É evidente que, em se tratando de agrupamentos, a ordem não é mais cronológica,
mas temática. Esse dado literário reforça a convicção de não se ter mais condições de
conhecer a sucessão cronológica da atividade de Jesus, a não ser em grandes linhas: a
pregação de João Batista como ponto de partida, numa atividade desenvolvida sobretudo
em torno do lago de Genesaré e a morte em Jerusalém como conclusão.
Mesmo o que se costuma chamar de “discursos” de Jesus, encontrados sobretudo no
Evangelho de Mateus, na realidade não são discursos propriamente ditos ou resumos de
discursos, mas coletâneas de suas palavras; palavras autênticas que já não se sabe onde e
quando foram pronunciadas.
Como consequência, também a interpretação de um texto muda. Tomemos o
exemplo do “sermão da Montanha” de Mateus (Mt 5–7).

21
Em Mc 9,33-50, por exemplo, que é uma instrução aos discípulos, feita em Cafarnaum, encontramos
palavras de Jesus que Lucas, por sua vez, situa na última ceia (a palavra sobre o serviço: Mc 9,35 = Lc
22,26); Mateus, no “discurso missionário” (Mc 9,37 = Mt 10,40) e no “discurso comunitário” (a palavra
sobre o escândalo: Mc 9,42 = Mt 18,6ss).
14
!

O “sermão” é colocado no seguinte contexto inicial:


Vendo ele as multidões, subiu ao monte. Ao sentar-se, aproximaram-se dele os seus
discípulos. E pôs-se a falar e os ensinava, dizendo: Bem-aventurados... (Mt 5,1-2).
E conclui deste modo: “Ao descer do monte...” (Mt 8,1). Esses três capítulos, porém,
não são propriamente um discurso pronunciado por Jesus num lugar determinado, mas
frases autênticas suas, recolhidas e agrupadas em torno do tema das exigências que devem
caracterizar a vida nova do discípulo. Tratando-se de uma coletânea de sentenças, o início
e o fim do “discurso” não fornecem uma informação histórica, mas constituem a
introdução e a conclusão literária com as quais o evangelista delimita o conjunto e lhe dá
o tom. Em outras palavras, a montanha não deve ser localizada geograficamente, mas tem
um valor teológico. Ela evoca ao leitor o monte Sinai, onde JHWH revelou a Moisés a
Lei da Aliança. Assim, a montanha deste texto de Mateus indica que Jesus dá ao novo
povo de Deus a lei da nova aliança.
Se a tradição tendeu a agrupar por gênero ou tema o ensinamento de Jesus e os fatos
sobre Ele, temos aí uma prova a mais de que a intenção primordial da Igreja, ao transmitir
esse material, não era de caráter biográfico. O motivo essencial foi a sua utilidade para a
própria vida das comunidades cristãs. Assim, a coletânea do “sermão da montanha” deixa
entrever de quais ensinamentos constava a formação dos catecúmenos (a catequese
batismal). As coletâneas com as discussões mantidas por Jesus com seus adversários
levam a conhecer as críticas às quais estava exposta a comunidade primitiva no ambiente
judaico, e assim por diante.
Em suma, o Evangelho não nos aproxima apenas de Jesus de Nazaré, agora
ressuscitado e presente na Igreja, mas revela também algo da vida, das necessidades e dos
interesses da Igreja primitiva.
A modo de conclusão
Os Evangelhos constam de muitas unidades literárias que, ao menos em parte, foram
agrupadas. Muitas dessas coletâneas já existiam antes da redação dos atuais Evangelhos
e foram reunidas em conjuntos mais amplos, constituindo as fontes escritas utilizadas
pelos evangelistas. Estes, por sua vez, recolheram, seguindo certa ordem, as tradições (as
fontes) que julgaram importantes e inseriram o resultado desse trabalho em uma moldura
histórica, constituída pela vida pública de Jesus, iniciada com a pregação de João Batista,
prosseguindo com o ministério de Jesus na Galiléia, a viagem da Galiléia para Jerusalém,
a última semana em Jerusalém, e concluída com a paixão-morte-aparições de Jesus.
Mas também esse quadro histórico foi simplificado, esquematizado e, ao menos
parcialmente, adquiriu um significado teológico (como a viagem da Galiléia a Jerusalém,
modelo do caminho para a morte-ressurreição que, inaugurado por Jesus, é proposto a
todos os homens).
A leitura dos Evangelhos deve sempre levar em conta essa disposição e forma do
material evangélico, em que os episódios não seguem mais uma ordem cronológica.
15
!

