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Medicina, Ribeirão Preto, Simpósio:URGÊNCIAS E EMERGÊNCIAS HEMATOLÓGICAS

36: 439-445, abr./dez. 2003 Capítulo III

TRATAMENTO DE DISTÚRBIOS HEMOSTÁTICOS


EM URGÊNCIA MÉDICA

MANAGEMENT OF HEMOSTATIC DISORDERS IN THE EMERGENCY ROOM

Maria Carolina T. Pintão1 & Andrea A. Garcia2

1
Pós-Graduanda. 2Médica Assistente e Pós-Graduanda. Disciplina de Hematologia. Departamento de Clínica Médica. Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto-USP.
CORRESPONDÊNCIA: Andrea A. Garcia. Laboratório de Hematologia. Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto -
USP. Av. Bandeirantes, 3900. CEP 14048-900 Ribeirão Preto - SP.e-mail aagarciaro@zipmail.com.br Tel: (0xx16) 602-2294 - Fax:
(0xx16) 633-1144

PINTÃO MCT & GARCIA AA. Tratamento de distúrbios hemostáticos em urgência médica. Medicina, Ri-
beirão Preto, 36: 439-445, abr./dez 2003

RESUMO - Patologias do sistema hemostático são causas freqüentes de atendimento


médico de urgência. Este texto revisa aspectos relevantes no que diz respeito a diagnóstico e
tratamento de hemofilias e coagulação intravascular disseminada (CIVD).

UNITERMOS - Hemostáticos; distúrbios. Hemofilia. Coagulação Intravascular Disseminada.

1- INTRODUÇÃO O objetivo desta revisão é discutir pontos rele-


vantes para o diagnóstico e tratamento das duas pato-
Patologias do sistema hemostático são causas logias.
freqüentes de atendimento médico de urgência. Alte-
rações adquiridas ou hereditárias da hemostasia po- 2- HEMOFILIAS A E B
dem se manifestar através de quadros hemorrágicos
ou trombóticos. Dentre os diversos distúrbios hemos- A hemofilia é uma coagulopatia hereditária,
táticos, presentes na prática clínica, apenas dois serão caracterizada pela deficiência da atividade coagulante
revistos neste texto: a hemofilia e a coagulação do fator VIII (hemofilia A) ou do fator IX (hemofilia
intravascular disseminada (CIVD). B) da coagulação. Decorre de alterações nos genes
A hemofilia é uma doença hereditária, com fre- que codificam esses fatores e que estão localizados
qüentes manifestações hemorrágicas. A rapidez, no iní- no braço longo do cromossomo sexual X. Em cerca
cio da terapêutica, é fundamental para o controle ade- de 30% dos casos, a história familiar pregressa é ne-
quado do sangramento. Em alguns centros médicos, a gativa, sugerindo a ocorrência de mutação de novo.
abordagem inicial do paciente hemofílico é realizada O fato de o homem apresentar um cromossomo X , e
pela equipe de urgência médica, que deve estar prepara- portanto, uma única cópia dos genes dos fatores VIII
da adequadamente para obter sucesso terapêutico. e IX, explica o acometimento quase que exclusivo do
Por sua vez, a CIVD é uma síndrome adquiri- sexo masculino.
da, associada a diversas situações clínicas, fato este A incidência de hemofilia A é de 1 para cada
que a torna um tema de interesse comum a várias 10.000 ou 20.000 nascimentos do sexo masculino e
áreas médicas, principalmente à emergencialista. corresponde a 70-85% dos casos da doença, enquanto a

