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História Moderna
1ª Edição
Brasília/DF - 2018
Autor
Yllan de Mattos
Produção
Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e
Editoração
Sumário
Organização do Livro Didático....................................................................................................................................... 4
Introdução.............................................................................................................................................................................. 6
Capítulo 1
Tempos Modernos: o debate em torno da Época Moderna e a Crítica ao Mundo Medieval............... 7
Capítulo 2
A cultura de uma era: Humanismo, Renascimento, Reformas e Racionalismo....................................... 18
Capítulo 3
Expansão Marítima e Comercial............................................................................................................................. 35
Capítulo 4
Civilização Material e Mercado.............................................................................................................................. 45
Capítulo 5
O Tempo dos Estados: Absolutismo e Centralização Política na Época Moderna................................ 56
Capítulo 6
O Tempo da Política....................................................................................................................................................65
Referências...........................................................................................................................................................................76
Organização do Livro Didático
Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em capítulos, de forma didática, objetiva e
coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros
recursos editoriais que visam tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também,
fontes de consulta para aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares.
A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização do Livro Didático.
Atenção
Cuidado
Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o
aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado.
Importante
Observe a Lei
Conjunto de normas que dispõem sobre determinada matéria, ou seja, ela é origem,
a fonte primária sobre um determinado assunto.
Para refletir
Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa
e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio.
É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus
sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas
conclusões.
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Organização do Livro Didático
Provocação
Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes
mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor
conteudista.
Saiba mais
Sintetizando
Posicionamento do autor
Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o
aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado.
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Introdução
Este Livro Didático é um guia didático que abordará os caminhos para se compreender o que
entendemos por História Moderna (1453-1789). Portanto, este Livro não substitui a leitura das
obras e historiadores que fundamentaram tais tempos, mas se propõe a indicar os passos de
uma formação especializada.
Nesse sentido, dividimos o Livro Didático em três abordagens: a cultural, a econômica e, por
fim, a político-social. Inicialmente, compreenderemos o debate em torno da Época Moderna
e a crítica ao Mundo Medieval. Em seguida, abordaremos a Expansão Marítima e Comercial,
discutindo a Civilização Material e a crise do século XVII. Teremos, também, a oportunidade
para refletir sobre o absolutismo e centralização política na época Moderna.
Objetivos
6
CAPÍTULO
TEMPOS MODERNOS: O DEBATE EM
TORNO DA ÉPOCA MODERNA E A
CRÍTICA AO MUNDO MEDIEVAL 1
Apresentação
Objetivos
7
CAPÍTULO 1 • Tempos Modernos: o debate em torno da Época Moderna e a Crítica ao Mundo Medieval
Introdução
Precisar um tempo histórico nem sempre é tarefa das mais fáceis. A noção tripartida da História
do Ocidente (Antiguidade, Idade Média e Tempos Modernos) foi pensada pela primeira vez
por Cristóvão Cellarius [1638-1707] como forma de substituir a ordem pautada na sucessão de
impérios (Assírio, Medo, Persa, Helênico, etc.) para um sistema baseado na continuidade e unidade.
Se fora a queda do Império Romano, em 476, que principiou o período medieval, o autor de
História universal entendeu que o Novo Tempo, do qual ele foi coevo, fora inaugurado em dois
grandes eventos: em 1453, com a tomada da cidade de Constantinopla pelos Turcos-Otomanos;
e 1517, quando Lutero fixou suas 95 teses na Catedral de Wittenberg.
Portanto, Cellarius tinha consciência de estar vivendo em um mundo diferente daquele pautado
pela influência romana (por meio do império Bizantino) e da unidade cristã (após a reforma
luterana). Porém, ele não era o único a pensar desse modo. Diversos humanistas também se
percebiam em um período diferente daqueles que viveram pouco mais de cem anos antes.
