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Teologia Contemporânea

Agosto / 2021
Professores/autores: Dr. Jonathan Menezes / Me. Felipe Nakamura / Me. Mariana Schietti
Projeto Gráfico e Capa: Mauro Rota - Departamento de desenvolvimento institucional
Todos os direitos em língua portuguesa reservados por:

Rua: Martinho Lutero, 277 - Gleba Palhano - Londrina - PR


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SUMÁRIO
Teologia Contemporânea

UNIDADE II - CONTEMPORANEIDADE
1.0. Introdução........................................................................................................................04
1.1. Repensando a Teologia Contemporânea......................................................................05
1.2. O que significa ser contemporâneo?...............................................................................10
1.3. Resistindo à tirania do contemporâneo.........................................................................24

UNIDADE II - PESSOA
2.0. Introdução........................................................................................................................40
2.1. A pessoa entre o verdadeiro e o falso “eu”....................................................................42
2.2. A pessoa e sua autoimagem...........................................................................................48
2.3. A pessoa e o cansaço contemporâneo.........................................................................54

UNIDADE III - SOCIEDADE


3.0. Introdução........................................................................................................................66
3.1. A justiça do Reino............................................................................................................67
3.2. A questão ecológica.......................................................................................................76
3.3. A cultura do espetáculo..................................................................................................83

UNIDADE IV - IGREJA
4.0. Introdução........................................................................................................................97
4.1. Tradição e contextualização..........................................................................................99
4.2. Caminhos para o diálogo..............................................................................................110

4.3. Uma igreja reimaginada................................................................................................119

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Unidade I – Contemporaneidade
Introdução
“Um homem inteligente pode odiar seu tempo, mas
sabe, em todo caso, que lhe pertence irrevogavelmente,
sabe que não pode fugir ao seu tempo”.
(Giorgio Agamben)

“Contemporâneo” é, de acordo com o entendimento comum, aquilo que é


próprio ou peculiar de/a uma época. Para ser contemporâneo, conforme
reza esse entendimento, é preciso, portanto, coincidir, estar de acordo
com os padrões ou mesmo atualizado com sua época. A tentação em
questão aqui, então, é: para ser contemporâneo alguém precisa, em
primeiro lugar, listar quais são os temas e tendências da “ordem do
dia”, e, em segundo lugar, procurar se adequar ao estilo próprio de ser
evocado ou sugerido nessas tendências. Ser contemporâneo, nesse
sentido, confunde-se com as populares expressões “estar na moda”, “ser
tendência” e “ser relevante”.

Mas será que isso é “ser contemporâneo”? Até que ponto a ânsia pela
atualização, implícita nessa dada compreensão, está de acordo e/ou entra
em choque com as “exigências do Espírito” (do Evangelho)? Em outras
palavras, qual é o preço que estamos dispostos a pagar para conseguir
uma audiência no mundo chamado contemporâneo? Para responder a
essas e outras questões, vamos dialogar principalmente com dois textos
que estão mais ou menos em sintonia: um texto da década de 1960,
de um místico franco-americano, Thomas Merton; e um texto dos anos
2000, de um filósofo italiano, Giorgio Agamben.

A ideia central a ser percebida, em diálogo principalmente com esses


dois textos, é de que a contemporaneidade evocada aqui é a de uma
coincidência inconformada. Ou seja, o “ser contemporâneo” coincide
com sua época na medida em que faz parte dela e está envolvido em
seus dramas, mas, precisamente no meio dela, cria uma distância
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contemplativa a fim de observar criticamente seu entorno podendo,
assim, destoar de alguns de seus tons e dessoar de alguns de seus
sons. Indo além na metáfora musical, contemporâneo é aquele/a que se
recusa a cantar todas as estrofes da canção contemporânea e, enquanto
a banda toca, ousa recompor alguns versos e acordes. Contemporâneo
é o cristão que constantemente sofre de metanoia – a transformação
de seu modo de pensar o que gera, como consequência, uma conduta
inconformada com os padrões e moldes de seu tempo. Assim, e somente
assim, torna-se capaz de participar da revolução silenciosa promovida
pelo Espírito no mundo. Falaremos mais disso ao fim dessa unidade.

Objetivos da unidade
1. Definir “contemporâneo” e “contemporaneidade”;

2. Compreender alguns dos limites e possibilidades de uma teologia


(que ser quer) contemporânea;

3. Refletir criticamente sobre o cristão e a igreja em sua busca por


relevância e adequação aos padrões da tal contemporaneidade.

1.1. Repensando a Teologia Contemporânea


O que significa fazer teologia contemporaneamente? Digamos que
essa pergunta resume nosso problema de pesquisa nesse primeiro
tópico. Queremos, de um modo geral, entender o que significa, afinal, ser
contemporâneo para, em seguida, oferecer uma visão possível do que
seja o fazer teológico do discípulo hoje, bem como o cumprimento da
vocação messiânica da Igreja. Porque no mundo da teologia, partamos
dessa ideia, essas – a teologia contemporânea e o fazer teológico
contemporâneo – podem ser coisas diferentes, embora para nós, como
você perceberá, elas não são.

Por que no mundo da teologia elas podem ser diferentes? Porque o


nosso entendimento disciplinar de “teologia contemporânea” está ligado
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à uma interpretação linear da história, que a divide entre a Idade Antiga,
Medieval, Moderna e Contemporânea. Esta última supostamente teria
sido inaugurada após a Revolução Francesa, em 1789. Assim, os eventos
que ocorreram após este marco são, geralmente, considerados parte da
“história contemporânea”. Agora, pense que sentido de contemporâneo é
esse que, por exemplo, coloca sob um mesmo guarda-chuva a Revolução
Francesa, a Semana de Arte Moderna de 1922, A Guerra do Vietnã e o
Impeachment de Dilma Rousseff no Brasil, em 2016. São todos esses
eventos contemporâneos? Sabemos que apenas no sentido geral
anteriormente anunciado, isto é, de que são considerados parte da história
contemporânea – ou de certo entendimento do que ela seja. Como não
sabemos o que vem depois dela, nos cursos de história se costuma
dividir a chamada “História Contemporânea” em duas ou até três partes,
para cobrir cerca de duzentos anos. Mas isso não ajuda exatamente no
entendimento do que quer que seja “contemporâneo” (nossa busca aqui).

Na teologia o cenário não é muito diferente, precisamente porque se parte


do mesmo paradigma de divisão do tempo. O marco, porém, que dá início
ao que costumeiramente se entende por “Teologia Contemporânea” é a
Teologia Liberal do século XIX. A partir daí, concebe-se a teologia dentro
de um grande movimento, que envolve, sobretudo, teologias europeias
e norte-atlânticas, em que sucessivas correntes ou são consideradas
herdeiras da chamada Teologia Liberal, ou surgem como reação a
ela, seja no contexto católico ou protestante. Vide, por exemplo, o
Fundamentalismo na América do Norte, ou a chamada Neo-Ortodoxia,
que ganha corpo sobretudo no contexto alemão ainda na primeira metade
do século XX. Incluem-se nesse bojo uma série de outras correntes e
seus expoentes que surgem ao longo deste século, até a emergência de
movimentos teológicos no chamado mundo do dois terços – Teologias
Africanas, Latino-Americanas, Asiáticas, de recorte identitário, racial,
libertário, de gênero etc. –, a partir de meados do século XX, o que vai
tornar um pouco mais complexo e colorido um cenário até então muito
centrado no Ocidente.

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Saiba mais: Teologia Contemporânea
Um bom exemplo dessa discussão pode ser encontrado no livro
A teologia do século XX, de Stanley Grenz e Roger Olson (2003). A
tese dos autores é interessante, de que “na melhor das hipóteses,
a teologia cristã buscou sempre um equilíbrio entre as verdades
bíblicas da transcendência e imanência divinas” (p. 9).
Grosso modo, teologicamente falando, transcendência significa
Deus além do humano e do mundano, enquanto imanência significa
Deus presente e encarnado no mundo e no humano.
A tese, talvez – até pela própria forma como os autores decidem
apresentar a teologia vintecentista –, poderia ser reelaborada
assim: a teologia cristã parece ter se desenvolvido a partir de uma
tensão entre a transcendência e a imanência divinas, ora pendendo
para uma, ora para outra. Porque é precisamente esse quadro
que os autores apresentam no livro. Isto é, utilizando os verbos
dos quais eles lançam mão, de uma teologia ou de movimentos
teológicos que ora buscam reconstituir a transcendência (como a
teologia liberal), ora parecem se revoltar contra a imanência (como
a teologia neo-ortodoxa), ou propõem um aprofundar da imanência,
como no caso de Paul Tillich, ou mesmo um transcender dentro
da história, como eles descrevem a “Teologia da esperança” de
Moltmann, e assim por diante.
A perspectiva de continuidades históricas que conectam os
pontos da teologia do século XX (que outros autores chamam
de “contemporânea”) aos da do século anterior, fica evidente na
seguinte explicação:

Em vários aspectos, as prioridades teológicas do


século 20 foram determinadas pelos resultados
desses acontecimentos que mudaram o mundo
[como a Primeiro Guerra Mundial, por exemplo

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(acréscimo nosso)]. A teologia do século 20 teve
início com uma tentativa de recomeçar a partir das
cinzas da guerra que devastou não apenas a Europa,
mas também a teologia cultural europeia. Assim, não
é de se surpreender que a teologia do novo século
surgiu, antes de tudo, como protesto contra temas
centrais de sua predecessora do século 19, incluindo
a ênfase à imanência, que era tão importante para a
cultura ocidental desde a Renascença. (p. 10)
O que basicamente os autores estão dizendo é que a teologia do
século XX pode ser mais bem compreendida quando contrastada
com a do século XIX. Embora seja uma observação razoável – afinal,
nenhuma teologia surge nem se desenvolve num hiato histórico –, ela
também possivelmente revela uma das razões pela qual, ao menos
no modo clássico de se conceber a teologia contemporânea, os
estudiosos adotaram a perspectiva de uma continuidade e de uma
“longa duração”, para usar um termo clássico de F. Braudel. Ao mesmo
tempo, pode ser sintomático de uma mudança crítica de mentalidade
que Grenz e Olson tenham escolhido a expressão “teologia do século
XX” ao invés de “teologia contemporânea” em seu estudo.

A mesma pergunta, anteriormente dirigida à história, pode ser feita à


teologia: podemos dizer que a teologia de Adolf von Harnack (teólogo
alemão do século XIX) é contemporânea da de Gustavo Gutiérrez (teólogo
peruano do século XX)? É claro que não, porque elas não coincidem
historicamente. Então, como colocar ainda as teologias feitas por ambos
como parte da teologia contemporânea? É claro que isso parece não fazer
o menor sentido, mas, como vimos, tem sua explicação no modo como os
pensadores do contemporâneo encontraram para resolver esse imbróglio
entre diferentes épocas e seus movimentos. Como explica Agamben
(2009, p. 71), “aqueles que procuraram pensar a contemporaneidade
puderam fazê-lo apenas com a condição de cindi-la em mais tempos,

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de introduzir no tempo uma essencial desomogeneidade”. Em outras
palavras, a solução que esses pensadores encontraram para o problema
do contemporâneo foi o de dividi-lo em um número maior de “tempos”
diferentes entre si em muitos aspectos, mas igualmente designados
como contemporâneos segundo tais ou quais propósitos.

Nesta disciplina, porém, partirmos do pressuposto de que precisamos


repensar a teologia contemporânea. Há muitos modos de se fazer isso,
sem dúvida alguma. Umas das possibilidades – seguindo a maneira
tradicional, ainda histórico-linear – seria propor um novo recorte temporal,
quem sabe pensando que a teologia contemporânea tenha começado
após a década de 1950, na medida em que testemunhamos tentativas
de ruptura filosóficas e culturais com a modernidade, movimento que
recebeu o nome de “pós-moderno”. Um dos problemas disso é que alguns
estudiosos do pós-moderno podem argumentar que essas tentativas de
ruptura começaram antes mesmo de esse nome aparecer por volta da
metade do século XX, talvez com o filósofo Friedrich Nietzsche ainda
no século XIX. É que os estudiosos, especialmente os historiadores, têm
esse vício incorrigível de busca das origens, o que sempre torna difícil
analisar um fenômeno por si mesmo, dentro de seu contexto e com suas
peculiaridades próprias, sem a tentação de fazer divagações históricas
em busca de outras explicações. Deixemos de lado, então, essa opção.

Uma possibilidade mais vantajosa, a nosso ver, é a de analisar


teologicamente alguns temas contemporâneos a partir de determinados
enfoques, como os de pessoa, sociedade e igreja que elegemos nesta
disciplina. Alguns desses temas, quem sabe, sejam assim considerados
contemporâneos pela persistência de sua importância, isto é, por
resistirem à prova do tempo, como o tema da “justiça”, por exemplo.
Nesse caso, a temporalidade e o contexto são importantes, sim, mas
não necessariamente para a definição do que seja o fazer teológico
contemporâneo. “Contemporânea”, assim, não é tanto uma era ou época
em si quanto o seu possível Zeitgeist (o espírito de uma época), sem que
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consigamos (ou mesmo precisemos) determinar exatamente quando
começa e quando termina. Como captar, porém, aquilo que parece
mudar constantemente? Certamente um desafio a ser pensado enquanto
fazemos teologia e tentamos entender o contemporâneo.

De todo modo, o que quer que chamemos de “Teologia Contemporânea”


precisa passar por determinados crivos de entendimento, e já deixamos
claro que a compreensão a ser expressa nessa disciplina não passa nem
por essa noção de um período longo que começa no século XIX, tampouco
pela análise histórica de uma série de correntes que são mais ou menos
enquadradas dentro desse período que abrange quase dois séculos.
Entendemos, portanto, que para compreender melhor a expressão
“Teologia Contemporânea”, precisamos desmembrá-la, começando por
definir o que vem a ser o contemporâneo ou que contemporaneidade
significa. Vamos a isso nesse momento.

1.2. O que significa ser contemporâneo?


Nesse tópico, estabeleceremos um diálogo com Giorgio Agamben
em seu ensaio chamado O que é o contemporâneo? (2009). Parte da
compreensão a ser explorada aqui, já adiantamos na introdução. A ideia
agora é aprofundar e dar alguns exemplos, a partir de três sentidos
principais que Agamben oferece nesse ensaio para “ser contemporâneo”.
Examinemo-los um a um.

É preciso começar dizendo que Agamben inicia suas considerações com


Friedrich Nietzsche. Para ele, um princípio de resposta à pergunta “O que
é o contemporâneo?” está no termo “intempestivo”, utilizado algumas
vezes por Nietzsche para significar uma dissociação, inatualidade ou não
união perfeita com seu próprio tempo. Ou seja, ao contrário do que talvez
estejamos acostumados a conceber, ser uma pessoa contemporânea
significa andar em dissincronia com sua própria época. Como lembrou
Agamben na epígrafe (a frase com a qual abrimos esta unidade), podemos
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até odiar nosso tempo, mas a sabedoria nos lembra que sabemos que
lhe pertencemos “irrevogavelmente” e que dele não podemos fugir. Mas
se dele não fugimos, nem tampouco deixamos facilmente nos amoldar,
como nos tornamos propriamente contemporâneos?

Desse modo é que Agamben apresenta seu primeiro significado para


“contemporâneo”:

A contemporaneidade, portanto, é uma singular relação


com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo
tempo, dele toma distâncias; mais precisamente, essa
é a relação com o tempo que a este adere através de
uma dissociação e um anacronismo. Aqueles que
coincidem muito plenamente com a época, que em
todos os aspectos a esta aderem perfeitamente, não
são contemporâneos porque, exatamente por isso, não
conseguem vê-la, não podem manter fixo o olhar sobre
ela. (Agamben, 2009, p. 59, grifo nosso)

Há uma série de elementos importantes nesta primeira definição,


mas queremos comentar os que mais nos saltam aos olhos: (a) ser
contemporâneo é aderir ao tempo tomando dele distância – isto, aliás, é
o que chamamos propriamente de um paradoxo; (b) e toma-se distância
dele por meio de uma “dissociação” (o oposto de associação, simples
assim) e de um “anacronismo”. É isto mesmo? Dizemos que alguém ou
uma concepção de mundo é “anacrônica”, normalmente em tom crítico,
para inferir que ele/a não está em sintonia com a sua própria época.
Nesse sentido, talvez este fosse o último predicado que imaginaríamos
sendo atribuído a alguém que consideramos um contemporâneo. Mas
esta forma de ser contemporâneo pode tornar esta pessoa livre ao ponto
de poder circular pela “sabedoria antiga” presente em diferentes eras, por
exemplo, extraindo delas significativos insights para interpretar e viver
seu próprio mundo.
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Glossário
Sabedoria antiga. O uso do termo
aqui parte do pressuposto (presente no
livro de Provérbios, ver: Pv 8.22-31) de
que a sabedoria está presente desde o
princípio das eras e do próprio universo;
nasceu do Verbo Divino na Criação, vem
antes do próprio conhecimento e é mais
fundamental que ele – ou seja, ela é a
guia do conhecimento, por assim dizer. E
que, portanto, recorrer ao que chamamos
aqui de “sabedoria antiga” é o ato mais útil
e revolucionário que um contemporâneo
pode fazer, a fim de que seja de fato um
contemporâneo, ao menos no sentido empreendido por Nietzsche
e Agamben. Esta, aliás, a proposta do livro No caminho do bem:
sabedoria antiga para uma nova humanidade (2021), de autoria
de Jonathan Menezes.

E é precisamente esta inversão – do contemporâneo como quem pertence


a uma época específica, sem a esta aderir plenamente, e circula livremente
por outras épocas, buscando uma sabedoria atemporal presente ali –,
tão interessante em Agamben, que proporciona o terceiro elemento que
gostaríamos de destacar: (c) a possibilidade de “ver” a nossa época,
coisa que não é possível a quem não ocupa seu próprio interior, mas
“vive ingenuamente no mundo”, parafraseando Arthur Danto. E, assim,
enxerga as coisas sem “vê-las” propriamente. Em outras palavras, o
contemporâneo pode ser descrito como um “contemplativo”, no sentido
que Thomas Merton deu à palavra, uma vez que o contemplativo é
aquele/a que contempla o mundo contemplando, antes, a si mesmo.
Observa-o do interior, por assim dizer, e observa-o, diga-se de passagem,
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ativamente, isto é, como quem participa do mundo, como quem faz parte
dele, mas nem por isso toma parte de todos os seus negócios. “O segredo
da vida contemplativa”, disse Merton (2019, p. 487), “está na capacidade
de percepção (ou conscientização) ativa”.

Esta observação não é menos importante, porque o distanciamento


enunciado por Agamben não deve ser entendido como uma fuga ou
abandono do mundo, tampouco o é a chamada vida contemplativa. A
mudança na vida do contemplativo, a partir desse despertar consciente
que a luz de Cristo nele promove, não redunda propriamente em
um afastamento do mundo e de seus objetos, mas na quebra de sua
dependência em relação a eles, que Merton chama noutro lugar de
“desapego essencial”. Em suas palavras,

O contemplativo não deixa de conhecer os objetos


exteriores. Mas deixa de ser guiado por eles; deixa de
depender deles. deixa de tratá-los como a realidade
suprema e agora os avalia segundo um novo modo,
no qual não são mais objetos de desejo ou medo,
permanecem neutros e como que vazios, até que sejam
preenchidos pela luz de Deus. (...) Fora desse desapego
essencial, o homem não pode ter a esperança de
adentrar sua mais interior profundidade e experimentar
o despertar do eu interior que é a morada de Deus, Seu
lugar oculto, Seu templo, Sua fortaleza e Sua imagem.
(Merton, 2007, p. 26)

E o que vale para nossa relação com os objetos, vale também para nossa
relação com as pessoas. Uma ambiguidade deve ser notada aqui: se,
por um lado, deve-se dizer que relacionamentos nos humanizam e nos
aproximam desse “despertar do eu” sobre o qual fala Merton, por outro,
há que se ponderar que o efeito oposto às vezes também é produzido
nas relações, quando não nos treinamos a reconhecer e a respeitar
limites. Relações maduras, contudo, pressupõem o respeito mútuo pela

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individualidade, os limites e a solidão, minha e a do outro, do contrário
perde-se a intimidade fundada na caridade, que cuida sem sufocar. Como
bem coloca Merton em seu livro Homem algum é uma ilha:

Mas não há verdadeira intimidade entre almas que


não sabem respeitar a sua mútua solidão. Não posso
unir-me a outra pessoa, cuja personalidade o meu
amor tende a ofuscar, absorver e destruir. Nem posso
despertar o verdadeiro amor numa pessoa a quem o
meu amor convida a afogar-se no próprio ato com que
ela me cumula. (Merton, 2021, p. 153)

Jesus de Nazaré, por exemplo, persiste como melhor exemplo de pessoa


contemplativa, porque participava ativamente do mundo, desenvolvendo
tanto uma escuta quanto uma sensibilidade ativas, no sentido de que
se convertiam em ações libertadoras, de solidariedade e compaixão
para com a vida humana, quanto também tinha uma vida e missão
autônomas em relação aos imperativos externos, mesmo aqueles vindos
de seu núcleo mais íntimo. A questão fundamental é: de onde procedia
essa sensibilidade e capacidade de escuta de Jesus, combinada com
uma autonomia e reverência à sua vocação particular? A resposta mais
simples e óbvia é: de sua vida de oração, de seus momentos de silêncio,
no deserto, em comunhão com seu Pai. Deixe-nos dar um exemplo.

No Evangelho de Marcos, relata-se que, depois de uma noite atribulada


em que Jesus seu doou de muitas formas a pessoas que necessitavam
de seu toque curador – como a sogra de Simão Pedro, além de outros
enfermos e endemoninhados –, na manhã do dia seguinte, “Jesus
se levantou e foi a um lugar isolado para orar”. Passado um tempo, o
relato prossegue dizendo que “Simão e os outros saíram para procurá-
lo. Quando o encontraram, disseram: ‘Todos estão à sua procura!’.
Jesus respondeu: Devemos prosseguir para outras cidades e lá também
anunciar minha mensagem. Foi para isso que vim’” (Mc 1.35-37, NVT).

Observe os destaques que fizemos no texto, primeiro: “Todos estão à


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sua procura!”. Há uma exclamação aí, um senso de urgência na voz dos
discípulos, sinal de que as pessoas precisavam de Jesus, uma convocação
para que ele viesse de novo e fizesse a sua costumeira mágica, a fim
de que todos ficassem contentes. Agora, segundo, veja o contraste na
resposta de Jesus: “Devemos prosseguir”, ir a outros lugares, encontrar
outras pessoas, anunciar a elas a Mensagem, pois “foi para isso que eu
vim”. O espírito de Jesus não foi abalado e nem movido pelo senso de
urgência dos discípulos, uma vez que ele tinha um senso de propósito
claro em seu coração, uma missão a realizar para além dali. E esse senso
nasceu não do barulho, mas do silêncio; não dos impulsos da mente, mas
da solidão do coração; não de um olhar circunstancial e enviesado, mas
de um “ver-além”; não de uma vontade humana, mas da divina.

Retornaremos ao tema da contemplação em mais conversas com


Merton no último tópico desta unidade. Agora é preciso falar do segundo
significado de Agamben para contemporâneo: “Contemporâneo é aquele
que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes,
mas o escuro” (Agamben, 2009, p. 62). Para este autor, contemporânea é a
pessoa que reconhece essa obscuridade e, assim, escreve “mergulhando
a pena nas trevas do presente”. Mas o que significa esse mergulho
nas trevas para “ver” a obscuridade do presente? Agamben recorre à
neurofisiologia da visão em busca de uma resposta. Segundo ele, “os
neurofisiologistas da visão nos dizem que a ausência de luz desinibe
uma série de células periféricas da retina, ditas precisamente off-cells,
que entram em atividade e produzem aquela espécie particular de visão
que chamamos de escuro” (Agamben, 2009, p. 63). Ou seja, “ver” as
trevas ou a escuridão não é, cientificamente falando, propriamente uma
contradição de termos. Se entendermos o escuro meramente como um
estado privativo, como ausência de luz e, por isso, também de visão,
perdemos o sentido aqui de que a atividade dessas off-cells, “um produto
de nossa retina”, conduzem não a uma cegueira momentânea, mas a um
modo diferente de ver.

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Voltando à contemporaneidade, Agamben então diz que o que faz de
alguém contemporâneo é justamente a ativação de uma “habilidade
particular”, que possibilita a esta pessoa “neutralizar as luzes que provêm
da época para descobrir as suas trevas, o seu escuro especial, que não é,
no entanto, separável daquelas luzes” (Agamben, 2009, p. 63). Em outras
palavras, luz e trevas são ambas, ao mesmo tempo, modalidades de ser
e de visão que coexistem não apenas no interior de uma determinada
época, mas também – para avançar na argumentação de Agamben –
no interior de cada pessoa. E essa, ao que nos parece, é a parte mais
interessante do insight desse autor, a parte que nos diz respeito – já
que exploraremos, nesta primeira parte da disciplina, uma visão sobre
a pessoa na contemporaneidade. Ao contemplar a obscuridade de seu
tempo, tem-se na mira não apenas as trevas do mundo propriamente
ditas, mas também as nossas. Nas palavras de Agamben,

O contemporâneo é aquele que percebe o escuro do


seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa
de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se
direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele
que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém
de seu tempo. (Agamben, 2009, p. 64)

A poesia de Gabriel O Pensador, “Palavras repetidas” (2005), ilustra essa


questão da escuridão do mundo como algo que nos concerne:

A Terra tá soterrada de violência,


De guerra, de sofrimento, de desespero
A gente tá vendo tudo, tá vendo a gente
Tá vendo, no nosso espelho, na nossa frente
Tá vendo, na nossa frente, aberração
Tá vendo, tá sendo visto, querendo ou não
Tá vendo, no fim do túnel, escuridão
Tá vendo no fim do túnel escuridão. (Grifos nossos)

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A ênfase nas expressões “tá vendo tudo, tá vendo a gente” e “no nosso
espelho” é para ressaltar a consciência do poeta de que não apenas as
luzes, mas as trevas de nossa época são traços que nos concernem,
independente se temos participação direta naquilo ou não. A violência
com a qual ele diz que a terra está “soterrada”, por exemplo, e que é parte
integrante do cotidiano de brasileiros/as, pode ser algo que não emerge
propriamente nos atos de alguém (um/a pacifista, por exemplo), mas
que seguramente está soterrado em seu interior, como uma potência.
Que esta pessoa, por sua vez, decidiu canalizar de outras formas, não
violentas, sem poder, no entanto, afirmar – sem o peso de uma hipocrisia
velada – que esta não lhe concerne de modo algum.

Essa hipocrisia, contudo, está estampada na face desse mundo


polarizado, e que assim se fez – dentre inúmeras razões, que não cabe
aqui explorar – precisamente por nossa incapacidade de nos enxergar
em nosso próximo, especialmente em suas trevas. É que em raríssimos
momentos – exceto, talvez, quando um grande sofrimento bate à porta –
as pessoas param para ser testemunhas de sua própria escuridão. Não
deve ser de admirar seu estranhamento em relação à escuridão das outras
pessoas. Mais duro ainda é quando nas sombras do outro – tais como o
ódio incontido, o orgulho ferido, a chaga aberta, o desejo proibido, a inveja
disfarçada, a angústia, o medo, a opressão, a fragilidade, o narcisismo, e
assim por diante –, vemos as nossas sendo inexoravelmente projetadas.
Por isso é mais difícil lidar com a própria escuridão. Sobretudo porque
dela não há como se livrar; esconder talvez, mas não arrancar, apagar,
não a sentir penetrando-nos a alma. Mesmo quando conscientemente
a gente anda pelo “vale da sombra da morte”, no fundo a gente anda
sozinho. Pessoas têm pavor da escuridão. Ainda bem que Deus não tem.

Por isso, no clássico Noite escura, de João da Cruz (1542-1591),


é possível encontrar uma percepção parecida com a proposta de
Agamben, com algumas diferenças (vejamos a seguir). “Noite escura”
é o nome que João da Cruz dá ao estado da alma diante da infusão de
luz divina. Para explicar essa ideia, ele compara-a à situação de alguém
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olhando diretamente para o sol do meio-dia. A sensação é de que, quanto
mais nosso olhar é exposto aquela luz, menos nós vemos. E esse é um
estado desejável para a pessoa contemplativa. Ela abandona o sentido
normal de conhecimento e de visão, quando se trata de Deus. Em termos
propostos por Thomas Merton, o “ver” da contemplação é, assim, um ver
sem ver, um reconhecimento de que nosso olhar “natural” é por demais
afetado por outras formas de iluminação – veja o contraste aqui com o
iluminismo do século XVIII, e sua obsessão pelo conhecimento apenas
pela via da razão, ou mesmo a questão do excesso de luminosidade de
uma época, tal como expresso por Agamben. Portanto, a única forma
de conhecer a Deus é sendo purificado desse desejo e conduzido a uma
forma purificada de união. Nas palavras de João da Cruz:

Podemos então declarar como segue, em que a alma


diz: em pobreza, desamparo e desarrimo de todas as
minhas apreensões, isto é, em obscuridade do meu
entendimento, angústia de minha vontade, e em aflição
e agonia quanto à minha memória, permanecendo na
obscuridade da pura fé, — que é na verdade noite escura
para as mesmas potências naturais — só com a vontade
tocada de dor e aflições, cheia de ânsias amorosas por
Deus, saí de mim mesma. Saí, quero dizer, do meu baixo
modo de entender, de minha fraca maneira de amar, e
de meu pobre e escasso modo de gozar de Deus, sem
que a sensualidade nem o demônio me tenham podido
estorvar. (Cruz, 2014, p. 81)

Dentre os benefícios dessa “noite escura da alma”, que, como se pode


ver pela passagem acima, é uma noite que envolve dor, aflições e agonia,
podemos destacar duas principais:

1. “O principal e primeiro proveito causado na alma por esta seca e


escura noite de contemplação é o conhecimento de si mesmo e de sua
miséria” (Cruz, 2014, p. 65). No tempo de prosperidade não chegamos

18 | Teologia Contemporânea | FTSA


a ver nossa própria miséria e baixeza, diz João. Ou seja, quando tudo
vai bem e somos sucesso em tudo menos chance temos de saber
quem somos de verdade – e assim nos vemos incapazes também de
enxergar a escuridão de nosso tempo e nos identificar com ela.

2. Na noite escura “Deus iluminará a alma, dando-lhe a conhecer não


somente a própria miséria e vileza, mas também sua grandeza e
excelência” (Cruz, 2014, p. 67). Ou seja, do mesmo processo em
que vamos conhecendo melhor a nós mesmos por meio da queda
das máscaras e das escamas que nos mantinham enredados em
nossa ilusão, também vamos conhecendo a Deus. Por isso, diz ele, “é
necessário à alma permanecer neste sepulcro de escura morte, para
chegar à ressurreição espiritual que espera” (Cruz, 2014, p. 95).

No caminhar às escuras da noite escura, a alma está segura. A reflexão


aqui é que nossa vida, a maior parte do tempo, é sustentada em falsas
seguranças, a maioria delas ligadas às nossas conquistas no mundo
material. João da Cruz demonstra que é nessas falsas seguranças (e
nossos desejos, anseios e raciocínios em torno delas) que nós nos
perdemos, cometemos desatinos, vendemos a alma ao Diabo. Na noite
escura, porém, nossas faculdades ou capacidades, e a segurança nelas
fundadas, são destronadas. Paradoxalmente, João diz que é nesse
momento que a alma não mais caminha de modo errante, mas segura.