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incidência de hemofilia B é de 1 para cada 30.000 nasci- mento, ou profilática. Em situação de urgência, a mai-
mentos do sexo masculino, sendo 15 a 30% dos casos. oria das reposições é considerada de demanda, para
O diagnóstico de hemofilia baseia-se na histó- controle de sangramentos agudos, podendo, também,
ria clínica, no exame físico e nos exames laborato- ser profilática, para realização de procedimentos
riais. Os episódios hemorrágicos, geralmente, iniciam- invasivos, como punções para acesso venoso central
se na infância, com a deambulação, sendo rara a he- ou cirurgias. Os produtos utilizados para a reposição
morragia intracraniana, decorrente de parto normal. de fator são: 1) plasma fresco, congelado (contém fator
A hemofilia apresenta um amplo espectro de mani- VIII e IX); 2) crioprecipitado (60-100 UI de fator VIII/
festações clínicas a depender da atividade coagulante bolsa); 3) concentrados de fator VIII ou de fator IX,
residual do fator deficiente. O quadro clínico predo- derivados do plasma humano e processados para
minante inclui hemartroses, sangramentos muscula- inativação viral; 4) concentrados de fator VIII ou de
res e intracavitários, espontâneos ou após traumas. O fator IX recombinantes; 5) concentrado de fator VII
aparelho locomotor é o mais acometido, principalmente, ativado recombinante; 6) concentrado de fator VIII
cotovelo, joelho e tornozelo, justificando as freqüentes porcino; 7) complexo protrombínico, ativado ou não,
seqüelas, como artropatias crônicas e anquilose, com contendo os fatores II, VII, IX e X.
perda funcional importante das articulações. No Brasil, a opção terapêutica, atualmente re-
Quanto à avaliação laboratorial, o diagnóstico comendada para reposição do fator VIII ou fator IX,
de hemofilia é feito quando a dosagem da atividade é o concentrado de fator derivado de plasma humano.
coagulante dos fatores VIII e IX for menor que 25%, Essa escolha leva em consideração aspectos econô-
realizada por método coagulométrico, baseado no tem- micos e de segurança na preparação do produto. O
po de tromboplastina parcial, ativado (TTPa), ou Ministério da Saúde é responsável pela compra e dis-
cromogênico, baseado na geração de fator X ativado. tribuição desses hemoderivados aos centros cadas-
O TTPa é considerado um teste de screening e pode trados para o tratamento de coagulopatias hereditári-
ser normal, caso a atividade do fator seja maior que as, incluindo a hemofilia.
20%. A atividade de 1% corresponde a 1U/dl ou O cálculo da dose para reposição dos fatores
0,01U/ml do fator da coagulação circulante no plas- da coagulação considera a atividade plasmática dese-
ma. Outro aspecto laboratorial importante é que a jada do fator, para controlar um determinado sangra-
mistura de plasma do paciente com um plasma que mento, o peso do paciente em quilograma e o conhe-
contenha atividade normal do fator VIII ou IX é ca- cimento de que uma unidade internacional do fator
paz de corrigir o prolongamento do TTPa. Caso não VIII eleva em 2% sua atividade, enquanto uma unida-
haja correção com a mistura, suspeita-se da presença de internacional do fator IX é capaz de elevar em 1%
de um inibidor do fator VIII, na hemofilia A ou, mais sua atividade.
raramente, do fator IX, na hemofilia B.
Dose do fator VIII (UI) = peso do paciente (kg) x atividade desejada do fator
A classificação da hemofilia se baseia na ati- 2
vidade coagulante, residual, do fator. Considera-se
Dose do fator IX (UI) = peso do paciente (kg) x atividade desejada do fator
hemofilia grave, quando o fator apresenta menos que
1% de atividade, moderada, se a atividade estiver en-
tre 1 e 5%, e leve, se maior que 5%. A hemofilia A A atividade do fator, necessária para o controle
apresenta, aproximadamente, a seguinte distribuição: do sangramento, depende do local acometido, da gra-
70% grave, 15% moderada e 15% leve, enquanto a vidade do sangramento e da existência de processo
hemofilia B, 50% grave, 30% moderada e 20% leve. inflamatório associado.
Os indivíduos que apresentam atividade residual do A freqüência de administração depende dos
fator entre 25 e 49% podem ser considerados porta- itens citados acima, para determinação da dose, além
dores de deficiência e dificilmente apresentam histó- da resposta ao tratamento e da meia-vida do fator, que,
ria hemorrágica. Normalmente, a atividade plasmática para o fator VIII, é 8-12 h e para o fator IX, 18-24 h.
dos fatores da coagulação está em torno de 100%, Tratamentos não específicos, como repouso,
podendo variar entre 50 e 200%. compressa fria, analgesia, hidratação via oral ou en-
O tratamento específico da hemofilia baseia- dovenosa, antifibrinolíticos e DDAVP (desmopressina),
se na reposição do fator deficiente, que pode ser clas- podem auxiliar no controle do sangramento, principal-
sificada como de demanda, em vigência de sangra- mente os de leve intensidade.

