Você está na página 1de 7

TRAUMA

Mariane C. Savio

Aula teórica 5
Tratamento não operatório do trauma abdominal

A tecnologia existente atualmente permitiu uma grande evolução dentro do trauma,


não apenas na prevenção, mas também no diagnóstico preciso das lesões. A tomografia, por
exemplo, permite diferenciar tipos de lesões em órgãos, identificar porções do órgão lesadas,
presença de sangramento e quantificação deste, presença de urina extravasada e lesões
associadas. Assim, sabendo exatamente o que está lesado no abdome, temos a possibilidade
de tratamentos mais objetivos, escolhendo a melhor conduta. Aí entra a possibilidade do
tratamento conservador ou tratamento não operatório (TNO). Se sabemos, por exemplo, que
existe uma lesão renal, mas que ela não tem sangramento ativo, não tem extravasamento de
urina e o paciente está estável, podemos manejar o paciente sem intervenção cirúrgica.
E podemos também controlar até onde podemos ir no tratamento conservador,
quando é a hora certa de operar.

Histórico
Na década de 80 iniciou-se o tratamento conservador do trauma abdominal fechado
com lesão esplênica em adultos. Anteriormente o TNO já havia sido empregado em crianças
com trauma esplênico. A tendência a preservar o baço adveio do maior conhecimento das
funções deste órgão no combate às infecções e a entidade da IFPE (infecção fulminante pós-
esplenectomia).
Na década de 90, com o advento da tomografia, o tratamento conservador do trauma
abdominal consolidou-se e expandiu-se. Houve o surgimento de protocolos para tratamento
conservador de trauma em vísceras parenquimatosas abdominais (rins, fígado e baço). Hoje, o
tratamento conservador começa a se estender também para traumas abdominais penetrantes
(inicialmente para FABs e agora inclusive para FAFs em casos selecionados). A tendência é que
a maioria das lesões abdominais sejam tratadas conservadoramente no futuro.

Benefícios - Por que não operar?


 Menos transfusões sanguíneas e menor uso de hemoderivados.
 Menor morbi-mortalidade cirúrgicas.
 Menor necessidade de cuidados intensivos (não só UTI, mas também acessos
venosos, medicações e intervenções médicas em geral).
 Menos complicações dentro do hospital.
 Menor incidência de sepse abdominal.

Preditores de mau resultado do tratamento conservador - são indicadores de sangramento


ativo e contínuo, que precisa de intervenção cirúrgica, ou seja, que não melhorará com
tratamento conservador.
 Hipotensão na entrada
 Grau de lesão na tomografia (maior grau = maior chance de falhar)
 Extravasamento ativo de contraste na TAC
 Necessidade contínua de hemotransfusão
O que é necessário para realizar tratamento conservador:
 Tomografia: qualquer protocolo de tratamento conservador passa pela tomografia. Ela
deve definir lesões, sua extensão (graduação) e excluir outras lesões associadas que
podem ter indicação operatória.
Deve-se lembrar que a TC tem baixa sensibilidade para lesões de vísceras ocas, portanto a
possibilidade de sua presença deve ser suspeitada pela clínica do paciente (piora da dor
abdominal, sinais de peritonite, etc).
 Centro cirúrgico deve estar sempre acessível (pois a qualquer momento o doente pode
instabilizar e necessitar intervenção cirúrgica).
 Equipe de plantão presencial a postos.
 Protocolos de atendimento bem estabelecidos no serviço.
 Equipe entrosada (todos devem pensar da mesma forma, gerando uma continuidade
no tratamento).

Contraindicações absolutas:
 Sinais de peritonite (dor abdominal contínua que não melhora com medicação)
 Instabilidade hemodinâmica (indica que não está tendo sangramento ativo).

Algoritmo para manejo do trauma abdominal fechado:

Contraindicações relativas:
 Idade maior que 55 anos (hoje a tendência é observar as comorbidades do paciente
como os fatores limitadores, pois indicam menores condições fisiológicas de
compensar lesões sem tratamento intervencionista).
 Necessidade de reposição volêmica e de hemoderivados - não é um limitador do
tratamento conservador, mas é indicativo de que o paciente não para de sangrar.
 Grau da lesão – é um critério relativo. A lesão de alto grau indica maior chance de
insucesso, mas não contraindica TNO.
 Quantidade de líquido livre na cavidade abdominal – pode aumentar com o tempo e
não aparecer em uma TC precoce.
No paciente estável (apenas no estável!!) é recomendável adiar a TC para evitar que
ocorra uma falsa impressão de que há pouco líquido. A utilização de contraste oral é uma
estratégia para adiar o exame (demora em torno de 1 hora para a preparação e obtém-se um
exame com mais informações).
 Lesões associadas – especialmente o TCE, pois o rebaixamento do nível de consciência
dificulta o diagnóstico clínico de condições como a peritonite. Estará na dependência
da experiência do cirurgião e da estrutura hospitalar.
 Lesões extra-abdominais com indicação cirúrgica.