Esse obscurecimento, como salienta Merton (2018a, p. 68), “é, portanto,


uma iluminação. Deus obscurece a mente apenas a fim de dar maior e
mais perfeita luz”. Eis-nos, agora sim, diante do paradoxo da iluminação,
em que a luz só pode ser infundida na medida em que deliberadamente
escolhemos permanecer na escuridão por certo tempo, admitindo nossa
cegueira total ou parcial sobre tais ou quais aspectos da realidade, sem
estranhá-la ou dissipá-la com formas artificiais de iluminação. Esse é o
paradoxo anunciado por Jesus aos fariseus que interrogavam ao cego de
nascença, curado pelo nazareno, e acusavam a Jesus de ser pecador: “Eu
vim a este mundo para julgar, para dar visão aos cegos e para fazer que
os que veem se tornem cegos”. No que os fariseus o indagaram se ele os
| Teologia Contemporânea | FTSA | 19
estava chamando de “cegos”, então Jesus respondeu: “Se vocês fossem
cegos, não seriam culpados (...). Mas a culpa de vocês permanece pois
afirmam que podem ver” (Jo 9.39-41, grifos nossos).

Ora, uma das premissas desse segundo significado de contemporâneo


está em poder “ver as trevas” de seu tempo e, contemplando-as, enxergar
as suas próprias como em espelho. Entretanto, à luz da reflexão proposta
por João da Cruz e pela tradição mística cristã, perguntamos: O que
vemos ou percebemos, afinal, de nosso tempo ou de nossa realidade?
Uma porção ou uma fração? No máximo isso. E não é nossa suposta
iluminação – em oposição às trevas do presente – que nos permite
atingir tal ou qual nível percepção, mas uma modéstia competente,
inerente à toda busca, curiosidade, investigação e contemplação. Assim,
concordamos com Agamben que ser contemporâneo é uma questão de
coragem, pois isto significa não apenas “manter fixo o olhar no escuro
da época, mas também perceber nesse escuro uma luz que, dirigida
para nós, distancia-se infinitamente de nós. Ou ainda: ser pontual num
compromisso ao qual se pode apenas faltar” (Agamben, 2009, p. 65).

Assim chegamos ao terceiro significado de “ser contemporâneo” no texto


de Agamben, e este é o que mais se aproxima da teologia:

O contemporâneo não é apenas aquele que, percebendo


o escuro do presente, nele apreende a resoluta luz; é
também aquele que, dividindo e interpolando o tempo,
está à altura de transformá-lo e de colocá-lo em relação
com outros tempos, de nele ler de modo inédito a
história, de “citá-la” segundo uma necessidade que não
provém de maneira nenhuma do seu arbítrio, mas de
uma exigência à qual ele não pode responder. É como
se aquela invisível luz, que é o escuro do presente,
projetasse a sua sombra sobre o passado, e este, tocado
por esse facho de sombra, adquirisse a capacidade de
responder às trevas do agora. (Agamben, 2009, p. 72)

20 | Teologia Contemporânea | FTSA


Digamos que esta é a conclusão de Agamben neste ensaio. Para entendê-
la melhor, separemos os seus elementos. Por que falar em “escuro do
presente”? Em parte, porque, como vimos, ser contemporâneo significa
manter seus olhos fixos em seu próprio tempo a fim de, anulando sua
artificial luminosidade, enxergar suas trevas. Mas, ao mesmo tempo,
pode-se perguntar: que tempo é esse que ousamos chamar de “nosso”?
Para Agamben, trata-se do tempo presente. O problema é que “o presente
não é outra coisa senão a parte de não-vivido em todo vivido” (Agamben,
2009, p. 70). O presente não cessa de desaparecer diante de nós como
fumaça; quando nos damos conta de nossas experiências presentes,
já se tornaram passado. Daí a ideia de um “não-vivido” ao qual, como
contemporâneos, sempre tornamos nossa atenção.

Perceba, então, como um elemento do tópico anterior, sobre a estreita


relação entre o que costumeiramente chamamos de contemporâneo
com uma dada compreensão histórica (linear, das eras), retorna agora
com outra roupagem: isto é, segundo Agamben (2009, p. 71), de todo
modo precisamos da história para ler a contemporaneidade, “colocando
uma relação especial entre os tempos”, e suas diferentes “gerações”.
Não se trata, por exemplo, de chamar Nietzsche (autor do século XIX)
e você (uma pessoa vivendo no século XXI) de contemporâneos. E sim
poder supor que Nietzsche, como qualquer outro pensador da história
ou mesmo qualquer evento passado, possa adquirir a “capacidade
de responder às trevas do agora” na medida em que você se põe a lê-
lo de uma forma inédita ou inaudita. Isto é o que Agamben chama de
“interpolação do tempo”, ou que poderíamos chamar de dança entre as
épocas, que só um contemporâneo pode fazer sem a preocupação de
parecer démodé.

Para dar um exemplo, enquanto escrevemos estas linhas, John Mayer


acaba de lançar seu oitavo álbum de estúdio chamado Sob Rock (2021).
Como ele próprio admitiu em entrevista a Zane Lowe, trata-se de um
álbum inspirado na música pop, ou soft-rock, dos anos 1980. Entretanto,
engana-se quem pensa que o álbum foi produzido com a intenção de
| Teologia Contemporânea | FTSA | 21
ser um mero retorno ao passado ou a um lugar conhecido. Como Mayer
explica, na medida em que se escuta o álbum tem-se a sensação de
que “poderia ter sido algo que já aconteceu” – uma espécie de deja vu
musical ou existencial –, mas, quando se presta atenção, na verdade não
se pode encontrar um similar em lugar algum. Como o músico completa:
“A ideia de Sob Rock é a de implantar falsas memórias em seu cérebro
(...). Mas, a questão é: você pode ter memórias de coisas que nunca
aconteceram?” (Apple Music, 2021, tradução nossa). Parece-nos que
o que Mayer se propôs a fazer nesta obra-prima é precisamente o que
Agamben afirma ser a arte do contemporâneo: a de transformar o escuro
de seu presente através de uma “leitura inédita da história”, ou de uma
releitura altamente criativa.

Aqui também se insere a relação deste significado com a teologia. Para


Agamben (2009, p. 71), “é o contemporâneo que fraturou as vértebras de
seu tempo”, e, desse modo, “faz dessa fratura o lugar de um compromisso
e de um encontro entre os tempos e as gerações”. Tentando explicar
o que Agamben quer dizer, seria como quebrar um osso do tempo
presente e, nesse ponto de ruptura, fazer conexões com outros tempos,
outras formas de pensar do passado. Nesse sentido, o apóstolo Paulo
(segundo o próprio Agamben) foi exemplar, pois introduziu a noção de
“tempo messiânico” (cronologicamente indeterminado) que se encontra
em ponto de tensão com “o tempo que resta”, que, por sua vez, “é muito
curto” (1Co 7.29). Com isso, promoveu não apenas uma interpolação
entre tempos (toda a história se torna, para ele, uma prefiguração do
tempo messiânico, inaugurado com a Ressurreição de Jesus Cristo),
mas nos convidou a repensar nossa relação com o tempo. Como explica
Júlio Zabatiero, a partir de então o tempo passa a ser visto não mais
do modo linear, como uma “sucessão de épocas”, mas da perspectiva
“de uma superposição de modos de viver: segundo a carne (a vida do
tempo presente), segundo o Messias, ou segundo o Espírito (a vida do
tempo futuro)”. O “tempo messiânico”, segundo Agamben (2017), seria
o tempo que “pulsa dentro do tempo cronológico” (o tempo que resta),
trabalhando-o ou moldando-o a partir de dentro a fim de nos auxiliar
22 | Teologia Contemporânea | FTSA
a “atingir a meta”, que seria a de nos libertar de nossa “representação
ordinária do tempo”.

Em diálogo com Agamben, Zabatiero explica que:

As temporalidades em questão são as temporalidades


expressas nos contrastantes estilos de vida não-
messiânico e messiânico. O tempo presente, que é o
tempo em que vivemos, é tempo que resta, ou seja,
é tempo de tensão, de desafio, de vocação – é neste
tempo não-messiânico que somos chamados e
empoderados (pelo Espírito) a viver o tempo messiânico.
O tempo messiânico não é cronológico, ou seja, não é
um tempo que está no futuro e virá substituir o tempo
presente. É uma temporalidade imanente à atual e
(única) temporalidade cronológica, que a subverte
internamente, que, em certo sentido, de fato a perverte,
posto que contra todas as possibilidades, neste tempo
cronológico é possível viver como o Messias viveu.
(Zabatiero, 2018, p. 43-44, grifos do autor)

Em outras palavras, aprendemos com Paulo que vivemos uma vida na


carne (temporalidade não-messiânica), mas, ao mesmo tempo, fomos
libertos da escravidão em relação a este modo de vida, sendo chamados
para uma vida no espírito (temporalidade messiânica). E que, para libertar-
nos de nossa representação ordinária do tempo – ou pelo menos, livrar-
nos de ser engolidos pelo deus chronos –, precisamos nos apropriar
desse batismo pelo Espírito pelo qual “morremos e fomos sepultados
com Cristo”, e, “assim como ele foi ressuscitado dos mortos pelo poder
glorioso do Pai”, agora também possamos viver como o Messias viveu,
em “novidade de vida” (cf. Rm 6.3-4). Fazendo, portanto, não apenas as
mesmas obras que o Messias realizou, mas outras “até maiores”, como
ele mesmo prometeu antes de retornar ao Pai (Jo 14.12).
| Teologia Contemporânea | FTSA | 23
Não se trata mais, portanto, de viver na antiga tensão binária e
eminentemente cronológica entre um já e um ainda-não – como
postulou Oscar Cullmann no século passado –, mas em apropriar-se da
noção neotestamentária de que o eschaton (fim ou últimas coisas) do
discípulo contemporâneo se realiza, pelo poder do Espírito, no eterno-
agora, que é uma espécie de ainda-não-já. O discípulo contemporâneo
pode fazer livre e diligentemente a interpolação criativa entre os tempos
precisamente porque é movido pelo Eterno. Porém, que fique bem claro:
estamos pensando nesse “discípulo contemporâneo” a partir de um
diálogo com a noção apresentada por Agamben, que interessa a nossos
propósitos teológicos aqui – que ficarão, esperamos, mais claros no
próximo tópico. E não para dizer que as outras pessoas, que pensam
e fazem diferente, não sejam contemporâneas segundo outro modo ou
outra concepção vigente.

1.3. Resistindo à tirania do contemporâneo


Embora a última parte desta disciplina seja dedicada à igreja, é preciso
falar dela já aqui, conectando o tópico anterior a esse – até porque, não
é possível falar de Igreja sem falar de Pessoa, uma vez que não existem
igrejas sem pessoas, ou mesmo Igreja fora da Pessoa de Cristo. No
último tópico nossa conversa foi, sobretudo, com Giorgio Agamben, e
neste avançaremos conversando mais com Thomas Merton. Mas, antes,
gostaríamos de trazer aqui uma admoestação (se assim podemos dizer)
de Agamben à Igreja em Paris certa feita em uma palestra. Para ele, a
crise da Igreja tem raízes no abandono de sua “vocação messiânica”, qual
seja, a de viver segundo a vontade (divina) que emerge da temporalidade
messiânica (tempo-do-fim) e não segundo as urgências e tentações, por
assim dizer, da temporalidade cronológica (tempo-que-resta). Ao fim da
conferência, ele assim se expressa:

A Igreja pode ser uma instituição viva apenas na medida


em que mantém uma imediata relação com o seu fim.
E – um ponto do qual não deveríamos nos esquecer
–, de acordo com a teologia Cristã, há apenas uma
24 | Teologia Contemporânea | FTSA
instituição legal que não conhece nem interrupção, nem
fim: o inferno. O modelo da política contemporânea –
que almeja fazer do mundo uma infinita economia – é,
assim, verdadeiramente infernal. E se a Igreja restringe
sua relação original com a paroikia [ou peregrinação],
ela não poderá nada senão perder a si mesma no tempo.
(...) Será que a igreja finalmente compreenderá a ocasião
histórica e recuperará sua vocação messiânica? Se não
o fizer, o risco é claro: ela será varrida pelo desastre que
ameaça todos os governos e todas as instituições da
terra. (Agamben, 2012, p. 41, trad. nossa)

A vocação messiânica da Igreja não é definida pelo meio (o “tempo-


que-resta” ou o próprio mundo), mas pelo fim (o tempo escatológico
ou messiânico). Não ser definida pelo meio não significa, porém, dar de
ombros para um envolvimento direto com o meio; significa ler, interpretar
e viver o meio a partir do fim. E o fim (Ômega) é Cristo, como também
o princípio (Alfa). A Igreja, portanto, não pode demonizar ou desprezar
o meio – como tantas vezes o fez na história, e ainda o faz, embora se
utilizando estrategicamente do que serve a seus interesses –, porque,
como bem observou Teilhard de Chardin (2014), ela tem consciência de
que não há meio algum fora de Cristo, o que o transforma, na consciência
de cada discípulo, em “meio divino”. A Igreja, assim, ama o meio sem a ele
aderir, sem dele depender exclusivamente, nem nele fazer sua profissão
de fé. Como bem explica e diferencia De Chardin:

O pagão ama a Terra para usufruir dela e nela se


confinar. O cristão ama-a para torná-la pura e tirar dela
a força para dela escapar. (...) O pagão pensa que o
homem se diviniza, fechando-se em si mesmo; o gesto
final da evolução humana é, para cada um ou para todo
o conjunto, o de se constituir em si mesmo. O cristão só
vê a divinização na assimilação, por um Outro, de seu
acabamento: o auge da vida, a seus olhos, é a morte na
união. Para o pagão, a realidade universal só existe por
| Teologia Contemporânea | FTSA | 25
projeção no plano do tangível: ela é imediata e múltipla.
O cristão toma exatamente os mesmos elementos:
mas ele os prolonga segundo o eixo comum que os
religa a Deus; e, ao mesmo tempo, o universo se unifica
para ele, sendo tudo atingível somente no Centro final
de sua consumação. (De Chardin, 2014, p. 91)

Fica evidente, pela exposição acima, que não é mais um binarismo do


tipo sagrado versus profano, matéria versus espírito, ou espiritual versus
mundano que diferencia a presença do discípulo e do não-discípulo
(“cristão” e “pagão”, em De Chardin) no meio, mas o modo como uns
e outros se relacionam com e se apropriam do meio, pela adesão
irrestrita ou por uma coincidência inconformada, como nomeamos aqui.
Enquanto para o segundo tudo se “confina”, se explica e se resume pelo
e no meio, para o primeiro o meio é apenas um modo de encarnação de
uma realidade muito maior e universal: a do Cristo. Assim, relaciona-se
com o meio não apenas porque dele é parte, senão para se religar ao
“Centro final de sua consumação”, isto é, Cristo. Como admoestou Paulo,
o apóstolo, aos Coríntios: “Portanto, não se orgulhem de seguir líderes
humanos, pois tudo lhes pertence: Paulo, Apolo ou Pedro, o mundo, a
vida e a morte, o presente e o futuro. Tudo é de vocês, e vocês são de
Cristo, e Cristo é de Deus” (1Co 3.21-23, grifo nosso).

Desse modo, podemos apresentar nossa própria definição de pessoa


contemporânea, segundo a trilha até aqui percorrida – cientes, porém, de
suas contingências próprias –, conforme o que segue:

Contemporânea parece ser a pessoa ou a Igreja que está ocupada em


ser o que é (em Cristo) e viver de acordo com a força de sua própria
vocação, do modo mais autêntico possível, mais do que ansiosa por
“ser contemporânea”, conforme os sentidos normalmente aceitos para
a palavra.

Para tanto, ela precisa desenvolver uma atenção e postura tais em sua
própria época de tomar parte nos meandros do mundo sem deixar-se
26 | Teologia Contemporânea | FTSA
prejudicar ou perder-se por seus feitiços. Como isso é possível? Isto é,
como ser contemporâneo e, ao mesmo tempo, resistir às pressões ou
tiranias do contemporâneo?

Pode parecer que a resposta já está embutida na última pergunta –


quer dizer, basta resistir à tirania do contemporâneo para ser, de fato,
um contemporâneo –, mas não é tão simples assim. Pois a linha que
separa uma presença efetiva de uma busca angustiada por relevância e
aprovação do mundo é mais tênue do que parece. Por isso, convidamos
Thomas Merton para esta última parte da conversa, pois nele vemos
um exemplo prático de um contemporâneo – dentro de sua própria
época e lugar, Estados Unidos da América, em meados do século XX –
exercendo o direito de falar e de ser ouvido sem seguir aos imperativos
aparentemente necessários à época para conquistar a audiência da
pessoa moderna – conduta que ele mesmo critica.

As ideias a serem discutidas a seguir foram desenvolvidas no livro A


igreja e o mundo sem Deus (Merton, 2018b), especialmente nos três
primeiros capítulos. Neles, primeiro, Merton discute a ideia de “mundo”.
Nele, Merton basicamente segue a intuição, já presente em autores como
De Chardin, de que o discípulo não deve renegar o mundo, mas aprender a
como participar dele de maneira crítica, crística e criativa. O que quer que
definamos como “mundo”, deve passar longe da ideia de uma entidade
separada da vida e do humano. É, como ele defendeu noutro lugar, “um
complexo de responsabilidades e de opções feitas por amores, ódios,
medos, alegrias, esperanças, inveja, crueldade, bondade, fé, confiança e
de desconfiança de tudo” (Merton, 2019, p. 224).

Em outras palavras, mundo não é o globo terrestre, mas é o amálgama dos


seres vivos que habitam o globo, com suas luzes e suas trevas – pensando
nesse caso mais no mundo dos humanos. E as trevas do mundo – e
da contemporaneidade, lembrando aqui da ideia de Agamben de “ver as
trevas” – não se encontram em sua superfície ou em sua materialidade,
mas, segundo Merton (2018b, p. 16), “no pecado de vontades egoístas
que rejeitaram o amor de Deus”, muitas vezes agindo em nome do próprio
| Teologia Contemporânea | FTSA | 27
Deus. O mundo em trevas, completa Merton, “é o mundo sem amor, o
mundo sem Cristo – um mundo de indivíduos fechados sobre si ou sobre
os interesses comuns de um grupo social ou nacional”. O nó, que muitas
vezes tentamos desatar de modo simplista, é que esse mesmo mundo
“tenebroso” e “decaído” (expressões que Merton usa), também é parte da
criação divina e objeto de seu amor, redenção e reconciliação. O mundo
é tudo isso e, como lembra Merton (2018b, p. 18), “é também o Reino de
Deus no qual Cristo já reina e no qual a história se dirige à sua conclusão
final”. Em linguagem agambeniana, é o lugar no qual se realiza o “tempo-
que-resta” e onde emerge silenciosamente o “tempo messiânico”.

Assim como não é possível pensar numa Igreja fora da pessoa, também
não se pode pensar numa Igreja fora do mundo, já que tanto a Igreja
quanto o mundo são instituições pessoais, por assim dizer. As mesmas
pessoas que compõem e fazem pulsar a Igreja, também compõem e
fazem pulsar o mundo. Os mesmos ódios, medos, esperanças, alegrias,
tristezas, bondade e crueldade que fazem do mundo um mundo, também
habitam no interior da Igreja de Cristo. O mesmo Cristo, universalmente
presente nas entranhas do mundo, é o “Cabeça da Igreja” (1 Co 12.27),
que é seu corpo. Que diferença há, portanto, entre mundo e Igreja? A
consciência, no caso da Igreja, de sua existência somente em Cristo – o
que seria do corpo sem a cabeça? –, e assunção de uma vocação, de
uma tarefa, de uma missão reconciliadora no mundo, a partir de uma
experiência profundamente revolucionária de vida que ela tem em e com
o “Cristo Universal” (De Chardin, 2014; Rohr, 2019). Seu comprometimento
primordial, portanto, não é com qualquer agenda oriunda do mundo e
seus modos de operar, mas (para evocar de novo Agamben) com o seu
“fim”, com a sua “vocação messiânica”, com o reinado de Deus tal como
inaugurado em Jesus Cristo.

Partindo dessa premissa, Merton elege um exemplo do tempo em que


ele escreve o mencionado opúsculo (meados da década de 1960), para
fazer algumas considerações críticas ao que ele chamou de “escola do
ser contemporâneo”. A crítica de Merton, diga-se de passagem, não se
28 | Teologia Contemporânea | FTSA
dirige tanto aos motivos concretos que deram origem a essa escola – crise
da religião tradicional e do teísmo –, mas aos métodos escolhidos para
responder a esta suposta crise. Destina-se aos assim chamados teólogos
da morte de Deus e adeptos de uma forma de cristianismo secular ou
“sem religião”. Esse caminho, como descreve Merton (2018b, p. 24), “pode
ser resumido no kenosismo absoluto religioso [completo esvaziamento
da religião no mundo (acréscimo nosso)], um cristianismo esvaziado
de tudo, mesmo do próprio Deus”. Tanto Deus, como a religião cristã e
sua pregação, haviam se tornado (segundo esta visão) uma afronta à
“maioridade” do mundo, agora entregue à sua própria sorte – ou melhor,
guiada pela ideologia moderna, do progresso e da ciência. Não se torna,
portanto, livre de qualquer profissão de fé, como comentaremos adiante.

Saiba mais: O Teísmo e os “Teólogos da Morte de Deus”


Em 8 de abril de 1966, a revista norte-americana Time, uma das mais
conhecidas e lidas do mundo, trazia na matéria da capa a pergunta:
“Deus morreu?” (Is God dead?). John T. Elson assinou o artigo da
capa, que ele levou cerca de um ano para terminar, tempo que
passou entrevistando líderes religiosos e teólogos do momento. O
artigo sinalizava mudanças significativas que vinham ocorrendo no
Ocidente cristão (especialmente Europa e EUA), e revelou ao grande
público um movimento teológico que ficou conhecido por endossar
a tese da secularização – que postulava, dentre outras coisas, que
a humanidade havia atingido uma maioridade, e, portanto, não
necessitava mais nem de Deus (que estaria morto) nem da religião
nos moldes tradicionais –, por isso foi chamado, dentre outros
nomes, de “teologia secular” e/ou “da morte de Deus”.

Esses teólogos – dentre os quais figuram nomes como Thomas J.


Altizer e William Hamilton, além do britânico John A. T. Robinson
–, inspirados pelas ideias de Dietrich Bonhoeffer (esboçadas em
suas cartas do período da prisão em um campo de concentração

| Teologia Contemporânea | FTSA | 29


nazista), defendiam uma teologia desintoxicada das imagens e
ideias de Deus provenientes do teísmo e da prática cristã tradicional,
que queria falar de Deus em outros termos, de uma maneira nova,
menos transcendente e mais imanente, e que pudesse aproximar
esse Deus propagado pelo “teísmo” – o Deus da providência, que
de longe governa o mundo e dita como as coisas são e têm que
ser aqui embaixo – das mentes e corações de homens e mulheres
vivendo em uma situação secular. Não se tratava propriamente de
mudar quem Deus é, mas de transfigurar sua imagem de modo que
fizesse sentido a esse ser humano moderno e secular. O quanto
dos intentos desses teólogos dos anos 1960 estava realmente em
Bonhoeffer é, no mínimo, discutível.

Em todo caso, a teologia da morte de Deus causou grande


burburinho no meio teológico e algum impacto na cultura, bastante
difícil de mensurar na verdade, mas até o final dos anos 1960 já havia
perdido muito de seu vigor original, graças ao surgimento de novos
movimentos de espiritualidade ao estilo “nova era”, mostrando que
Deus até podia estar morto para alguns acadêmicos, teólogos e
filósofos, mas dificilmente morreria na experiência religiosa de
pessoas comuns. Tanto que, em 1969, a mesma Time, seguindo
as tendências do momento (afinal, o objetivo é vender revista
tanto quanto, ou menos que, formar opinião), lançou um número
cujo título de capa era “Is God coming back to life?” (Deus está
voltando à vida?). O editor à época fez referência ao sucesso da
capa de 1966 sobre a morte de Deus, mas que, naquele instante,
ela se encontrava em declínio uma vez que seus ideólogos haviam
caído em silêncio, enquanto ministros de todas as denominações
embarcavam em novas e dinâmicas maneiras, trazendo o divino de
volta à cena. Emplacar o secularismo nunca foi tarefa fácil, mesmo
depois da “morte de Deus”.
Ver mais em: MENEZES, Jonathan. Filosofia da Religião. Londrina:
FTSA Editora, 2016, pp. 157-169.

30 | Teologia Contemporânea | FTSA


Quanto à Bonhoeffer, Merton faz a concessão de que suas declarações não
devem ser extraídas do contexto em que foram escritas – a experiência
de evolução de seu gênio teológico enquanto preso pelo regime nazista
(prisão da qual, aliás, ele infelizmente não saiu vivo) –, com vistas à
justificar todo um movimento que, segundo ele, pode ter nascido de um
lugar honesto (vide o famoso livro do bispo Robinson, chamado Honesto
com Deus), mas que conduziu a conclusões (ou soluções) generalistas
e enganadoras. Como se o “mundo sem Deus” representasse, de fato, o
mundo de todos os contemporâneos, e não apenas um nicho, cada vez
maior naquele contexto, é verdade, de pessoas decepcionadas com Deus
e com a religião e, ao mesmo tempo, encantadas pelas possibilidades
de respirar um ar puramente secular, livre dos constrangimentos da
transcendência.

A mesma concessão não foi feita por Merton ao bispo Robinson e seus
ímpetos de honestidade com Deus e o mundo. Gostaríamos de apontar
três razões, presentes em seu texto (formuladas por nossa apreensão
do que ele apresenta nestas linhas), que denotam isto e explicam sua
polêmica com esta escola do ser contemporâneo, identificada com
Bonhoeffer e Robinson.

Em primeiro lugar, sua premissa de origem não é nova, nem original. Qual
seja, a de dizer que nossos símbolos, linguagens e imagens de Deus não
dão conta de quem Deus é, ou não comunicam plenamente a realidade
dos mistérios que “nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais
penetrou em coração humano” (1Co 2.9). A tradição da teologia apofática,
também conhecida como “via negativa”, que vem do Pseudo-Dionísio e
dos padres capadócios do século IV, até místicos como o já citado João
da Cruz, De Chardin e o próprio Merton, dentre outros, sempre ensinou
que, “se dizemos que ‘Deus é’, significando que nele há plenitude de tudo
que podemos conceber como Ser, devemos completar dizendo também
‘Deus não é’” (Merton, 2018b, p. 27). Ora, o “Ser” está ao mesmo tempo
além de tudo o que podemos considerar como existindo e é a base de
toda existência. Desta feita, é irrelevante dizer que se acredita ou não na
existência de Deus, pois, de fato, Deus não existe, Deus é.
| Teologia Contemporânea | FTSA | 31
Entretanto, como explica Merton (2018b, p. 27):

Devemos lembrar-nos que esta tradição da negação


mística sempre coexiste, no cristianismo, com a
tradição da teologia simbólica na qual aceitam-se os
símbolos positivos e analogias do ensino teológico tais
como são: aproximações verdadeiras, mas imperfeitas,
que nos levam gradativamente àquilo que não pode ser
propriamente expresso em linguagem humana.

O que acontece, neste caso – e o que, muitas vezes, gerou tanta


rejeição secular a certas teologias e expressões de fé –, é que fórmulas,
símbolos religiosos e artigos de fé são essas formas de acercamento
do incognoscível, que por vezes se esquecem de que são apenas
“aproximações” e não o espelho do divino ou da verdade. Por isso é que
Merton resiste em aceitar a solução proposta por Robinson e outros, de
abandonar os símbolos em razão de seu desgaste – lançando o bebê
fora com a água do banho –, pois é óbvio, para uma fé madura ou adulta,
que símbolos ou fórmulas são “os termos seguros” por meio dos quais
nossa fé no incompreensível se expressa, e não o objeto mesmo dessa
fé. Como completa Merton (2018b, p. 28), “o objeto de nossa fé não é uma
afirmação sobre Deus, mas o próprio Deus a quem a afirmação designa e
que está infinitamente além de qualquer coisa que a afirmação nos pode
levar a compreender ou imaginar”. Podemos revisar, eventualmente,
certas formulações ou afirmações na base da crença, o que não significa
abandonar o caminho da fé. Como reconheceu Merton em outro texto
da mesma época, “sem dúvida, já é tempo de a consciência cristã se
expressar em linguagem contemporânea”, mas a realidade do Eterno,
que transcende a linguagem e os conceitos, “não é em si modificada
pelas mudanças de cultura” (Merton, 2019, p. 266).

Em segundo lugar, não é garantido que tornar-se um cristão “sem


Deus” aproximará os ateístas de Deus, nem é tão óbvio que todos os
contemporâneos sejam incapazes de crer. (Recordemos aqui que
Merton está falando a contemporâneos de outra época e contexto,
32 | Teologia Contemporânea | FTSA
embora algumas afirmações ainda possam ser válidas à nossa época).
Merton expressa aqui uma dúvida sobre aquilo que alguns de seus
contemporâneos mais ansiosos por “ser contemporâneos” pareciam
tomar como óbvio. A dúvida é, por assim dizer, metodológica, e pode ser
endereçada pela pergunta: o que garante que juntar-se aos modernos no
abandono da linguagem tradicional sobre Deus, porém, mantendo uma
crença secreta nele, efetivamente servirá para “religar” (sem nenhuma
forma de religião) essas pessoas a Deus? Merton nos leva a supor com
ele a situação em que essas pessoas agora conseguiram uma audiência
no mundo contemporâneo – e, por um curto período, isso não deixou de
ser verdade, pela relativa popularidade do livro Honesto com Deus, de
Robinson, no Reino Unido, ou pelo rebuliço causado em 1966 pela capa
da Times, já citada –, segue-se então a pergunta: “uma vez que o cristão
ganha audiência, o que prega ele senão Deus, Cristo e a Igreja?” (Merton,
2018b, p. 34). A dificuldade de Merton (um homem da Igreja) estava em
imaginar o que esses teólogos pregariam depois da constatação da
“morte de Deus”. Desta maneira, em seguida ele expressa o que considera
o ponto mais crítico:

Do ponto de vista católico, então, a crítica mais séria


deste admitidamente sincero, caridoso e solícito
cristianismo “sem religião” é que não parece ser cristão.
Não que “religião”, no sentido paulino dos “elementos”
do ritual e adoração humanos, seja necessária ao
cristianismo, mas um certo fundamento ontológico
e teológico é necessário. Para ganhar uma audiência
no mundo moderno, para “ser contemporâneo”, esse
cristianismo dispensa a revelação cristã de Deus, em
Cristo, e aceita o que é, na realidade, um conceito
materialista do homem. (Merton, 2018b, p. 34-35)

Eliminando-se os resquícios da transcendência na cultura a fim de


legitimar de vez a “maioridade” desse ser humano, que nos resta senão
a pura materialidade e a visão científica que a justifica? Isso, porém,
não basta, e os humanismos não nos deixam mentir. É necessária uma
| Teologia Contemporânea | FTSA | 33
base ética que sustente a vida societária a partir de valores humanos, na
medida em que a “nostalgia de Deus” vai sumindo de vista (mas nunca
de vez, como vimos no caso da Revista Times). Onde encontramos essa
base? Ao responder esta pergunta, Merton salienta que “a própria ‘religião-
sem-religião’ ainda se apega a algo que constitui uma ‘mensagem’ – não
é uma religião, não prega Deus, nem a redenção, mas ainda tem um
querigma de amor” (Merton, 2018b, p. 35).

Algumas perguntas surgem daí: “Se podemos dispensar Deus, por que
não o amor? Por que a lógica de kenosis para exatamente onde para?
Não podemos dizer que a fé num Deus vivo, que se revela como amor,
não é mais consistente, afinal?” (Merton, 2018b, p. 35-36). O paradoxo
se faz evidente, na visão de Merton: ao rejeitar a crença em Deus sob a
premissa de uma confiança em si mesmo (maioridade), os modernos
acabaram forjando outro tipo de credulidade, materialista e secular, mas
ainda assim uma forma de crença. E o problema todo, para ele, é que os
cristãos estavam usando “a linguagem dessa ‘crença’ para tornar sua fé
compreensível ao homem moderno” (Merton, 2018b, p. 36), e com isso
abandonando sua “vocação messiânica”, para usar de novo o termo de
Agamben. O que nos conduz à terceira e última razão...