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Tratamento de distúrbios hemostáticos em urgência médica

A analgesia deve ser realizada com paracetamol ções contidas no protocolo fornecido pelo Ministério
associado ou não a codeína, inibidores da COX-2 ou da Saúde para tratamento de hemofilia.
morfina, quando há dor intensa. Medicamentos con- Até 45% dos pacientes hemofílicos A podem
tendo ácido acetil salicílico devem ser evitados, assim apresentar aloanticorpos contra o fator VIII, denomi-
como outros medicamentos que interfiram com a fun- nado inibidor do fator VIII. Na hemofilia B, a porcen-
ção plaquetária. tagem de pacientes com inibidor é menor, podendo
Os episódios de sangramento mucoso, como oscilar entre 2 e 6%. Trata-se de imunoglobulinas da
epistaxe, gengivorragia, hemorragia digestiva e hiper- classe IgG, que, na maioria dos casos, encontram-se
polimenorréia, podem ser tratados com reposição do em títulos baixos ou indetectáveis no plasma. Após a
fator deficiente, associada ao uso de antifibrinolíticos, administração do fator, os títulos do inibidor se elevam
que podem ser prescritos isoladamente, nos episódios devido à resposta anamnéstica. A resposta ao trata-
mais leves. Exceção deve ser feita aos casos de he- mento com doses usuais para o tipo de sangramento
matúria, quando o uso dessa medicação é contra-indi- deixa de existir. Laboratorialmente, não há correção
cado. Os antifibrinolíticos freqüentemente utilizados são ou, no máximo, uma correção parcial do TTPa após a
o ácido epsilon-aminocapróico (50-60mg/kg via oral administração do fator As alternativas, nesses casos,
ou endovenosa a cada 6 h) ou ácido tranexâmico são: administrar doses mais elevadas do fator defici-
(20mg/Kg via oral ou 10mg/kg de peso via endoveno- ente ou realizar reposição com concentrados de com-
sa a cada 8 h). plexo protrombínico ativado ou não (por conterem o
O DDAVP (desmopressina) é uma droga sin- fator X), concentrado de fator VIII porcino, concen-
tética, análoga da vasopressina, que produz um au- trado de fator VII ativado, recombinante ou concen-
mento transitório do fator VIII e do fator de von trado, de fator VIII ou IX recombinantes, dependen-
Willebrand, por estimular a secreção dessas proteí- do da disponibilidade em cada centro de tratamento.
nas, estocadas nas células endoteliais. Pode ser usa-
da na hemofilia A, leve ou moderada, caso tenha sido 3- COAGULAÇÃO INTRAVASCULAR DIS-
verificado, em teste realizado previamente, que o pa- SEMINADA
ciente é responsivo à droga. A dose de 0,3 µg de
DDAVP por kg (dose máxima: 20 µg), diluída em 50- A coagulação intravascular disseminada
100 ml de salina 0,9%, deve ser administrada em 30 (CIVD) é uma síndrome adquirida, sempre secundá-
min, por via endovenosa, podendo ser repetida a cada ria a uma condição clínica predisponente. Caracteri-
8 h. Taquifilaxia pode iniciar-se depois das primeiras za-se por ativação difusa da coagulação intravascular
doses de DDAVP, resultando em perda de resposta. que, em conjunto com a inibição da fibrinólise, resulta
Além da avaliação da hemostasia, outros exa- em formação e deposição de fibrina na microvascula-
mes laboratoriais auxiliam no diagnóstico e condução tura. A oclusão de vasos de pequeno e médio calibre
dos casos, podendo ser solicitados hemograma, urina compromete o suprimento de sangue para os órgãos
rotina, função renal e outros, a depender das hipóte- acometidos e a associação de alterações metabólicas
ses realizadas para cada situação clínica. e hemodinâmicas contribui para a falência de múlti-
Os exames complementares de imagem são plos órgãos. O consumo e conseqüente depleção dos
necessários para a confirmação diagnóstica de san- fatores da coagulação e plaquetas, resultantes da con-
gramentos musculares profundos, intracavitários e tínua atividade procoagulante, podem levar a sangra-
intracranianos. Utilizam-se, mais freqüentemente, to- mento difuso, o que, freqüentemente, é a primeira ma-
mografia computadorizada e ultra-sonografia. nifestação notada.
A reposição do fator sempre deve anteceder a Uma variedade considerável de condições
realização dos exames, para não postergar o trata- clínicas pode estar associada a CIVD, estando as
mento. Exceção deve ser feita em casos de suspeita principais listadas na Tabela II. A incidência da sín-
de hematúria, nos quais o tratamento inicial é, na mai- drome, nessas diferentes situações, não pode ser es-
oria das vezes, apenas hidratação. tabelecida com precisão, em parte pela dificuldade em
A Tabela I resume as principais ocorrências defini-la e, também, pela falta de critérios diagnósti-
em urgência médica, envolvendo hemofilia, e as reco- cos, claros.
mendações de tratamento, incluindo reposição de fa- O entendimento dos mecanismos fisiopato-
tor. As recomendações foram baseadas nas orienta- lógicos permite a compreensão das manifestações