Além disso, deve-se lembrar de que o paciente possivelmente necessitará de permanência


hospitalar prolongada.
A TC de controle, muito utilizada anteriormente, atualmente não é mais considerada
necessária nos casos em que o paciente permanece clinicamente estável e sem sinais de
peritonite (essa mudança ocorreu pois a repetição da TC como rotina não alterou o
tratamento dos pacientes em alguns estudos).

Recursos de imagem
Cintilografia – muito utilizada na era pré-tomografia, hoje só tem aplicação no
acompanhamento tardio.
Arteriografia – anteriormente utilizada com meio diagnóstico, hoje está sendo cada vez mais
usada para tratamento. Com a arteriografia realiza-se a embolização, uma técnica que permite
manejo conservador de pacientes graves com sangramento ativo.
FAST – é um US realizado pelo cirurgião na sala de trauma. Sua indicação é no paciente
instável, mas vem sendo usado também como triagem para TC no paciente estável (de forma
eletiva, sendo repetido em 6 horas caso esteja normal).
Tomografia – é o exame mais importante! Confirma a lesão, classifica, identifica lesões
associadas e sangramento ativo. É pobre para diagnóstico de lesões de vísceras ocas e
diafragma.
Existe uma classificação em graus de lesão avaliada pela TC. Essa classificação considera o
impacto do dano sobre a funcionalidade do órgão, não o tamanho da lesão.

Pela estatística, a chance de ocorrer lesão de víscera oca concomitante a lesão de


víscera maciça em trauma abdominal fechado é pequena (menos de 1% dos casos e necessita
um trauma de muito grande intensidade). Por isso é que é permitido o tratamento conservador
de traumas de vísceras parenquimatosas. Mesmo assim, o monitoramento clínico do paciente é
sempre indispensável, procurando sinais de irritação peritoneal.

Alguns fatores podem auxiliar na efetividade da TC. São eles:


 Minimizar artefatos de movimento (difícil no paciente politraumatizado e ansioso).
 Minimizar artefatos de sondas e drenos (difícil, pois o paciente muitas vezes necessita
destes).
 Incluir a porção inferior do tórax e pelve – permite quantificar melhor o sangramento,
observar hematomas em mesocólon, bloqueio de alças por aderências,
pneumoperitôneo, etc.
 Realizar imagens sem contraste e com contraste, para que se avalie a fase pré-
contraste, arterial, portal e venosa.
 Uso de contraste VO.
 Participação do radiologista na interpretação dos exames.

Tratamento conservador do trauma esplênico


Os pacientes com lesões esplênicas de qualquer grau, diagnosticadas por tomografia
computadorizada (TC) e estáveis hemodinamicamente são candidatos ao tratamento não
operatório. O paciente não deve ter outras lesões que necessitem laparotomia. Caso possua
indicação de laparotomia por outro motivo que não o trauma esplênico, deve-se realizar
esplenectomia (pois a intervenção cirúrgica introduz um potencial para a perda de sangue bem
como elimina a possibilidade do seguimento do exame abdominal do paciente enquanto ele
estiver anestesiado).
A chance de sucesso do tratamento não operatório é progressivamente maior quanto
menor for o grau de lesão.
O tratamento conservador no trauma esplênico consiste na simples observação clínica.
Pode ser realizada também angiografia, com ou sem embolização. Além dos parâmetros
clínicos, deve ser avaliado o VG. Se há queda do VG pode-se repetir a TC para verificar se está
ocorrendo apenas um fenômeno de acomodação do hematócrito ou sangramento contínuo.
O paciente deve ser mantido em monitorização em regime de cuidados intensivos até
que estabilize o VG (não necessariamente em UTI, pode ser na sala de emergência). Só vai para
a enfermaria quando estabilizar o VG!
Recomenda-se repouso monitorado por 5 a 7 dias a partir do momento que estabilizou
o VG (é o tempo de retração do coágulo, em que ele se consolida e reduz a chance de
destamponar). Iniciar alimentação via oral quando iniciar a peristalse e deambulação após
estabilização do VG.

Tabelas retiradas de um artigo produzido no Hospital do Trabalhador:

Observar que este protocolo indica TC de controle de rotina, mas atualmente a indicação da TC de
controle vai de acordo com os parâmetros clínicos do paciente.