Os navegadores portugueses e genoveses que se lançaram no Atlântico deixavam cada vez mais
para trás as histórias fabulosas de mundos encantados, ao esbarrarem com o desconhecido
que produzia um conhecimento mais prático do planeta. A consciência de um novo tempo
era geral e constituiu um dos pilares dessa nova era. Entretanto, cada um desses indivíduos
pensava viver no novo por um aspecto diferente. Quais estariam certos? Todos, o que mostra
que a Modernidade pode ser conceituada de vários ângulos. Estabelecer um marco seria,
portanto, arriscado e nada convidativo para o historiador que quer vencer a incerta definição
de História Moderna.
É nesse sentido que nosso primeiro passo se resume a uma só pergunta: o que entendemos por
Idade Moderna?
Vamos começar a definir esse período pensando juntos. A História Moderna leva em consideração
a História de todo o planeta? Temos certeza que não. História Moderna é uma conceituação
eurocêntrica. Ou seja, ela leva em conta apenas uma parte da Europa, deixando de fora as
especificidades de várias sociedades para além da Europa. Mesmo considerando que os primeiros
anos do século XVI coincidiram com o início da dinastia xiita dos Safávidas na Pérsia (durando
até 1722), do reinado de Montezuma entre os Mexica em Tenochtitlán, do estabelecimento turco
no Egito e, doravante, do alargamento do Império Mongol para a Índia, a China estava sob a Ming
desde o século XIV, e somente no século XVII o Japão seria governado pelos shogun da dinastia
Tokugawa. Porém, podemos crer também na ideia de Jean Delumeau, para quem esse período
representou “o nascimento de Europas fora da Europa”. Ou seja, o início da Modernidade foi
também a origem de uma era da Globalização (GRUZINSKI, 1999).
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Tempos Modernos: o debate em torno da Época Moderna e a Crítica ao Mundo Medieval • CAPÍTULO 1
Claro está que essa noção também carrega um pouco de inexatidão e eurocentrismo, afinal os
novos mundos forjados foram recriados à luz de contingências históricas que lhe conferiam
semelhanças e particularidades. No caso da América, tudo se mediu com a exploração e com
o escravismo.
Figura 1. Mapa-múndi de Henricus Martellus Germanus [1489], mostra o mundo conhecido pelos europeus.
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CAPÍTULO 1 • Tempos Modernos: o debate em torno da Época Moderna e a Crítica ao Mundo Medieval
Nossa disciplina estuda, portanto, o espaço europeu. Nesse Livro Didático, verticalizaremos nas
monarquias de Castela, Portugal, França e Inglaterra, além das repúblicas italianas.
Enquanto a primeira definição está muito próxima daqueles primeiros indivíduos dos séculos
XV e XVI, a segunda representa o pensamento daqueles que viveram o XVIII, o “Século das luzes”.
Até o século XVI, a história da Cristandade foi uma contínua expectativa do fim dos tempos (o
dia do Juízo, da “revelação”, do Apocalipse de João), sempre renovada com repetidos adiamentos.
As viradas de século, sobretudo aquela do ano 1000, representavam uma expectativa constante
de que o fim se aproximava e a época Moderna foi igualmente inaugurada com esse sentimento:
a tomada da grande cidade cristã fundada pelos romanos no Oriente, Constantinopla [1453], e
o contínuo avanço dos turcos até a batalha de Lepanto [1571]; as acusações mútuas de Lutero,
para quem o anticristo era o próprio papa, governante da Nova Babilônia, “prostituta de Roma”,
e desse último, caracterizando o reformador da mesma forma.
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Tempos Modernos: o debate em torno da Época Moderna e a Crítica ao Mundo Medieval • CAPÍTULO 1
Embora tais experiências passassem ao longe das populações mais simples, tomados por uma
vida mais prática e menos circunstanciadas pelas discussões de corte, homens e mulheres
perceberam, na virada do século XV para o XVI, que algo de novo acontecia.