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Pintão MCT & Garcia AA

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Tabe la I - Re come ndaçõe s de tratame nto e profilaxia e m dife re nte s s ituaçõe s clínicas , e nvolve ndo pacie nte s
he mofílicos

Nível Dose inicial Duração do


Freqüência das doses
Local da hemorragia hemostático (UI/Kg) FVIII tratamento
(horas)
do fator (U/dl) FIX (dias)

Hemartrose 30- 50 15- 25 30- 50 12- 24 3- 10

Hematoma muscular 30- 50 15- 25 30- 50 12- 24 3- 5

Epistaxe# 20- 50 10- 25 20- 50 24 Até resolução

Hemorragia digestiva# 50- 80 25- 40 50- 80 12- 24 Até resolução

Hemorragia de rinofaringe ou língua 80- 100 40- 50 80- 100 12 7- 10

Hemorragia de sistema nervoso central 80- 100 40- 50 80- 100 12 7- 10

Hematúria* 30- 50 15- 25 30- 50 24 Até resolução

Hemoptise 40- 60 20- 30 40- 60 24 3- 7

Hemorragia intracavitária 80- 100 40- 50 80- 100 8- 12 §

Punção de liquor 50- 60 25- 30 50- 60 Antes do procedimento -

Endoscopia digestiva 30- 50 15- 25 30- 50 Antes do procedimento **

Punção arterial 30- 40 15- 20 30- 40 Antes do procedimento §§

# Associar antifibrinolítico
* Iniciar com hidratação via oral ou endovenosa. Avaliar possibilidade de cálculo renal ou infecção urinária.
** Caso necessite de biópsia, repetir metade da dose 1x/dia por 2- 4 dias
§ Repetir metade da dose a cada 8 ou 12 h, até resolução
§§ Repetir metade da dose a cada 8 ou 12 h, por 24- 48 h

clínicas, simultâneas, de sangramento e trombose, pre- Deve ser salientado que, não obstante as manifesta-
sentes na CIVD. A deposição sistêmica de fibrina é ções hemorrágicas sejam freqüentemente observadas
resultado da geração de trombina, mediada pelo com- ao exame clínico, é a trombose microvascular que,
plexo fator tissular/fator VII ativado (FT/FVIIa) e da provavelmente, mais contribui para a disfunção de
inibição ou disfunção dos anticoagulantes naturais órgãos-alvo e mortalidade associadas à CIVD.
[antitrombina (AT), proteína C (PC), proteína S (PS) O diagnóstico de CIVD se faz através da com-
e inibidor da via do fator tissular (TFPI)]. Além disto, binação de alterações clínicas e laboratoriais, compa-
a inibição da fibrinólise pelo aumento dos níveis do tíveis com a síndrome, em indivíduos que apresentam
inibidor do ativador do plasminogênio do tipo 1 (PAI- condições clínicas predisponentes.
1) resulta em remoção inadequada de fibrina, contri- As principais manifestações clínicas são apre-
buindo, assim, para a trombose da microvasculatura. sentadas na Tabela III.
Citocinas, principalmente interleucina-6 e TNFα, têm Diante da suspeita de CIVD, os exames indi-
ação central nesse processo. A ativação sistêmica da cados a seguir devem ser realizados
coagulação leva ao consumo e conseqüente depleção Contagem de plaquetas - A contagem de pla-
dos fatores da coagulação e plaquetas, o que, freqüen- quetas pode ser, inicialmente, normal ou baixa. A aná-
temente, resulta em manifestações hemorrágicas. lise seriada tem maior valor do que a isolada, e a que-