Em terceiro lugar, quando a contemporaneidade, segundo tais ou quais


padrões, se torna um imperativo, “ser contemporâneo” não passa de
mito. A visão de Merton é suficientemente sofisticada para não confundir
“mito” com “mentira”. Como ele explica em nota: “Mito é uma síntese
imaginária de dados e intuições sobre estes, que formam um complexo
interpretativo de ideias e imagens. Esse complexo de ‘valores’ então se
torna central numa visão de mundo, uma norma de julgamento e prática”
(Merton, 2018b, p. 32). Em outras palavras, o mito é o que proporciona
que contemos histórias, que se querem verdadeiras, sobre como
determinadas coisas ou modos de ser vieram à origem. E o ponto é:
cremos tanto em nossos mitos que nem sequer nos lembramos de que
são mitos, isto é, não a própria realidade, mas as lentes que utilizamos
para conferir sentido a ela. E, por serem “sínteses imaginárias”, sem
34 | Teologia Contemporânea | FTSA
necessariamente que reconheçamos que o são, esses mitos têm o poder
de promover urgências e criar necessidades como se fossem realidades
últimas ou absolutos. Uma dessas necessidades, consideradas míticas
por Merton, é justamente a de ser contemporâneo, que para muitos
significa “estar em dia” a fim de não sentir que, de algum modo, sua
existência está sendo diminuída e que “sua imagem começou a desbotar”
(Merton, 2018b, p. 33).

Vimos no tópico anterior alguns significados de contemporâneo a partir


de um diálogo com Agamben. Merton, porém, oferece uma definição que,
segundo ele, justifica o caráter mítico do “ser contemporâneo” em sua
época, motivado, sobretudo, por um incômodo gerado pela pergunta do
bispo Robinson: “Pode uma pessoa verdadeiramente contemporânea
não ser ateia?”. A ansiedade presente nesta frase é o que parece conduzir
Merton à seguinte reflexão:

Ser contemporâneo é ser reconhecido “em dia” num


mundo em rápida aceleração, onde não só os gostos,
mas toda a visão da arte, da ciência, da filosofia, da
literatura e da religião é revolucionada cada três ou
cinco anos [hoje, em pleno século XXI, muitas destas
“revoluções” ocorrem em menos tempo, vide, por
exemplo, o que acontece com a tecnologia em questão
de meses (acréscimo nosso)]. Ser contemporâneo
é manter o seu lugar, sobreviver num altamente
organizado e trepidante dinamismo do efêmero. É
um tipo de existencialismo da moda, em que não
há fundamento firme e ontológico do ser, mas só o
constante e imprevisível fluxo da existência. O que
importa é estar bem harmonizado com os sinais mais
leves que indicam a próxima revolução de ideias,
para que se possa continuar a fazer a opção certa,
isto é, contemporânea – no momento exato. Basta
um pequeno erro de tempo, e alguém não é mais
perfeitamente contemporâneo. Naufraga-se no fluxo de
| Teologia Contemporânea | FTSA | 35
decisões efêmeras e se é superado por outros que têm
a habilidade de permanecer contemporâneos. (Merton,
2018b, p. 33)

À luz da passagem acima, as perguntas de Merton continuam ecoando


ainda hoje: Que preço precisamos pagar para conseguir uma audiência
em nossa época, em nosso contexto, contemporâneos? O que é
necessário sacrificar para “estar em dia”, para ser considerado relevante
e “verdadeiramente contemporâneo”? E o que garante que decisões
tomadas no ímpeto da urgência, da necessidade e sob o signo da
efemeridade nos levarão ao topo hoje e nos protegerão de não sucumbir,
por um pequeno deslize cronológico, à próxima “revolução” que emergirá
amanhã? Esse parece ser precisamente o “calcanhar de Aquiles” dessa
escola do ser contemporâneo: quando ser contemporâneo – segundo os
ditames desta escola – é a motivação primeira para o que fazemos, pode
ser que em breve percamos o rumo de nossa vocação em incessantes
tentativas de seguir o que é tendência ou o que está na “ordem do dia”.
Porque “estar na moda” ou “ser relevante” são condições tão fugazes
quanto à própria moda ou a definição de relevância – a fama do
movimento da “teologia da morte de Deus” nos anos 1960 que o diga.

Ademais, como ressalta Merton (2018b, p. 36), “quando alguém está


por demais preocupado em ‘ser verdadeiramente contemporâneo’,
pode talvez desviar-se em seu julgamento ‘do que é e do que não é
contemporâneo’” – como ele acredita ter sido o caso do bispo Robinson.
Numa primeira instância, porque há muito mais gente dentro desse
“contemporâneo” do que muitos daqueles que são movidos pela
urgência de ser contemporâneos estão aptos a reconhecer. Merton, no
caso, não estava disposto a admitir em seu leque de opções vocacionais
o requisito de que, para ser “verdadeiramente contemporâneo”, era
necessário aderir à morte de Deus ou a uma “religião-sem-religião”.
Mais do que isso, ele acreditava que muitas pessoas inteligentes de sua
época, incluindo cientistas e formadores de opinião, haviam recebido
o dom da fé e percebido a sabedoria escondida no velho dito: “creia e

36 | Teologia Contemporânea | FTSA


compreenderá”. Isso não fez delas pessoas menos contemporâneas. A fé
pode ser revestida de uma “linguagem contemporânea” a fim de se tornar
comunicável? Merton admite que sim. Mas, para isso, ainda é preciso
crer. Numa segunda instância, porque são justamente os pequenos
traços de desarmonia, esses “pequenos erros de tempo”, e uma evidente
dessintonia com os ditames de sua época que podem fazer emergir em
nós o “ser contemporâneo” como ser intempestivo – tal como vimos
pelos significados para “contemporâneo” apresentados por Agamben.

Nesse sentido, o diálogo com Merton neste último tópico foi interessante
não tanto pelos exemplos por ele escolhidos como objeto de sua crítica
– não negamos aqui, por sinal, o mérito e a importância da obra do bispo
Robinson, muito menos a de Bonhoeffer –, mas pela exemplificação na
prática, isto é, por meio da práxis de Merton como monge contemplativo e
escritor do século XX, das teses sobre o que significa ser contemporâneo
apresentadas por Agamben. Sua trajetória, aliás, não somente suas
ideias, perfaz o que chamamos aqui de uma “coincidência inconformada”:
desempenhar sua vocação no mundo coincidindo (isto é, incidindo junto,
encontrando-se) com as questões candentes de sua época sem, no
entanto, conformar-se com todos os seus meandros.

Voltando a um tema que vimos em Agamben, somos todos habitados pelas


“trevas” de nossa época, mas (biblicamente falando) tão somente para nela
“manifestar a glória dos filhos de Deus” (Rm 8.19). E, já que trouxemos o
apóstolo Paulo de novo à conversa, convém terminar com suas conhecidas
palavras em Romanos, que indiretamente inspiraram toda a reflexão sobre
“ser contemporâneo” apresentada aqui do princípio ao fim:

Não imitem o comportamento e os costumes deste


mundo, mas deixem que Deus os transforme por meio
de uma mudança em seu modo de pensar, a fim de que
experimentem a boa, agradável e perfeita vontade de
Deus para vocês. (Rm 12.2, NVT)
| Teologia Contemporânea | FTSA | 37
Referências bibliográficas
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2012.
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38 | Teologia Contemporânea | FTSA


Discografia
GABRIEL O Pensador. Palavras Repetidas. Álbum: Cavaleiro Andante. Rio
de Janeiro: Sony BMG, 2005.

JOHN Mayer. Sob Rock. Album. New York City: Columbia Records, 2021.

Webgrafia
AGAMBEN, Giorgio. Cristianismo como religião: a vocação messiânica. In:
IHU On-line, 25 de Maio 2017. Disponível em: <http://www.ihu.unisinos.
br/174-noticias/noticias-2010/567993-cristianismo-como-religiao-a-
vocacao-messianica-artigo-de-giorgio-agamben>. Acesso em 17 Julho
2021.

APPLE Music. John Mayer: ‘Sob Rock’ and Implanting False


Memories. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=r7W8E1tp97A&t=1371s>. Acesso em 16 julho 2021.

| Teologia Contemporânea | FTSA | 39


Unidade II - Pessoa
Introdução
Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos;
de nós mesmos somos desconhecidos – e não
sem motivo. Nunca nos procuramos: como poderia
acontecer que um dia nos encontrássemos?.
(Friedrich Nietzsche)

Uma vida interior profunda é a base de toda vida


exterior fecunda. (Maria Clara Bingemer)

Vamos iniciar essa unidade falando sobre a alma, que aqui definimos
como a habitação de nosso ser mais profundo, onde nossos anseios e
desejos mais primordiais são originados e que, obviamente, se realiza em
um corpo (para não reforçar dualismos). Corpo que sente, sofre, padece
e, também, se revitaliza a partir do que acontece no interior ou na alma,
afinal, somos um todo interligado. É na e através da alma que sentimos
e pulsamos Deus com mais vivacidade, como também onde sofremos
a angústia de seu silêncio e aparente ausência. A alma é o esconderijo
de nosso verdadeiro ser, de nosso ser destituído das pretensões e das
ilusões do ego – o que é o ego e o verdadeiro ser será matéria de nossa
conversa adiante. Então, o que designamos como “alma”, aqui, receberá
outros nomes ao longo dessa abordagem, tais como “verdadeiro-eu”,
“verdadeiro si-mesmo”, ou nosso “eu mais profundo”.

Essa preocupação nasce de uma observação da realidade e da


constatação de que estamos vivendo neste tempo as consequências
do alvorecer daquilo que Jesus alertou ser um perigo há dois milênios,
através da pergunta: “Pois, que adianta ao homem ganhar o mundo
inteiro e perder a sua alma?” (Mc 8:36).

A humanidade vem “ganhando o mundo” de modo avassalador nos


últimos séculos e, até por isso, vem também perdendo o mundo. Já não
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estamos mais seguros de por quanto tempo esse mundo vai durar (ou,
pelo menos, de quanto tempo sobreviveremos nele), porque esgotamos
cada vez mais irresponsavelmente seus recursos – daí todas as conversas
importantes, que vêm sendo travadas ultimamente, sobre ecologia e
sustentabilidade (que, aliás, trataremos na terceira unidade desse curso).
E, enquanto nos mantivermos suficientemente ocupados fazendo isso,
isto é, dominando o mundo com outras pessoas e, também contra os
melhores interesses delas mesmas – refiro-me àquelas pessoas mais
empobrecidas e vulneráveis –, também vamos nos esquecendo de habitar
nosso interior e fazer a lição de casa que tem nos esperado ali desde
que tomamos consciência de nossa existência. De modo que, como
consequência dessa negligência, o mundo “ganho” é um mundo cada vez
mais difícil, conflituoso e menos habitável de um modo saudável. Nos
esquecemos, como alertou Maria Clara Bingemer (2018, p. 8) na epígrafe
dessa unidade, que a vida exterior fecunda depende do quão profundo
resolvemos ir interiormente.

E porque resolvemos nos manter distantes de nosso interior, já não


sabemos mais tratar com a devida probidade e profundidade das
questões da alma. Como diz Nietzsche (2007, p. 7), nos tornamos
estranhos a nós mesmos porque desistimos de nos procurar. Ou,
como disse alguns séculos antes Teresa de Ávila (2014, p. 18, grifo
meu): “Não pequena lástima e confusão é não nos entendermos a nós
mesmos, por nossa culpa, nem sabermos quem somos”. Exatamente:
e continua sendo nossa culpa. A sociedade da medicalização, do bem-
estar e do culto à saúde, como entendo ser esta em que estamos nos
fazendo, oferece assim cuidados para “males” que ela nem sequer tomou
consciência, pois tampouco se preocupa em compreender suas raízes.
Como corolário, ela medica, mas não cura; trata, mas não liberta; alivia
as consequências sem fazer a devida exploração holística das causas.

Nesse horizonte, não pode ser menos importante perguntar: afinal, quem
é a pessoa humana, isto é, quem sou eu, quem é você? Não pretendemos,
nem nesta unidade dedicada a isso ou mesmo ao longo do curso, dar a
resposta sobre quem você é, mas compartilhar alguns achados como
pessoas que também estão em busca.
| Teologia Contemporânea | FTSA | 41
Objetivos da unidade
1. Reconhecer a importância da noção de “ego” para entendimento da
pessoa e diferenciar as noções de “verdadeiro” e “falso eu”;

2. Fundamentar biblicamente a importância da construção de uma


autoimagem redimida ou saudável;

3. Refletir criticamente sobre seu lugar como pessoa, criada à imagem


e semelhança de Deus, numa sociedade do cansaço.

2.1. A pessoa entre o verdadeiro e o falso “eu”


Thomas Merton, um dos maiores místicos do século passado, apresenta
em sua obra uma distinção muito importante para que reflitamos
sobre nossa identidade ou a questão do “si-mesmo”. É a distinção
entre o “verdadeiro” e o “falso” si mesmo. Antes, cabe indagar: em que
contexto Merton apresenta essa ideia? Em seu livro Novas sementes de
contemplação (1999), Merton pontua que uma dessas “sementes”, que
nos conduzem à vida contemplativa, está na consideração das coisas a
partir de sua identidade, ou seja, do que elas são em sua essência em
contraste com o que são em sua aparência. “Uma árvore”, por exemplo,
“glorifica a Deus sendo uma árvore”, de modo que, “quanto mais uma
árvore se assemelhar a uma árvore, tanto mais se assemelhará a Deus”
(Merton, 1999, p. 37). O contrário também é verdadeiro: caso tente se
assemelhar a outra coisa que não ela mesma, não respeitando e realizando
sua natureza arbórea, menos glória dará a Deus e mais distante Dele
permanecerá. Isso é o que Merton chamou de “santidade das coisas”,
que reside na qualidade delas serem elas mesmas e não outras, de modo
que não há nada que se iguale a elas nem na terra ou nos céus. Santidade
é sinônimo de singularidade.

Ora, sabemos que a mensagem bíblica diz que Deus é Santo: “Mas, assim
como é santo aquele que os chamou, sejam santos vocês também em
tudo o que fizerem, pois está escrito: ‘Sejam santos, porque eu sou santo”
(1Pe 1.15-16). Dizer, em primeiro lugar, que “Deus é santo” é o mesmo
42 | Teologia Contemporânea | FTSA
que dizer que Ele é único: incomparável, está “acima de todo nome”,
não há outro igual a Ele, que não é e nem pode ser idêntico a outros
deuses, tampouco às formas, fórmulas ou nomes que tentam descrevê-
lo. E recomendar, em segundo lugar, que “sejamos santos como Deus é”
significa aceitar este “sim” gratuito de Deus e ser único, singular, como
é o Deus que nos deu essa vida. Afinal, não há nenhum outro ser vivente
ou pessoa que seja idêntica a mim no universo. Por que razão macularei
a santidade da vida tentando representar um personagem, imitar outro
alguém ou ser quem não sou? Isto tem nome, chama-se “pecado” ou
traição à santidade. Na definição de Merton (1999, p. 39), portanto, “ser
santo significa ser eu mesmo”, o que não é possível senão na comunhão
entre caridade (amor) e graça. Isso, por outro lado, engendra uma dupla
relação com a minha humanidade: (1) ser santo é assumir-se como ser
humano: a santidade se realiza na humanidade (como quero discutir mais
detidamente na próxima aula); e (2) ser santo é também ser mais que
humano: a santidade é aquilo que a humanidade, sozinha, não realiza.

Mas o que o ser humano, sim, realiza no gozo relativo de suas liberdades
é o ato de decisão sobre o que ou quem será na vida, o que inclui a
decisão sobre se deseja ou não se aprofundar no conhecimento de quem
é, habitando conscientemente seu interior, ou permanecer apenas na
superfície, como turista em sua própria vida – frequenta seus espaços
sem nenhum compromisso com a transformação deles; ou gravita
apenas na “circunferência” da vida sem tomar a jornada que conduz até
o “centro” da vida, tornando-se pessoas excêntricas (literalmente fora
do centro) e não centradas, como postulou Richard Rohr (2003, pp. 13-
27). Como salienta Merton (1999, p. 39), “temos a liberdade de ser reais
ou irreais. Podemos ser verdadeiros ou falsos; a opção nos pertence.
Podemos usar ora tal máscara, ora outra e nunca, se o desejarmos,
aparecer com o nosso verdadeiro rosto”. Assim, o problema da santidade,
para Merton, necessariamente evoca o problema, que vimos enunciando
desde o início desta unidade, da “procura de quem sou e da descoberta
de meu verdadeiro ser” (idem).
| Teologia Contemporânea | FTSA | 43
Nesse contexto, Merton apresenta suas noções de “eu” verdadeiro e
falso. Segundo ele, cada um de nós é acompanhado pela “sombra” de
uma pessoa ilusória ou de um “eu falso” ou “falso si-mesmo”. O eu falso é
o ser humano que eu quero ser, e todas as suas ornamentações externas
(identidades, títulos e posições provisórias às quais este “eu” se agarra
a fim de se afirmar, para si e para os outros), mas que “não pode existir,
porque Deus não o conhece” (Merton, 1999, p. 42). Rohr (2010, p. 12)
afirma que esse “eu” é um “self separado” (de Deus e das outras pessoas),
pois escolhe viver “a partir da divisão, tem a necessidade de expor-se,
colocar-se em cena, supervalorizar-se, incensar-se”. Você certamente
conhece alguém assim ou, se exercitar a coragem da honestidade, talvez
se reconheça um pouco nesta descrição. Não confundamos, porém, a
separação aqui em jogo com um mero apartar-se solitário. Para que o
self-separado seja é necessário que outros (Deus e o próximo) não sejam,
que é a definição que C. S. Lewis (2005, p. 162) deu para orgulho, e por
isso ele o chamou de “estado mental mais oposto a Deus que existe”.

A autocontradição evidente desse eu falso é que ele pode aparentar


autossuficiência, mas na realidade “é carente e frágil por natureza”, pois
“depende das coisas externas a si mesmo e delas espera sua felicidade”
(Rohr, 2010, p. 26). Por isso nunca está contente e sua existência é pura
ilusão, pois está desligado de si mesmo, uma vez que, de acordo com
Rohr (2010, p. 22), ela se centra no ego, que é algo que todos temos:
uma percepção equivocada de quem somos ou “um sentido ilusório da
identidade”, como o definiu Eckhart Tolle (2007, p. 30).

Para não nos estender demais neste ponto, o que une esses três autores
(Merton, Rohr e Tolle) é a percepção de que existe um “eu” que antecede
todas essas identificações em torno das quais nossa identidade se formou,
antes que começássemos a interpretar papéis e a desempenhar funções
e anos aferrar tanto a elas, transformando-as em ídolos muitas vezes. Um
“eu-infantil”, uma parte de nós “que sempre disse sim a Deus, e sempre
dirá” (Rohr, 2010, p. 32), é aquela que Merton chamou de “eu” verdadeiro:
o ser que eu sou em Deus, escondido em seu amor desde a eternidade.
44 | Teologia Contemporânea | FTSA
Quando se torna adulto, porém, “o homem abandona o jardim”. Como
diz Rohr (2010, p. 21), “de forma cada vez mais crescente, o ser humano
participa nos dramas da existência, desempenha papéis e assume uma
identidade proposta por seus pais e pelo mundo circundante”.

Isso não é algo necessariamente ruim, faz parte da experiência humana;


até porque, como diz Rohr (2010, p. 25), “o verdadeiro e o falso si-mesmos
dançam mutuamente”. Não podemos querer expulsar ou exorcizar um
sem prejudicar o outro. O problema maior, a nosso ver, começa quando
acreditamos que nosso ser se resume a essa identidade exterior, ou
quando mobilizamos todos os recursos de que dispomos para nos tornar
“alguém”, e, para isso, precisamos negociar a alma e perder de vista Deus
e quem realmente somos Nele.

A libertação do ego começa quando: (1) Tomamos consciência do ego,


do “eu-falso” e de sua agenda; (2) Identificamos aquilo que nesta agenda
se encontra em rota de colisão com a vontade de Deus, expressa em
sua Palavra; (3) Decidimos não mais viver uma vida “dedicada ao culto
dessa sombra”, que Merton (1999, p. 42) define como “vida de pecado”;
e, finalmente, (4) buscamos através da vida na fé e da contemplação
conhecer quem nós realmente somos em Deus, com o auxílio do Espírito.

Grande parte dos problemas da vida espiritual são, portanto, esclarecidos


com a lenta, porém gradual, libertação do verdadeiro eu das cadeias
| Teologia Contemporânea | FTSA | 45
do falso. Chamamos isso de “maturidade cristã”. Isso significa que
precisamos diariamente fazer o trabalho interior e passar por uma
kenosis ou o auto-esvaziamento das dimensões superficial e identitária
do “eu”, para encontrar sua dimensão profunda. E aqui vem uma longa e
importante passagem nas reflexões de Merton:

A tarefa de encontrar a nossa própria identidade em Deus,


que em linguagem bíblica é “operar a nossa salvação”,
é um trabalho que requer sacrifício e angústia, risco e
muitas lágrimas. Exige atenção rigorosa à realidade,
a cada instante, e grande fidelidade a Deus, tal como
ele se revela a nós, obscuramente, no mistério de cada
nova situação. Não sabemos com nitidez, de antemão,
qual será o resultado desse trabalho. O segredo de
minha identidade plena está escondido nele. Só ele
pode fazer-me o que sou, ou melhor, quem serei quando,
enfim, começar a ser de fato. Mas, a não ser que eu
deseje essa identidade e trabalhe para encontrá-la, nele
e com ele, jamais será a obra realizada. A maneira de
realizá-la é um segredo que só posso aprender dele e
de mais ninguém. Não há outra maneira de conseguir
esse segredo a não ser pela fé. Mas a contemplação é
o maior e mais precioso dom, pois ela me torna capa
de ver e compreender qual o trabalho que Deus quer ver
realizado. (Merton, 1999, p. 40-41)

Líderes cristãos, especialmente, devem aprender algumas lições


importantes dessa reflexão de Merton – afinal é tarefa deles (nossa) a
transmissão dos saberes e do encorajamento às mulheres e homens
de fé da comunidade para que realizem esse mesmo trabalho em
suas próprias vidas, pois essa é uma responsabilidade de cada um(a)
e verdadeiros ministros da cura sabem disso, e, com essa consciência,
afastam a pretensão messiânica de controlar o processo de cura na vida
de outras pessoas.

46 | Teologia Contemporânea | FTSA


A primeira lição é que este é um trabalho que trará alguns sofrimentos,
pois “quem aumenta o conhecimento” (sobre si mesmo) “aumenta a
dor”, parafraseando Eclesiastes 1:18. A segunda lição é que a realização
desse trabalho parte de uma decisão voluntária, como a do Cristo que
voluntariamente decidiu percorrer o caminho da cruz, que gera vida. Não
desejamos a dor, como o Cristo também não o desejou, mas sabemos
que toda cura verdadeira envolve alguma dose de dor. A terceira lição é a
de que não existem garantias cósmicas de que os frutos desse trabalho
aparecerão ao primeiro olhar. Faz-se necessário, na maior parte das
vezes, um olhar demorado, que é o olhar da contemplação, capaz de nos
revelar verdades que a primeira impressão ou olhar normalmente não
revela. A quarta lição é a de que esse trabalho só pode ser realizado em
e com a ajuda de Deus, por meio da fé e do maravilhoso dom da vida
contemplativa, que ajudam a desbancar até mesmo os disfarces religiosos
que o falso si-mesmo utiliza para se proteger, como bem lembra Rohr
(2015, p. 35, trad. minha): “Não há maneira mais inteligente para o falso
eu se esconder do que por trás da máscara da espiritualidade. E quanto
mais madura a máscara espiritual aparentar ser, mais perigosa ela será”.
Essa é uma das diferenças que a contemplação promove nos ajudando
a desconfiar das aparências, começando sempre em nós mesmos antes
que nos outros, como nos ensinou Jesus:

Por que você se preocupa com o cisco no olho de seu


amigo enquanto há um tronco em seu próprio olho?
Como pode dizer a seu amigo: “Deixe-me ajudá-lo a tirar
o cisco de seu olho”, se não consegue ver o tronco em
seu próprio olho? Hipócrita! Primeiro, livre-se do tronco
em seu olho; então você verá o suficiente para tirar o
cisco do olho de seu amigo. (Mt 7:3-5, NVT)

Precisamos, assim, rogar para que o Senhor abra os olhos do nosso


coração e nos permita enxergar-nos como Ele nos enxerga, ainda que
de relance ou parcialmente, como sugeriu o apóstolo Paulo (1Co 13:12);
a fazer o duro, mas necessário trabalho de perscrutar nosso interior e a
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ter com nossas sombras a fim de deixar que luz penetre a escuridão de
nossos corações muitas vezes empedernidos e secos, embora sedentos
de transformação. E, mais do que isso, que nos possibilite aprender a
amar-nos como Ele ama – caminho que passa pela redenção de nossa
autoimagem, assunto do próximo tópico.

2.2. A pessoa e sua autoimagem


O resgate ou a salvação de nossa autoimagem é o primeiro passo quando
desejamos assumir o verdadeiro eu e deixá-lo cumprir sua função,
conforme criado e abençoado por Deus. Mas, se achamos que a teoria
pode ser complicada, a prática pode ser ainda mais. Isto porque, como
já vinham advertindo alguns teólogos como Claus Westermann (2004)
e Albert Nolan (1987), o afastamento que a humanidade vem tomando
do propósito criacional durante sua existência e, mais especificamente,
o descaso que os cristãos apresentam com a narrativa da criação, faria
com que os problemas sociais, políticos, humanitários, sanitários e
quaisquer outros, se tornassem problemas a serem resolvidos em nível
global. O ser humano, por toda parte do planeta, já não sabe mais quem
é, tampouco para que é, e todas as fugas possíveis acabam, na verdade,
levando-nos ao caos pessoal e comunitário.

Diante disso, e considerando que o caos implica na deturpação da


autoimagem e na criação do personagem, vivendo constantemente o
falso eu, nossa proposta não é apenas oferecer conceitos sobre este
tema, acima de tudo a ideia é que este ensino seja apto para se tornar
vivência e seja apto, portanto, a oferecer possíveis pontos de partida
para que cada um trilhe seu caminho rumo ao verdadeiro eu. Um deles
é o reencontro do que chamaremos agora de eu-humano, à imagem
e semelhança do criador. Ser totalmente humano é, deste modo, ser
totalmente integro enquanto imagem e semelhança de Deus. O outro é a
conscientização sobre o que faz esse eu-humano uma pessoa completa
e feliz. É por meio deste reencontro e desta conscientização que nos
tornamos capazes de enxergar, sem borrões, nossa autoimagem.
48 | Teologia Contemporânea | FTSA
Antes de iniciarmos, cabe destacar que vivemos tempos de alto
pessimismo em relação à figura humana, o que pode atrapalhar muito
nossa tarefa de reencontro do eu-humano. A sociedade da saúde, do
status, do culto ao corpo, relatada no tópico anterior, é a mesma sociedade
que adoece interiormente, com depressões, síndromes, vícios e por aí vai.
Não nos aprofundaremos muito neste sentido, pois isso será contemplado
no próximo tópico. Mas a ambivalência existente nesse cenário é capaz
de demonstrar o quão perdido estamos enquanto seres humanos
em nossa existência terrena. E quanto mais buscamos a perfeição do
corpo, a perfeição da imagem, a perfeição dos bens materiais, mais
vemos destruições, guerras, brigas, indiferença e divisão, e neste ponto
em específico, qual seja o resultado dessa ambivalência, encontramos
o alto pessimismo em relação à figura humana. A consequência é um
repúdio a diversos comportamentos e sentimentos que são naturais e
que fazem parte do eu-humano, sendo que muitos desses sentimentos,
comportamentos e necessidades são saudáveis para nós e negligenciá-
los nos impede de acessar nossas camadas mais profundas.

Além disso, podemos perceber que afirmações como “é fim dos tempos”,


“o ser humano não tem mais jeito”, “o mundo está podre”, “o ser humano
não tem nada de bom mesmo”, dentre tantas outras, são afirmações
comuns, principalmente no meio religioso, em que os discursos
assumem uma esperança futura que descarta o corpo físico (do qual a
alma faz parte) e o tempo presente, renunciando a qualquer redenção do
eu, bem como ignorando a visão que o próprio Deus tem de sua criação.
O que nos leva a sustentar cada vez mais o personagem criado, o falso
eu, numa dinâmica que parece encobrir nossas frustrações e vazios,
parece silenciar o caos e o barulho interno, nos fazendo crer que a melhor
opção é manter o eu na escuridão. A verdade é que essas dinâmicas não
são capazes de curar, salvar, apaziguar e libertar o eu verdadeiro. Pelo
contrário, elas nos fazem acreditar que não há nada de bom em nós e,
por isso, devemos deixar nosso eu-humano o mais enterrado possível.

Diante desse pessimismo em relação ao eu-humano, que se dá ao


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mesmo tempo em que há uma idolatria do eu-objeto (personagem), torna-
se imperiosa uma reconstrução da autoimagem. Para dar início a ela, é
indispensável passar pelo tão conhecido texto bíblico de Gênesis 1.26.

Todos nós, em nossa vivência cristã, já ouvimos ou já lemos que fomos


criados à imagem e semelhança do próprio Deus. Porém, as reflexões e
os estudos sobre o que isso significa são poucos. Enquanto, na verdade,
essa é uma das declarações mais fundamentais para vida cristã e para
vida humana em geral. Isto porque, qualquer teologia que se forme ao
redor de um tema, como são as teologias contemporâneas e os temas
contemporâneos que demandam respostas teológicas, têm por trás
delas problemas existenciais. Melhor dizendo, têm problemas que se
formaram quando o ser humano já não mais se enxergou como imagem
e semelhança do seu Criador, quando o ser humano preferiu se cobrir, se
esconder de Deus, do outro e de si mesmo (Gn 3:7-11).

Explicando melhor as consequências desse desconhecimento sobre quem


somos, podemos dizer que, conforme os textos de Gênesis 1 e 2, Deus
cria um espaço paradisíaco, em que a fauna e flora funcionam de forma
harmônica e perfeita. Neste espaço tudo está equilibrado e cumprindo
plenamente suas funções. O caos, mencionado logo no primeiro versículo
do capítulo 1, está agora organizado e o vazio está preenchido. Neste
cenário o ser humano é colocado em condição superior às demais
criaturas, pois é o ser humano quem deve manter esta organização, quem
deve dar continuidade ao trabalho iniciado por Deus. Para que isso fosse
possível, Deus espelhou a si mesmo na criação do ser humano, tanto
macho quanto fêmea, como diz o texto. Desta forma, “estavam nus, e
não se envergonhavam” (Gn 2:25), pois viam-se como iguais, sabiam
exatamente quem eram e para que eram. Não havia um padrão a alcançar,
não havia um status a buscar, não havia disputa, hierarquia, nem bem,
nem mal. Eram apenas humanos, que se aceitavam em suas condições e,
portanto, aceitavam o outro em suas condições também.

Mas a partir do momento em que a humanidade foi tomada pelo desejo


de ser Deus, o eu-humano se desencontrou de si, do outro, da criação
50 | Teologia Contemporânea | FTSA
e do criador. Gênesis 3 relata bem esse cenário de desarmonia. A busca
por cumprir o propósito divino de cuidado e continuidade na harmonia e
no bem-estar deu lugar à busca por poder e domínio do outro. O homem
passa então a dominar a mulher (Gn 3.16), o trabalho de cuidado e cultivo
da criação, que resultaria em alimento necessário e em um habitat
equilibrado, passa ser um trabalho pesado e sofrido, pois é um trabalho de
quem deseja sempre mais, de quem deseja consumo exagerado, de quem
deseja explorar para crescer, de quem deseja disputar para tirar do outro
(Gn 3.19). O eu-humano enxergando-se como eu-divino, autossuficiente,
capaz de julgar, determinar e até mesmo recriar, perde-se dentro de si.

