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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE EDUCAÇÃO
PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL E EDUCAÇÃO
PROFESSORA ELIZABETH DOS SANTOS BRAGA

REFLEXÃO ENTRE O FILME “NUMA ESCOLA DE HAVANA” (2014) E O TEMA “AS


COMPLEXAS RELAÇÕES ENTRE ENSINO, APRENDIZADO E DESENVOLVIMENTO: O
PAPEL DO OUTRO NA CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO E DO CONHECIMENTO”

ISTVAN AURÉLIO NEVES


MATHEUS CAMPANELLO DA SILVA

SÃO PAULO
2023
O presente trabalho, tem como objetivo apresentar reflexões acerca do filme 'Numa
Escola de Havana' (2014), e o tema das complexas relações entre ensino, aprendizado e
desenvolvimento. Este trabalho é ancorado na reflexão acerca do papel do outro na
constituição do sujeito e do conhecimento. Para falarmos da relação do tema escolhido e do
filme, vamos nos ancorar em escritos do autor Lev Vygotsky, que dedicou toda a sua
produção acadêmica, teórica e prática, em compreender o sujeito a partir de sua relação
histórico-cultural. Para formar o elo entre o filme e o tema vamos voltar a atenção para os
textos que foram já debatidos em sala de aula e em reflexões feitas a partir do filme por
pesquisadores da área. Ao final, pretende-se deixar evidente que o outro é parte
fundamental do processo de constituição do sujeito porque é nas relações sociais que as
funções psíquicas afloram.
“Numa escola de Havana” (originalmente, Conducta, em espanhol), é um filme
cubano, do diretor Ernesto Daranas Serrano, lançado em 2014 e premiado como Melhor
Filme no Festival de Cinema de Havana do mesmo ano, no qual é apresentado ao
espectador parte das vidas das personagens Chala, Yeni, Carmela, Mercedes, Pablo, Maria
e tantos outros que fazem essa trama desenrolar. A obra mostra a situação de uma sala de
aula do Ensino Básico na capital cubana, Havana. Muitos quadros são mostrados nessa
turma, entre eles se destaca um: o caso do menino Chala. Chala tem onze anos e pertence
à periferia havanesa. Sua mãe, Sonia, é viciada e, por isso, muitas vezes, determinadas
responsabilidades de casa são atribuídas ao garoto: para manter sua casa e de sua mãe,
ele trabalha caçando e criando pombos e cuidando dos cachorros de rinha de seu vizinho,
que possui envolvimentos com a sua mãe e existe uma dúvida, colocada no próprio filme: se
ele é o pai de Chala ou não. Sendo assim, Chala possui pai ausente e a presença de sua
mãe é contraditória. Também podemos considerar que o filme busca retratar a vida da "[...]
sala de aula do santinho no mural e do menino Chala, que participa de apostas de brigas de
cachorros[...]", como nomeia a personagem da professora Carmela em determinado
momento do filme.
O filme filia-se a uma tradição do cinema cujas origens remontam à década de 1950:
a preocupação com as crianças e adolescentes em situações de risco, como hoje nos
referimos a um cenário social e familiar - em geral, de pobreza - que cria vulnerabilidades
perigosas e afeta duramente as perspectivas de desenvolvimento individual e comunitário.
Além disso, “Numa escola de Havana” também fornece informações valiosas sobre a
sociedade cubana, ao olhar de frente para problemas sociopolíticos que forçosamente
reverberam na escola.
O longa, longe de ser um retrato fiel da idealização de uma vida cheia de vitórias,
tenta (e consegue), de forma simples e objetiva, evidenciar a realidade da periferia da
cidade de Havana, na qual grande parte das relações e responsabilidades são alternadas
entre os sujeitos. Chala, que não sabe quem é seu pai, é classificado pela escola e pelos
órgãos fiscalizadores do governo como uma criança e "aluno problemático".
Constantemente em brigas ou confusões, o garoto enxerga em sua professora, Carmela, o
respeito e devoção de algo que, em alguns momentos, se apresenta maior que ele. Em
determinada cena, quando Chala é resgatado por Carmela do internato, ele diz de forma