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Tratamento de distúrbios hemostáticos em urgência médica

trombina (TT) - Podem ser, inicialmente, normais ou


Tabe la II: Condiçõe s Clínicas As s ociadas a CIVD
prolongados. O prolongamento do TP e TTPa reflete
Doenças Infecciosas - septicemia o consumo dos fatores da coagulação, enquanto o TT
se prolonga na hipofibrinogenemia e na presença de
Trauma
produtos da degradação da fibrina (PDFs). São exa-
Doenças Malignas mes amplamente disponíveis e sua realização seriada
Tumores sólidos tem maior valor que seus resultados isolados, permi-
Leucemias tindo avaliar melhor a evolução da síndrome.
Fibrinogênio e PDFs - Em fases iniciais da
C ondições obstétricas
CIVD, a dosagem de fibrinogênio plasmático pode
Embolia de líquido amniótico
Descolamento prematuro de placenta permanecer normal ou mesmo elevada, por se tratar
Aborto séptico de uma proteína de fase aguda. A hipofibrinogenemia
Doença hipertensiva específica da gestação (DHEG) aparece em casos graves de CIVD. O aumento dos
Feto morto retido PDFs é, em geral, observado desde o início do quadro
de CIVD. A quantificação de dímeros-D (um dos pro-
Doenças Vasculares dutos da degradação da fibrina no plasma) é mais sen-
Síndrome de K asabach- Merritt
sível que os ensaios de PDFs e tem um alto valor
Aneurisma de aorta
O utras malformações vasculares
preditivo negativo para a presença de degradação
intravascular da fibrina. Uma vez que o fibrinogênio é
Reações alérgicas / acidente ofídico também degradado em regiões extravasculares, a ele-
vação dos PDFs não implica necessariamente na pre-
Reação hemolítica transfusional aguda
sença de fibrinólise intravascular.
Transfusões maciças
Exames que avaliam especificamente a ativa-
ção da coagulação [fibrinopeptídeo A (FPA), fragmen-
to1+2 da protrombina (F1+2), fibrina solúvel e comple-
Tabe la III: Quadro Clínico CIVD
xo trombina-antitrombina (TAT)] existem, mas ainda
Manifestações trombóticas não se encontram facilmente disponíveis para a práti-
SNC: ↓ consciência, delírio, coma ca clínica. A dosagem dos anticoagulantes naturais
Pele: isquemia focal, gangrena (proteína C, proteína S e antitrombina) e fatores da
Rins: oligúria, azotemia coagulação (fator V e VIII) têm aplicação somente
Pulmões: SARA em casos específicos como, por exemplo, na diferen-
Sistema digestivo: ulceração aguda ciação entre coagulopatia associada à insuficiência
Anemia hemolítica microangiopática
hepática e CIVD.
Manifestações hemorrágicas Diversos sistemas de score foram propostos
SNC: sangramento intracraniano na tentativa de permitir diagnóstico e acompanha-
Pele: petéquias, equimoses, sítios de venopunção mento precisos da CIVD, mas nenhum foi amplamente
Mucosas: epistaxes, gengivorragia aceito. Em julho de 2001, o Subcomitê Científico de
Rins: hematúria CIVD da Sociedade Internacional de Trombose e
Sistema digestivo: hematêmese, melena Hemostasia (International Society on Thrombosis
and Haemostasis - ISTH) propôs um sistema que con-
sidera duas situações diferentes: CIVD fases I/II e
da progressiva do número de plaquetas pode auxiliar CIVD plenamente manifesta. O diagnóstico de CIVD
no diagnóstico da síndrome, sendo um indício de piora plenamente manifesta é baseado na aplicação de
do quadro. algoritmo de cinco passos com atribuição de pontos,
Avaliação do esfregaço de sangue perifé- cuja soma maior ou igual a cinco é compatível com o
rico - A presença de hemácias fragmentadas (esqui- diagnóstico, levando-se em conta que uma pontuação
zócitos) indica trombose microvascular e pode estar menor não exclui o diagnóstico. A presença de uma
presente ou não nos quadros de CIVD. doença de base sabidamente associada à síndrome é
Tempo de protrombina (TP), tempo de o primeiro passo do algoritmo e condição sine qua
tromboplastina parcial, ativado (TTPa), tempo de non para sua execução. Contagem de plaquetas, tempo