1.7 As três etapas da formação dos evangelhos


Como já afirmamos, os Evangelhos não foram escritos de uma só vez, a partir de
lembranças pessoais de testemunhas oculares da vida e do ensinamento de Jesus. O
testemunho dos apóstolos foi transmitido às comunidades, em primeiro lugar oralmente,
e depois foi aprofundado e organizado segundo as diversas exigências. Foram as
comunidades que ofereceram aos evangelistas a tradição evangélica. Em outras palavras,
os evangelistas trabalharam em cima de tradições que já circulavam, utilizando-se de
fontes escritas, talvez também orais, e reescreveram o material existente. Lucas lembrou
isso no prólogo de seu Evangelho:
Visto que muitos já tentaram compor uma narração dos fatos que se cumpriram entre
nós – conforme no-los transmitiram os que, desde o princípio, foram testemunhas
oculares e ministros da Palavra –, a mim também pareceu conveniente, após acurada
investigação de tudo... (Lc 1,1-3).
Os atuais Evangelhos são, portanto, o resultado de um longo trabalho literário que
durou algumas décadas: o primeiro Evangelho escrito, o de Marcos, remonta
provavelmente aos anos 60-70 d.C.
Entre os eventos narrados – a pregação de Jesus ouvida pelos primeiros discípulos –
e a redação final dos nossos evangelhos, existe um intervalo de tempo em que o material
evangélico evoluiu e se desenvolveu, não apenas quanto à forma literária, mas também
quanto ao significado das palavras de Jesus e dos fatos sobre Ele.
Distinguem-se três etapas (ou momentos, períodos) no desenvolvimento da tradição
sobre Jesus.
1. no primeiro período, que foi até a morte de Jesus, os discípulos – testemunhas da
vida pública do Mestre – ouviram o seu anúncio e seguiram sua atividade na Palestina.
2. no segundo período, aproximadamente até a guerra judaica de 66-70 d.C.,
nasceram as comunidades cristãs da Palestina e fora dela. As mesmas testemunhas pré-
pascais (e outras que se juntaram a elas) proclamaram ao mundo o que Jesus fez e disse,
mas já com uma nova inteligência, graças à luz da fé pascal, e com o propósito de aplicar
esse ensinamento às novas situações e problemas vividos pelas comunidades cristãs.
3. no terceiro momento, que correspondeu ao surgimento dos Evangelhos escritos,
os evangelistas, que não foram testemunhas diretas da vida de Jesus, organizaram o
material que receberam da tradição com a liberdade que já comentamos, mas sempre com
o objetivo de apresentar para a fé a face autêntica do Senhor e dar uma resposta às
exigências e aos problemas das comunidades para as quais escreveram o Evangelho.
Em síntese, para se chegar aos Evangelhos atuais devem ser consideradas três etapas:
Jesus – a comunidade – o evangelista.
Estudando uma narração é preciso, pois, levar em consideração:
a) o trabalho redacional do evangelista;
b) a tradição preexistente utilizada pelo evangelista;
16
!

c) o ponto de partida dessa tradição (à medida que for possível captá-la), ou seja, o
ensinamento e a atitude originais de Jesus, tais como foram transmitidas pelas
testemunhas pré-pascais.
Assim, podemos encontrar:
a) o sentido que as palavras de Jesus e os fatos sobre Ele tinham para o próprio Jesus
e para os seus discípulos durante a vida pública do Mestre;
b) o significado que adquiriram na vida das comunidades pós-pascais;
c) o sentido que receberam dos evangelistas, quando os redigiram.
É preciso, pois, superar uma leitura “plana” e passar para uma leitura “em
perspectiva”, que leva em conta a tríplice profundidade, que seja, as três etapas de
evolução que vão do Jesus histórico à redação do Evangelho escrito.
Não devemos pensar que na evolução de um texto evangélico, apenas o sentido mais
primitivo tenha valor, por ser aquele que mais se aproxima do Jesus histórico. O esforço
do leitor consistiria, assim, em eliminar constantemente o significado que um trecho foi
adquirindo nas várias etapas pós-pascais, para chegar “finalmente” ao sentido original.
Na realidade, tudo tem valor. É o que explica claramente o exegeta J. Dupont: “A
exegese de um texto evangélico supõe que se lhe atribua uma tríplice profundidade [...].
Não se trata de isolar o pensamento de Jesus para conservá-lo como o único elemento
autêntico e rejeitar suas ressonâncias seguintes na tradição apostólica e na redação
evangélica. Ao querer determinar o significado de um texto segundo os vários momentos
da sua história, nosso desejo é compreender toda a sua riqueza, e não eliminar aquilo que,
na nossa opinião, possa ser atribuído à comunidade ou ao trabalho redacional.
Tudo é sagrado nesse texto: o ensinamento de Jesus, o ensinamento dos apóstolos,
pois estes receberam a missão, não de repetir mecanicamente aquilo que escutaram, mas,
de transmitir reagindo diante das novas situações, à luz do Espírito de Jesus; e o
ensinamento dos evangelistas, inspirados pelo Espírito Santo para transmitir à Igreja as
tradições apostólicas” (Dupont).
1.8 A questão sinótica
Dos quatro livros canônicos que retratam a “Boa Nova” trazida por Jesus, os três
primeiros apresentam entre si tais semelhanças que podem ser colocados em colunas
paralelas e abarcados “com um só olhar”, de onde seu nome de “Sinóticos”. Mas eles
oferecem também entre si numerosas divergências. Como explicar este fato?
Primeiramente constata-se as concordâncias entre os três sinóticos. Quanto ao
material, eis um levantamento aproximativo do número de versículos comuns a dois ou
três evangelhos:22
Mateus Marcos Lucas
Comum aos três 330 330 330