[...] gostaria que se começasse o estudo sério da história pelo tempo em que ela
se torna verdadeiramente interessante para nós: parece-me que é pelos finais do
século XV. A imprensa, que foi inventada neste tempo, começa a tornar a história
menos incerta. A Europa muda de face; os turcos, que se espalham por ela,
expulsam as belas letras de Constantinopla; elas florescem na Itália, se estabelecem
na França, vão polir a Inglaterra, a Alemanha, o setentrião. Uma nova religião
separa a metade da Europa da obediência ao Papa. Um novo sistema político se
estabelece. Com o auxílio da bússola, se faz a volta da África. O comércio com a
China se faz mais facilmente do que entre Paris e Madri. A América é descoberta.
Subjuga-se um novo mundo, e nosso mundo é quase inteiramente transformado.
A Europa cristã se torna uma espécie de república imensa, na qual a balança
do poder é melhor estabelecida do que fora na Grécia. Uma correspondência
perpétua liga todas as suas partes, apesar das guerras, suscitadas pela ambição
dos reis, e mesmo apesar das guerras de religião, que são ainda mais destrutivas.
As artes, que são a glória dos estados, são levadas a um ponto que Grécia e Roma
nunca conheceram. Eis a história que todo mundo precisa saber. É nela que não
se encontram nem predições quiméricas, nem oráculos mentirosos, nem falsos
milagres, nem fábulas insensatas. Tudo nesta história é verdadeiro, com exceção
de pequenos detalhes, com os quais só os espíritos pequenos se preocupam
muito. Tudo nos diz respeito, tudo é feito para nós (VOLTAIRE, 2013, p. 183-184).
Interessante ver como a brilhante mente de Voltaire define os marcos básicos dos Tempos
Modernos. Conforme o historiador italiano Paolo Prodi, “a essência da História Moderna está,
para Voltaire, no fato de que essa é fundada no progresso e relacionada diretamente ao Homem”
(2012, p. 28). Isso quer dizer que tanto o homem começava ser a tomado como medida de todas
as coisas, responsável por sua vida e decisões, quanto a concepção de futuro passava a existir para
esses homens e mulheres modernos. O futuro, no medievo (e em parte da época Moderna, vale
salientar), apresentava-se como uma reedição do passado. Ele já estava escrito, escatologicamente.
A ideia e consciência do progresso abriu um novo horizonte para o futuro, que agora poderia
ser radicalmente diferente.
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CAPÍTULO 1 • Tempos Modernos: o debate em torno da Época Moderna e a Crítica ao Mundo Medieval
Assim, entre os três séculos dos chamados Tempos Modernos operou-se uma
transformação que culminou com sua própria superação, por meio da adoção
Saiba mais
mais radical de seus princípios. A Revolução Francesa, iniciada em 1789, foi
também a primavera da Era Contemporânea e o outono da Idade Moderna.
Escatologia: doutrina que trata do
Mesmo tendo como princípio a história francesa, mais que a europeia, é
destino final do homem e do mundo,
consenso para os historiadores que esse foi o ocaso da Modernidade. O
podendo apresentar-se em discurso
mesmo não se apresenta no seu início, causando uma dúvida: de fato, houve o
profético ou em contexto apocalíptico,
fim da Idade Média?
como na Bíblia.
Um dos grandes historiadores medievalistas, o francês Jacques Le Goff, tem uma tese um pouco
controvertida e muito provocativa sobre esses tempos. Fundamentado na ideia de “longa
duração”, o historiador afirma que as estruturas fulcrais do feudalismo e da sociedade medieval
ultrapassavam o século XV, chegando até as franjas do XVIII. Completa:
A historiadora Laura de Mello e Souza argumenta que “por mais substantiva que seja a proposta
de Le Goff, ancorada numa vida de estudos medievais, e ainda que postule a apreensão de
nexos internos capazes de captar o sistema Idade Média, há, nela, um intuito desperiodizador”,
pois, como afirma o medievalista: “lanço aqui as bases de uma nova ciência cronológica
(...) capaz de comparar de modo legítimo condições científicas que sejam comparáveis”
(MELLO E SOUZA, 2005, p. 224). A ideia de Jacques Le Goff é interessante, pautada em uma
“continuidade feudal” e num “cristianismo dominante”, mas que não se mede com uma crise
estrutural do mundo feudal, situada entre os séculos XIII e XIV. Os pontos centrais dessa crise
são: estagnação e desestruturação da economia feudal; desequilíbrio entre oferta e procura;
falta de metais preciosos; acentuada exploração dos servos, gerando fugas, êxodo rural e
revoltas; a proliferação de guerras feudais; a fome e as epidemias, entre elas a Peste Negra;
e a tomada de Constantinopla pelos turcos-otomanos. Contudo, tal ideia ressalta um aspecto
interessante: de fato, não há rupturas precisas entre o Medievo e o Moderno, permanecendo
alguns princípios em ambos os mundos.