Muitos leem o texto de Gn 3:14-22 como um texto de castigo. Mas é


preciso lembrar que esse texto é escrito a partir de uma realidade religiosa,
neste caso judaica, e ganha contornos próprios desta religião. O Deus
castigador se faz presente no texto quando editado por seus redatores que
assim criam. Mas Jesus já nos mostrou o contrário. Deus, não é um Deus
de castigo, mas de amor e compaixão. Além disso, é consenso entre os
biblistas, que o texto de Gênesis 1-3 é o texto antigo sobre a criação mais
rico em detalhes que existe no antigo oriente e é um texto universal (Kidner,
2001, p. 13). Nele, Deus não cria os hebreus, os israelitas e os judeus, Deus
cria a humanidade à imagem e semelhança de si. Por isso, apesar dos
contornos que Gênesis 3:14-22 pode trazer, o texto à bem da verdade é
apenas um reflexo das consequências naturais do eu-humano perdido,
que esqueceu sua autoimagem e criou para si um super-herói, que precisa
sempre sustentar o que não é, para esconder-se de quem é.

Voltando à questão da universalidade do texto, ela não revela


apenas que Deus criou todos os seres humano. A questão é mais
profunda e fundamental ao resgate da autoimagem. O texto revela que,
sendo imagem e semelhança de Deus, tudo o que contém em nós, antes
de tudo, contém em Deus. Portanto, todas as raças, todos gêneros, todos
contornos faciais, todas as cores de olhos, todos os tipos de cabelo,
todas as alturas, todas as formas de falar, de andar, de cantar, de dançar,
todas as vozes, sorrisos, olhares, tudo o que é natural, antes de estar
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no humano, está nele. Ele é o portador de todas as belezas naturais que
existem em nós e isso é o primeiro entendimento necessário para um
encontro com o eu-humano, com o mais profundo e verdadeiro eu. Mas
não só isso, a imagem e a semelhança não estão somente na forma física.
A alma, mencionada no tópico anterior, é parte da imagem e semelhança
de Deus. A alma é consciência da nossa capacitação ao cuidado e ao
cultivo. Em Gênesis 1:26 Deus cria macho e fêmea e os abençoa para que
cuidem e multipliquem aquele estado paradisíaco. Todos, sem exceção,
são capazes. Sendo assim, ainda que nossos sentimentos e desejos
tenham sido tomados por esse desejo de ser mais, maior, dominador do
outro, julgador, independente, de ser conhecedor do bem e do mal como
Deus é, ainda assim, dentro de nós existe o eu-humano capaz de controlar
tais desejos, capaz de cuidar e multiplicar a harmonia, capaz de se manter
dependente do criador, capaz de enxergar o outro e não ver diferença, pois
sabe que nus não têm do que se envergonharem. São equivalentes. Existe
o eu-humano que sabe que o trabalho equilibrado não sacrifica o corpo, o
trabalho equilibrado apenas mantém o corpo, e sabe que a plenitude da
vida está nos pequenos detalhes das coisas criadas por Deus e não nas
fortunas e na beleza das coisas criadas pelas mãos humanas.

Mantendo isso em mente, precisamos retornar ao assunto do


pessimismo humano. Diante de todo esse relato da criação, acreditar
que esse eu-humano não existe mais, e que agora tudo o que há de mais
profundo em nós é sujeira e podridão, é assumir que Deus não é Deus e
que o mal está acima dele. Nas palavras de Albert Nolan (1987, p. 125)
“qualquer um que acredite que o mal vai ter a última palavra, ou que o bem
e o mal têm cada um cinquenta por cento de possibilidades de vencer,
é ateu”. Segundo ele “acreditar em Deus é acreditar que o bem é mais
poderoso que o mal e que a verdade é mais forte que a mentira”. Ou seja,
podemos então dizer que acreditar em Deus é acreditar que aquilo que ele
nos criou para ser é mais forte do que o que a sociedade nos exige ser, e
que o eu-humano escondido atrás do eu-objeto pode ser resgatado, pode
ser vivido, tem força suficiente para derrotar o personagem. E crendo em
52 | Teologia Contemporânea | FTSA
Deus, é preciso crer que o verdadeiro eu é melhor que o personagem, ele
é bom, é suficiente e capaz, exatamente como ele é.

Perceber-se assim, sem toda a capa colocada pelas exigências


contemporâneas, e enxergando-se simplesmente como um ser real,
dependente daquele que o criou e, portanto, satisfeito com o que é
e com o propósito que recebeu, as ambivalências que surgem entre a
performance do personagem e o sentimento da alma, começam a se
dissipar, dando lugar à razão e à consciência de que assim como o Reino
de Deus está em nós, a harmonia e plenitude vista no paraíso do Éden,
também está em nós, está no mais profundo do eu, o eu-humano. Ainda
usando os ensinamentos de Nolan, aprendemos que:

Existe no mundo uma força dirigida para o bem, um poder que se


manifesta nos impulsos e forças mais profundos existes no homem e
na natureza, poder que é, em última análise, irresistível. Se Jesus não
acreditasse nisso, não teria tido nada para dizer. (Nolan, 1987, p. 125)

Jesus é sem dúvida o mais belo e vivo exemplo de uma autoimagem


imaculada. Ele jamais corrompeu sua autoimagem, eu verdadeiro
eu, seu eu-humano – ainda que neste último ponto pudesse fazê-lo já
que era divino também – para aceitar o eu-objeto, aquele que precisa
ser sustentado e moldado conforme os padrões sociais. Nos tempos
de Jesus a religião moldava esse padrão. Em nossos tempos, além da
religião, temos as redes-socias, um dos maiores inimigos do verdadeiro
eu. Apesar de terem ótimas serventias, as redes sociais também são
capazes de se tornar um meio de destruição para aqueles que a utilizam.
Mas, assim como Jesus, o bem que há em nós, aquele que é modelo
primário de nossa formação, que é o próprio Criador, é mais forte e
resistente que todos os outros modelos, e cabe a nós acessá-lo por meio
do eu-humano.

A partir do momento em que aceitamos nossa imagem, que


ressignificamos nossas buscas e ideais, nossas crenças e valores, a
respeito de nós mesmos, do outro e do mundo, alcançamos a salvação,
| Teologia Contemporânea | FTSA | 53
ou seja, a libertação, de uma autoimagem deturpada e corrompida,
passando a viver a partir de uma autoimagem segura e bem definida.
Essa será uma das maiores respostas às grandes temáticas atuais,
como a luta pela igualdade de gêneros, a luta contra o racismo, contra a
homofonia, a luta contra a desigualdade social, contra a escravidão etc.
Essas são as formadoras de algumas das teologias contemporâneas,
como a teologia da libertação, teologia feminista, teologia negra e por
aí vai. Nelas todas, a primeira resposta teológica necessária é o resgate
da autoimagem, tanto daqueles que estão sendo oprimidos e lutando
por seus direitos e dignidade, quanto para os seus opressores, que não
devem sair da condição de opressores para oprimidos, mas devem sair
da condição de opressões, para condição de humanos promotores da
harmonia e da dignidade de todos.

Afinal, em Gênesis 1:31 “Deus viu tudo o que havia feito, e tudo era muito
bom”. O bom de Deus está acima de qualquer outra coisa e cabe a cada
individuo a mudança da mente, a rejeição à imagem maculada imposta
pela sociedade, a recusa de maltratar nosso verdadeiro eu, em busca
da imagem perfeita do falso eu, pois viver escondendo o eu-humano e
sustentando o eu-objeto resultará, certamente, em uma catástrofe, como
veremos no próximo tópico.

2.3. A pessoa e o cansaço contemporâneo


Asdoençasemocionaisouneuraisestãonapautadostemascontemporâneos.
Depressão, Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH),
Burnout, são palavras conhecidas popularmente e campanhas como
por exemplo, “Setembro Amarelo”, que é o mês da prevenção ao suicídio,
estão sendo mais divulgadas. Em parte, essas doenças são reflexo do
esgotamento e do cansaço do ser humano. De acordo com Byung-Chul Han
(2017), vivemos tempos de falta de negatividade e excesso de positividade,
que são motivos de uma violência neural.

Para entendermos isso de uma forma um pouco mais clara, precisamos


recorrer ao que já está sendo bastante falado e discutido atualmente, que
54 | Teologia Contemporânea | FTSA
é a questão imunológica. O sistema imunológico atua quando identifica
algum corpo estranho e então produz algum tipo de defesa contra esse
corpo ou recebe a ajuda de algum artifício externo para tal, que é o caso do
uso das vacinas. Han (2017) aponta que o século passado foi uma época
imunológica, com inimigos bem estabelecidos, divisões claras. O que era
estranho era facilmente identificável e combatido, por ser algo que vinha
de fora, que trazia algum tipo de negatividade. Porém, sobretudo após o
fim da Guerra Fria, o paradigma foi se alterando para o desaparecimento
dos inimigos, da estranheza, do outro, dando lugar ao igual – ainda que,
nesse momento de nossa história, com a pandemia, estejamos às voltas
de novo com a questão imunológica.

Em todo caso, a grande questão dessa mudança de paradigma foi a


dificuldade de identificar as ameaças, uma vez que o igual não aparenta
representar um perigo para o corpo. Contudo, ele comenta: “A violência
não provém apenas da negatividade, mas também da positividade, não
apenas do outro ou do estranho, mas também do igual” (Han, 2017,
p. 15). O igual traz um excesso de positividade, não há nenhum tipo
de resistência ou barreira para combatê-lo. Ele provoca uma situação
mais difícil de ser resolver por ser uma batalha travada sem nenhuma
interferência externa, isto é, não é um corpo estranho invadindo, é uma
batalha interna, contra si mesmo.

A causa é relativamente simples de entender: a violência da positividade


vai gerando paulatinamente um excesso de cobrança e de exigência
tamanhas nas pessoas que logo elas não se sentem mais confortáveis
e adequadas em seu próprio corpo e com a suas próprias vidas. E o que
pesa, como bem apontou Han, não é apenas o número ou o acúmulo de
atividades, mas a pressão do desempenho, em realizá-las sempre bem
a partir da lógica de produzir sempre mais e melhor. Invariavelmente as
expectativas não são supridas, e daí nasce a frustração proveniente da
não fusão entre expectativa e realidade. Trocamos, assim, o processo
natural de nos tornarmos quem somos – como vimos no início dessa
unidade – pela pressão da conversão de si mesmo em um sujeito do
| Teologia Contemporânea | FTSA | 55
desempenho, de modo que o que nos torna doentes “não é o excesso
de responsabilidade e iniciativa, mas o imperativo do desempenho como
novo mandato da sociedade pós-moderna do trabalho” (Han, 2017, p. 27).

Em diálogo com Alain Ehrenberg, Han explica que a pressão de ter que
ser ela mesma é o que provoca a pessoa doente. Contudo, o contrário nos
parece ser verdadeiro: a pressão pelo desempenho acaba fazendo essa
pessoa perder o ponto arquimédico no qual coincide consigo mesma,
gerando uma autoimagem duplicada e, como tal, não condizente com o
original. Ou seja, a tendência é que a pessoa tente escapar de quem ela é
e não o contrário, como sugere Han.

Desse modo, o que Han chama de excesso de positividade pode ser


representada pelo slogan “Yes, we can”, que, em um primeiro momento,
pode parecer inofensivo ou até mesmo algo excelente, entretanto, suas
consequências podem ser catastróficas. No excesso de positividade, a
ideia difundida é que sempre é possível ter melhor desempenho, produzir
mais. Quão tentador é esse discurso! Nos últimos anos, provavelmente
você já deve ter ouvido ou até mesmo falado em uma conversa: “A
vida está corrida!” ou “Estou super atarefado!”, entre outras frases
semelhantes. Nouwen (2019) descreveu bem isso na década de 1980,
obra que foi republicada no Brasil pouco tempo atrás:

Uma das características mais óbvias da nossa vida


diária é o acúmulo de tarefas. Na nossa experiência,
os dias são cheios de coisas para fazer, pessoas para
encontrar, projetos para terminar, e-mails para escrever,
telefonemas para dar e compromissos para honras.
Nossa vida muitas vezes parece uma mala abarrotada
rebentando nas costuras (Nouwen, 2019, p. 21).

Junto com as frases corriqueiras mencionadas acima, muitas vezes está


o sentimento de orgulho de parecer alguém que é produtivo. Ainda de
acordo com Nouwen, a produtividade traz uma forma de identificação, isto
é, penso que sou o que faço. Entretanto, isso interfere significativamente
56 | Teologia Contemporânea | FTSA
em nossa vida, alimentando um falso eu ou eu-objeto, como vimos. A
identidade partindo do desempenho e produtividade nos influencia a não
aceitar nossa humanidade. Não nos vemos mais como pessoas e sim
como máquinas que precisam produzir mais. Com esse pensamento,
uma hora o corpo deixa de suportar e o cansaço traz o abatimento junto
com outras doenças neurais.

É importante destacar, porém, que Han (2017) fala de uma diferença


de tipos de cansaço. Nem todo cansaço é prejudicial e causa violência
neural, existe o cansaço fundamental e o cansaço profundo. O cansaço
fundamental inspira, permite com que as coisas não sejam eficientes
e produtivas, permite o não fazer. Já o cansaço profundo é voraz,
incapacita de fazer não por querer, mas por não conseguir mais, é um
esgotamento do ser que continua buscando desempenho. Ou como bem
ilustrou Nouwen (2019), uma mala abarrotada de coisas rebentando nas
costuras. Em algum momento ela não irá suportar mais e romperá.

A busca por desempenho e produtividade não se limita somente ao campo


do trabalho, podemos perceber essa influência em outras esferas da vida.
Queiroz (2013) identificou alguns tipos de espiritualidades presentes
na contemporaneidade brasileira. Destacamos uma espiritualidade
classificada como gnóstica e sensitiva, que é essencialmente dualista,
isto é, o que é material é totalmente ruim e o que “espiritual” é bom,
e é fundamentada sobretudo nas experiências emocionais. Essa
espiritualidade fomenta uma busca incessante pela experiência com o
sobrenatural e, caso não sinta nada de diferente, há algum pecado que
precisa ser confessado ou falta fé.

Não estamos menosprezando os sentimentos, eles sinalizam nossa


humanidade, porém, uma ênfase excessiva pode ser prejudicial, uma
vez que os sentimentos passam e o desejo de buscar mais experiências
pode se tornar um vício, sempre querendo sentir algo a mais, ser “mais
espiritual”. Uma produtividade religiosa que também resulta em fadiga,
em esgotamento, em cansaço. Afeta o ser humano e causa uma ausência
de sentido. No fundo, a busca por mais em diversas esferas da vida
| Teologia Contemporânea | FTSA | 57
parece ser semelhante a correr atrás do vento, como diria Eclesiastes.
Aliás, podemos observar neste livro da Bíblia, um Sábio que parece ser
alguém curioso, explorador e que fez de tudo na vida. Vejamos um trecho
do capítulo 2:

Depois de pensar muito, resolvi me animar com vinho.


E, enquanto ainda buscava a sabedoria, apeguei-me à
insensatez. Assim, procurei experimentar o que haveria
de melhor para as pessoas em sua curta vida debaixo
do sol. Dediquei-me a projetos grandiosos, construindo
casas enormes e plantando belos vinhedos. Fiz jardins
e parques e os enchi de árvores frutíferas de toda
espécie. Construí açudes para juntar água e regar meus
pomares verdejantes. Comprei escravos e escravas, e
outros nasceram em minha casa. Tive muito gado e
rebanhos, mais que todos os que viveram em Jerusalém
antes de mim. Juntei grande quantidade de prata e ouro,
tesouros de muitos reis e províncias. Contratei cantores
e cantoras e tive muitas concubinas. Tive tudo que um
homem pode desejar! Tornei-me mais importante que
todos os que viveram em Jerusalém antes de mim, e
nunca me faltou sabedoria. Tudo que desejei, busquei
e consegui. Não me neguei prazer algum. No trabalho
árduo, encontrei grande prazer, a recompensa por
meus esforços. Mas, ao olhar para tudo que havia me
esforçado tanto para realizar, vi que nada fazia sentido;
era como correr atrás do vento. Não havia nada que
valesse a pena debaixo do sol. (Ec 2:3-11, NVT)

Apesar de muito distante de nosso tempo, fazendo um pequeno paralelo


o Eclesiastes agiu como alguém que tem como lema de vida o “Yes, we
can”. Não negou a nada a si mesmo: grandes projetos, propriedades,
bens, prazeres, tudo isso ele alcançou, e mesmo assim, com todas as
suas conquistas, não satisfez a sua busca. Se o Eclesiastes fosse nosso
contemporâneo, é bem possível que seria mais uma pessoa que sofrendo
58 | Teologia Contemporânea | FTSA
com a violência neural e com a falta de sentido na vida. Kivitz (2009),
aponta que a falta de sentido ocorre porque somos utilitaristas com as
pessoas, com as coisas e com as situações, isto é, as utilizamos para
satisfazer um desejo pessoal. Ainda que todos sejamos utilitaristas em
alguma medida, ele comenta que há um nível que envolve o desejo de
uma experiência mágica, ou algo como se fosse um trampolim metafísico
para alcançar um significado escondido. As relações com as pessoas e
coisas ganham forma utilitarista para chegar ao suposto ápice. No fim, o
que se percebe é ausência de sentido, o enfado, o cansaço.

Clément Rosset, em seu livro O real e seu duplo, desenvolve a tese de que,
com relação ao real, nossa tendência é a de suprimi-lo numa “atitude de
cegueira voluntária”, que nos faz ignorar o real, o singular, e dirigir nosso
olhar para outro lugar (seu duplo), onde o real não está. De modo que,
aquilo que anunciamos como sendo “real”, é na verdade o “outro”, visto
que o real, em si, nos escapa. Ao abordar o mito narcísico, Rosset afirma
que a fragilidade ontológica de Narciso, que o levou à aniquilação de si,
não foi a apreciação, o amor ou a grande aceitação pelo seu “eu real”, mas
sua fixação em uma espécie de “duplo psicológico”, ilusório. Ou seja, essa
interpretação nos conduz a pensar que aquilo que Narciso contempla
embevecido, na verdade, seria a sua não-realidade, uma representação
(desejável) de si mesmo, da qual ele necessita para continuar existindo,
para além do desespero de não-ser. Assim, de acordo com Rosset (2008,
p. 108), “o erro mortal do narcisismo não é querer amar excessivamente
a si mesmo, mas, ao contrário, no momento de escolher entre si mesmo
e seu duplo, dar preferência à imagem”.

Retornando ao diálogo com Ehrenberg e Han, o problema do narcisismo


inerente à sociedade do desempenho e da positividade não estaria,
assim, na incapacidade de ser quem se é, mas na rejeição de quem se é
e na consequente incapacidade de ser o seu duplo. Essa parece ser, aliás,
a única negatividade plausível no império da positividade.

Tudo isto se dá em um contexto em que “saúde e bem-estar” se tornaram


palavras de ordem, objetos da idolatria contemporânea, cedendo,
| Teologia Contemporânea | FTSA | 59
paradoxalmente, à pressão do desempenho ao transmitir a mensagem de
que é preciso manter o bem-estar e a saúde a qualquer preço – às vezes,
o preço é (eis o paradoxo) a própria saúde. E para este fim cooperam as
igrejas, as academias fitness e os spas (templos do bem-estar); também
as clínicas de estética, os laboratórios de genética, e até os sujeitos
da cura, como os psiquiatras, se tornam também agentes do retorno à
lógica do desempenho ao distribuir remédios contra disfuncionalidades
provocadas pelo excesso de positividade, às vezes deliberadamente e
sem um escrutínio cuidadoso (o que, em tese, ajudaria a precisar melhor
a necessidade ou não do uso de medicamentos).

Como observa Han (2017, p. 99), “elaborar o conflito” é um processo lento


e demorado, além de doloroso demais – e precisamos evitar a dor e a
frustração de todas as formas! Assim, “é muito mais simples lançar mão
de antidepressivos que voltam a restabelecer o sujeito funcional e capaz
de desempenho”. Assim, o homo sacer (o homem sagrado) da sociedade
do desempenho foi tipificado nas figuras do homem e da mulher
“saudáveis”, mas não necessariamente cheios de vida; converteram-se
em “zumbis saudáveis e fitness, zumbis do desempenho e do botox”
(Han, 2017, p. 119).

Como ainda observa Han,


A vida do homo sacer da sociedade de desempenho
é sagrada e desnudada a partir de outra razão bem
distinta. É desnuda porque está despida de toda
transcendência, porque foi reduzida à imanência da
mera vida, que deve ser prolongada a qualquer custo e
com todos os meios. A saúde é elevada à nova deusa.
Por isso, a mera vida se tornou sagrada. Os hominis
sacri da sociedade de desempenho distinguem-se dos
da sociedade soberana pela especificidade ampla de
que são absolutamente impassíveis de serem mortos.
Sua vida equipara-se à de mortos-vivos. Estão por
demais vivos, para morrer, e por demais mortos para
viver. (Han, 2017, p. 108-109)

60 | Teologia Contemporânea | FTSA


No contexto da espiritualidade cristã a vida é, sem dúvidas, sagrada,
tanto no sentido de que é uma dádiva graciosa do Deus da vida, quanto
no sentido de que é (e deve ser, cada vez mais) humana. O problema do
desnudamento sobre o qual fala Han é que ele dessacraliza a vida e o
humano, não lhes respeitando o limite e a singularidade, de modo que
o que hoje chamamos de “saúde e bem-estar” pode representar, muitas
vezes, o seu oposto. E isso acontece quando passamos a acreditar que
esse binômio consiste no próprio sentido da vida, e não o resultado de
uma reverente coincidência: consigo, com o próximo, com a natureza e,
assim, com o Deus da vida.

Conclusão
Para finalizar, o que falta então é a aceitação de que as coisas são como
são e não precisam necessariamente trazer alguma experiência de êxtase
como consequência. Voltamos assim ao que comentamos nos tópicos
anteriores, o conhecimento do verdadeiro eu ou do eu-humano. Uma
vez que buscamos lidar com o conhecimento e a aceitação da nossa
humanidade em um nível mais profundo, reconhecemos e buscamos
aceitar as limitações das outras pessoas e das coisas também. Assim,
impedimos com que o ciclo vicioso do excesso de positividade, nos
esgote. Isso é claramente um desafio, afinal, estamos tão acostumados
com isso que não é fácil agir e pensar diferente.

O problema da sociedade que tem o desempenho como mola-mestra


não é propriamente “falta de tempo”, como tendemos a alegar, mas a
vivência de um tempo sem aroma, como postulou Han em outro lugar.
E o que seria um tempo sem aroma? É um tempo que foi feito para não
durar, que perdeu de vista a experiência da durabilidade, da lentidão e
da demora sem as quais a vida perde aroma e sabor, pois não pode ser
devidamente desfrutada. Comer, rezar, frequentar a igreja, se relacionar,
se exercitar, ter prazer, lazer e distração se tornaram práticas fugazes,
prestes a se desintegrar em imagens no próximo telegrama instantâneo,
mais conhecido como “Instagram”. Com isso, não estamos mais falando
de “tempo” propriamente, mas da experiência humana no tempo.
| Teologia Contemporânea | FTSA | 61
Uma experiência na qual se elimina a perspectiva espaço-temporal de
perto ou longe, de aqui e lá, de agora, daqui a pouco ou depois, uma
vez que nossa redenção aos Instagrams e WhatsApps da vida faz com
que os intervalos sejam suprimidos “em benefício de uma proximidade
e de uma simultaneidade totais. Elimina-se qualquer distância ou
lonjura. Trata-se de fazer com que tudo esteja disponível aqui e agora. A
instantaneidade se transforma em paixão. Tudo o que não pode se fazer
presente não existe” (Han, 2016, p. 53). O ser, diz Han, é “muito mais do
que presença” e empobrece um pouco mais cada vez que suprimimos ou
limitamos seus momentos de ausência e distância. O fato interessante,
que Han não menciona, mas dá a entender, é que essa necessidade de
estar presente em todos os lugares, mesmo que na forma de um avatar,
empobrece justamente a experiência da presença real, de estar aqui,
de viver esse momento, nesse lugar, com essas pessoas, com meu ser
inteiro e entregue ao agora. Que se encerra em um paradoxo espaço-
temporal e existencial: estou aqui, mas também em outros lugares, então
realmente não estou aqui; conectado com muitos ao redor do globo, mas
incapaz de me conectar com a pessoa que está perto ou diante de mim.

A suposta “falta de tempo” presente na mui repetida frase “não tenho


tempo” é, na reflexão heideggeriana de Han, “sintoma de uma existência
imprópria”, pois perdeu a capacidade de discernir a época, a vida e o modo
como a gerimos. Uma vida pequena, que tende a se degenerar em uma
morte pequena, pois não fez uso da capacidade de gestão do tempo a
partir de uma reflexão sobre prioridades; ou que, mesmo fazendo, decidiu
priorizar menos a vida, menos relacionamentos significativos; em suma,
menos o “verdadeiro eu” e mais a personagem, a representação ou o avatar
virtualmente reproduzível. Então, não parece ser “tempo que nos falta pra
perceber”, como questiona Lenine na canção “Paciência”. Falta-nos uma
percepção transformada do tempo, bem como dos valores que na vida
simplesmente não “escorrem pelas mãos”, nem podem ser manipulados
sem consequências. O sonambulismo governa os passos de muita gente
no tempo dessa sociedade do desempenho. Muitas delas estão acordadas
e realizando muitas coisas sem estar realmente despertas.
62 | Teologia Contemporânea | FTSA
Entretanto, é possível mudar de perspectiva a partir do momento
em que nos permitimos parar. Por mais óbvio que isso seja, vamos ser
francos, o quanto realmente levamos isso a sério? Podemos até lembrar
e mencionar sobre a importância de parar enquanto princípio para
descanso, porém, nosso ritmo continua sendo de ativismo. Na narrativa
da criação, o próprio Deus descansa após ver que o que havia feito era
bom (Gn 2:2). O tempo de descanso então é uma etapa fundamental em
nossa contemporaneidade de violência neural. Esse tempo de descanso,
na Bíblia mencionado como sábado, ou o Schabat, é sagrado, é singular.
Considerando isso, talvez possamos aprender com o rabino Abraham
Joshua Heschel (2014):

O judaísmo é uma religião do tempo visando a


santificação do tempo. Diferentemente do homem
propenso para a espacialidade, isto é, aquele para quem
o tempo é invariável, iterativo e homogêneo, para quem
todas as horas são iguais, desprovidas de qualidade e
conchas vazias, a Bíblia percebe o caráter diversificado
do tempo. Não existem duas horas semelhantes. Cada
hora é única e uma só, dada naquele momento, exclusiva
e infinitamente preciosa. (Heschel, 2014, p. 15)

Ainda de acordo com Heschel (2014, p. 23), no Schabat é que


saímos da tirania das coisas e somos chamados para adentrar nos
mistérios da criação, para se preocupar “especialmente com a semente
de eternidade plantada na alma”. Se nos outros dias da semana corremos
para conseguir dominar as coisas, no Schabat tentamos dominar o eu. É
um tempo de repouso, contemplação e meditação. Essa é a sacralidade
do tempo tão essencial na contemporaneidade. O parar se torna mais
do que recuperar as forças para começar tudo novamente, mas é o
momento em que há uma reflexão sobre a existência, um adentrar ao
nível profundo de nossa identidade. Diferenciar nossa humanidade da
mecanicidade do desempenho e produtividade.

| Teologia Contemporânea | FTSA | 63


Referências bibliográficas
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Hardcover, Minneapolis: Fortress Press, 1994.

| Teologia Contemporânea | FTSA | 65


Unidade III – Sociedade
Introdução
Quando não estão atuando como auxiliares de
economistas, cientistas políticos, sociólogos e assim
por diante – e faz parte da responsabilidade deles
atuarem dessa maneira – os teólogos deveriam
concentrar-se menos em acordos sociais e mais no
fomento do tipo de agentes sociais capazes de imaginar
e criar sociedades justas, autênticas e pacíficas, e na
concepção de um clima cultural no qual esses agentes
possam prosperar. (Miroslav Volf)

Como a epígrafe acima, de Miroslav Volf, fala por si mesma, e endereça


uma questão importante a ser tratada nessa unidade, digamos sem
rodeios: a sociedade que queremos formar passa necessariamente pela
reflexão sobre que tipo de pessoa (e de igreja) que queremos ser. Por
isso é que nesse curso falamos nessa tríade – pessoa, sociedade e igreja
–, sem, porém, imaginar ou pensar que elas formam unidades estanques,
separadas uma da outra.

Isso significa que nessa unidade prosseguiremos tratando de problemas


ou questões concernentes à sociedade e ao que está na agenda pública
da teologia contemporânea, mas ainda integrados com a questão da
pessoa, e, mais ao final, na transição, também da igreja. Queremos
explorar três tópicos em particular: (1) A questão da justiça do Reino:
o que ela é e o que significa e implica? (2) A questão ecológica: por que
ela é importante e que clamores teológicos evoca? (3) A questão da
cultura do espetáculo: em que ela consiste e em que tipo de pessoas em
sociedade ela tem nos transformado?

A tese básica desse meio de caminho é de que os problemas que


afetam a sociedade, afetam antes a pessoa e se mesclam com os da
igreja. Elegemos, para essa reflexão, temas que são ao mesmo tempo

66 | Teologia Contemporânea | FTSA


atemporais (como a questão da justiça e da ecologia) e do momento (a
cultura do espetáculo). Queremos pensar juntos em como podemos criar
um clima social e cultural que possa fazer os agentes do Reino de Deus
espalhados pelo mundo atual a prosperar e a ser eficazes.

Objetivos da unidade
1. Identificar os significados teológicos e práticos da justiça do Reino;

2. Reconhecer a importância e os clamores da questão ecológica hoje;

3. Desenvolver uma mentalidade crítica sobre a chamada cultura do


espetáculo e seus reflexos na espiritualidade hoje.

3.1. A justiça do Reino


Há uma questão inerente a todas as esferas da vida, que apesar de não
parecer, parte obrigatoriamente da maneira como o eu (verdadeiro ou
falso) se encaixa ou atua, respectivamente, na sociedade. Ela também
é inerente a todas as causas, lutas, bandeiras, agendas políticas e, claro,
todas as teologias. Estamos falando da justiça.

Não há pleito que não a invoque, direta ou indiretamente. Não há lei


que não a tenha como princípio legal. Não há cidadão que declare
não a querer. Da mesma forma, as teologias contemporâneas, como
por exemplo: teologia da libertação, teologia feminista, teologia negra,
teologia indígena, teologia da prosperidade, teologia universal e por aí vai,
são teologias que têm como princípio motor a justiça. Melhor explicando,
a base para todos esses discursos está no cumprimento da justiça para
um grupo que se sente injustiçado, ou na manutenção e no cultivo da
justiça por um grupo que pode vir a ser injustiçado.