O grau de lesão esplênica não é determinante na indicação de tratamento operatório,


mas habitualmente graus menores de lesão tem maior índice de sucesso com o tratamento
conservador e vice-versa. Além disso, pacientes com graus maiores de lesão tem mais chance
de estarem hemodinamicamente instáveis ou com sinais de peritonite e não terem indicação
de TNO.
Não foi dado em aula, mas, por curiosidade, a classificação tomográfica dos graus de
lesão esplênica pela AAST (American Association for the Surgery of Trauma):

Lesões hepáticas e renais estão frequentemente associadas às lesões esplênicas, não


havendo contra-indicação para o TNO e esperando-se taxas de falha semelhantes às dos
pacientes com lesões esplênicas isoladas.
Em caso de falha do TNO, está indicada esplenectomia. As causas mais comuns de
falha no tratamento conservador estão listadas na tabela abaixo (casuística do Hospital do
Trabalhador):

Tratamento conservador do trauma hepático


No trauma hepático o grau da lesão é ainda menos importante do que no trauma
esplênico, pois o fígado tem parênquima firme e há pouca chance de sangramento tardio.
O fígado se regenera sozinho e muitas vezes lesões complexas são tratadas apenas
com tamponamento com compressas e espera do rearranjo natural do órgão. Assim, há
grande aplicação do tratamento conservador.
O TNO estará indicado quando há estabilidade hemodinâmica, nível de consciência
preservado e após estimativa de perda sanguínea pela TC (por isso às vezes devemos retardar
a TC, obtendo-se uma estimativa mais fiel das perdas sanguíneas).
No tratamento não operatório, o paciente pode ser submetido à simples observação
ou angiografia com ou sem embolização. A observação deve ser feita em um ambiente
monitorizado, com exame abdominal seriado e hematócrito. Pacientes com lesões de grau
maior estão sob maior risco de falha do tratamento.

Possíveis complicações:
 Bilioma – cisto de bile intra-hepático (por extravasamento de bile não drenado em
lesão hepática cicatrizada). Pode ser tratado com drenagem percutânea.
 Coleperitônio – causado por fístula biliar que o organismo não consegue reabsorver.
 Abscesso - pode ser tratado com drenagem percutânea.
 Hemobilia – sangramento nas vias biliares, pode gerar colecistite aguda por coágulo.
 Necessidade de hemotransfusão.
 Necessidade de angioembolização.

As recomendações são as mesmas de trauma esplênico e o sucesso do TNO é maior que


90% em trauma fechado. A lesão hepática torna possível o tratamento conservador em
traumas penetrantes, pois o fígado possui grande área intra-abdominal e permite maior
certeza de que a lesão penetrante é totalmente intra-hepática observado a TC. Em um FAF,
por exemplo, a TC permite visualização de que o trajeto é totalmente intra-hepático e
segurança na indicação de TNO.

CUIDADO: aumento da dor, distensão abdominal, íleo paralítico prolongado, vômitos e sinais
flogísticos podem indicar peritonite e necessidade de laparotomia.

Também a título de curiosidade, a classificação das lesões hepáticas pela AAST:

Tratamento conservador do trauma renal:


Segue o mesmo princípio das lesões hepáticas e esplênicas. A diferença é que o
paciente permanece internado enquanto houver hematúria macroscópica e sem atividades
físicas (mantendo repouso domiciliar) enquanto houver hematúria microscópica.
A localização retroperitoneal dos rins auxilia no tamponamento da hemorragia em
caso de lesão e o rico suprimento sanguíneo pode promover a adequada cicatrização após
lesões parenquimatosas.

Novidades em tratamento não operatório:


 A arteriografia é uma ferramenta muito útil no tratamento de lesões abdominais. Por
meio da angioembolização pode-se realizar tratamento conservador de lesões com
sangramento ativo e até grau V. Entretanto, está disponível em poucos centros no
país.
 Vem surgindo progressivamente protocolos de TNO para lesões penetrantes, sendo
estes cada vez mais avançados.
 A videolaparoscopia pode ser usada em raras situações. O problema é que o sangue
presente na cavidade rouba a luz necessária à videolaparoscopia. É preciso lavar e
aspirar toda a cavidade para conseguir boa visualização e isso pode retirar coágulos e
destamponar lesões. Além disso, existem grandes chances de lesões passarem
despercebidas.

REFERÊNCIAS
 AULA DR. ADONIS NASR
 ARTIGO “F ATORES PROGNÓSTICOS RELACIONADOS À FALHA DO TRATAMENTO NÃO -
OPERATÓRIO DE LESÕES ESPLÊNICAS NO TRAUMA ABDOMINAL FECHADO ” - DR. FABIO DE
CARVALHO : http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-
69912009000200006&script=sci_arttext

Você também pode gostar