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Tempos Modernos: o debate em torno da Época Moderna e a Crítica ao Mundo Medieval • CAPÍTULO 1
A Ideia de Transição
Decerto que sim. As rupturas históricas são sempre arbitrárias e ilusórias. Ninguém dormiu na
Antiguidade e acordou na Idade Média, na virada do ano de 476. Adotando uma perspectiva
própria do século XIX (aquela da História como espírito de uma época), o historiador alemão
Johan Huizinga pode nos ajudar nessa compreensão. Diz ele:
A noção de transição tenta dar conta desse mundo em transformação e das mudanças por ele
sofridas, sem deixar de lado as permanências essenciais do tempo anterior. Indica, sobretudo, que
as mudanças não são rupturas, pois percebe também as continuidades. Consequentemente, tal
interpretação acentua o caráter transitório da época Moderna, em prejuízo de suas peculiaridades.
Explicamos de outra forma. Quando afirmamos que os anos entre 1500 e 1800 são de transição
entre o feudalismo e o capitalismo caímos na armadilha de considerar toda uma época por
aquilo que ela não é ainda (capitalismo) e por aquilo que ela não deixou de ser (feudalismo).
Nesse sentido, qual seria a especificidade da Modernidade, afinal, ela não é mais medieval nem
é ainda contemporânea?
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CAPÍTULO 1 • Tempos Modernos: o debate em torno da Época Moderna e a Crítica ao Mundo Medieval
A ideia de transição é válida, mas traz problemas. O maior deles é a teleologia, pois pensamos na
Idade Moderna como meta à Idade Contemporânea, uma concepção linear e com etapas a serem
superadas pelos indivíduos a fim de chegarem ao último estágio da evolução: o nosso, hoje. Nesse
sentido, somos levados a ignorar aquilo que é próprio e específico daquele tempo, sem perceber
que os Tempos Modernos obedecem a uma lógica própria. Afinal, transformação, mudanças e
permanências são características inequívocas de qualquer tempo histórico, entendido, assim,
como sempre em processo.
[...] o historiador não pode esquecer que Teleologia: qualquer doutrina que
essa transição, formulada em nível de identifica a presença de metas, fins ou
generalidade, representa apenas uma objetivos últimos guiando a natureza
aproximação, com frequência muito e a humanidade, considerando a
A Especificidade Moderna
Então, existiu, de fato, uma especificidade conferida à época Moderna que a distingue do
mundo medieval? É certo que para cada característica elencada, haverá estudos específicos que
desconstroem tais generalizações. Paciência. Aliás, isso talvez seja uma das virtudes do estudo
da História, uma ciência do particular, do contexto.
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Tempos Modernos: o debate em torno da Época Moderna e a Crítica ao Mundo Medieval • CAPÍTULO 1
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CAPÍTULO 1 • Tempos Modernos: o debate em torno da Época Moderna e a Crítica ao Mundo Medieval
É necessário dizer que, como afirmamos anteriormente, para cada característica, há especificidades
locais que colocam em xeque o esquema pronto do que foi a época Moderna. Somente o estudo de
caso pode elucidar como, em tempos diferentes, mas em relação um com os outros, as sociedades
dos séculos XVI, XVII e XVIII forjaram uma unidade Moderna.