22
Cf. Bíblia TEB, Evangelhos Sinóticos: Introdução, 2015, p. 1851.
17
!

Comuns a Mt-Mc 178 178 -


Comuns a Mc-Lc - 100 100
Comuns a Mt-Lc 230 - 230
Peculiares a cada um 330 53 500

A ordenação do material corresponde ao mesmo esquema geral:23


Mateus Marcos Lucas
a. Preparação do ministério 3,1 – 4,11 1,1 – 13 3,1 – 4,13
b. Ministério na Galileia 4,12 – 18,35 1,14 – 9,50 4,14 – 9,50
c. Viagem a Jerusalém 19,1 – 20,34 10,1-56 9,51 – 18,43
d. Paixão e Ressurreição 21 – 28 11 – 16 19 – 24

Dentro dessas quatro partes, Mateus distribui as suas perícopes numa ordem que lhe
é peculiar até o cap. 14; a partir daí, apresenta perícopes comuns a ele e a Marcos, na
mesma ordem que este. Lucas intercala as perícopes que lhe são próprias no meio de um
quadro geral que é idêntico ao de Marcos (assim, Lc 6,20–8,3 ou 9,51–18,14). Deve-se,
contudo, notar que, no interior desta concordância de conjunto, há discrepâncias, por
vezes, no seio de passagens comuns (assim, em Lucas, o chamamento dos discípulos ou
a visita a Nazaré).24
Entre diversas teorias que explicam o fato sinótico, ganhou preponderância a
chamada “teoria das duas fontes”. Este modelo explicativo, elaborado no fim do século
XIX, recebe, atualmente, a aprovação de um grande número de pesquisadores. Esta teoria
trabalha com três princípios:
a) Marcos é o Evangelho mais antigo;
b) uma fonte denominada Q está na origem da tradição dupla;
c) Mateus e Lucas se beneficiaram, cada um, de tradições particulares.
Vamos trocar em miúdos esta questão:
a) A tradição tríplice se explica pela prioridade marcana
A estrutura de Mateus e Lucas mostra que esses dois evangelhos retomam e adaptam
o argumento biográfico adotado por Marcos. Em compensação, eles divergem um do
outro quando se afastam da narração marcana. O início e o final do relato são
significativos a este respeito: Mateus e Lucas divergem consideravelmente em seus
evangelhos da infância (Mt 1 – 2; Lc 1 – 2), mas se reencontram quando abordam a
atividade do Batista (Mc 1,2 ss). Os ciclos pascais concordam quanto à descoberta do
túmulo vazio (Mc 16,1-8 // Mt 28,1-8 // Lc 24,1-9), mas se afastam logo depois, sem o
suporte comum de Marcos.

23
Seguimos o esquema de Rafael Aguirre MONASTERIO; Antonio Rodríguez CARMONA, Evangelhos
Sinóticos e Atos dos Apóstolos, 2012, p. 60.
24
Cf. Bíblia TEB, Evangelhos Sinóticos: Introdução, 2015, p. 1851.
18
!

b) A tradição dupla tem por origem uma segunda fonte, uma fonte de logia dita “Q”,
que Mateus e Lucas consultaram independentemente
Mateus e Lucas têm em comum um abundante material de uns 235 versículos (cerca
de 4.000 palavras), totalmente ausente em Marcos; trata-se essencialmente, de palavras
de Jesus, com alguns textos narrativos (a tentação de Jesus, a cura do filho do centurião
de Cafarnaum). Essa fonte, hoje perdida, nos é conhecida somente por sua recepção nos
evangelhos; foi originalmente designada pela sigla “Q”, da primeira letra do alemão
Quelle (= fonte), para indicar sua natureza mal conhecida.
Em prospecto:
Tradições orais

Tradições escritas

Doc. Q Marcos

Mateus Lucas

Você também pode gostar