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de protrombina, quantificação de fibrinogênio e PDFs trombina, não dependentes da AT, como a hirudina,
são parâmetros avaliados. O subcomitê recomenda podem ser benéficos em pacientes com CIVD, po-
que o score seja calculado diariamente, a fim de que rém não existem ainda estudos clínicos que autorizem
se caracterize a gravidade e a evolução do quadro. o uso em tal situação.
Durante o XVIII Congresso da Sociedade Internaci- Transfusão de plasma e plaquetas - A trans-
onal de Hemostasia em Trombose, em julho de 2002, fusão desses produtos não deve ser feita apenas com
foi feita a primeira avaliação do sistema proposto, com base em exames laboratoriais, mas, também, no qua-
resultados encorajadores. Estudos mais amplos ainda dro clínico do paciente. Não existem estudos bem con-
são necessários para que se possa recomendar sua trolados que provem a eficácia da transfusão “profilá-
aplicação na prática clínica diária. tica” de plasma e plaquetas. A indicação se faz para
Evidências experimentais e clínicas que funda- pacientes com sangramento ou que serão submetidos
mentem o tratamento da CIVD ainda são escassas. a procedimentos invasivos. Reposição de concentra-
É certo que o tratamento da doença de base é funda- dos de fatores da coagulação não está indicada.
mental para o controle da CIVD. Medidas de “supor- Concentrado de inibidores da coagulação -
te”, como administração de fluídos, correção de dis- Recentemente, demonstrou-se, num estudo clínico
túrbios hidroeletrolíticos e do equilíbrio acidobase, su- multicêntrico, duplo-cego e randomizado (PROWESS),
portes ventilatório e cardiocirculatório, podem ser ne- que, em pacientes com septicemia grave e evidências
cessárias. Medidas específicas para correção das al- de disfunção de múltiplos órgãos (choque circulatório,
terações envolvidas nos mecanismos fisiopatológicos acidose, oligúria e hipoxemia), o uso da PC recombi-
da CIVD são discutidas a seguir. nante foi eficiente em diminuir a mortalidade, indepen-
Anticoagulantes - O uso da heparina pode, dente da idade, gravidade da doença, número de ór-
pelo menos em parte, inibir a ativação da coagulação gãos comprometidos, sítio da infecção ou tipo de orga-
relacionada à septicemia e a outras causas. Estudos nismo envolvido. A lógica envolvida nesse estudo é a
multicêntricos e bem controlados, que autorizem ine- tentativa de restauração das vias naturais de anticoa-
quivocamente seu uso, ainda não existem, porém di- gulação, o que parece ser um objetivo terapêutico in-
versas evidências apontam para sua contribuição no teressante. Além de ser um anticoagulante natural, a
sentido de evitar tromboembolismo em pacientes com PC promove fibrinólise, inibe inflamação e é um impor-
CIVD. Doses profiláticas de heparina mostraram-se tante modulador desses processos em pacientes sépti-
suficientes para isto. A heparinização plena deve ser cos. Outros estudos, utilizando a proteína C, vêm sen-
reservada para pacientes com tromboembolismo ou do desenvolvidos, para avaliar sua eficácia de forma
situações de deposição extensa de fibrina, como mais ampla, além do risco de sangramento envolvido
purpura fulminans e isquemia acral. Nos casos em no tratamento. A antitrombina também é um impor-
que se opte pela anticoagulação, tanto a heparina não tante inibidor fisiológico da coagulação. Estudos, utili-
fracionada como a heparina de baixo peso molecular zando concentrados de antitrombina, ainda estão sen-
podem ser administradas por via subcutânea ou endo- do realizados, porém os resultados obtidos, até o mo-
venosa. Deve-se sempre considerar o risco de san- mento, não provaram sua eficácia a ponto de autorizar
gramento, associado a tal tratamento. Inibidores da seu uso na rotina terapêutica de pacientes com CIVD.

PINTÃO MCT & GARCIA AA. Management of hemostatic disorders in the emergency room. Medicina, Ribei-
rão Preto, 36: 439-445, apr./dec.2003.

ABSTRACT- Coagulophaties are frequent in emergency rooms. This article reviews important
aspects of diagnosis and treatment of hemophilias and disseminated intravascular coagulation
(DIC).

UNITERMS - Hemostatic; disorders. Hemophilia. Disseminated Intravascular Coagulation.

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Tratamento de distúrbios hemostáticos em urgência médica

BIBLIOGRAFIA RECOMENDADA 5 - MINISTÉRIO DA SAÚDE/COSAH. Normas Técnicas para


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