Todos esses marcos – e outros omitidos – estão corretos quando adotados como divisores de
águas, desde que o historiador perceba que a sociedade não mudou completamente a partir
de uma data qualquer. Todavia, preferimos adotar o movimento das ideias, a mudança de visão
de mundo e a alteração do paradigma teocêntrico (no qual Deus é a medida da vida) para o
antropocêntrico (onde o homem ganha essa centralidade). A História, nesse caso, é vista como
um processo lento que carrega em si elementos de vários tempos e relações sociais em uma
perspectiva diacrônica.
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Tempos Modernos: o debate em torno da Época Moderna e a Crítica ao Mundo Medieval • CAPÍTULO 1
Nesse sentido, a cultura humanista teve um papel determinante para a primavera dos Tempos
Modernos. Portanto, vamos entendê-la mais de perto no segundo capítulo?
Sintetizando
» O conceito de Modernidade;
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CAPÍTULO
A CULTURA DE UMA ERA: HUMANISMO,
RENASCIMENTO, REFORMAS E
RACIONALISMO 2
Apresentação
Objetivos
Esperamos que, após o estudo do conteúdo deste capítulo, você seja capaz de:
18
A cultura de uma era: Humanismo, Renascimento, Reformas e Racionalismo • CAPÍTULO 2
Quando falamos em Renascimento, os primeiros pensamentos nos levam à Itália dos grandes
artistas: Michelangelo Buonarroti, Leonardo da Vinci, Rafael Sanzio, Sandro Botticelli, etc. Artistas
desse quilate foram a expressão mais conhecida do movimento cultural e artístico que modificou
a maneira de pensar da sociedade europeia. Por quê? Talvez porque tenham sido as artes plásticas
o grande centro de convergência dos ideais renascentistas, mesmo que suas expressões tenham,
de fato, ultrapassado esta linguagem.
Embora saibamos que a Itália não existia como uma unidade política ou cultural, apenas como
expressão geográfica, foi lá o berço desta cultura. E mais: foram as cidades (mais que o campo,
expressão máxima da cultura medieval) o seu berço. Assim, é preciso sublinhar que o Renascimento
manteve profunda relação com dois eventos do século XIII: o saque que os cruzados perpetuaram
em Constantinopla, no ano de 1204, na qual grandes obras de arte antigas e bizantinas tanto
quanto relíquias e antigos textos cristãos foram levados para a Europa; e o florescimento do
comércio europeu, sobretudo aquele ligado às cidades-estado italianas e, consequentemente, à
sua integração por meio de um sistema financeiro (questão desenvolvida no próximo capítulo).
A esses dois aspectos foi adicionada a presença constante da civitas romana (os legados tanto
material como civilizacional do mundo romano) na vida desses indivíduos.
É nesse sentido que o Renascimento deve ser entendido como uma cultura estritamente urbana,
visto que o mundo que o gestou e o desenvolveu foi o mundo das cidades. O comércio e o sistema
financeiro foram o que possibilitaram as encomendas e as caríssimas obras. O Renascimento teve
um preço, embora não se reduza a ele. Afinal, viver sob a proteção de um rico mecenas (homens
ricos que financiavam os artistas) garantia aos renascentistas o pagamento pelo trabalho e certa
segurança. As obras eram pagas segundo os elementos de “matéria e habilidade” e “material e
mão de obra”, como podemos observar por um painel no altar feito a Sandro Botticelli:
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CAPÍTULO 2 • A cultura de uma era: Humanismo, Renascimento, Reformas e Racionalismo
como se segue – dois florins pelo azul ultramarino, trinta e oito florins pelo ouro e
a preparação do painel e trinta e cinco florins por seu pincel (apud BAXANDALL,
1991, p. 27).
Nesse caso, “pincel” não é o material, mas o trabalho (mão de obra) do artista. O que queremos
deixar claro com isso é que foram diversas condições materiais que possibilitaram o Renascimento,
assim como ao desenvolvimento da capacidade de artistas geniais. As influências da cultura
material antiga (sobretudo romana e grega) foi fundamental para definir um dos princípios do
movimento: o retorno e a valorização da cultura da antiguidade.