Mas essa busca por justiça não é nova. Desde quando se tem
conhecimento da existência de agrupamentos humanos a justiça faz
parte da organização desses grupos. Nas histórias das antigas religiões e
| Teologia Contemporânea | FTSA | 67
acima de tudo, que é de nosso interesse maior, do Antigo Oriente Próximo,
a justiça é tema que sempre está em alta. Um Deus justo, mediando por
meio de um rei justo (ou que deveria ser justo), fazendo justiça por seu
povo, seja abençoando-os pelos bons caminhos ou castigando-os pelos
seus erros. Ao menos é assim que parte da história de Israel é contada na
bíblia. Os livros bíblicos escritos ou reeditados no período do pós-exílio,
principalmente com a reforma política religiosa que Esdras e Neemias
organizaram (ver box “Saiba mais” abaixo), partiam deste princípio:
Deus é justo e faz justiça a todos. Por isso, aqueles que se mantiverem
na Lei (neste sentido, trata-se da Lei judaica já interpretada por seus
líderes, com os ritos, as separações, sacrifícios etc.) receberão as justas
recompensas. Aqueles que, porém, a descumpriram, também receberão
seus justos castigos.

SAIBA MAIS
É comum lermos os textos bíblicos sem uma preocupação maior
com o processo de redação dele. Além disso, também é comum
não nos atentamos para o fato de que a história de Israel não foi
sempre a história dos judeus. Há um longo processo e um tortuoso
caminho na construção da religião judaica como a conhecemos,
qual seja, a religião da Palestina do Primeiro Século, nos tempos em
que Jesus viveu. Para que o judaísmo e as Escrituras chegassem
aonde chegaram e da forma como chegaram, muitos movimentos
político-religiosos se estabeleceram. Dentre eles o de Ezequias
e Josias por volta dos anos sétimo e, posteriormente, Esdras e
Neemias, por volta do século sexto.

Segundo estudiosos como Finkelstein e Silberman (2018) o


processo de escrita e redação da história e da crença do povo
de Israel se inicia por volta dos anos 700 a.C, entre o primeiro e
segundo exílio. Mas é após o segundo exílio (Babilônico) que uma
nova teologia surge para influenciar e consolidar o povo judeu. Era

68 | Teologia Contemporânea | FTSA


preciso reorganizar o povo e alinhar o entendimento daqueles que
haviam retornado do exílio com suas novas perspectivas e crenças,
com aqueles que haviam ficado em Canaã. Neste momento
Esdras e Neemias se tornam peças-chave para compreensão da
consciência judaica que se estabelecerá no século I d.C. Para
os rabis da Palestina do primeiro século, foi Esdras quem “teve
um papel decisivo na implantação das regras que moldaram e
consolidaram os rumos do judaísmo da sinagoga até os dias atuais”
(SCARDELAI, 2012). Inclusive, para Finkelstein e Silberman (2018,
p. 300), o judaísmo justamente nasceu nesse momento da história.
A terminologia antes tida como reino de Judá, passa a ser Yehud,
em aramaico. Os judaítas, povo proveniente de Judá, tornaram-se
conhecidos como os Yehudim, ou seja, os judeus. Scardelai (2012,
s.p.) alega: Esdras representa um divisor de águas na formação da
literatura das Escrituras.

É neste momento que a religião de Israel se torna separatista e que


Deus torna-se um juiz castigador ou abençoador, de acordo com as
Leis. O Deus dinâmico, se torna estático em seu Templo. O Deus da
humanidade, se torna o Deus de Israel. O Deus do amor, se torna o
Deus do comércio retributivo, do sacrifício, do privilégio. Mas que,
graças aos profetas e ao nosso senhor Jesus, pode manifestar sua
verdadeira face.

Para mais informações sobre os impactos das reformas na teologia


judaica, o livro de Scardelai é uma boa referência.

FINKELSTEIN, Israel. SILBELMAN, Neil Asher. A Bíblia desenterrada.


A nova visão arqueológica do Antigo Israel e das origens de seus
textos sagrados. Petrópolis: Editora Vozes, 2018.

SCARDELAI, Donizete. O escriba Esdras e o Judaísmo (Biblioteca


de estudos bíblicos). Paulus Editora. Edição do Kindle.

| Teologia Contemporânea | FTSA | 69


Equivocadamente, muitas tradições judaicas e cristãs abraçaram
esse princípio, ignorando ensinamentos preciosos de outras partes
do texto bíblico. Para os cristãos, o equívoco se agrava, pois ignora-
se os ensinamentos de Jesus Cristo sobre a justiça divina. E a boa-
nova, passa a ser uma novidade antiga, ou um vinho novo em odres
velhos, que acabou por se estragar e não prestar mais para seu fim.

O livro de Jó é um bom panorama para analisarmos que a justiça


divina não recompensa o bom, tampouco castiga o mal, como
tentaram propor os amigos de Jó. A justiça divina é muito mais
profunda do que isso.

E, afinal, se todos estão buscando por justiça, por que é que


ainda vivemos em um mundo tão injusto? Talvez seja porque
não compreendemos corretamente a justiça pela qual estamos
buscando.

Justiça e a pessoa
Como mencionamos no início deste tópico, a questão da justiça está
diretamente ligada ao eu, à autoimagem. Isso porque a forma como o
eu enxerga a si mesmo também é determinante para a forma como ele
enxerga o outro. Compreender este fato é essencial para a compreensão
da justiça divina, ou seja, justiça do Reino, como proposta por Jesus e
pelos profetas anteriores.

Para essa compreensão iremos utilizar os ensinamentos de Paul Tillich,


que em 1952 escreveu a obra Amor, poder e justiça, na qual declarou
que um ser (humano) que se excede, ultrapassa seus limites, desejando
aumentar o seu poder de ser, de forma que que inclua e conquiste aquilo
que não é (o não-ser), perde-se, destruindo a forma que lhe foi dada. Ao
não conseguir a nova forma (transcendente, do humano-deus), tende ao
aniquilamento. A perda da forma, segundo Tillich, é o que poderíamos
entender como injustiça. Pois, ao perder a forma, o ser não mais consegue
cumprir a sua função. Não é mais capaz de realizar aquilo para o que foi

70 | Teologia Contemporânea | FTSA


separado para realizar. Neste sentido, a justiça, como oposição à injustiça,
é a capacidade do ser de cumprir sua finalidade. De ser dinâmico, dentro
do seu espaço, mantendo-se íntegro na composição criada.

Assim, lutar por justiça é lutar para poder desempenhar integralmente o


papel para o qual foi designado. Ora, se, assim como afirmado na unidade
anterior, fomos criados para sermos humanos e, enquanto totalmente
humanos, desenvolver um ambiente de harmonia e cultivo da criação,
qualquer reivindicação que impeça a integralidade do eu-verdadeiro,
e que implique em ambientes desarmônicos e destrutivos, não é uma
reivindicação por justiça.

Tillich, por sua vez, utiliza a analogia da árvore como representação para
essa afirmativa. Segundo ele:

O fundamento da justiça é a reivindicação intrínseca


por justiça de tudo aquilo que existe. A reivindicação
intrínseca de uma árvore é diferente da reivindicação
intrínseca de uma pessoa. As reivindicações por
justiça baseadas nas diferentes formas nas quais o
poder de ser se realiza são diferentes. Mas elas são
reivindicações justas se são adequadas ao poder de
ser sobre o qual estão baseadas. A justiça é, antes de
tudo, uma reivindicação suscitada silenciosamente
ou oralmente por um ser sobre os fundamentos de
seu poder de ser. Ela é uma reivindicação intrínseca,
expressando a forma na qual uma coisa ou uma pessoa
é instituída. (Tillich, 1952, p. 63)

A partir deste entendimento, podemos afirmar que a justiça está


diretamente ligada às questões ontológicas, não sendo uma categoria
social apenas, mas é uma categoria necessária para as ontologias.
Um ser humano que reivindique ser uma árvore não está reivindicando
justamente, assim como não está quando reivindica ser mais do que o
outro, melhor do que o outro, dominador do outro. Pois essa função não

| Teologia Contemporânea | FTSA | 71


lhe é intrínseca. Como lembra Thomas Merton (2017, p. 41), “uma árvore
imita a Deus sendo o que é: uma árvore”. Da mesma forma, raciocina ele,
a minha santidade consiste em reconhecer quem sou e quem fui criado
para ser e assumir isso com júbilo. Ou seja, ser santo é ser quem eu sou.
Pois sendo quem sou realizo na vida a potencialidade da imago-Dei que
em mim habita. Em outro lugar, Merton explica a questão assim:

A imagem de Deus é o ponto mais alto da consciência


espiritual no ser humano. É o ápice da autorrealização.
Isto se alcança não simplesmente pela reflexão sobre
o seu real e presente si-mesmo: o nosso verdadeiro si-
mesmo pode estar longe de ser “real”, uma vez que pode
estar profundamente alienado de nossa identidade
espiritual mais profunda. Para alcançar o “si-mesmo
verdadeiro” é preciso ser libertado pela graça, virtude e
ascese desse ilusório e falso “si-mesmo” que criamos
por nossos hábitos de egoísmo e por nossa constante
fuga da realidade. (Merton, 2006, p. 34-35).

Estudar justiça é estudar o ser. Fazer justiça é fazer o eu se tornar eu-


verdadeiro, sem romper injustamente com a finalidade do humano. Mas
não só isso, é preciso lembrar que o eu-verdadeiro, em sua finalidade,
precisa estar harmonizado com o outro, com seu criador e com toda a
criação. Portanto, é preciso quebrar com todo o comportamento, discurso
ou hábito que também impeça o outro de ser o seu eu-verdadeiro. Se nossa
teologia, nosso dogma, nossos sentimentos, falas e comportamentos
induzem o outro ao cultivo de seu falso eu, ao personagem, a justiça se
esvaiu e a injustiça se impôs. Assim também é quando se impede que
o outro seja quem é. Quando o outro passa a ser ninguém, passa a ser
coisa. Não há personagem, não há ser.

Neste cenário, portanto, não há justiça. Pois não há equilibro e harmonia,


como deveria haver nas relações. Portanto, “ser justo para consigo
mesmo significa realizar tantas quantas potencialidades for possível
sem perder-se em rompimentos e caos” (Tillich, 1952, p. 68), fazendo
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sobreviver o seu eu e o eu do outro, ambos verdadeiros. Até porque, como
propõe os estudos de Platão sobre o tema, a justiça é a união entre o ser
individual e os seres sociais. Não há justiça na individualidade, pois não
há ser na individualidade. Sem o grupo social o ser não tem razão de ser, e
nenhuma definição lhe seria útil. A justiça, portanto, é a junção do coletivo
em que todos podem ser. É aí que entramos na justiça do Reino de Deus.

Justiça e o Reino de Deus neste mundo


Não são poucos os textos que falam sobre justiça na bíblia. No Antigo
Testamento temos figuras emblemáticas que clamavam por atos de
justiça no lugar de atos de religiosidade, como por exemplo Isaias,
Jeremias, Amós, Miqueias, Oséias. No Novo Testamento, os evangelistas
reforçam os ensinamentos de Jesus sobre a justiça. Aliás, segundo as
palavras do evangelista Mateus, Jesus ordenou que, em primeiro lugar,
buscássemos o Reino de Deus e sua justiça (Mt 6.33). Não é primeiro
o Reino e depois a justiça, também não é a justiça e depois o Reino. Da
mesma forma, não é buscar qualquer justiça, é buscar o Reino de Deus
e a sua (do Reino e de Deus) justiça. Por isso, é indispensável a todos
quantos creem em Deus e em seu filho Jesus Cristo, que busquem a
compreensão da justiça (do Reino) como sendo equivalente à vivência
no Reino.

Para não perdemos o fio condutor deste tópico, ressaltamos que a justiça,


como no tópico anterior, se faz quando o eu-verdadeiro emerge (ou sai
das sombras) e permite que os outros sujeitos, em convivência coletiva,
também possam viver seus eus-verdadeiros. Agora, o que isso tem a ver
com a justiça do Reino de Deus? Absolutamente tudo!

A única maneira de viver em justiça é viver sob o Reino de Deus. E a única


maneira de viver plenamente sob o Reino de Deus é viver em justiça. Isso
acontece quando aceitamos e entendemos a autoimagem. Quando a
alma, já não mais cede ao reino humano, não busca mais o status da
produtividade, não se permite mais os infartos psíquicos descritos por Han
(2017) na obra que estudamos (Sociedade do Cansaço). Isso acontece
| Teologia Contemporânea | FTSA | 73
quando o eu vive tão plenamente que promove e propicia o outro a viver
plenamente também. É por isso que reino e justiça não podem andar
separados e é por isso que a justiça é também uma questão ontológica.

Quando os textos bíblicos falam sobre órfãos, viúvas, estrangeiros,


crianças, doentes, cegos, e em tantos outros, não falam sobre vingança,
nem em substituição de espaços, falam em justiça. Ou seja, em promover
um espaço onde todos os eus-humanos não são coisas, não são objetos,
não são um bando de ninguéns. Mas são humanos dos quais dependo
para que a minha função inicial se cumpra e assim eu também seja
plenamente eu. Para compreender essa lógica é preciso ter em mente
a plenitude do ser humano como a da poesia do Éden, de Gênesis 1-2.
A justiça portanto é o ser humano, que vendo-se nus, não têm de que se
envergonharem. São equivalentes. Tanto diante de Deus, quanto diante
do mundo.

Portanto, a justiça que se aguarda da parte de Deus é a justiça do Reino de


Deus. Não é uma nova justiça. É uma justiça que já está disponível. Que
sempre esteve. O que se espera, na verdade, é que ela se cumpra de uma
vez por todas. Moltmann (2018, p. 75-76) afirma que justiça, comumente
ligada à julgamento, nada tem a ver com a recompensa. Não se trata,
portanto, de Deus recompensar os bons e punir os maus. A justiça de
Deus, tem a ver com o estabelecimento da igualdade dos ser humanos
qua humanos. Julgar o mundo com justiça é devolver a cada prejudicado
a sua integralidade do eu, é retirar de cada homem-deus, a supremacia
que não lhe pertence, o excesso e o exagero que também o impede de
exercer integralmente o eu. Segundo Moltmann:

Julgar não tem nada a ver com punição, mas com


o soerguimento da pessoa e sua salvação, com a
colocação de todas as coisas em ordem. O rei precisa,
portanto, cuidar para que o forte não prejudique o
fraco e que as viúvas e os órfãos não deixem de ser
socorridos. Ele deve, igualmente, proteger a nação
da exploração. Somente quando conhecemos essas
74 | Teologia Contemporânea | FTSA
representações do “sol da justiça” poderemos entender
que, no Antigo Testamento, o julgamento de Deus não
precisa ser temido, mas sim saudado como a salvação
para os seres humanos e para a terra: “Ele julgará a
terra com justiça”. (Moltmann, 2008, p. 75-76)

Concordando com esse entendimento, temos os ensinamentos do


biblista Fitzmyer (1987, p. 406), segundo o qual a palavra justiça, no grego
κρίσις (krisis) significa, em geral, “juízo” e o juízo no sentido do “direito”.
O direito de ser, ser aquilo que foi formado para ser, nem menos nem mais
do que isso. Sendo assim, a justiça de Deus não deve ser entendida como
aquela que cuida de constatar o bem e o mal, a fim de dar recompensas
a cada um. Antes disso, a justiça de Deus é aquela que cria o direito e o
faz se cumprir na vida do injustiçado. Moltmann (2008, p. 75-76) afirma
que essa justiça “pode também ser chamada de misericórdia. Não há
qualquer contradição entre justiça e misericórdia”, já que a justiça tira o
ser da miséria de não ser o que deveria ser.

Para Tillich, a justiça divina deve ser entendida como um processo criativo,
em que não se pode calcular ou quantificar seus efeitos. Deus cria situações
em que a justiça possa se fazer presente igualmente a todos. Neste sentido,
também é o entendimento de Albert Nolan (1987) sobre a justiça do Reino
de Deus. Para Nolan, ela pode ser claramente exemplificada por meio da
parábola dos trabalhadores da vinha em Mt 20.1-15, ou na parábola do
filho pródigo de Lc 15.11-32. Para os trabalhadores da vinha, assim como
para o irmão do filho pródigo, a justiça era como vista pelos zelotas e
pelos fariseus por exemplo. Era uma justiça retributiva, sem compaixão,
sem amor. Mas para o Senhor da vinha e para o pai, o importante é que
eles recebessem o que fosse necessário para suas integridades. Aos
trabalhadores, independente das horas, era preciso receber algo que os
dignificasse. Ao filho, da mesma forma.

Naquilo que Tillich chamada de justiça criativa, que Nolan chama de


amor e compaixão e que Moltmann chama de salvação, todos os seres
humanos são colocados como equivalentes aos olhos divinos. Não há
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exaltação sobre o outro, nem castigo que o rebaixe sob o outro. A justiça
se presentifica para que o universo volte a viver o romance do Éden.

Por fim, todas as teologias, discursos, ações, projetos e leis, para


que sejam verdadeiramente justas aos olhos de Deus, devem ter por
finalidade a promoção do verdadeiro eu. E isso significa assumir que:
“Leis governando a estrutura familiar de outro período ou suas relações
econômicas podem destruir famílias e romperem a unidade da classe
desse período” (Tillich, 1952, p. 59), e essas Leis podem ser políticas ou
religiosas. Portanto, é preciso aceitar que a justiça não é só criativa, mas
ela é dinâmica em todo tempo. E sua base de referência é o amor. Em
amor Deus nos criou e em amor ele nos orienta a ser o que fomos criados
para ser, dentro do espaço e da sociedade em que estamos inseridos.

3.2. A questão ecológica


A partir do proposto acima, podemos agora seguir com uma reflexão da
justiça que se aplica aos demais elementos criados para ocupação do
cosmos. Entraremos, portanto, nas questões ecológicas, as quais têm
impactado diretamente nossa sociedade. De forma resumida, percebe-
se que a injustiça econômica e social dos países ricos sobre os países
mais pobres resulta naquilo que podemos chamar de injustiça ecológica,
a saber: desflorestamento, latifúndio, poluição e outros problemas. Isso
acontece justamente pela noção distorcida do eu, como já mencionado. É
a luta pelo poder, pela exploração, por sempre ter mais. E os impactos são
vistos não somente na relação com o outro, mas em toda a criação divina.
A propósito, nossa base de compreensão da integralidade da vida parte
das seguintes dimensões dos relacionamentos: 1) eu com Deus, 2) eu
consigo mesmo, 3) eu com o próximo, e 4) eu com o restante da criação.
Sendo esta última muitas vezes esquecida ou colocada em um patamar
inferior nas discussões teológicas, entretanto, é uma das temáticas mais
necessárias e urgentes no que tange à justiça do Reino na sociedade.

A crise ambiental se tornou uma das grandes pautas da atualidade,


sobretudo da metade do século XIX para cá. Contudo, González (2014)
76 | Teologia Contemporânea | FTSA
aponta que ela começou séculos atrás, tendo como dois principais
motivos: o “descobrimento” da América pelos europeus, e, o avanço
das ciências aplicadas. O “descobrimento” da América, sua conquista e
colonização deu uma nova perspectiva aos europeus sobre os recursos
naturais com a impressão de que eram inesgotáveis devido sua grandeza.
Nós conhecemos bem sobre a exploração histórica que o Brasil sofreu de
outros países. Além disso, o avanço científico no século XIX aprimorou
os métodos de exploração.

Ainda de acordo com González (2014), os cristãos muitas vezes não


questionam os impactos sofridos na natureza em prol do suposto
progresso, inclusive, os países que causaram maior dano ambiental, são
os em que encontramos uma forte tradição cristã. Essa falta de reflexão
pode ser fruto de uma teologia distorcida, na qual o ser humano se
compreende como acima do restante da criação, além de, por entender
que a volta de Jesus está próxima e o destino é o céu, não importa o que
acontece com a terra e a natureza.

Claro, é inegável que parte das consequências desses dois pontos foi
positiva, houve muito avanço em termos tecnológicos e médicos, por
exemplo, o que permitiu melhorar a qualidade de vida em alguns aspectos.
Ao mesmo tempo, com o passar dos séculos, o problema ambiental foi se
agravando até chegarmos em uma crise sem precedentes na atualidade.

Kirk (2006) e Stott (2011) mencionam rapidamente alguns problemas que


enfrentamos na contemporaneidade. Você já deve ter ouvido falar deles,
mas pare mais uma vez para refletir sobre esses problemas. O primeiro
deles, que, de uma forma ou de outra, acaba influenciando os outros, é o
crescimento populacional. Estima-se que, em 2050, a população mundial
chegará em 9,5 bilhões. Do primeiro ao sexto bilhão houve um intervalo
de quase duzentos anos, a previsão agora é de que em cinquenta
anos, haja um crescimento de três bilhões. É o paradoxo que podemos
encontrar na ordem em Gênesis de “sejam férteis e multipliquem-se!” (Gn
1.28). A multiplicação está acontecendo, mas surgem dúvidas de como
será possível alimentar todas as pessoas com os recursos naturais se
esgotando. Há crescimento, mas falta sustentabilidade.
| Teologia Contemporânea | FTSA | 77
Como recursos naturais podemos citar as florestas desmatadas, os
combustíveis fósseis que não podem ser repostos, além da extinção de
diversas espécies por causa da caça e pesca desenfreada e das terras
férteis que dão lugar às indústrias, estradas, latifúndios. Outro problema
claro é a poluição que por causa das fábricas e produção em massa,
afetam o clima, prejudicam a vida natural nos mares, rios e florestas.
Por último, mas não menos importante, a produção de lixo. Quanto mais
pessoas vivendo debaixo da lógica da produção para consumo excessivo,
maior será a quantidade de lixo que essas pessoas produzirão, lixo esse
que não se decompõe facilmente, ao contrário, pode demorar até séculos
para que isso ocorra.

Observando esses problemas, concordamos com González:

Ao tentar nos aproximarmos teologicamente das


questões ecológicas, temos de fazê-lo acima de tudo
com humildade e confissão de pecados. Podemos
estar convencidos, como eu estou, de que há na fé
cristã os recursos necessários para se enfrentar essa
crise. Contudo, ao mesmo tempo temos que reconhecer
que a igreja cristã e nós mesmos nem sempre fizemos
uso desses recursos, e que com demasiada frequência
nos deixamos levar por nossos interesses, nossa
comodidade ou simplesmente por nossa inércia.
(González, 2014, p. 37).

Quais são esses recursos que a fé cristã pode ter para enfrentar a crise
ecológica? Faremos a seguir considerações sobre como então proceder
ou pelo menos perceber as questões ambientais.

Inicialmente, é necessário revisitarmos o texto de Gênesis, que já


estudamos rapidamente na unidade anterior, mas agora será abordado
por outras perspectivas. Tanto o primeiro quanto o segundo capítulo, que
revelam duas narrativas sobre a criação. Do primeiro capítulo surgiu a
interpretação do ser humano como dominante soberano sobre a criação.

78 | Teologia Contemporânea | FTSA


Costumeiramente observamos, no verso 28, após a ordem de: “Sejam férteis
e multipliquem-se!”, a sequência é: “Encham e subjuguem a terra! Dominem
sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que
se movem pela terra” (Gn 1.28, NVI). Em outras versões utiliza-se o verbo
“sujeitar”, ambas possuem um sentido de dominador na força, violento.

De fato, Deus diz para que o ser humano domine sobre a criação,
entretanto, González (2014) menciona que essa ação deve estar
diretamente atrelada com os dois versos anteriores, que dizem que
o ser humano foi criado à imagem e semelhança do Criador. Essa
percepção muda de forma considerável a ação de domínio, pois ser
imagem e semelhança do Criador nesse sentido implica em governar
de forma responsável. Inclusive, é interessante ver que a Nova Versão
Transformadora traduziu como governar em vez de subjugar ou sujeitar.
Essa tradução parece passar uma ideia mais adequada de como o ser
humano deve se comportar diante da criação, com responsabilidade e
amor, não com domínio e subjugação.

Na segunda narrativa da criação, tudo inicia com a formação do homem:


“Então o Senhor Deus formou o homem do pó da terra e soprou em
suas narinas o fôlego de vida, e o homem se tornou um ser vivente”
(Gn 2.7). Diferente do capítulo 1, Deus não faz o ser humano à imagem
e semelhança, mas forma o homem do pó da terra. E no verso 2.19,
da mesma terra: “O Senhor Deus formou da terra todos os animais
selvagens e todas as aves do céu...”. De acordo com González (2014),
essa passagem é bastante significativa pois da mesma terra que Deus
forma o homem, forma também os animais. De certa forma, isso traz
uma certa “irmandade” entre nós.

Continuando o verso 2.19, ainda há uma ideia de governo, mesmo que


forma mais sutil: “Trouxe-os ao homem para ver como os chamaria, e
o homem escolheu um nome para cada um deles.’” Ainda segundo
González (2014), nas culturas antigas do Oriente Médio, dar o nome a
algo ou alguém significa poder, autoridade sobre, assim, vemos nessa
passagem novamente a ideia de domínio do ser humano sobre os outros
| Teologia Contemporânea | FTSA | 79
seres criados, apesar de serem feitos da mesma terra. Porém, o domínio
que Deus dá ao ser humano não é ilimitado.

O homem e a mulher podiam comer de todas as árvores no jardim, exceto,


uma. Um limite foi imposto ali. E como sabemos, foi quebrado. González
(2014, p. 45) comenta: “Ao estender a mão e pegar o fruto proibido, o
homem e a mulher negam os limites que Deus colocou para seu governo e
deleite da natureza”. Essa percepção é bastante interessante, pois revela
que a transgressão cometida pelo ser humano no princípio, continua
sendo praticada na atualidade. O fruto da árvore em Gênesis era tentador,
parecia agradável ao paladar e atraente aos olhos (Gn 3.6). Isso também
não acontece quando o lucro é visado de forma excessiva? A natureza
parece ser boa, inesgotável para obtenção desse lucro. As consequências
desse desrespeito aos limites são problemáticas, fazendo com que o
ser humano seja inimigo da natureza, da terra e uns dos outros. Tudo
contrário aos propósitos de Deus na criação.

Considerando essa a compreensão do texto de Gênesis, algumas atitudes


são necessárias. Talvez, a primeira seja um pouco óbvia a partir do que foi
dito anteriormente, que é evitar a exploração desenfreada e inconsequente
da natureza. Precisamos reconhecer quem somos, saber nosso lugar na
criação. Somos imagem e semelhança, mas não somos o próprio Deus.
Precisamos respeitar a criação, sermos responsáveis com ela. Porém,
esse respeito e responsabilidade não podem ir para o outro extremo que é
uma veneração idolátrica da natureza. É muito válido sim, contemplarmos
a beleza, mas não devemos confundir a criação com o Criador.

Então precisamos ser cooperadores de Deus nessa tarefa de cuidar da


criação, bons mordomos que reconhecem a quem pertence a criação
(Dt 10.14). Stott (2011) e González (2014) concordam em dizer que o
texto da Carta aos Romanos sobre a criação que geme aguardando a
manifestação dos filhos (Rm 8:18-23), possui implicações ecológicas. A
criação sofre pela má mordomia do ser humano. E quando os filhos de
Deus, que são nova criação, isto é, com um novo entendimento sobre a
relação com a natureza, se revelarem, deve haver uma mudança nessa
lógica transgressora. Essa é a expectativa da criação.
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E isso implica três atitudes, pelo menos, pensando em uma espiritualidade
ecológica:

1. No reconhecimento de que nós estamos, junto com toda a criação,


submetidos aos ditames de uma “existência fútil” (Rm 8.20-23).
Ninguém, nem mesmo os/as filhos/as de Deus, têm passe livre em
relação a nada. Isso tem um sentido prático e trágico: o que acontece
à criação, resvala diretamente em nós.

2. Na manifestação dos sinais de que somos filhos/as do Eterno:


gememos junto com a criação; aguardamos com confiança e
paciência; persistimos em oração, mesmo quando as palavras cessam
e não sabemos mais o que dizer (8.26). Ou seja, aqui encontramos
também um sentido escatológico e missiológico: sofrer com a
criação é uma maneira de se conformar com o destino do crucificado
e ser, verdadeiramente, filhos e filhas do divino.

3. Na afirmação da obra de Deus, que vem desde a eternidade, que


não está alheia ao que nos acontece e pode, assim, criar um bem
totalmente inesperado em meio ao caos ecológico, fazendo com que
o amor brote em tempos de cólera, e a esperança nasça em meio ao
medo e ao obscurantismo. Ao fim e ao cabo, é possível que fiquemos
como o apóstolo Paulo, sem palavras, murmurando: “Que podemos
dizer diante de coisas tão maravilhosas? Se Deus é por nós, quem será
contra nós” (8.31). Parafraseando, se Deus é por sua criação, quem
será contra ela? Se o coração de Deus é ecológico, que coração, que
pulsa no compasso do coração divino, também não o será?

A partir de uma compreensão do verdadeiro eu, é possível reconhecer


o papel de mordomos da criação e assim desenvolvermos ações de
cuidado. É necessário repensar as causas de tanta degradação do meio
ambiente, e deixar, por exemplo, de seguir o consumismo desenfreado,
que personifica coisas e coisifica pessoas. É preciso, para isso, perceber
que o consumo tem sua própria lógica, ou a sua liturgia, que James
K. A. Smith (2018) chama de “liturgia do shopping”. Segundo o autor,
| Teologia Contemporânea | FTSA | 81
essa liturgia é uma prática que sobrevive às custas de dois elementos
efêmeros: “a emoção da ‘experiência’ ou acontecimento insustentável e
o resplendor do original e do novo” (Smith, 2018, p. 102). Ou seja, o que
sustenta essa liturgia é justamente a natureza evanescente da satisfação
que ela provoca, “exigindo novas experiências e novas aquisições”.

E o subproduto de novas aquisições é, segundo o autor, o “descarte


necessário do antigo e do tedioso” (ibid.). Ou o que Annie Leonard,
no documentário “A história das coisas”, chama de “obsolescência
programada”. Para que a liturgia (ou nossa adoração de objetos de
consumo) prossiga sem problemas, é necessário que sigamos a sua
ordem sem dizer nem perguntar nada. Não devemos nem perguntar “de
onde veio isso tudo?”, nem “para onde vai isso tudo?”, pois são duas
perguntas que certamente revelarão a injustiça e insustentabilidade que
residem nas duas pontas desse sistema: a da produção e a do descarte.
É necessário que, como cristãos, filhos e filhas do divino, portadores da
imago-Dei, reflitamos nas palavras de Smith (2018, p. 104):

A liturgia do consumo faz nascer em nós o desejo de


um estilo de vida que destrói a criação; além disso, faz
nascer em nós também o desejo de um estilo de vida
que não seja facilmente estendido a outros, criando um
sistema de privilégios e exploração. Em suma, a única
maneira de tornar real essa visão do reino consiste em
reservá-la para nós. a liturgia do shopping estimula
práticas e hábitos injustos; portanto, faz o que pode
para impedir que formulemos tais perguntas. Não
pergunte; não diga nada; só consuma.

Além disso, é igualmente urgente abandonarmos a espiritualidade gnóstica,


como comentado na Unidade 2, pois ela se torna um combustível para a
irresponsabilidade ambiental, uma vez que nessa visão, somente o que é
“espiritual” é bom. Encerramos esse tópico com a citação de Kirk (2006):

É óbvio que a fé cristã, entendida corretamente, não


comporta uma abordagem descuidada e imprudente

82 | Teologia Contemporânea | FTSA


ao meio ambiente. Ao contrário, ela advoga uma atitude
estritamente compatível com a satisfação as necessidades
básicas de cada pessoa, como alimentação, proteção,
cuidado com a saúde, trabalho digno e educação.
Algumas das questões “verdes” são tão próximas da
justiça para com o pobre que muito desse mesmo tipo de
ação se torna necessário. (Kirk, 2006, p. 234)

3.3. A cultura do espetáculo


Neste último tópico da aula sobre “sociedade”, gostaríamos de destacar
um dos perigos que a ênfase excessiva, ou não devidamente refletida,
nesse aspecto do consumo desenfreado, que exploramos no fim do
último tópico, oferece para o espírito humano e para o verdadeiro-eu: a
de render esse lugar ao que aqui chamamos de “cultura do espetáculo”,
em alusão à abordagem de Mario Vargas Llosa (2013). Nosso diálogo
será com Llosa e, por fim, com a história de Jesus no deserto, contada no
Evangelho de Lucas.