sincera que "gostaria que ela [Carmela] fosse sua avó".
A partir da cena supracitada no filme, podemos dizer que Carmela “salva” Chala do
internato porque a relação entre os dois ultrapassa a barreira imaginária entre professor e
aluno. Na precariedade social na qual o filme se desenrola, contar com relações como a de
Chala e Carmela, Chala e Yeni (colega de sala e paixão infantil do pequeno Chala) ou Chala
e seus amigos, é uma forma de obter diante do fatalismo social algum tipo de existência ou,
até mesmo, sobrevivência. Por isso e para além disso, Chala é o tipo de personagem que
tem diante de si o mundo e, com todas as justificativas que podem vir ou não de sua boca
sobre as coisas que faz, ele é lido como um delinquente por todos, exceto por Carmela.
Em determinado momento do filme, Carmela coloca diante de si e de seus colegas
de profissão uma forma singular de lidar e compreender seus alunos e suas realidades
intrínsecas. Ela afirma: "se você quer que alguém seja um delinquente, trate essa pessoa
como um". Essa fala, que se refere ao garoto Chala, implica, necessariamente, em
compreender o sujeito e a sua realidade para além dos muros da escola e suas regras e
normas, das notas, dos problemas escolares e das apostas em rinhas de cães. Diante desta
fala fundamental de Carmela, compreendemos que o sujeito, o outro e o mundo têm e
mantêm relações íntimas que ultrapassam o aprendizado e o desenvolvimento do ambiente
escolar.
O filme coloca na mesa questões que vão além do ambiente escolar, nos faz
questionar para além da sala de aula, como, por exemplo, ao colocar a vulnerabilidade
social, as relações de poder, a liberdade religiosa, a migração cubana, a família
desestruturada e a disputa escolar, como norteadores da trama. Por isso, falar sobre a
relação entre ensino, aprendizado e desenvolvimento diante deste filme é uma tarefa
complicada, porque este tema é quase secundário no filme, no entanto, ele existe. E essa
relação existe, no longa, somente porque diante de todas as questões que a vida das
personagens nos coloca, existe um outro que está ali e, em uma relação dialética, este se
apresenta ora como um desafio, ora como um suporte.
Um fato importante que precisamos delimitar aqui é que o ser humano se desenvolve
a partir da sua relação com os outros. Diante disso, compreendemos que as funções
psíquicas têm origem social e qualquer atividade humana tem caráter midiático e semiótico.
O que significa dizer que se apropriar do conhecimento é o mesmo que se relacionar com
outro sujeito que faz a mediação com este objeto a ser apreendido. Em determinado
momento do filme, por conta da intervenção e da influência de Carmela, Chala se empenha
e se desenvolve recebendo de Yeni aulas de matemática para que ele possa ficar "com o
caderno em dia". No entanto, para além do ambiente escolar, Chala se apropria de sua
realidade e da ideia de que a bebida alcoólica e as drogas são algo nocivo quando percebe
o estado de saúde de sua mãe, que vive entorpecida e sempre em busca de mais
substâncias entorpecentes.
Talvez, seja diante disso que Chala se constitui e a partir destes aprendizados da
vida comum e escolar que ele se faz. Aprendizados estes que constituem a personagem
enquanto um sujeito do mundo. No texto "As relações de ensino na escola", as autoras
debatem o tema do "ensino-aprendizagem na escola" e inferem que precisam passar pelo
tema das "relações de ensino" porque "aprender e aprendizagem" são lidos enquanto
processos semelhantes. Essa diferenciação se faz necessária porque o ser humano ao
nascer tem "[...] maior abertura para o possível, maior plasticidade cerebral, maior tempo
para aprender a experiência cultural e histórica [...]" e que portanto "[...] Aprendizagem,
nesse sentido, encontra-se relacionada às formas de participação e apropriação das práticas
sociais [...]".
Se é condição humana a atividade de aprender e de ensinar, faz também parte da