Esse último aspecto foi característica fundamental do Humanismo. Havia uma vontade de
restauração do mundo clássico, fascinados que estavam os homens desses tempos na cultura
greco-romana acessada por meio da literatura, da arte e da arquitetura. O estudo das línguas
antigas (grego e latim), por meio da filologia, a procura por textos antigos, das letras clássicas
caracterizaram esse movimento. Isso causou, sobretudo nas universidades, uma grande reforma
no currículo no qual a Gramática e a Retórica foram consideradas disciplinas preliminares,
somando-se à História, à Poesia e à Filosofia Moral. Esse conjunto de saberes foi caracterizado
como studia humanitatis. Foi a filosofia do Renascimento oposta à escolástica medieval.
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A cultura de uma era: Humanismo, Renascimento, Reformas e Racionalismo • CAPÍTULO 2
Saiba mais
Escolástica: pensamento cristão da Idade Média, baseado na tentativa de conciliação entre um ideal de racionalidade,
corporificado especialmente na tradição grega do platonismo e aristotelismo, e a experiência de contato direto com a
verdade revelada, tal como a concebe a fé cristã.
Os poetas Francesco Petrarca [1304-1374] e Giovanni Boccaccio [1313-1375] foram alguns dos
pioneiros desse movimento, mas é certo que não estiveram sós. O estudo dos textos antigos
despertou o gosto pela pesquisa e crítica histórica, além do conhecimento das línguas clássicas –
sempre utilizando o argumento de que o latim utilizado pela Igreja estava corrompido.
A língua tornou-se mais que um meio, pois ao mesmo tempo em que se dedicavam ao seu
estudo, afirmavam-se pela literatura as “línguas nacionais”. Dante Alighieri [1265-1321], William
Shakespeare [1564-1616], Luís de Camões [1524-1580], Miguel de Cervantes [1547-1616], etc.
foram os fundadores de suas línguas nacionais. Nicolau Maquiavel [1469-1527], com O príncipe,
e Erasmo de Rotterdam, com O elogio da loucura, sintetizaram bem algumas das características
do Renascimento Humanista.
Saiba mais
O elogio da loucura, obra do humanista Erasmo de Rotterdam, foi escrita em 1501. É a própria loucura (deusa Moria)
que narra o livro, personificando como a insanidade faz-se presente na vida dos homens, por meio de suas fraquezas e
“humanidades”. A crítica fundamental é ao movimento religioso intelectual da escolástica, o que, entre outras coisas,
lhe rendeu a censura pela Igreja. Diz ele: “A loucura tem tantos atrativos para os homens, que, de todos os males, é ela o
único que se estima como um bem”.
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CAPÍTULO 2 • A cultura de uma era: Humanismo, Renascimento, Reformas e Racionalismo
Posto que estritamente intelectual, o movimento humanista ultrapassava o espaço das universidades
forjando em diversos indivíduos uma nova cosmovisão e atitude estética ante o mundo. Era a
humanidade restituída. O Antropocentrismo substituía o Teocentrismo medieval, de modo que
o homem passava a ser a “medida de todas as coisas”, dotado de racionalidade e capaz de criar
e explicar os fenômenos e a vida a sua volta.
O homem fora divinizado ao mesmo tempo em que os deuses foram humanizados. Em uma das
cenas mais famosas do teto da Capela Sistina, Michelangelo Buonarroti pintou a figura heroica
e divinizada do homem, assim como uma humanização do Deus judaico-cristão (pintado tal
como Zeus, mas com feições humanas).
Figura 7. Criação do homem, detalhe do teto da Capela Sistina, pintado entre 1473 e 1483 por Michelangelo.
Fonte: https://valdoresende.files.wordpress.com/2012/11/capela_sistina_adao.jpg.