Descortinando a cultura do espetáculo


Mario Vargas Llosa defende a tese de que vivemos na era ou Civilização
do espetáculo no livro que leva esse título. Que tipo de civilização é essa?
É a civilização que tem o entretenimento e a diversão como valores
supremos; “onde divertir-se, escapar do tédio, é a paixão universal”
(Llosa, 2013, p. 29). Uma ideia central que ele defende ali é a de que
desenvolvemos uma grande necessidade de distração nos últimos
tempos. E o que a suscita? Segundo ele, um mecanismo de fuga de
nossos dramas. Em suas palavras:

Querer fugir ao vazio e à angústia provocada pelo


sentimento de ser livre e de ter a obrigação de tomar
decisões, como o que fazer de si mesmo e do mundo
ao redor – sobretudo se estiver enfrentando desafios
e dramas –, é o que suscita essa necessidade de

| Teologia Contemporânea | FTSA | 83


distração, motor da civilização em que vivemos. (Llosa,
2013, p. 36)

E, na opinião do autor, as drogas exercem esse papel de entorpecimento


– e, por “drogas”, poderíamos incluir aqui nossas geringonças do mundo
digital, como smartphones, por exemplo. Voltaremos ao assunto.
Retornando ao autor, ele garante ainda que:

Trata-se de uma ficção, não benigna, mas maligna nesse


caso, que isola o indivíduo e só na aparência o livra
de problemas, responsabilidades e angústias. Porque
no final tudo isso voltará a dominá-lo, exigindo doses
cada vez maiores de aturdimento e superexcitação, que
aprofundarão seu vazio espiritual. (Llosa, 2013, p. 36-37)

Destacamos na citação acima a palavra “vazio espiritual”. Aqui o aspecto


religioso entra na conversa. Llosa explica que a laicização (ou o efeito de
tornar laico, i.e., não-religioso) tomou conta das sociedades modernas,
dando mais liberdade às pessoas para decidir em que acreditar e se
devem acreditar em um Deus ou deuses, e praticar uma religião. A opção
por uma vida livre da influência direta da religião (ou “secular”) se tornou
vigente em muitos países, como o Reino Unido.1

Trata-se de um ledo engano, porém, pensar que na civilização ou


cultura do espetáculo o laicismo ou o secularismo eliminaram, com
sua resistência à religião mais institucionalizada, também a sede por
transcendência. Llosa destaca então a proliferação de seitas, cultos e
práticas espiritualistas alternativas como sinal, por um lado, de uma
sedução pelo sagrado, sim, mas, por outro, por formas “exóticas” e
“epidérmicas” (ou superficiais) de busca. Isto pois, segundo ele, ainda o
entretenimento ou “culto à distração” está no centro dessa busca, e não
tanto o relacionamento com a divindade (ou vida comunal) em questão.

1 Sobre isso, recomendamos a leitura do artigo “A Igreja no Reino Unido: o futuro terá
uma igreja?”, de Peter Brierley, no livro A igreja do futuro (2011, pp. 57-83), organizado
por Antonio Carlos Barro e Manfred Kohl.
84 | Teologia Contemporânea | FTSA
O “vazio” sobre o qual ele fala é provocado, segundo entendemos,
precisamente pela recusa da vida em sua inteireza, a recusa da integridade,
a recusa do sofrimento, a recusa da profundidade. A proliferação das
“espiritualidades” no mundo de hoje pode ser sinal, assim, precisamente
da ausência de alma, do contato com nosso ser profundo (como temos
trabalhado), ou do que o apóstolo Paulo chamou de uma “vida no Espírito”,
na qual a manifestação de frutos é central, enquanto as manifestações
sobrenaturais – como êxtases ou milagres – são periféricas.

Por isso, fazemos aqui uso da definição de espiritualidade de Robert


Solomon em Espiritualidade para céticos: “Espiritualidade, cheguei a
compreender, é nada menos que o amor bem pensado à vida” (Solomon,
2003, p. 18). Para quem é de fé – já que Solomon é outro autor se declara
ateu –adicionaríamos: um amor bem pensado a Deus e a vida!

Sim, porque o apóstolo João, em sua Primeira Carta, nos ensina que
espiritual é quem ama conforme o primeiro e segundo mandamentos:
de amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo.
Quando uma dessas dimensões é esquecida, você pode até ter religião
– isto é, práticas e discursos que denotam uma crença em Deus ou até
deuses –, mas não tem espiritualidade: amor refletido e que se reflete em
um modo de vida integrado (meu próximo-Deus-eu mesmo).

Outro efeito da cultura do espetáculo, segundo Llosa, é o desaparecimento


da vida privada. O que é privado e o que é público hoje em dia? A
superexposição da vida está na ordem do dia da cultura do espetáculo.
Llosa afirma que uma das consequências involuntárias dessa revolução
virtual foi:
A volatização das fronteiras que o separavam do
público, confundindo-se ambos num hapenning em que
todos somos ao mesmo tempo espectadores e atores,
em que nos exibimos reciprocamente, ostentamos
nossa vida privada e nos divertimos observando a
alheia, num strip-tease generalizado no qual nada ficou
salvo da mórbida curiosidade de um público depravado
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pela necedade [que é a tolice, ignorância crassa ou
imbecilidade gigantesca, acréscimo nosso]. (Llosa,
2013, p. 140)

Porque ele chama isso de “depravação pela necedade ou tolice”? Porque


fazemos isso de modo repetitivo, sem perceber que estamos sendo
engolidos por uma gigantesca imbecilidade. Em Provérbios 26.11, o
sábio diz: “Como o cão que come o próprio vômito, assim os insensatos
reciclam a tolice”. Tornamo-nos tão insensíveis a ponto de não saber
diferenciar comida de verdade de vômito? Será que não estamos
reciclando vômito, e o que é pior, vômito dos outros, quando curtimos
e compartilhamos tantas coisas e de modo tão instantâneo em nossas
redes sociais? Isso nada se parece com um “amor bem pensado”, como
refletimos anteriormente.

Em outras palavras, em que essa superexposição da vida, como


espetáculo, nas redes sociais está nos transformando? Ou ainda, cabe
perguntar: o que é que estamos perdendo de valoroso à vida enquanto
gastamos nosso tempo vidrados na tela de nossos smartphones e
tablets? Uma overdose de postagens não significa que perdemos a noção
de quem somos e temos a néscia necessidade de que outros venham e,
com suas curtidas, nos afirmem, e assim nos definam?

Os escritos de Byung-Chul Han2 têm nos ajudado a perceber que as redes


sociais são mais o efeito de um ocultamento que de uma vida transparente.
Nossos “perfis” não revelam a melhor, nem necessariamente a pior faceta
de nós mesmos/as. Esta foi reservada para as poucas pessoas que se
importam com o que acontece com nossas vidas off-line. Ao lado delas,
compartilhar e curtir normalmente não são meras atividades vazias. São o
resultado de relacionamentos reais, substanciais e verdadeiros. Ou seja, tudo
o que essas redes, que “conectam” sem criar laços, não podem oferecer,
por um fator limitador básico: elas são emulações da vida, que nós, porém,
insistimos em transmutar em alguma coisa com aparente valor.
2 Dentre eles, sobre esse assunto, destacamos os livros: Sociedade da transparência
(2017); No enxame: perspectivas do digital (2018).
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Uma curtida, porém, jamais poderá dizer nada sobre quem somos, nem
sobre a qualidade do que decidimos partilhar, para o bem ou para o
mal. Curtidas têm pouca substância. Elas podem ser apenas um signo
automatizado de uma alienação na qual todos estamos mais ou menos
enredados. Se assim for, elas não fazem sentido. É uma brincadeira nos
campos da efemeridade. O remédio – caso você decida não deletar todas
as suas redes sociais (por mais tentador e convidativo que isso seja) –
talvez seja não levar tão a sério o que “acontece” ali.

Algumas implicações (negativas) diretas da cultura do espetáculo, como


aqui exposta, à vida e espiritualidade humanas:

1. Nos tornamos incapazes de suportar o tédio, de cultivar o ócio,


o silêncio e a simples observação da vida que acontece ao nosso
redor. Um exemplo disso está na ânsia de preencher os momentos
de ócio em nosso cotidiano pela prática de sacar uma tela do seu
bolso e olhar para ela. Espiritualidade, por sua vez, rima com ócio e
tempo de qualidade para reflexão, que é de onde brota esse “amor
bem pensado”.

2. Perdemos cada vez mais contato com nosso interior – a morada


do “verdadeiro-eu”, não este forjado para aparecer em nossas
redes –, porque simplesmente paramos de habitá-lo ou porque
desperdiçamos qualquer chance que temos com distrações. É duro
ter que desmascarar o “falso si-mesmo”, construído pelas abstrações
e representações da mente, e encarar o verdadeiro (Merton, 2017). E
vamos nos tornando o que Friedrich Nietzsche (1998, p. 7) profetizou
há mais de um século: “seres do conhecimento” (ou melhor, da
informação), mas desconhecidos de nós mesmos porque nunca nos
procuramos. Espiritualidade, por sua vez, rima com profundidade e
autoconhecimento.

3. Por valorizar demasiadamente o entretenimento – o culto à distração


– e a sua conexão wi-fi ou 4G, que te possibilita estar em diferentes
lugares ao mesmo tempo, deixamos de vislumbrar a benção do
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aqui e agora, de estar nesse local, com estas pessoas, vivendo essa
experiência única. Transmitir a experiência – fazendo uma “live”,
quem sabe – às vezes se torna mais importante que viver essa
experiência, estando inteiramente, de corpo e mente, aqui. Sabe como
é? A pessoa está, por exemplo, no show que o Paul MacCartney fez
de surpresa para os frequentadores de um bar na cidade de Liverpool,
preocupada em fazer uma “live” para os seus amigos ficarem com
inveja, assistindo tudo então pela tela.

Não estamos, obviamente, demonizando a tecnologia, tampouco o


uso das mídias sociais. É realmente maravilhoso que esse aparelho de
celular que carregamos no bolso tenha sido inventado e permita que
nos conectemos com pessoas do outro lado do mundo. Mas é uma
tremenda contradição que alguém esteja conectado com milhares, mas
profundamente desconectado de si mesmo e das outras pessoas. O
problema, portanto, não reside na tecnologia nem nas mídias sociais, e
sim no comportamento dos usuários ou em que temos nos transformado
enquanto utilizamos essas ferramentas. Espiritualidade, por outro lado,
rima com conexão; conexão rima com intimidade; e intimidade rima com
presença. Com estar aqui; com viver o hoje, que é tudo o que temos;
enfim, com estar inteiramente disponível em cada encontro pessoal.

Render a vida ao espetáculo é o mesmo que banalizar sua santidade; ou


seja, seu caráter singular (ou o que ela tem de único) não é respeitado
pela cultura que relega ao efêmero a última palavra. Como Jesus nos
ensina a resistir a essa dominação da cultura do espetáculo em sua
espiritualidade, e quais são as implicações disso para cristãos vivendo
em uma cultura do espetáculo, é o tema do restante dessa unidade

Tentações da espiritualidade na cultura do espetáculo


Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do rio Jordão
e foi conduzido pelo Espírito no deserto, onde foi
tentado pelo diabo durante quarenta dias. Não comeu
nada durante todo esse tempo, e teve fome. Então o
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diabo lhe disse: “Se você é o Filho de Deus, ordene
que esta pedra se transforme em pão”. Jesus, porém,
respondeu: “As Escrituras dizem: ‘Uma pessoa não vive
só de pão’”. Então o diabo o levou a um lugar alto e,
num momento, lhe mostrou todos os reinos do mundo.
“Eu lhe darei a glória destes reinos e autoridade sobre
eles, pois são meus e posso dá-los a quem eu quiser”,
disse o diabo. “Eu lhe darei tudo se me adorar.” Jesus
respondeu: “As Escrituras dizem: ‘Adore o Senhor, seu
Deus, e sirva somente a ele’”. Então o diabo o levou a
Jerusalém, até o ponto mais alto do templo, e disse: “Se
você é o Filho de Deus, salte daqui. Pois as Escrituras
dizem: ‘Ele ordenará a seus anjos que o protejam. Eles
o sustentarão com as mãos para que não machuque o
pé em alguma pedra’”. Jesus respondeu: “As Escrituras
dizem: ‘Não ponha à prova o Senhor, seu Deus’”. Quando
o diabo terminou de tentar Jesus, deixou-o até que
surgisse outra oportunidade. (Lc 4.1-13, NVT)

Jesus, antes de iniciar seu ministério, foi conduzido pelo Espírito ao


deserto e ali passou quarenta dias e noites, como relata o evangelista
Lucas, em jejum e sendo tentado pelo Diabo, o inimigo ou acusador. O que
intentou o acusador contra o filho de Deus? Colocar à prova justamente
o que ele tinha de mais precioso, que é seu “lugar” junto ao Pai, sua
filiação ao amor incondicional do Pai. Ora, o “símio de Deus”, como o
chamou Lutero, ou o “pai da mentira”, como denominou o próprio Jesus
(cf. Jo 8.44), estava no deserto com Jesus fazendo o que faz de melhor:
incitando Jesus a uma representação, convidando-o a representar a
comédia do filho de Deus, por assim dizer. Esse é ponto central sob o
qual queremos que nossa reflexão gravite nesse tópico.

Antes, uma breve incursão sobre a natureza da tentação. Jacques Ellul,


em seu livro Se és o filho de Deus (2011) – que, aliás, é um dos melhores
sobre esta passagem –, procura desmistificar o lugar da tentação, dizendo
| Teologia Contemporânea | FTSA | 89
que ela nem é um ato propriamente divino (isto é, não é Deus quem tenta),
tampouco pode ser visto como que personificado pelo Diabo (ou seja,
uma figura externa que aparece para Jesus e se põe a tentá-lo). “Toda
tentação é humana”, afirma ele. O Shatân – que é o nome grego dado
ao “acusador”, de onde extraímos a palavra satã –, segundo Ellul (2011,
p. 18), “é apenas o composto, a síntese, a soma de todas as acusações
trazidas pelos homens contra os outros homens no mundo”. E o que ele
quer dizer com isso é que “não se trata de um ‘espírito’ independente
do homem que lhe ‘inspira’ essa acusação. Ela surge tão somente do
coração do homem”.

Em outras palavras, o que Ellul está sugerindo é que as tentações


de Jesus em Lucas são a suma das tentações humanas, que já
perpassavam o coração do filho do homem, como se autodenominou
Jesus, sugestionadas pela “cobiça que está dentro de cada um de nós,
cuja outra face se chama espírito de poder/potência” (Ellul, 2011, p.
19). Ora, o próprio Jesus foi quem disse que é “de dentro” do coração
(leb, no hebraico), que para os judeus era o centro da volição humana,
que procedem todos os maus desígnios. Jesus, como testemunham as
Escrituras, não pecou, mas foi tentado como qualquer ser humano.

Assim, queremos defender aqui que Jesus passou por uma das provas
pelas quais toda a espécie humana tem passado todos os dias: a tentação
de representar a comédia do filho de Deus. Que é a comédia de Adão e
Eva, a comédia da usurpação: de ser mais ou menos do que realmente
somos, ou de ter que provar, por meio de performances, pela redenção à
cultura do espetáculo, que somos quem dizemos (e os outros dizem) que
somos. O “se tu és o filho de Deus” dito a Jesus, pela voz de um acusador,
é uma voz que tem estado no interior do espírito humano desde sua
queda. É a voz tipificada na figura da serpente. O que nos toca responder
agora é: de que modo essas tentações perfazem nossa espiritualidade e
como resistir a elas? Faremos isto nomeando cada tentação.

A primeira tentação: colocar a espiritualidade à serviço do ego. Já vimos


na unidade passada que, dentre inúmeras definições existentes, o ego
90 | Teologia Contemporânea | FTSA
pode ser entendido como o aparato psíquico que comporta um complexo
de identificações e representações que formam a autoimagem da pessoa.
Dito de outro modo, o ego é quem nós pensamos que somos, e, também,
como a gente se projeta para os outros por padrões de comportamento,
identificações e papéis sociais. Segundo Eckhart Tolle (2007, p. 52), o
ego “se estabelece quando o sentido de Existir, do ‘eu sou’, que é uma
consciência sem forma, mistura-se com a forma”. Essa é uma das peças
pregadas pelo ego humano: a de mensurar a essência pela forma, o que
também chamamos de “idolatria”.

A adoração da forma que se converte em performance. No caso de


Jesus, transformar pedras em pão seria o milagre mais óbvio e, de certo
modo, plausível na situação em que ele se encontrava. Após quarenta
dias e noites no deserto, Lucas diz que ele “teve fome”. Se pensarmos
nesses dias no deserto como um “sacrifício” feito por Jesus (aos moldes
da sua religião), é tipicamente humano concluir que, depois de tudo, o
mínimo que ele merecia seria se alimentar. E por que não transformar
essas pedras em pão? Que mal há nisso, sendo ele o filho de Deus?

O problema é que, se ele fizesse isso, estaria utilizando do poder de


Deus para satisfazer os caprichos de seu ego. E o ego se vê inflado pelo
sentimento não apenas de que sua performance produziu algo de útil ou
transformador, mas especialmente quando sabe que ela causou impacto
em outras pessoas. É aquela frase de efeito que guardamos na manga
para que, dita no momento certo, possa provocar burburinhos de “nossa!
Causou”, “lacrou” ou “mitou” na plateia – expressões que, na era das redes
sociais, às vezes substituem os usuais gritos de “aleluia” e “fala Deus!”
da cultura evangélica. Mas, parafraseando o que respondeu Jesus, “nem
só de pão” – ou de “mitadas” e “lacradas” – vive o ser humano. Podemos
ser (e normalmente somos) mais relevantes precisamente quando não
estamos tentando “ser relevantes”, que é como Henri Nouwen (2002, p.
18) nomeia essa primeira tentação.

A segunda tentação: divorciar a espiritualidade da integridade. No pico


de uma alta montanha, o Diabo faz outra oferta sedutora: os reinos da
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terra são meus e eu posso dar a quem eu quiser, por isso te darei todos
eles se você me adorar (v. 5-6). Jacques Ellul (2011, p. 68) a denomina
“tentação política”, e Nouwen (2002, p. 47) chama de tentação de “ser
poderoso”. A lógica é simples e tem estado conosco (nas diferentes
esferas de exercício de poder) há milênios: quem quer fazer política para
satisfazer sua vontade de poder deve, antes ou durante o processo, se
curvar e adorar à potestade invisível, mas real, que manda nesse pedaço.

Imagine que um candidato com boas intenções recebe uma oferta


sedutora do dono de uma grande empreiteira: “Me deixa te ajudar a ganhar
essa campanha!”. Mas, deixe esse negócio de ética e integridade de lado,
porque (como disse um político de Londrina, certa feita): “ética não ganha
eleições” (com cada vez mais raras exceções). O problema menor é que
“quem financia também quer mandar”. E o problema maior é: além de
levar uma fatia do poder, leva também uma fatia da alma de quem aceita
negociar! A situação de Jesus é um pouco pior: colocar o poder político à
serviço do Evangelho e servir-se dele para o bem, ou depender somente de
Deus e desafiar outros poderes? Afinal, a sugestão de Satã era para “Jesus
realizar justamente aquilo para o qual Deus o enviou! E Jesus recusa. Ele
recusa sua própria tentação de exercer esse poder universal, de exercer,
ele mesmo, esse poder, tomando-o” (Ellul, 2011, p. 70).

No século IV, a igreja constantiniana de então cedeu a essa tentação,


contra a própria sabedoria alternativa presente no exemplo de seu nominal
Senhor: resolveu dar a César o que é de Deus e a Deus o que é de César.
Ou seja, ela (embora nem toda ela) trocou o reino de amor de Jesus pelo
reino do poder. Com efeito, como observa Nouwen (2002, p. 50), “a longa
e dolorosa história da Igreja é a história de pessoas que vez após vez
foram tentadas para escolher o poder no lugar do amor, para controlar
ao invés de aceitar a cruz, para ser um líder ao invés de ser liderado”.
Não é de se admirar que tantos líderes cristãos sejam incapazes de dar
e receber amor no exercício de suas funções, tendo em vista que seu
objetivo principal é construir um império para si, e não resistir às forças
do Império, como fez Jesus.

92 | Teologia Contemporânea | FTSA


A resposta de Jesus, porém, aponta um caminho diferente, que atraiu
a tantos outros nessa mesma história até hoje e deve dar o tom de
nossa espiritualidade contemporânea: adorar somente a Deus; servi-lo
com inteireza de coração. Ser integro é ser inteiro, que é algo que não
podemos ser se apartados de Deus. Mas o testemunho de Jesus mostra
que isso normalmente conduz à cruz, lugar para onde são conduzidos
todos/as aqueles/as que não se curvam à primeira potestade que se
apresenta oferecendo poder, dinheiro e fama; lugar daqueles/as que
diminuem (mesmo do alto de um púlpito, com microfone nas mãos) para
que outros cresçam, bem como daqueles/as que, como Jesus, escolhem
o amor ao invés do poder. Difícil, mas libertadora escolha.

A terceira tentação: submeter a espiritualidade à espetacularização. A


última tentação é “religiosa”, como observa Ellul (2011, p. 72-75). Jesus
é levado ao alto do templo em Jerusalém, e o Diabo diz (em outras
palavras): “Salta daqui, porque segundo a palavra do teu Pai no Salmo
91, os anjos vão te amparar”. Há detalhes que não podem passar batidos
aqui. O “pináculo do templo”, como se diz e alguma traduções, era o
local mais alto do templo de Jerusalém, e também o ponto de maior
visibilidade para os inúmeros transeuntes que percorriam os arredores
do templo diariamente. Saltar dali seria uma demonstração sublime do
poder da Palavra, como também uma espetacular confirmação, o gran
finale da comédia do filho de Deus.

Outro detalhe que Lucas faz questão de não ocultar é o de que o


Shatan, o acusador, faz uso da Escritura, demonstrando ter um domínio
instrumental dela, para tentar convencer Jesus de que aquela era uma
alternativa legítima ao filho de Deus. E encena, assim, um dos exemplos
bíblicos mais convincentes que conhecemos sobre uma artimanha muito
comum entre religiosos: retirar um verso bíblico do contexto (do texto e
da revelação) para embasar um argumento sem se preocupar com o todo
da revelação, apenas com o efeito prático que a citação pode produzir em
seus ouvintes. Jacques Ellul defende, em contrapartida, que: “A grande
regra é a de que nenhum texto, nenhum versículo, nenhuma declaração,
| Teologia Contemporânea | FTSA | 93
valem por eles mesmos. Separar um texto do conjunto dinâmico da
revelação de Deus é inevitavelmente falseá-lo” (Ellul, 2011, p. 72).

A tentação aqui é a Deus: faça Deus provar para esse povo todo que
Ele é Deus e que você é Filho Dele! Em outras palavras ele está dizendo:
banalize o dom de Deus, transformando-o em objeto de espetáculo.
Assim, segundo Ellul (2011, p. 75), “o homem tenta Deus quando lhe
faz pedidos que não foram inspirados pelo Espírito Santo”. Submeter a
espiritualidade ao espetáculo religioso (de cura, êxtase, milagre, etc.) é a
forma mais comum de colocar Deus à prova também hoje; lugar comum
na cultura do espetáculo. A resposta de Jesus, mais uma vez, é indicativa
de um possível caminho a todo crente hoje: não tenha ousadia de colocar
Deus à prova (v. 13). Jesus se recusa a trocar o relacionamento de amor
com o Pai por provas baratas. Ama a Deus aquele que verdadeiramente
se sabe amado por Ele, aceito por Ele, e suficiente Nele, e por tudo isso
não precisa cair nesse tipo de emboscada diabólica.

A vocação espiritual não é para fazer milagres e sim para exprimir o


amor. A vocação espiritual não combina com circo exibicionista. Porque
exibicionismo espiritual exibe a pessoa, e não o Deus que ela diz amar e
servir. Se a igreja e sua liderança quiserem testemunhar com autoridade
na era do espetáculo, além de conservar a alma (aspecto tão essencial
ao cuidado de si, numa perspectiva cristã), precisarão abandonar “o
sofisma” dos mestres da Lei e passar a viver mais o Evangelho, como
Jesus. Começamos essa unidade falando de sociedade. Terminamos
falando de igreja, tópico da última unidade desse curso.

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96 | Teologia Contemporânea | FTSA


Unidade IV – Igreja
Introdução
“Na religião, muitos preferem as transações mágicas,
externas e imediatas, em vez do padrão universal de
crescimento e cura pela perda e renovação. (...) Pessoas
acomodadas tendem a ver a Igreja como um exótico
antiquário, no qual elas podem cultuar coisas velhas
como substitutos de coisas eternas”. (Richard Rohr)

Que é a Igreja? O que ela é no mundo contemporâneo? Quem ela é


chamada para ser? Que desafios se interpõem ao “ser da Igreja” neste
tempo que ousamos chamar de “nosso”? Perguntas difíceis de responder,
pois pressupõem um andar, acompanhado de respostas que não são
dadas de uma vez por todas, mas que se constituem provisoriamente e
na medida em que aprendemos, antes, a ficar tempo suficiente com as
perguntas, feitas por nós ou outras pessoas. Como podemos oferecer
respostas se não sabemos exatamente a quais perguntas elas devem
ser endereçadas? E como saberemos as perguntas se não ouvimos duas
vezes, como disse tão propriamente John Stott: ao Espírito e ao mundo?

Certa feita, um de nós recebeu um email de um estudante, que perguntava:


É teologicamente correto dizer que a Igreja é um tipo de sociedade
alternativa?

Sem dúvida, em nossa compreensão – que, esperamos, fique clara ao


longo desta última unidade – isso não só está teologicamente “correto”,
como historicamente tem marcado a vida da Igreja, daquela que não se
rende aos ditames do institucionalismo; sempre que ela resolve ser fiel
ao seu chamado de sinalizar o Reino de amor no mundo, ela se constitui
como uma “sociedade alternativa”, não no modo hippie “paz e amor” dos
anos 1970, ou no sentido de que seria uma “ilha” apartada do resto, onde
podemos nos alienar do mundo, mas enquanto se mantém como ponto
de esperança divina bem no meio do mundo.

| Teologia Contemporânea | FTSA | 97


“Ali” nossos conflitos não são diminuídos porque somos cristãos – como
afirma essa versão sofisticada da teologia da prosperidade, anti-crise e
sofrimento. Pelo contrário, eles aumentam, à medida que não vivemos
de acordo com os termos do mundo e sim do Reino, como o próprio
Jesus advertiu aos discípulos (João 15), para que não se admirassem
se o mundo os odiasse; é que eles não vivem segundo os meandros do
mundo, nem os obedecem; se vivessem de acordo com tais termos, o
mundo os amaria e os aprovaria. E, observe bem, tudo isso acontece
porque estamos no mundo, porque Deus amou o mundo e porque nos
chama a proclamar a reconciliação em nossa vida no mundo. Isso é
fundamental para tudo o que já foi e ainda será dito nesta disciplina.

Entendemos, assim, que a Igreja deveria atuar como a principal alternativa


do Espírito para os cansados, feridos oprimidos e sobrecarregados
do mundo; ser agente profético de denúncia à corrupção e injustiça,
sob que forma elas apareçam; ser “agente de transformação integral”,
como ensinou René Padilla. Por outro lado, sempre que a Igreja deixa,
por alguma razão, de exercer esse papel, o Espírito, inadvertidamente,
não deixa de agir. Isso significa que o Espírito não é monopólio da Igreja.
Não é Ele quem acompanha os movimentos (e patacoadas) dela, mas é
exatamente o contrário, ela que, como comunidade dos carismas, deve
acompanhar o sopro do Espírito, onde quer que Ele esteja soprando, e
ouvir a sua voz, ainda que não saiba dizer de onde vem e nem para onde
vai (cf. Jo 3.8). Pois, no fim das contas, o que interessa não é tanto “para
onde”, mas “com Quem” vamos.

Que a Igreja seja do Espírito, que ela ouça o Espírito e que ela ande no
Espírito, isso é o que importa e sobre isso queremos refletir nesta unidade.
Para tanto, elegemos três tópicos em particular e interligados para a
discussão: (1) a relação entre tradição (eclesial, cristã) e contextualização
do Evangelho; (2) a questão do diálogo entre as igrejas cristãs e com
pessoas de outras religiões; por fim, (3) sobre como podemos reimaginar
a Igreja na contemporaneidade.

98 | Teologia Contemporânea | FTSA


Objetivos da unidade
1. Relacionar tradição e contextualização, à luz da relação entre
Evangelho e cultura contemporânea;
2. Compreender a importância do diálogo para uma Igreja missional;
3. Desenvolver a arte da imaginação no ato de ser Igreja no e para o
mundo.

4.1. Tradição e contextualização


Apesar de o tema da tradição ser debatido ao longo da história, parece
que criamos uma imagem romântica e saudosista de que, no passado, a
tradição era respeitada e não havia quaisquer dúvidas ou questionamentos
sobre sua validade – que hoje entendemos ser apenas relativa. Quando
olhamos mais atentamente, vemos, porém, que nem sempre foi tão
simples assim, uma vez que em vários momentos da história da Igreja, a
tradição foi questionada, pessoas foram consideradas hereges, enquanto
outras influenciaram significativamente a transformação/ renovação
da tradição. Já a contextualização – reler criticamente textos à luz de,
e em aplicação a, determinados contextos – também sempre ocorreu,
até de forma não percebida, uma vez que a forma como a Bíblia era lida
e interpretada, dialogava com a vida das pessoas no momento. Nesse
tópico faremos reflexões de como lidar com esses assuntos na Igreja
dos dias atuais.

Começaremos com a definição de tradição trazida por González (2015).


A palavra no latim é traditio, que significa o ato de passar uma ideia
ou algo para outra pessoa e, também, significa aquilo que está sendo
passado. O que podemos associar com a palavra “transmissão” e traz o
sentido para a fé cristã de transmitir ensinamentos para outras pessoas
– na forma de doutrinas, formulações e preceitos – bem como praticar a
própria tradição. Podemos observar na Bíblia um exemplo desse sentido
na primeira carta de Paulo aos Coríntios: “Pois eu lhes transmiti aquilo
que recebi do Senhor...” (1Co 11.23, NVT).

| Teologia Contemporânea | FTSA | 99


Pensando nisso, a tradição é peça fundamental na fé cristã, pois foi a
forma como ela se propagou nos primeiros anos entre os discípulos.
Aliás, uma questão bastante interessante para pensarmos é que na fé
cristã, em certo sentido, o antigo é melhor do que o novo. É Claro que,
com o avanço das ferramentas científicas contemporâneas, é possível
debater sobre aspectos dos tempos bíblicos, que demonstram como,
por exemplo, determinadas regras e afirmações são peças visivelmente
datadas. Porém, não podemos negar que foi mais privilegiado quem
esteve mais próximo dos relatos. Se considerarmos os princípios
naturais de uma transmissão, como uma simples dinâmica de “telefone
sem fio”, já é possível perceber como as informações são afetadas por
cada pessoa que ouve e fala o que entendeu.

Apesar disso, os cristãos envolvidos na tradição enredaram-na em


formas compreensíveis ao ser humano e o cânon bíblico é um exemplo
bastante claro disso. Uma vez que os primeiros discípulos estavam
falecendo e Jesus ainda não havia voltado, foi necessário encontrar
formas de preservar e compartilhar o que eles viveram, pois não foi um
acontecimento qualquer. Conforme comenta González, a tradição cristã
não se baseia somente em princípios intuitivos; antes, é a transmissão
de ensinos e práticas pautados na vida, morte e ressurreição de Jesus.
Essa tradição conseguiu ser preservada até a atualidade, pois: “todos
nós ouvimos falar de Jesus quer diretamente pelos lábios de outros
quer indiretamente pelos autores do Novo Testamento – ou, mais
provavelmente, por ambas as maneiras” (González, 2015, p. 222). Somos
privilegiados por poder receber essa tradição de formas diferentes.
Porém, ao mesmo tempo, na contemporaneidade a Igreja parece viver
certos desafios relacionados à percepção e cultivo de sua tradição.