condição humana e do processo de desenvolvimento ser provocado, marcado e orientado
pela cultura, contudo, esta não é determinante do sujeito. Relembrando a fala da professora
Carmela parafraseada: "se quer que eles sejam delinquentes, então entenda-os enquanto
delinquentes" para compreender que o fato cultural não é determinante, mas ele provoca e
orienta o desenvolvimento. Um exemplo interessante no filme é o da aluna Yeni, no qual é
desprovida da nacionaldiade cubana e vive de forma ilegal na capital, mas, ao mesmo
tempo, ela é uma aluna engajada nos estudos e na dança flamenca e que é tratada como
uma deliquente ao passar por uma revisão escolar de seus documentos.
Yeni não se contrapõe a Chala, tampouco a personagem é usada para romantizar a
vaga ideia de "vencer seu meio". Mas, Yeni e Chala são, juntos, fabulações de que é nas
relações interpessoais que os seres humanos se constituem. Se é verdade que o
desenvolvimento configura rumos para individualização e não para a socialização, então é
verdade que desde sempre somos seres sociais que se apropriam, em uma relação
dialética, com o mundo. Uma espécie de dar e receber constante. Daí resulta a situação
vivida que existe diante do sujeito e que se internaliza.
Desenvolvimento e aprendizagem ocorrem no filme ancorados no conceito basilar e
fundamental da teoria de Vygotsky, que é o conceito de internalização. Um conceito que se
refere ao processo de aprendizagem e de desenvolvimento enquanto incorporação (ou
apropriação) da cultura. Nesta dialética, na relação entre o outro e a incorporação de algo
por um sujeito, descansa o motivo pelo qual Carmela decide não se aposentar de suas
funções na escola no filme. A professora compreende que diante de uma sala de aula
dotada de singularidades e uma realidade em comum, reside um outro que, apesar de
qualquer vivência, vai apropriar para si a realidade. Professora Carmela, talvez, saiba aquilo
que Maria Cecília Goés diz em "A natureza social do desenvolvimento psicológico”: ‘o
desenvolvimento é alicerçado, assim, sobre o plano das interações. O sujeito faz sua uma
ação que tem inicialmente um significado partilhado’ (1991, p. 18). Carmela entende que as
relações com seus alunos podem ser fator provocativo e orientador para os mesmos.
“Todo ano tenho um ‘Chala’ em minha classe. Nenhum deles era mais forte do que
eu, porque, no fundo, todos são crianças. Há quatro coisas necessárias para criar uma
criança: casa, escola, rigor e carinho. Mas quando cruzam esta porta, está a rua, e um
professor precisa saber o que lhes espera lá fora. Antigamente, a vida era mais clara, e eu
sabia para o que preparava um aluno. Mas, atualmente, a única coisa clara para mim é para
o que não devo prepará-lo” (professora Carmela).
Na reunião feita para tratar da aposentadoria de Carmela, a mesma diz que não se
aposentaria e que a única maneira de ela sair da escola seria com sua demissão por parte
do governo. O final do filme mostra Chala e Carmela andando; Chala chama a professora e
ela abre um sorriso.
Referências bibliográficas

GÓES, M. C. A natureza social do desenvolvimento psicológico. Cadernos CEDES. n. 24,


p. 17-24, 1991.
GÓES, M. C. R. Relações entre desenvolvimento humano, deficiência e educação:
contribuições da abordagem histórico-cultural. In: OLIVEIRA, M. K.; SOUZA, D. T. R.;
REGO, T. C. R. (orgs.). Psicologia, educação e as temáticas da vida contemporânea. São
Paulo: Moderna, p. 95-114, 269-287, 2002.
SMOLKA, A. L. B.; LAPLANE, A. L. F.; NOGUEIRA, A. L. H.; BRAGA, E. S. As relações de
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Relações de Ensino, 2007.
VYGOTSKY, L. S. Interação entre aprendizado e desenvolvimento. In: A formação social
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Trad. J. Cipolla Neto. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
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