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A cultura de uma era: Humanismo, Renascimento, Reformas e Racionalismo • CAPÍTULO 2
Sugestão de estudo
Contudo, o Humanismo nunca foi um movimento de todo coeso – o que, de certa forma, causa
até hoje diversas interpretações sobre suas motivações e características. Francisco Falcon assim
elencou como os historiadores definem o Humanismo:
A valorização do belo (com destaque para a feiura) tanto quanto a temática mitológica foram
algumas suas principais características quanto à pintura, como podemos ver na obra de Sandro
Botticelli, O nascimento da Vênus. A cena representa Vênus, nascida no mar, sendo conduzida
rapidamente por Zéfiro para a terra firme, onde Horas (as Estações) está preparada para cobri-la
com um lindo manto. Esse tema mitológico foi muito importante na literatura e na filosofia
renascentistas, de tal forma que a cena pode sugerir diferentes significados alegóricos. A tela,
datada em tomo de 1485, certamente documenta tanto a participação de Botticelli no círculo
de humanistas florentinos como os seus estudos de escultura clássica, uma vez que essa célebre
Vênus relembra inúmeras estátuas antigas da deusa.
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CAPÍTULO 2 • A cultura de uma era: Humanismo, Renascimento, Reformas e Racionalismo
» Engenho: era a arte de “imitar com invenção nova”, ou seja, era quando a criação,
tomando como parâmetro o mundo antigo, caracterizava-se como inteiramente nova.
A essas concepções, nem sempre tão claras e uníssonas, foram também somadas as técnicas e os
estudos para uma boa pincelada ou uma boa escrita. No caso da arte pitoresca, codificada por
Fillipo Brunelleschi [1377-1446], a perspectiva talvez tenha sido a mais importante das técnicas,
pois conferia uma nova dimensão à arte, sendo fundamental o conhecimento da Geometria,
da Matemática como formas de lidar com as proporções, mas, também, da Medicina, para o
conhecimento exato das contrações e medidas corporais. Dois grandes mestres se destacaram
nessa técnica: Leonardo da Vinci [1452-1519] e Rafael Sanzio [1483-1520]. Desse último, podemos
ler em sua lápide: “Aqui jaz Rafael, por quem a natureza temeu ser derrotada enquanto era vivo
e, uma vez morto, que morresse consigo”.
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A cultura de uma era: Humanismo, Renascimento, Reformas e Racionalismo • CAPÍTULO 2
Por fim, a universalidade e totalidade do homem renascentista pode ser percebida no curriculum
de Leonardo da Vinci enviado ao duque de Milão a fim de oferecer seus serviços. Vejamos:
2. Quando um lugar é assediado, sei apanhar água do outro lado das trincheiras
com pontes e máquinas apropriadas para cada expedição.
5. Se a batalha for no mar, tenho vários tipos de armas muito eficazes para o
ataque e a defesa e barcos que resistem ao ataque de grandes canhões.
6. Sei o modo de superar caminhos tortuosos sem fazer ruído inclusive se há que
passar por uma trincheira ou um rio.
10. Em tempos de paz acho que posso conseguir os mesmos resultados que
qualquer outro em arquitetura e desenhos de plantas de edifícios públicos e
privados e realizar sistemas de distribuição de água.
11. Posso fazer esculturas em mármore, bronze e argila e posso pintar quadros,
tão bem como qualquer outro.
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CAPÍTULO 2 • A cultura de uma era: Humanismo, Renascimento, Reformas e Racionalismo
Leonardo talvez tenha sido o homem que melhor incorporou os pressupostos do Renascimento
e do Humanismo, inclusive na sua completude. Não sem razão foi seguido como ídolo por uma
geração de artistas, sobretudo após a publicação do livro de Giorgio Vasari [1511-1574] sobre a
Vida dos artistas, publicado em 1550. Mesmo após o saque de Roma [1527] e a morte dos grandes
artistas renascentistas, a crítica ao mundo medieval permaneceu viva. Havia, portanto, um clima
de efervescência intelectual, no qual diversos indivíduos passavam a repensar seu mundo e a
buscar certo retorno ao antigo. A unidade cristã não fora poupada desses pensamentos.