Crise na tradição?

Para conversarmos sobre essa questão é importante, mesmo que de forma


breve, considerarmos o contexto no qual vivemos. Grenz (2008) menciona
algumas características que encontramos na contemporaneidade
chamada também de pós-modernidade, para exemplificar: pessimismo,
100 | Teologia Contemporânea | FTSA
relativismo e pluralismo. Essas três características estão ligadas pelo que
François Lyotard batizou de “desconfiança em relação às metanarrativas”,
ou das grandes narrativas universais que foram cultivadas, pelo menos,
até a modernidade – embora hoje já não se acredite mais que a incidência
delas tenha terminado. O pessimismo se deve à quebra da confiança
cega no mito do progresso contínuo da humanidade; o relativismo é fruto
da descrença de que é possível a um sistema ou forma de pensamento
deter ou mesmo chegar à verdade absoluta; e, juntamente com isso, o
pluralismo surge como fruto do relativismo. Essas características não
surgiram de repente, mas foram resultantes de transformações no
paradigma social e científico.

Não é simples determinar um ponto de partida exato ou delimitar um


ano específico em que isso ocorreu, mas podemos mencionar alguns
marcos para fins didáticos. Após a propagação dos ideais iluministas
houve um grande avanço na ciência no decorrer dos séculos. Inclusive,
um dos pensamentos é que o ser humano conseguiria explicar todos
os fenômenos da vida a partir do progresso científico e se emancipar
de qualquer tipo de crença fora da racionalidade. Isso gerou uma falsa
sensação de solidez, pois, como vimos na situação pandêmica, certas
descobertas em laboratório não conseguem ser replicadas em condições
naturais e a incerteza acaba afetando a todos.

Com o passar do tempo, e a frustração por não conseguir controlar


todas as variáveis, o paradigma “sólido”, exato, foi se alterando dentro
da ciência e, também, na sociedade. Como aponta Santos (2008), houve
o surgimento de um paradigma emergente, no qual, a universalidade
deixava a cena para dar lugar à especificidade. Isto é, as verdades
e valores científicos antes tidos como absolutos começaram a ser
questionados, tendo como um de seus marcos Einstein e a “teoria da
relatividade”. Além disso, outro fator importante para essa mudança foi
o avanço das ciências sociais, que antes eram colocadas em segundo
plano, contribuindo com subjetividade e especificidade. Ainda de acordo
com Santos (2008), esse paradigma emergente não é dualista, dicotômico
| Teologia Contemporânea | FTSA | 101
e, como todo conhecimento científico, visa constituir-se em senso comum.
Os reflexos disso então puderam ser vistos em diferentes esferas da
sociedade. Nesse cenário da pós-modernidade, tudo o que aparentava ser
certo, sólido, único, começou a se transformar em incerto, líquido e plural.

Claro que isso afetou a Igreja, uma vez que muitos dogmas estavam
estabelecidos sobre o paradigma anterior, e, sobretudo, a partir do
século XX, certos aspectos passaram a ser questionados. Algumas
obras escritas, que traziam críticas aos cristãos, receberam grande
atenção e, além disso, o número dos que se consideram ateus, cresceu,
principalmente nos países europeus – como vimos na primeira unidade.
Tudo isso, em um primeiro momento, aparentou que a tradição da fé cristã
iria morrer no Ocidente e daria lugar ao pensamento secular baseado
exclusivamente na ciência. Isso causou e ainda causa medo e espécie
em muitas pessoas. Porém, caso você esteja atento ao que se diz, por
exemplo, nas grandes empresas e entre muitos profissionais de saúde,
deve ter percebido que o tema espiritualidade, por outro lado, está cada
vez mais em alta. Entre pessoas que declaram uma fé em Deus, embora
sem religião ou pertencimento, isto é, afirmam nutrir uma “vida espiritual”
longe dos ditames e da “cobertura espiritual” das igrejas e seus líderes. E
até mesmo entre pessoas que afirmam não possuir nem fé, nem religião,
mas que almejam uma espécie de transcendência puramente natural ou
humana, baseada em uma reverência à natureza, ao cosmos, ao bem-
estar na vida e à felicidade e realização humanas.

Nessa realidade reluz precisamente o sentido de “secularidade” apresentado


por Charles Taylor (2010, p. 29), no qual “passamos de um mundo no qual o
lugar de plenitude era compreendido sem problematizações como fora ou
‘além’ da vida humana, para uma era de conflitos na qual essa interpretação
é desafiada por outras que localizam essa plenitude (num amplo espectro
de maneiras diferentes) ‘dentro’ da vida humana”. Nesse sentido, é válido
considerar o questionamento exposto por Tomás Halík sobre o que muitos
chamam de “retorno da religião”:

102 | Teologia Contemporânea | FTSA


“A religião está voltando” – ouvimos hoje de todos os
confins da Terra. Há dissenso apenas em relação à
avaliação: se isso deve ser considerado algo bom ou
ruim – e talvez também em relação ao que ou quem
estaria voltando. Estaria voltando o Deus Uno, “o Deus
de Abraão, Isaac, Jacó e Jesus”, no qual acreditam
os judeus, cristãos e muçulmanos, ou o “deus dos
filósofos”, o ser sublime – a descoberta dos pensadores
do Iluminismo, o adorno das proclamações políticas e
dos preâmbulos das constituições? Estaria voltando
um Deus capaz de responder silenciosamente aos
corações humanos sedentos e de curar suas feridas ou
um Deus da guerra e da vingança, que não cura, mas
fere? (Halík, 2016, p.11)

É essencial destacar que ele não fala de uma tradição somente, mas
de diferentes tradições. Pode parecer estranho, mas nem sempre
que falamos sobre Deus estamos nos referindo ao Eterno, por isso é
importante questionar: “qual tradição estamos seguindo?” ou “de qual
deus estamos falando?”. Para não cairmos no erro de pensarmos que
isso é somente uma questão contemporânea, González (2015) percorre
outros momentos da história em que ocorreram debates acerca da
tradição cristã: Tertuliano, Agostinho, Vicente de Lérins, entre outros.
Para os protestantes, o exemplo mais significativo desses debates foi
Martinho Lutero, que questionou práticas da tradição que estavam se
colocando acima da autoridade das Escrituras, sendo uma das principais,
a venda de indulgências. (Sobre isso, é quase impossível não pensarmos
no que acontece na atualidade e compararmos à época Medieval. Se
antes as indulgências eram vendidas para alcançar a salvação, hoje são
para alcançar a prosperidade, o que é extremamente tentador – para não
dizer promissor – em um mundo consumista).

Então, discutir sobre a tradição não é uma deturpação da


contemporaneidade ou sinal dos fins dos tempos, ao contrário, é uma
| Teologia Contemporânea | FTSA | 103
prática necessária para que a fé mantenha sua vivacidade e traga algum
tipo de transformação. Hoje há quem prefira se fechar e se apegar à
literalidade das Escrituras em nome da “sã doutrina”, bem como há quem
postule um diálogo entre a tradição e a cultura. Como já indicamos,
seguiremos o segundo caminho, que entendemos ser o melhor caminho,
pois, como diz Merton (2017, p. 137): “Todas as tradições humanas
tendem à estagnação e à desintegração. Tentam perpetuar coisas que
não podem ser perpetuadas. Aferram-se a objetivos e valores que o
tempo destrói sem piedade”.

O tradicionalismo e o conservadorismo – que não conserva, mas mata,


como diria John Caputo – não deveriam, porém, fazer desaparecer
nosso apreço pela tradição cristã, que é boa e necessária e “inteiramente
oposta ao tradicionalismo humano” (Merton, 2017, p. 137). O interessante
na análise crítica de Merton é o parentesco que ele observa entre tradição
e revolução. A tradição viva, que manteve a fé cristã em movimento há
mais de dois mil anos – a despeito de tentativas de encerramento dela na
cela do tradicionalismo – é, como exemplifica Merton, “como a respiração
de um corpo físico: renova a vida repelindo a estagnação. É uma revolução
constante, pacífica e silenciosa contra a morte” (Merton, 2017, p. 137).

Nesse sentido, os filhos/as mais fiéis de uma tradição não são aqueles
que se consideram paladinos ou guardiães dela – tentando protegê-la
e conservá-la a todo custo –, mas são aqueles e aquelas que, à luz de
sua conexão com o sopro do Espírito e leitura perspicaz do espírito da
época (Zeitgeist), resistem a seu engessamento e procuram renová-la
por dentro, tanto em termos de linguagem como de conteúdo. Como
fez Jesus de Nazaré ao dizer que não veio revogar a lei de Moisés ou
os escritos dos profetas, mas cumpri-los (Mt 5.17). O que, na prática,
significou, para desespero dos paladinos de seu tempo, revisar aquilo
que “foi dito aos antigos”, mas que precisava ser revisto e redito de
outra forma (“eu, porém, lhes digo”), aprofundando, assim, o sentido da
lei, tirando-a dos escombros do conservadorismo e demonstrando, por
obras de justiça, que ela estava a serviço da vida e não o contrário (cf. Mc
104 | Teologia Contemporânea | FTSA
2.27). Aqui está o princípio da contextualização, sobre a qual trataremos
mais detidamente a seguir.

O desafio da contextualização

Para ilustrar a ideia de Merton de que as tradições humanas tendem à


estagnação, sigamos pensando a partir dos evangelhos. Os fariseus,
mestres da lei e escribas deixaram a tradição estagnada tentando
perpetuá-la, mas o resultado foi uma religiosidade vazia e morta. Jesus
mostrou como a Lei de Moisés deveria ser interpretada naquele tempo
e trouxe vida e esperança com seus ensinamentos. Como Ele mesmo
afirmou, não veio para abolir a Lei ou os Profetas, mas para cumprir (Mt
5.17). Então, a relação com a tradição é um paradoxo, pois que não se
pode jogar toda a tradição fora, ao mesmo tempo, não é possível mantê-la
inerte. O desafio é buscar identificar quais elementos da tradição trazem
a força do Evangelho de Jesus e pensar no diálogo e contextualização.

Vamos agora, em primeiro lugar, falar sobre um termo conhecido, mas


que González (2014) apresenta uma perspectiva no mínimo interessante.
O termo é catolicidade. Talvez, a maioria das pessoas entenda esse
termo como universal, no sentido de que é uniforme para todos. Contudo,
segundo o autor, a palavra católica pode ser compreendida como:
“segundo o todo”. A palavra katholicos no grego é composta por katá,
que significa “segundo”, no sentido “de acordo com” e hólos, que significa
“todo”. Considerando isso, vamos aplicar a palavra catolicidade em duas
perspectivas: na Bíblia e na Igreja.

Algo que pode trazer um certo incomodo, dependendo da forma como


lemos e interpretamos a Bíblia, é que, diante de uma mesma situação,
encontramos diferenças nos textos. Na unidade passada já apresentamos
um exemplo quando falamos sobre as duas narrativas da criação, em
Gênesis 1 e 2. Também podemos mencionar os evangelhos como um
grande local de discussões e até mesmo fonte de argumentos para quem
quer tentar desqualificar a Bíblia falando de suas incongruências, como:
o que Jesus falou quando estava sendo crucificado? Ou então, por que
| Teologia Contemporânea | FTSA | 105
Mateus e Lucas apresentam genealogias diferentes da vida de Jesus?

Algumas Bíblias possuem anotações de passagens que remetem à


mesma ocasião nos evangelhos e, aos curiosos que leem atentamente,
pode-se perceber que há divergências entre elas. Como lidar com isso?
Seria muito mais prático para convencer outras pessoas se os relatos
fossem iguais ou com diferenças quase não perceptíveis! É nesse sentido
que é preciso considerar a catolicidade da Bíblia. Ela é abrangente, não é
somente a narrativa de um autor, mas é plural, como o próprio nome diz,
Bíblia, coleção de livros, e deve ser compreendida “segundo o todo”. Para
continuar no exemplo dos evangelhos, apesar de suas divergências, os
autores foram coerentes ao falar sobre a vida, os ensinamentos, a morte
e a ressurreição de Jesus.

Assim, ao contrário do que podemos pensar, uma das grandes riquezas


da Bíblia reside precisamente em sua pluralidade, isto é, em relatos
diversos entre si, mas contados “segundo o todo”, apontando para o Deus
Criador e Senhor. Por isso, estaríamos equivocados se esperássemos
que ela fosse como uma obra totalmente coesa, ditada por Deus palavra
por palavra, pois se isso acontecesse deixaria de revelar a multiforme
sabedoria de Deus. Conforme diz Jean Louis Ska:

A Bíblia não é um jornal, mas uma banca. Não


encontramos uma opinião única, nítida, simples,
unilateral e incontestável, mas diversas opiniões que se
completam em certos casos, mas que podem também
se contradizer em outros... A voz de Deus se faz ouvir
através de todas as vozes humanas que ressoam na
Bíblia, em um concerto algumas vezes harmonioso,
em outras desarmônico, porque o caminho que conduz
à verdade sinfônica final é longo e pode passar por
momentos de quase cacofonia (Ska, 2005, p.133).

Se a Bíblia possui essa força da pluralidade, a Igreja também pode e deve


seguir por esse caminho. E um alerta importante feito por González (2014),
106 | Teologia Contemporânea | FTSA
é que como nenhuma perspectiva humana é completa, precisamos cuidar
para não confundirmos uma particularidade de interpretação relacionada
à uma questão de poder na sociedade com uma forma universal de
interpretação. O próprio termo é contraditório: formas de interpretação não
podem ser, por sua própria natureza, universais. Elas são aproximações
da verdade, mas não a verdade mesma. E, como salientou Merton (2017,
p. 142), “a luz da verdade não é algo que existe para nosso intelecto, mas
é alguém em quem e para quem todas as mentes e espíritos existem”.
Nesse sentido, como completa ele, “a teologia só começa realmente a
ser teologia quando transcendemos a linguagem e os conceitos distintos
dos teólogos”.

Esse alerta profético de González e Merton se faz necessário para que


não consideremos como correto o único modelo de ser igreja herdada de
países anglo-saxões, por exemplo, uma vez que essa é nossa principal
influência. Porém, isso não significa que não haja uma verdade única.
O que existem são perspectivas diferentes, mas que, no fim, direcionam
para o mesmo Jesus Cristo, Filho do Deus vivo. Uma comparação
simples para compreender essa ideia é pedir para que pessoas diferentes
destaquem um aspecto de um grande quadro. Todas elas podem falar de
partes diferentes, mas o quadro é o mesmo. Diante disso, precisamos
pensar em como uma Igreja “segundo o todo” pode cumprir com a Grande
Comissão de Jesus, o que envolve diretamente o fator cultura.

Durante séculos algumas culturas foram consideradas superiores


às outras e não é difícil perceber isso quando falamos de países
colonizadores e colonizados. Isso está ligado ao paradigma de que o
progresso seria contínuo por conta do avanço das ciências. Os países
que tiveram maior acesso à ciência empírica, como estamos habituados,
se tornaram o padrão a ser alcançado. E até hoje, em muitos lugares,
esse pensamento que faz acepção entre culturas superiores e inferiores
existe. Para dar um simples exemplo, por parte de quem vive nas grandes
cidades, não é incomum pensar nos indígenas como atrasados, sem
modos ou intelectualmente limitados. Porém, ao conhecer melhor a
| Teologia Contemporânea | FTSA | 107
cultura de um povo indígena é possível perceber que isso é apenas um
estereótipo muito limitado. Mas justamente por esse pensamento existir
é que algumas “missões” tentam pregar aos indígenas o mesmo “Jesus
europeu” do século XVI ou outro mais próximo da cosmovisão ocidental.

Sobre esse aspecto das culturas, no Pacto de Lausanne de 1974, está


uma declaração muito importante de que todas as culturas expressam,
de alguma forma, a beleza e a bondade de Deus, pois o ser humano foi
criado à Sua imagem e semelhança. Por outro lado, as culturas também
revelam o pecado do ser humano. Por isso, é necessário que as Escrituras
sejam o parâmetro para avaliar uma cultura. Então, antes de demonizar
uma cultura, é preciso pensar nela “segundo o todo”, isto é, como essa
cultura revela a bondade de Deus? Como ela expressa a Sua glória? Isso
seria, como afirma González (2014), parte da Grande Comissão, na qual
Jesus já recebeu autoridade e, por isso, os discípulos devem ir às nações,
descobrir como se manifesta ali o poder de Deus e pensar em como fazê-
las ver esse poder que já está lá no meio delas.

Nesse sentido, o aspecto fundamental é a contextualização. Para


uma mensagem contextualizada, é essencial, primeiro, reconhecer
nossa própria contextualização, partindo do pressuposto de que nossa
perspectiva do Evangelho – por ser perspectiva, modo de ver a partir de
um ponto – já é parcial, mas ainda assim, ela pode contribuir com o todo.
Isso vai exigir um tempo para estudar sobre a história da comunidade de
fé a qual pertencemos, além de refletir sobre onde ela está no meio do
contexto atual. Apesar do trabalho histórico, esse exercício pode auxiliar
muito na contextualização para outras culturas na contemporaneidade.
Aliás, essas outras culturas podem ser parte inclusive do mesmo país,
estado e, às vezes, da mesma cidade.

A diversidade cultural no mesmo espaço corresponde à pluralidade, que


é um fator importante na contextualização – isto é, a contextualização
permite com que a mensagem do Evangelho seja propagada para os
mais diversos grupos –, mas também aumenta o nível de complexidade
para que essa propagação aconteça, o que demanda maior criatividade

108 | Teologia Contemporânea | FTSA


e empenho. Porém, isso vai ao encontro do conceito de catolicidade.
Consideremos o texto de Apocalipse 7.9 (NVT): “Depois disso, vi uma
imensa multidão, grande demais para ser contada, de todas as nações,
tribos, povos e línguas, em pé diante do trono e diante do Cordeiro.
Usavam vestes brancas e seguravam ramos de palmeiras”. A visão de
João envolve a ideia de “segundo o todo”, de que pessoas das mais
diversas localidades e culturas estariam diante do Cordeiro. E essa
visão é concretizada quando cada pessoa consegue fazer conexões do
Evangelho com sua própria cultura.

Diante disso, não há como não seguir o que John Stott recomenda. Apesar
da nossa dificuldade, precisamos ouvir duplamente: a voz de Deus e a
voz das pessoas que estão ao nosso redor, como é o título do seu livro
Ouça o Espírito, ouça o mundo (Stott, 2005). A tarefa não é tão simples
quanto parece, pois exige uma renúncia do próprio egocentrismo, já que
primeiro a fala dá lugar ao ouvir. E o ato de ouvir não foi uma prática
adotada pela tradição cristã nos últimos séculos. Quando falamos de
evangelização, logo pensamos nas pessoas com grande eloquência,
capazes de convencer multidões com suas pregações. Mas, nos tempos
em que vivemos isso precisa ser diferente. Se quisermos uma mensagem
contextualizada, precisamos aprender a dialogar com aqueles que
possuem pontos de vista diferentes dos nossos e romper a barreira dos
guetos. Além disso, é necessário reconsiderar a concepção de que uma
mensagem contextualizada é necessariamente uma mensagem falada.
Em vez disso, deve ser uma mensagem encarnada. As pessoas da
contemporaneidade parecem estar cansadas de discurso, querem ações.
E Jesus de Nazaré persiste sendo o melhor exemplo dessa simbiose,
pois foi que encarnou o Verbo Divino e inaugurou o Reino de Deus.

Concluindo esse tópico, apesar das transformações pelas quais o mundo


sempre passa, e o desconforto que isso traz, nossa postura não pode ser
de medo, retração, mas deve ser de diálogo, pois só assim conseguiremos
transmitir a tradição que revoluciona de forma contextual. Precisamos
ouvir o clamor do mundo e ouvir o que dizem as Escrituras, iluminados
| Teologia Contemporânea | FTSA | 109
pelo Espírito, e essa tarefa pode ser realizada com maior efetividade a
partir do momento em que estabelecemos pontes, nosso segundo tópico
nesta unidade.

4.2. Caminhos para o diálogo


A partir das questões mencionadas acima surge-nos uma dúvida: como
dialogar com o diferente, se tudo o que quero é que o diferente seja como
eu? Ou, talvez, como dialogar com o diferente sem perder a minha essência
e defender minha verdade? É comum que, ao falar em dialogar, respeitar
e aceitar, surjam em conjunto expressões como concordar, apoiar, tornar
subjetivo. Há uma grande confusão, de fato, quando essas palavras são
invocadas em um contexto religioso. Principalmente, quando se trata de
uma religião presa aos tradicionalismo, como explicado no tópico anterior.

Para iniciarmos esse assunto, portanto, é importante tratarmos do


tema “verdade”, diferenciando-a do que seja a minha verdade. O maior
impedimento entre o diálogo dos diferentes é a defesa de uma verdade
que cada um dos interlocutores possui. Ao falarmos de Jesus é preciso
reconhecer, antes de tudo, que nenhum cristão detém a verdade, pois
nenhum cristão tem propriedade sobre Jesus. Jesus é a verdade. Jesus
como único Cristo/Messias é a única verdade suprema. A qual podemos
conhecer por meio dos relatos a seu respeito (Evangelhos), e os quais são
claros em demonstrar a presença contínua de diferentes seres humanos
a seu redor, diferentes locais, diferentes maneiras de agir, falar, curar,
orar etc. Portanto, a afirmação mais correta sobre a verdade, enquanto
cristãos, é de que não existe “minha verdade”, e a única verdade que
existe não cabe em um único padrão, em uma única definição, e que
palavras não dão conta do tamanho alcance dela.

Aqui está a diferença fundamental, que os cristãos custam a compreender:


do ponto de vista da fé bíblica, a verdade existe e ela tem nome: é Jesus.
Tudo o que temos, porém, são relances, aproximações, gestos graciosos
e amorosos da própria verdade em nossa direção que asseguram,
ao nosso ser todo, que estamos nela e dela somos. A verdade, nesse
110 | Teologia Contemporânea | FTSA
sentido estrito, “dá testemunho de si mesma”, como disse Michel Henry
(2015). Podemos falar dela – afinal, “a linguagem ainda é seu meio de
comunicação por excelência” (emprestando de novo palavras de Henry),
desde que for, ou se for, necessário comunicar. Mas a questão é: o que
alguém, de fato, comunica quando pretende anunciar a verdade: ela
mesma ou uma versão possível, mas sempre diferente, parcial, dela?
E essa verdade comunicada nas palavras, pode até convencer, mas de
que forma ela liberta (como também diz João): pelo poder das palavras,
ou pelo misterioso poder do Cristo, que está além delas? No fim das
contas, a verdade só “é” para quem se vê capturado por ela, uma vez que
a verdade, em si, não pode ser capturada por ninguém.

Por isso, tentar defender qualquer tradição, religião, nomenclatura, e


fazê-lo em nome de Jesus o Cristo, é vão. É descaracterizar a essência
do movimento cristão primitivo. Jesus, enquanto verdade, era o Cristo
das Marias, dos Josés, dos Pedros, dos Tiagos, dos samaritanos, das
prostitutas, dos publicanos, dos pagãos, assim como, era Cristo dos
fariseus, mestres da lei, sacerdotes do Templo, oficiais romanos,
imperadores etc., ainda que esses não quisessem ouvi-lo. Isso não é
subjetividade, isso é a Boa-Nova pregada por Jesus como salvação de
todo aquele que andar como ele andou. Ser cristão, assim, significa viver
no limiar entre o anseio pela dádiva de ser cada vez mais possuído e
capturado pela verdade na vida, e a boa-nova libertadora de não poder
apreendê-la ou possuí-la no discurso, mas de vivê-la como “evidência
muda”. Entretanto, que toda fala, todo discurso, toda comunicação,
argumentação, raciocínio, narrativa ou teo-logização sejam benditos e
bem-vindos, desde que se assumam jubilosamente como meios, e não
como fins, como contingentes, e não absolutos.

A tendência à literalidade bíblica e ao legalismo pode ser um outro


grande fator de empecilho ao diálogo e à união entre os próprios cristãos
e, também, os não cristãos. Isto porque, se analisarmos bem, aquele que
está sendo literal e legalista com a bíblia traduzida, não está levando na
literalidade as Escrituras e a Palavra de Deus. Tente acompanhar nosso
| Teologia Contemporânea | FTSA | 111
raciocínio: a bíblia foi escrita em Hebraico e Grego, com vocabulários
bem diferentes que comportam diversas traduções; sendo assim, a única
maneira de seguir fielmente o que está escrito nela, levando a ferro e
fogo versículos isolados e palavra por palavra, seria reencontrando seus
autores e perguntando a eles qual seria a correta tradução do texto original
para o português, emitindo, assim, exatamente o que eles pretendiam
com aquele escrito. Por estes motivos é que juntamos esforços para
aprender o que está ao nosso alcance sobre os tempos passados, sobre
a história, sobre a geografia e fazemos maior esforço ainda para aplicar
esses ensinamentos em nossos tempos atuais, de forma que Jesus, o
único que é caminho, verdade e vida, possa ser acessível a todos os
seres humanos, por meio daqueles que já o encontraram.

Além disso, é preciso diferenciar dois caminhos a serem percorridos


na temática do diálogo: (1) O diálogo entre cristãos de diferentes
seguimentos, e (2) o diálogo entre cristãos e não cristãos. Falaremos de
ambos. E, para ambos os casos, encontramos interlocutores lutando pela
defesa da sua verdade real, da sua crença e da sua própria interpretação
sobre a vida humana em relação ao divino – neste caso nos reservaremos
aos discursos dos cristãos, pois esse é nosso “lugar de fala”.

Vamos começar tratando da intolerância entre os próprios declarantes


da fé cristã, sejam evangélicos, católicos, e assim por diante. Elias Wolff,
professor de Teologia Sistemática e especialista em Ecumenismo, já em
2015 alertou:

Mas há um drama no mundo cristão que todos sentem:


a divisão nas formas de compreender e viver os
ensinamentos do Evangelho. Muitas dessas formas
surgem e se fortalecem num espírito de proselitismo
e concorrência, com pouco, ou nenhum, espaço para
a convivência e a interação das diferenças, o amor e a
comunhão. A divisão cristã é uma realidade dramática.
(Wolff, 2015, p. 382)

112 | Teologia Contemporânea | FTSA


O que impede a união entre os cristãos de diferentes seguimentos, não
é exatamente a forma diferente com que se relacionam com Deus. Não
é desejo de gritar, pular, dançar, manter-se em silêncio no escuro ou na
claridade, na manhã ou na noite, em casa ou no templo, de camisa ou
camiseta, calça ou saia. O que impede essa união é a disputa de poder
e domínio sobre a verdade. É o desejo de dizer “essa é a forma correta”,
ou “é assim que Deus quer ser chamado, invocado e adorado”. É a
concorrência pela arregimentação de fiéis em torno de uma forma, não ao
Cristo. Concordamos com Merton (2017, p. 139) quando ele afirma que
é um dom divino ser ensinado e ensinar “a diferença entre o formalismo
da casca externa, ressequida, que as naturezas humanas que compõem
a Igreja às vezes lhe emprestam, e a corrente interior, viva, de vida divina,
que é a única verdadeira tradição católica” (ou universal).

Vemos nos dias de hoje um ataque inter e intra eclesiástico. Fiéis que
radicalizaram seus ritos e tornaram a Palavra maior do que aquele a quem
ela se refere. Tornaram a letra mais forte do que seu próprio conteúdo.
Entretanto, como adverte Wolff (2015, p. 283), muitos deles sequer
conseguem notar que suas diferenças não são contradições, e poderiam
ser uma fonte de enriquecimento uma à outra, na compreensão e na
vivência do Evangelho. Ao contrário, os detentores da “minha verdade”
afastam de si o que há de mais rico no Evangelho ensinado por Jesus, em
que todos, absolutamente, são filhos/as de Deus e, por isso, onde quer
e como quer que o adorem, fazem parte dessa grande família. Esse é o
caminho de retorno à harmonia da criação, mencionado na unidade II.

Jesus é claro ao ensinar seus discípulos que nem todo o que diz “Senhor,
Senhor”, nem todo aquele que profetizar em nome dele, nem todo aquele
que expulsar demônios em seu nome, ou qualquer que fizer muitas outras
coisas, serão reconhecidos como participantes do Reino, reconhecidos
por Jesus como próximos dele (Mt 7.21-24), pois existem outras coisas
mais importantes. Mateus, em seu evangelho, inclusive relata Jesus
ensinando que aqueles que não sabem seu “nome” e que não serviam
com os dons dos religiosos, mas ao faminto derem de comer, ao nu
| Teologia Contemporânea | FTSA | 113
derem de vestir e ao preso foram visitar, estes sim Jesus diz reconhecer,
ser próximo deles, ser integrantes do Reino (Mt 25.34-46).

Isso não quer dizer que exercer os dons, estar numa comunidade, praticar
ritos sagrados não seja importante. Quer dizer que não são suficientes.
Em Lucas 11.34 em diante, Jesus vai à casa do fariseu para uma refeição,
e se assenta à mesa sem cumprir o rito do batismo, que para os fariseus
era sagrado. Era necessário, conforme a tradição, purificar-se do contágio
recebido pelos pecadores nas ruas, para que pudessem compartilhar de
forma santa a refeição. Mas Jesus ignora o rito e lança uma séria de
Ais contra os fariseus. Os Ais são advertências, denúncias proféticas,
oráculos de justiça, contra aquele grupo de fariseus e mestres da Lei.
Mas Jesus é incisivo, após mencionar diversos ritos por eles praticados
em comparação à falta de misericórdia, amor e piedade para com os
outros, diz: “Vocês deveriam fazer estas coisas, sem omitir aquelas” (Lc
11:42b), referindo-se à omissão das práticas de justiça em detrimento de
sacrifícios. Portanto, todos os ritos são bem-vindos, quando promovem
plenitude de vida por meio da companhia de boas-obras.

Diante desses ensinamentos bíblicos, e percebendo que a cada minuto


novas comunidades surgem, com pensamentos diversos, com práticas
e vivências diferentes, precisamos focar naquilo que é importante.
Renunciar à disputa, ao orgulho, ao egoísmo, à vaidade, à falta de caridade
e de fé Naquele que realmente é Justo Juiz, e deixar que a prática do
amor e da piedade fale por nós. Vivemos tempos de polarização política
e religiosa; tempos em que milhares de novas opiniões são publicadas a
cada segundo nas redes sociais. E o acesso à informação é tão livre que
acaba produzindo uma constante desinformação. Nossa melhor escolha
nesse momento é acessar o Evangelho puro e simples de Jesus.

Esta escolha irá, automaticamente, refletir em nosso comportamento


diante do embate encontrado no segundo caminho: o diálogo entre
cristãos e não cristãos. Emil Brunner, um dos maiores teólogos do
século XX, nos lembra que “a tolerância das religiões indianas – incluindo
o budismo – e do misticismo em geral, frequentemente é exaltada às
114 | Teologia Contemporânea | FTSA
expensas da “intolerância” do Cristianismo”. Em contrapartida, segundo
ele, “o Deus que deu seu próprio Filho para a redenção do mundo, e cuja
glória foi revelada na Cruz de seu Filho, não deseja que a mensagem do
Seu Nome seja propagada pela conflagelação e espada, pela queimada
dos hereges, ou pelo batismo compulsório” (Brunner, 2010, p. 235).

