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Precisamos falar sobre Kevin - uma análise Winnicottiana

Mód 16
Ana Cláudia Salim Scatena

Será analisado neste trabalho a narrativa do filme “Precisamos falar sobre Kevin”,
com uma óptica voltada para Winnicott e o papel materno. O filme retrata a história
da vida de Kevin desde sua gestação até a adolescência, ressaltando sua relação
conflitiva com a mãe. A análise do filme a partir da teoria winnicottiana permite notar
que a interação mãe-bebê no estágio primitivo é de suma importância para a
constituição psíquica do bebê, podendo propiciar ou inibir o desenvolvimento
emocional da criança. De princípio observa-se ser uma trama simbólica que visa a
construção e exposição de um personagem que é produto bruto de motivações,
desejos e conflitos parentais existentes antes do seu nascimento. Posteriormente,
estes conflitos, se refletem no seu desenvolvimento individual e familiar,
caracterizando de forma profunda, como a psique dos pais é capaz de afetar a
personalidade dos seus filhos permanentemente, tendo direta influência no seu
desenvolvimento psíquico e social.
Eva, a protagonista, é uma mulher casada, bem-sucedida no ramo do turismo,
independente, que se vê às voltas com uma gravidez desejada pelo marido. Já
demonstra sinais de não envolvimento emocional com o bebê aos poucos meses de
gravidez; enquanto outras mães curtem esse momento tão especial, ela se revela
entediada e perdida em relação à sua própria barriga. O parto aparece como um
momento extremamente difícil e sofrido e sua relação com o bebê é de
distanciamento e rejeição; ela está totalmente ausente. O bebê em casa chora e
Eva é incapaz de acolhê-lo de forma a lhe dar o que precisa. Vemos claramente,
nesse momento, sua falta de capacidade para cuidar do filho, de acalmá-lo, niná-lo,
enfim, de fazê-lo parar de chorar.
Winnicott, ressalta que as bases de saúde mental do sujeito são constituídas na
primeira infância através do meio fornecido pela mãe. Contudo, a função da mãe vai
além dos cuidados fisiológicos que o bebê necessita para sobreviver, sendo
essenciais os cuidados emocionais que estão diretamente relacionados à
construção de sua personalidade, à maneira como se relacionará com outras
pessoas quando adulto e como conduzirá sua vida.
Atos de negligência e descuido por parte de um cuidador central tem o potencial de
marcar e afetar o funcionamento e desenvolvimento psíquicos do seu filho, e
impactam o ciclo familiar em questão, atingindo a comunidade e sociedade como
um todo. Partindo do pressuposto de que o sujeito é constituído a partir de suas
relações interpessoais com seus cuidadores, existe a necessidade essencial de
uma relação suficientemente boa envolvendo o vínculo mãe-bebê e o ambiente
onde este se estabelece, para uma construção saudável e funcional da base
psíquica da criança. Como a mãe nutrindo e sustentando o seu bebê física e
emocionalmente poderá permitir que este possa expressar seu potencial hereditário
da melhor forma possível.
A capacidade da mãe de se identificar e se adaptar às necessidades do bebê,
prestando seus cuidados, faz com que o bebê passe a conhecer o mundo. O
processo de desenvolvimento pessoal e real desse bebê só é possível com a
existência dessa mãe suficientemente boa. A boa interação entre mãe e bebê faz
com que o ego do bebê se torne forte, uma vez que o ego da mãe o apoia em todos
os aspectos, tornando o bebê capaz de organizar defesas e desenvolver padrões
pessoais, tornando-se verdadeiramente ele mesmo.
Contudo, Winnicott ressalta que a mulher por trás da figura materna também precisa
de um ambiente suficientemente bom, que a acolha e lhe dê suporte para que ela,
uma vez identificada com seu bebê, tenha condições para adaptar-se às
necessidades do mesmo. Esse apoio não precisa ser, necessariamente, do marido,
podendo ser proporcionado também pelo ambiente familiar e social.
Ao analisarmos o título: “Precisamos falar sobre Kevin”, observamos que Kevin é
fruto da sua relação materna, por isso é preciso sim falar sobre o Kevin, mas
também sobre Eva, sobre a dificuldade de ser mãe e até mesmo sobre o desejo de
não ser mãe, de modo a desconstruir a ideia de maternidade perfeita. Uma vez que
a mãe é fundamental no processo de constituição do bebê é extremamente
importante evidenciar o quanto ela precisa ser ouvida e acolhida, ter um ambiente
de apoio, espaço de fala e estar bem amparada para conseguir desenvolver sua
função materna.
Winnicott fala que mulheres quando estão prestes a ter um bebê passam por várias
mudanças que vão além das fisiológicas. Muda sua orientação sobre si mesma e
sobre o mundo. Logo após a concepção, ou quando já se sabe que a mesma é
possível, a mulher começa a reorganizar sua orientação e a se preocupar com o
que está ocorrendo dentro dela. Eva não passa por esse processo de mudanças
psicológicas, uma vez que não modifica sua forma de pensar, não passa a se
preocupar com o bebê que está se desenvolvendo dentro dela, permanecendo
mais voltada para a preocupação de que a gestação poderia comprometer seus
planos de viajar o mundo e afetar sua carreira profissional.
Por não ter adquirido esse estado de sensibilidade, Eva acabou não propiciando um
ambiente suficientemente bom. Essa falha materna de Eva, por provocar ameaças
de aniquilação do eu do bebê, gerou fases de reação à intrusão atrapalhando o
“continuar a ser” de Kevin, ou seja, Kevin ficou incapacitado de começar a existir, de
ter experiências pessoais, constituir seu ego, de dominar seus instintos e de se
defrontar com as dificuldades da vida. Nesse estágio primitivo, tal falha foi percebida
por Kevin como uma ameaça à existência pessoal do eu, e não como falha da mãe.
Diante dos argumentos apresentados, Kevin teve afetado seus processos de
integração, personalização e realização. Tendo em vista que, durante sua infância,
apresenta-se como uma criança dissociada, que não está constituída em si e sem
capacidade de estabelecer relações com o mundo externo. Conclui-se que o
personagem Kevin foi uma criança e um adolescente emocionalmente desamparado
desde seu nascimento e que isso, fazendo com que este desenvolve-se uma
tendência antissocial. Por não ter conseguido estabelecer nenhum vínculo afetivo
com sua mãe, Kevin comete atos antissociais em direção a Eva e ao ambiente
como um todo. O personagem foi capaz de criar um vínculo paterno, contudo sem
ter nenhum tipo aparente de limite ou controle. Ressaltamos que Eva, mesmo tendo
falhado como mãe suficientemente boa com Kevin, conseguiu desenvolver esse
papel muito bem em sua segunda gravidez, como mãe de Célia, o que reforça a
necessidade da psique materna estar preparada para a gravidez, e ser um fator
hereditário.

Referências Bibliográficas

WINNICOTT, D. W. (1956). A preocupação materna primária. In: Da pediatria à


psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000.
WINNICOTT, D. W. (1963). Moral e educação. In: O ambiente e os processos de
maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Porto Alegre:
Artmed Editora, 1983.

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