Por mais que em nosso cenário brasileiro/latino-americano/ocidental, as


crucificações, queimadas, decapitações, apedrejamentos e outros meios
extremamente agressivos e desumanos não sejam mais utilizados,
ainda assim encontramos muita violência praticada em nome de
Deus. Violências físicas de menor intensidade, mas ainda desumanas,
violências psicológicas, verbais e econômicas continuam acontecendo.
Em nome de Cristo se destroem templos de outras religiões; em nome de
Cristo deixa-se de dar o pão àquele que não confessa o nome “Jesus”;
em nome de Cristo se excluí grupos minoritários, oprime-se escolhas,
lança-se ao fogo do inferno os que rejeitam se filiar à “minha igreja”.

Entretanto, como alerta Richard Rohr, o ser que chamamos de Deus e sua
encarnação, que chamamos de Jesus, não está preocupado com nomes.
Desde o início de sua revelação ao ser humano, e sua busca por uma
recuperação dessa aliança em Moisés, o divino não se preocupou com
nome. O que é lógico, já que sendo Ele indefinível, nome é o que não
importa. “Lembre-se de que Deus disse a Moisés: ‘Eu SOU quem Eu SOU’
(Êx 3.14). Deus não está claramente ligado a um nome e, também, não
parece querer que liguemos a divindade a qualquer outro nome” (Rohr,
2019, p. 41). O autor complementa:

É por isso que no judaísmo, na declaração de Deus a


Moisés, ele se tornou o Deus indizível e inominado.
Alguns dirão que o nome de Deus literalmente não pode
ser “dito”. Isso foi muito sábio, e mais necessário do
que supúnhamos! Essa tradição apenas deveria nos
dizer que praticássemos uma humanidade profunda em
relação a Deus, que não nos dá um nome, mas apenas

| Teologia Contemporânea | FTSA | 115


a pura presença – não uma manipulação que poderia
permitir-nos pensar que “sabemos” quem é Deus, ou tê-
lo como nossa posse privada. (Rohr, 2019, p. 41)

Por mais que tenhamos desejo de exercer o evangelismo por meio da


defesa do nome de Deus, ou da defesa do nome que demos à nossa
religião (ou à forma como nos religamos a Deus), essa não é nossa
tarefa. Nossa tarefa é seguir os caminhos de Jesus, carregando nossa
cruz dia após dia, nos tornando dignos dele. Nossa tarefa, acima de
tudo, como mencionado na unidade III, é buscar o Reino de Deus e a sua
justiça. Brunner (2020, p. 393) destaca que “a tarefa com a qual Deus
tinha confiado a Ele (Jesus) não foi a de proclamar o Cristo, mas de ser
o Cristo”. Da mesma forma, nós também precisamos nos concentrar em
nossas tarefas e parar tentar defender aquele que não precisa de defesa
alguma. Muitas vezes nós tomamos a postura de parakkletos de Deus,
porém, essa tarefa de intercessor, defensor, conselheiro, não é nossa
para com Deus, e sim do Espírito Santo para conosco.

Nós podemos até tentar buscar um relato de Jesus defendendo a si


mesmo, defendendo sua versão do judaísmo, defendendo o nome de seu
Pai como sendo Yahweh, Elohim, ou qualquer outro. Mas simplesmente
não encontraremos. Não há nem mesmo um mínimo indício dessa
tentativa. Jesus não chama ninguém para simplesmente acreditar em
Deus, seguindo um credo religioso. Não chama ninguém a uma nova
religião, a um rito, nem uma filosofia. É impossível encontrar textos
bíblicos nesse sentido. Jesus chama pessoas a seguirem com ele,
assistirem sua vida, acompanharem seus passos, sem pedir nada em
troca e, também, sem oferecer qualquer sucesso, dinheiro, aceitação,
e assim por diante. O ministério do Cristo é promover a salvação por
meio do retorno ao plano original do criador. E é isso que nós, enquanto
imitadores dele, também devemos fazer.

Portanto, saber conviver com o diferente é um dos maiores desafios


para aqueles que desejam amadurecer em Cristo e se tornar cada vez
mais parecidos com ele. A diferença não significa divergência, tampouco
116 | Teologia Contemporânea | FTSA
inimizade. A diferença nos leva a admitir que Deus está em tudo e em
todos e não apenas em mim. Todos os seres humanos carregam em si
a imagem e a semelhança daquele que É. E nós não podemos ignorar
esse fato. Por isso, na diversidade contemporânea, a luz de Jesus pode
brilhar de diversas maneiras e não é preciso que tenhamos medo de
suas cores. Como diz Rohr (2019, p. 23): “Lembre-se, a luz não é tanto o
que você vê diretamente, mas algo pelo qual você vê todo o resto”. Essa
frase tão simples pode nos revelar muito sobre a sabedoria do diálogo.
Quando acendemos a luz em nossas casas, quartos, salas, escritórios,
ou qualquer outro lugar que esteja escuro, não o fazemos para ficarmos
parados olhando para ela e não fazemos para que outros venham olhar
conosco. Acendemos as luzes para nos guiarmos até onde precisamos,
para enxergar os objetos, os cômodos e o que mais for necessário. A
iluminação nos deixa seguros de que se houver um obstáculo poderemos
desviar. Nas muitas afirmações sobre a luz que encontramos na Bíblia,
principalmente nos relatos do evangelista João, fica fácil perceber que a
luz ilumina nossa maneira de olhar o mundo, de olhar o outro, de olhar a
criação divina, com os mesmos olhos de amor do criador. É preciso que
essa luz resplandeça nas relações, no diálogo, na convivência.

Não podemos esconder que “muitas pessoas de outras crenças, como


mestres sufis, os profetas judeus, muitos filósofos, e místicos hindus
viveram à luz do encontro divino, melhor do que muitos cristãos”, pois
muitos cristãos encontram-se com uma regra e uma Lei, mas não se
encontram com a essência divina do Criador. Não se encontram com o
verdadeiro eu, que não deseja ser aquilo que não é. Brunner (2019, p.
236), inclusive comenta que “o homem pecador acredita que ele deveria
ajudar a verdade de Deus por meios coercitivos”, também que “esta falsa
‘teocracia’ está em oposição ao Evangelho do Lava-pés e da Cruz”.

Sob esta perspectiva, o diálogo das religiões ou das vertentes cristãs,


precisa se tornar o que Wolff (2016) chama de diálogo das espiritualidades.
De forma que tais espiritualidades, enquanto forma como se vive a
motivação do existir, possam se somar e levar todos ao Espírito, que é
| Teologia Contemporânea | FTSA | 117
a fonte de todas as espiritualidades. Quando reconhecemos o domínio
do Espírito Criador sobre toda a criação e sobre todo o ser humano,
percebemos que este Espírito, de alguma forma, está presente nas muitas
espiritualidades humanas. O diálogo permite essa busca. Não tem a ver
com concordar, não tem a ver com convencer, não tem a ver com apoiar
ou não apoiar, mas tem a ver com buscar incansavelmente a presença
do Espírito de forma que ela se torne cada vez mais visível para todos.
Dessa forma, o outro, em busca do Espírito nas nossas vidas também o
tornará (o Espírito) mais visível para si e para nós mesmos.

Esse tipo de diálogo é um diálogo missionário. Como Wolff (2016, p. 103)


coloca: “O missionário cristão não ‘leva’ Deus aos membros das outras
religiões, partilha com eles sua experiência. Para ser verdadeira ‘partilha’,
é preciso saber também receber algo da experiência que o outro faz de
Deus. Para isso, há que se admitir que Deus já está presente na vida das
pessoas a quem o Evangelho é anunciado. Elas devem sua existência ao
mesmo Deus que é autor de toda a criação”. O que Wolff está falando
não está relacionado com tentar purificar e elevar algo de bom nas
outras religiões e nas diferentes formas de viver e, assim, compreender
o cristianismo, mas de reconhecer a verdadeira natureza do bom (tov)
que está nessas pessoas, as quais são imagem e semelhança do
Criador tanto quanto nós, e reconhecer suas formas de se conectarem
ao Criador, contribuindo, se possível, para que suas experiências sejam
melhores ainda, as levando para mais perto ainda do plano original. Ou,
se preciso, também aprendendo com elas e reconhecendo o quanto
também precisamos nos aproximar mais deste plano divino.

Se toda a igreja estivesse focada na missão que nos foi dada e renunciasse
aos sentimentos que não pertencem ao Espírito, como relatado por
Paulo na carta aos Gálatas (cap. 6), então poderíamos ter uma Igreja
diferente. Um corpo unido, que não pode ser vencido. Um corpo que move
montanhas com fé e esperança. É preciso pensar e repensar, como uma
verdadeira transformação da mente pode alcançar a igreja. No próximo
tópico iremos falar sobre essa possível versão da Igreja Cristã.

118 | Teologia Contemporânea | FTSA


4.3. Uma igreja reimaginada
Por meio de uma reflexão sobre o papel e importância da igreja no
mundo e na cultura contemporâneos ultimamente – o que precisa incluir
o período pós-pandemia; através da convivência e conversas com muitas
pessoas diferentes, crentes e descrentes, podemos chegar à conclusão
de que estamos em um processo de transição, de revisão de modelos,
de reorientação de práticas. Que papel a Igreja tem a desempenhar,
por exemplo, numa fatia de cultura – e aqui preferimos falar em
“fatia” ao invés de cultura no geral – como a urbana, pós-moderna ou
líquido moderna (como preferiu Zygmunt Bauman), pós-paradigmática,
de posicionamentos, “desideologias” e religiosidades fluidas, de
espiritualidade ao invés de religião, de encantamento com o sagrado,
com o transcendente, e menos com suas expressões doutrinárias e/
ou institucionalizadas; de menos certezas, dogmas e posturas rígidas
ou sólidas (ainda que ela subsistam e tenham lugar), e mais incertezas,
dúvidas, paradoxos, liquidez; de saturação do individualismo e da
autossuficiência modernos, de renascimento das tribos, dos ajuntamentos
por gostos, como tem dito Michel Maffesoli.

Que lugar e papel as igrejas ainda podem desempenhar para inúmeras


pessoas que não escutam mais o que ela diz (ou escutam e detestam) e
não querem saber dela, pois a consideram uma voz tacanha, ultrapassada,
anacrônica – isso quando não intolerante, mesquinha, pretensiosa à
verdade universal? Quem tem sido e será igreja especialmente para os
“sem igreja”, “sem religião”, “sem instituição”, para os desencantados
com os modelos religiosos e institucionais vigentes; que Igreja existirá
para quem está sedento não de ser convencido, por vias lógicas e
argumentativas, de que a fé faz sentido, mas de relacionamentos que
indiquem como e onde podem encontrar sentido de vida, experiência,
amor, amizade e comunidade; o que ela tem a propor para pessoas que
não dão a mínima para quantidade, pirotecnia espiritual e entretenimento,
e, portanto, jamais entrariam em muitos dos templos cristãos existentes,
mas ainda assim parecem encantadas pela mensagem de Jesus e
dos evangelhos? Será que a mesma Igreja, que sabe muito bem como
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ser Igreja para os “convertidos”, poderá ser igreja para os “peregrinos”
(usando aqui as terminologias de Danièle Hervieu-Léger), os andarilhos,
que não se encaixam em lugar ou sistema tradicional algum, não se veem
contemplados pelos invólucros de Deus existentes?

Pensamos “nesses jeitos particulares de ser gente” hoje (que é como


Rubem Alves definiu cultura certa vez), porque temos uma ligeira
suspeita de que não tem tanta gente nas igrejas pensando e agindo ao
encontro dessas pessoas. Se aqui estamos pensando em uma fatia de
necessidades dentro de uma fatia de cultura, pode-se dizer que a missão
aqui implicada se quer integral, mas não oniabrangente; isto porque fazer
missão holisticamente é também admitir fazê-la parcialmente (ninguém
pensa ou cumpre a missão toda sozinho). Por isso, investiremos menos
tempo em diagnósticos ou críticas neste último tópico de nossa conversa,
e mais em proposição, ou melhor, em imaginação: que Igreja imaginamos
que precisa existir em meio a essa fatia de cultura contemporânea? E ao
dizer “imaginamos” não significa inventamos do nada, mas imaginamos
biblicamente. Para isso, queremos explorar uma das consequências da
aplicação da kenosis de Paulo (cf. Fp 2.5-11) e do pensamento fraco
de Gianni Vattimo à Igreja cristã, presente e atuante especialmente em
culturas líquido-modernas (BAUMAN, 2013) ou pós-modernas: a de levar
a sério e a assumir sua condição frágil e irrelevante no mundo.

Glossário
Kenosis: Palavra grega que designa o esvaziamento do poder ou
da vontade de alguém em favor da de outrem. O uso desta palavra
geralmente vem atrelado ao texto da carta de Paulo aos Filipenses,
no capítulo 2, quando o apóstolo fala do movimento descendente
do Cristo que, abandonando sua glória, esvaziou-se do poder de
sua divindade, e humilhou-se, assumindo a forma humana. Na
filosofia de Vattimo, kenosis é utilizada para se referir à humilhação,
encarnação e humanização de Deus, ponto fundamental em

120 | Teologia Contemporânea | FTSA


sua teoria da secularização, que para ele brota exatamente do
esvaziamento do falar de Deus a partir da metafísica. A partir de
então, o chão da história em que Deus se encarnou torna-se o
referente para se falar de Deus.

Pensamento fraco: Nos escritos de Vattimo (2004, p. 30),


pensamento fraco designa “o reconhecimento nietzschiano de que
não podemos evitar que se fale em termos metafóricos, isto é, em
termos que não são objetivos nem descritivos, que não espelham
o estado de coisas”.

Na maioria dos livros e conferências sobre Igreja, a ideia de relevância


está presente como sendo um alvo imprescindível para a Igreja no mundo.
Para muitos, Igreja boa é Igreja relevante; igreja boa é Igreja forte. A
questão é: “o que é ser relevante”? E mais que isso: o que a Igreja precisa
“fazer” para ser relevante? Se nossa definição de relevância está muito
condicionada ou à visão de “sucesso” e “pujança” de nossa sociedade,
qual seria então uma perspectiva do Evangelho sobre isso? E de que
modo essa perspectiva aparentemente estranha pode servir como norte
para uma Igreja que queira ser, de fato, “evangélica” e “contemporânea”
– de acordo com o sentido que designamos na unidade I –, embora nem
sempre “relevante” ou “de sucesso” dentro de tal ou qual perspectiva?

Sabemos que a Igreja, diante dos dilemas culturais, vive numa tensão
dinâmica (às vezes conflitante, às vezes amigável) entre ser uma
expressão desta e (relevante) para esta época, e sua razão de ser, que
é encarnar diante do mundo a boa nova do reino revelada na pessoa de
Jesus. Ou seja, o que move a Igreja, primordialmente, não são os ditames
do que impera na sociedade em que ela coexiste, mas o exemplo de seu
Senhor – cuja existência não foi apenas relevante, mas revolucionária,
em conformidade com o querer do Pai e não de acordo com os modos
e moldes deste mundo. E o exemplo do Cristo, suas prioridades, sua
missão se desenham desde seus primeiros passos na vida e ministério.
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A narrativa de Lucas no capítulo 4, Jesus não inicia seu ministério em
ação, mas em silêncio, oração e na total dependência do Espírito no
deserto. É um excelente exemplo do que queremos dizer aqui. Na
tentação, ele rejeita o caminho do poder e abraça a partir dali uma
vocação despossuída de pretensões grandiosas neste mundo e desejosa
apenas de fazer a vontade do Pai de reconciliação de cada ser humano
consigo mesmo, com seu próximo e com Deus. O caráter dessa vocação
e mensagem se confirma no momento seguinte da narrativa, quando
Jesus se dirige à sinagoga de Cafarnaum e arruma uma grande confusão
com o pessoal do templo, ao evocar sobre si a palavra do profeta Isaías.
Naquele momento, fica claro que ele encarna a figura indigesta do profeta
(o profeta sem honra), que não tem amor ao próprio pescoço, não tem
“rabo preso” com ninguém e que estabelece uma relação crítica com o
poder e suas “estruturas”.

Quase todo/a líder ou ministro/a cristã/o em nossos dias, naturalmente,


imagina poder iniciar seu ministério bem, realizando boas e grandes
coisas para se estabelecer, sendo notado e respeitado a fim de conquistar
seu espaço. O mestre, porém, tem um início subversivo até nisso, pois
esse primeiro ato ministerial, segundo esse relato, foi um fracasso total:
todos na sinagoga ficaram enraivecidos com seu discurso, o expulsaram
da cidade e tentaram jogá-lo do precipício, o que só não aconteceu
porque ainda não era o momento. Mas era o indício de um caminho, um
caminho de cruz.

O que a Igreja contemporânea – aquela que leva a sério sua vocação na


mesma medida em que tenta ouvir atentamente às questões plantadas
em seu tempo – pode aprender com isso? Dentre tantas lições que daqui
poderíamos extrair, diríamos que a Igreja precisa aprender com Jesus a
não temer a rejeição, o escárnio e o insucesso (aos olhos do “mercado”)
no instante em que ela decide viver com integridade sua vocação para
ser um frágil instrumento da missão do Reino neste mundo. Henri
Nouwen (2002, p. 21) vai além, e afirma algo arrojado em relação aos
líderes cristãos (que aqui reaplicamos à igreja): “O líder cristão do futuro

122 | Teologia Contemporânea | FTSA


será aquele que ousa afirmar sua irrelevância no mundo contemporâneo
como uma vocação divina. Ela permite que ele esteja em profunda
solidariedade com a angústia atrás de todo aquele esplendor do sucesso.
E leve a luz de Jesus para brilhar ali”.

Por isso, momentos atrás utilizamos os termos “frágil e irrelevante,”


referindo-nos à Igreja, não porque ela abraça o espírito de vítima ou de
derrotada, tampouco porque não faça e não vá fazer diferença, mas porque
é irreverente aos caminhos de sucesso mundanos, e porque encarna
o espírito de sua fragilidade humana na dependência do Espírito, como
Jesus no deserto, e admite não precisar nem desejar viver sob a égide e
em busca de outro poder que não esse; e mais, assume que todo exercício
legítimo de poder (passa pela fragilização de quem o exerce, no momento
em que se coloca tanto na dependência do mesmo Espírito no serviço,
como na mútua e fraterna dependência da própria comunidade. Em suma:
olhar para Jesus torna mais claro o tipo de opção que a Igreja de Cristo
precisa fazer ao lidar com poder, cultura e instituições neste mundo: qual
seja, não a de rejeitá-los como quem os demoniza, mas de abandonar o
modo como se valoriza poder e instituição por aí, tantas vezes colocando-
os acima das pessoas às quais deveríamos amar e servir.

Instituições são instrumentos úteis, não objetos de amor, cultivo ou


veneração! Não há um mal inerente às instituições em si, mas no que
fazemos delas. Instituições existem para servir as pessoas; tornam-
se um problema quando passam a existir para servir a si mesmas,
esquecendo-se das pessoas. Então o processo passa ser inverso: ao
invés de pormenorizar a instituição em si e amar as pessoas, amamos
instituições e pormenorizamos pessoas e suas necessidades. Em
suma: quando a comunidade é organismo vivo e pulsante, instituição
não é razão de ser, mas instrumento; mas tem vezes, muitas vezes, em
que a organização mata, aos poucos, o organismo. Logo, o que existe
e o que sobra é apenas instituição: inoperante, incapaz de transformar,
sem vida. Mas o organismo normalmente renasce, fora dali, e continua
espalhando vida enquanto o valor maior for a vida, e não as coisas; as
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pessoas, e não os objetos e bens culturais, materiais e de consumo que
tanto valorizamos.

Não nos parece biblicamente plausível dizer que a Igreja de Cristo se


limita a uma “comunidade local”, que atenda às necessidades específicas
de pessoas – pensando, por exemplo, naquelas que mencionamos no
começo deste tópico. Concordamos que é preciso comunidade. Mas
talvez o local, para muitos, seja algo muito limitado, pois dá a ideia de que
as pessoas é que têm de se descolar até lá. Uma Igreja missional, porém,
vai até as pessoas, encontra pessoas, reúne pessoas onde quer que
estejam, toca e transforma a vida de pessoas, pois, no fim das contas, ser
Igreja é um modo alternativo e radical de ser gente, como salientamos na
reflexão proposta na introdução desta unidade. Logo, o ser precede o ir:
isto é, não vamos à Igreja, mas somos e nos fazemos Igreja onde quer
que estejamos, e onde quer que uma necessidade humana se apresente.

Mas essa Igreja (essa que aqui imaginamos), por assim dizer, é (ou deveria
ser) uma metáfora viva do amor de Deus ao mundo. Como metáfora,
ela jamais deveria pretender falar de Deus em termos absolutos ou
compreensivos, mas apenas por meio de aproximações e possibilidades;
como metáfora, seu chamado é para anunciar as boas novas do reino ao
mundo, podendo ser ouvida e aceita não pelo caminho do poder (físico ou
simbólico), mas do esvaziamento do poder e da vontade, pela humildade
e integridade (isto é, através do exemplo de vida e humanidade, tal como
vimos e aprendemos em Jesus Cristo). É uma Igreja que atrai mais pela
vivência muda e marginal e menos pelas palavras mágicas e de poder
ditas diante dos holofotes e das mídias.

Dessa forma, a vocação primária da Igreja faz com que ela não esteja
neste mundo para estabelecer coisas – como que monumentos só dela,
porém supostamente erigidos “para a glória de Deus” (resta saber qual
deus) –, mas para peregrinar na liberdade do Espírito, seguindo seus
rastros e obedecendo unicamente a um Senhor.

Que outras facetas teria essa Igreja, frágil e irrelevante, que o convidamos
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aqui a imaginar? Aqui vão algumas, como um resumo estendido que foi
dito até aqui:

• É uma Igreja voltada para pessoas, e não negócios, programas,


agendas, questões.

• É uma Igreja contracultural, no sentido de ser irreverente aos meandros


de sucesso e relevância que respondem mais aos apelos do status
quo, que à sua vocação radicada no evangelho do nosso Senhor.

• É a Igreja da dispersão, dos peregrinos, e não somente dos e para os


convertidos; uma igreja que se reúne senão para se fortalecer na e
para a dispersão.

• É uma Igreja que não quer ter a última palavra sobre nada, mas se
coloca como uma parceira possível na busca por respostas aos
problemas e às perguntas diversas da humanidade, como alguém
que sonha, imagina e anseia ao lado das pessoas, e não acima delas.

• É uma Igreja que revê sua teologia do sofrimento e abraça o trágico


não apenas como posição eventual, mas como atitude de fé, de
empatia para com a vida, de resistência às forças de morte, sem
renegá-las ou sublimá-las em si mesma; afinal, onde houver trigo
sempre haverá joio. Adotar o trágico significa afirmar a vida com tudo
o que ela implica, seus sabores, dissabores, êxitos e fracassos a fim
de que mais humanos nos tornemos, como humano foi e é o Senhor
Jesus. Só pode abraçar e acolher aquele que padece quem não tem
pavor do padecer. A dor e a cura, nesse sentido, não são inimigas,
mas parceiras de jornada.

• É uma Igreja que não mete sua cumbuca em assuntos de Estado a


não ser como cidadã, como lutadora pelos direitos, sobretudo, dos
menos assistidos e dos oprimidos na esfera do político: os pobres,
os negros, as mulheres, os homossexuais, os indígenas e assim por
diante.

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• É uma Igreja que fala em nome de Jesus, mas que não ousa falar por
ele; prefere que as pessoas enxerguem a Jesus mais no espelho de
suas práticas, e menos no poder persuasivo das palavras, a exemplo
de Paulo, que disse: “Minha mensagem e minha pregação não
consistiram de palavras persuasivas de sabedoria, mas consistiram
de demonstração do poder do Espírito, para que a fé que vocês têm
não se baseasse na sabedoria humana, mas no poder de Deus” (1Co
2.4-5).

• Por fim, mas não finalmente, é uma Igreja que retoma sua vocação
protestante, e assim não teme relativizar estruturas, poder e
hierarquia por um único absoluto: a Mensagem. Quanto mais fiel
somos ao evangelho e à verdade revelada na pessoa de Jesus, mais
procuraremos resguardá-lo do aprisionamento da linguagem. Há
somente um evangelho! E este não é seu, nem da Igreja, nem de
Paulo, Barnabé ou Pedro: mas de Jesus.

Conclusão
Quais são as (possíveis) consequências diretas disso sobre a missão
dessa igreja aqui imaginada?

Gostaríamos de nomear (e na verdade reforçar) principalmente um:


a importância e o desafio de assumirmos e lidarmos com nossas
fraquezas enquanto caminhamos pela vida em missão, especialmente
hoje. David Bosch (1979, p. 76) disse: “A verdadeira missão é a mais
fraca e menos impressionante atividade humana que se pode imaginar,
a própria antítese de uma teologia da glória”. Ora, quando olhamos para
o caminho (missionário) de Jesus, a imagem não é de triunfo, glória ou
conquista, mas de submissão, fragilidade e sofrimento. Com isso não
queremos dizer que, em Jesus, Deus foi derrotado, e sim que nele vemos
o sentido de que perder nem sempre é signo de derrota; pode ser caminho
para uma vitória não triunfal, mas significativa. Assim é a relação entre a
cruz e a ressurreição. A mensagem da cruz carrega o gene da morte, que
gera vida, como no paradoxo do Cristo: tentar salvar a vida é, na verdade,
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perdê-la; já perder a vida, pela causa certa, é achá-la (cf. Mt 17.25).
Jesus também falou em Mateus sobre negar a si mesmo: “Se alguém
quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome sua cruz e siga-me”. O
paradoxo, porém, é que negar-se é uma forma de declarar a morte de
algo dentro de si (o que Paulo chama de “velho homem”), a fim de fazer
brotar e florescer da própria vida um novo ser humano. Não, Deus não é
sádico; não quer que a gente morra apenas pelo prazer mórbido de nos
ver morrendo; não nos criou para rejeitar a vida, mas para afirmá-la. No
entanto, segundo Jesus, negando-se a si mesmo, desfazendo-se de todo
orgulho de ser, abraçando a própria fragilidade, reconhecendo-se como
ser codependente, é que podemos afirmar a vida e a liberdade humanas.

Jesus caminhou à margem da religião e da cultura dominantes; abraçou


não apenas as vulnerabilidades humanas como escolheu ser humilde
entre os humildes e desgraçados; não primava por demonstrações
sobrenaturais de poder, pelo contrário, em muitos milagres que realizou
pedia total sigilo daquele(a) que o recebeu; não partiu para o caminho
da apologética ou defesa da fé, cercando-se de argumentos fortes para
“defender” a perspectiva do Reino de Deus, de modo que, em Jesus,
não se faz ninguém se achegar ao Reino pelo poder do argumento,
mas pelo caminho da fragilidade, da infantilidade espiritual, do diálogo,
do arrependimento, do perdão e da graça. Como lembra José Comblin
(1983, p. 58), “os homens são vulneráveis. A possibilidade de mudança
radica justamente nessa vulnerabilidade”.

Além disso, Jesus não se aliou às estruturas e poderes de seu tempo,


ao mesmo tempo em que rejeitou o caminho da usurpação de ser “igual
a Deus” (cf. Fp 2.6); apresentou a boa nova do reino em obediência à
sua missão, sem se preocupar em agradar a ninguém ou mesmo com
o possível insucesso, rejeição ou má reputação. Jesus foi um profeta,
e profeta que é profeta não esconde sua fragilidade nem teme perder a
própria cabeça. Por essa razão é que as perspectivas de que a missão
não tem nada de impressionante, de que é antítese de uma teologia
da glória (Bosch), e da fraqueza como condição prévia de uma missão
autêntica (Comblin), fazem jus à visão bíblica e primitiva de missão. Isto
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porque, conforme analisa Comblin (1983, p. 60), a tentação pela qual
passa o cristão e a cristã que desejam dar testemunho de sua fé hoje, é
parecida com aquela enfrentada por Jesus: “a tentação de messianismo,
a tentação da força, do poder, do dinheiro e da cultura”.

Como ainda hoje podemos resistir a essas tentações? Pensando naquelas


pessoas e naqueles perfis um tanto genéricos do começo, naquela fatia
de cultura inicialmente pontuada, e nos direcionando não apenas, mas
principalmente, às gerações mais jovens, queremos terminar levantando
algumas pistas de como ser essa Igreja “frágil e irrelevante” ao modo
de Jesus – imaginando que ela pode ser sinal da esperança viva do
Evangelho para essa fatia de cultura, e quem sabe para outras também:

(1) Ofereçam seus dons e talentos ao mundo e à cultura a que pertencem,


e não somente à subcultura evangélica ou ao “mundinho da Igreja” e dos
crentes; ninguém verá a luz que brilha em nós se essa luz não brilhar em
tantos ambientes quantos for possível – chega dessa besteira de que a
gente não é do mundo! Como bem expressou Pierre Teilhard de Chardin
há quase cem anos:

Repitamo-lo: em virtude da criação e, mais ainda, da


Encarnação, nada é profano, aqui embaixo, para quem
sabe ver. Pelo contrário, tudo é sagrado para quem
distingue, em cada criatura, a parcela de ser eleito,
submissa à atração do Cristo em via de consumação.
Reconheçam, com a ajuda de Deus, a conexão, mesmo
física e natural, que liga o trabalho de vocês à edificação
do reino celeste; vejam o próprio céu sorrir para vocês e
atraí-los através das obras que vocês realizam; e vocês
só terão, ao deixar a Igreja pela cidade barulhenta, o
sentimento de continuar a imergir-se em Deus”. (De
Chardin, 2014, p. 33, grifos nossos)
(2) Usem a criatividade que Deus deu para cada um de vocês, de nós, e
a liberdade no Espírito para arriscar novos passos, para ser Igreja onde e
para quem ninguém quer ser; não precisa necessariamente fundar novas
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congregações, mas inventar novos modos de ser Igreja, bastando, para
começo de tudo, estar disponível às pessoas e atento/a ao que o Espírito
sopra.

(3) Estejam abertos/as a “novos diálogos”, novas possibilidades de


interface entre a fé que há em vocês, e sobre a qual são chamados a
dar razão, e as outras formas de crença e cosmovisões, sejam elas
religiosas ou não, expressando convicções com firmeza e ao mesmo
tempo generosidade, e, de preferência, renunciando à tentação de ter “a
última palavra”, aquela que deve convencer e prevalecer.

(4) Envolvam-se em relacionamentos de vida, companheirismo e amizade,


onde há fé e há não fé, onde os diferentes gêneros, as diferentes posições
políticas, opções sexuais e ideológicas, as diferentes concepções éticas,
possam conviver em paz e, sobretudo, com respeito mútuo mesmo em
meio a diferenças aparentemente inconciliáveis; lembrando que o maior
dom que temos a oferecer ao mundo não são nossas palavras, nossa
inteligência, nossos títulos, ou nosso trabalho; o maior dom somos nós
mesmos. E Jesus disse que não havia maior dom, ou melhor, maior amor
que esse: o de dar a vida por seus amigos.

5) Por fim, tenham a “coragem de ser” (Tillich): de ser quem são, com
o muito ou o pouco que lhes foi dado, de ser humanos, de ser gente:
que assume suas fragilidades, que reconhece suas dúvidas, que divide
suas dores com o mundo. Muitos desses nossos amigos/as aí fora
não estão tão interessados em campeões (no discurso, nas ideias, na
espiritualidade), em religiosos de espírito cruzado, mas em pessoas
“demasiadamente humanas” (Nietzsche) assim como elas. É um refrigério
saber que o outro também dores de parto semelhantes às minhas. O que
não pode ser assumido também não pode ser redimido, lembrando aqui
do que bem disse Segundo Galilea.

Terminamos com uma frase de David Bosch (1979, p. 77), daquelas


que precisamos lembrar não apenas na mente, mas gravar com lança
pontiaguda no coração: “A Igreja não é composta de gigantes; apenas
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seres humanos feridos podem guiar outros até a cruz”. Que Ele nos ajude
nessa tarefa!

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