Sugestão de estudo
Há diversas interpretações sobre o Renascimento. Porém, se você quiser se aprofundar mais sobre esta temática fascinante,
não há melhor começo que o célebre livro do grande historiador Jacob Burckhardt, publicado em 1860, hoje já clássico sobre
o Renascimento: A cultura do renascimento na Itália.
Reforma e Contrarreforma
A ideia de reformar a Igreja cristã esteve presente desde os primórdios de sua existência. Muitos
cristãos, ciosos de estarem vivendo apartados da “verdadeira doutrina” de Cristo, procuram
fazer valer a palavra “reforma” – ou seja, retornar à forma original. Muitos desses grupos foram
incorporados no seio da Cristandade, como os monges, outros tantos foram acusados de heresia.
Católica. Ao final da Idade Média, havia um clima de total excomungados ou mesmo mortos –
como foi o caso dos cátaros.
inquietação religiosa entre a população europeia, que se sentia
culpada e certa de que seria castigada após a morte. Inúmeros movimentos foram sufocados
pela Igreja nesses tempos, mas, mesmo assim, eles não paravam de proliferar.
Saiba mais
Se havia alguns membros da Igreja que desejavam reformá-la, a proposta não encontrava apoio em sua alta hierarquia. Num
desses movimentos que antecederam a Reforma, John Wycliff, um professor de Teologia, na Inglaterra, traduziu a Bíblia
para o inglês e defendeu a criação de uma igreja nacional sem riquezas. Na Boêmia, o também professor de Teologia, Jan
Huss, tanto fez críticas à Igreja que acabou queimado pela Inquisição, no ano de 1415. O dominicano florentino Girolamo
Savonarola atiçou uma querela com o papa Alexandre VI e também acabou na fogueira em 1498.
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A cultura de uma era: Humanismo, Renascimento, Reformas e Racionalismo • CAPÍTULO 2
Para esse sentimento, contribuíram as desgraças que marcavam a época (guerras e pestes) e as
profecias de pregadores populares, que viam aqueles anos como prenúncio do Juízo Final. A Igreja
não ficava alheia a esse contexto e incentivou a prática dos sacramentos como forma de ligação
com os fiéis. Porém, seus representantes entoavam sermões apocalípticos, denunciavam pecados
e exigiam do povo que recebesse, com passividade, seu destino. Havia, contudo, algumas formas
de chegar à salvação, sendo a mais famosa delas a indulgência. Disseminada junto à invenção
do purgatório como lugar transitório e concorrente ao inferno, as indulgências eram formas de
redimirem os pecados dos vivos e da alma dos mortos no purgatório por meio de peregrinações,
de construções pias (quando o fiel erigia uma Igreja ou doava algo para ela em vida ou na hora
da morte) e da compra de diplomas papais. A simonia (venda de cargos eclesiásticos), por sua
vez, também foi uma prática comum muito criticada por aqueles que almejavam por reformas
na Igreja.
Fonte: http://media.gettyimages.com/illustrations/selling-of-indulgences-by-hans-holbein-illustration-
id155140351?s=170667a (acesso em setembrio de 2016).
É nesse sentido que a Reforma deve ser entendida como a finalização das inquietações religiosas
do término da Idade Média e as explicações para sua gênese devem ser buscadas, sobretudo, no
âmbito religioso. Finaliza Delumeau:
Nesse período em que o individualismo ganhava corpo, a religião se voltava para práticas mais
pessoais. Com a invenção da imprensa multiplicaram-se as traduções da Bíblia em língua vulgar.
Muitos passaram a desrespeitar a tradição católica e a fazer da Bíblia o único fundamento de
suas crenças.
27
CAPÍTULO 2 • A cultura de uma era: Humanismo, Renascimento, Reformas e Racionalismo
A reação da Igreja Católica foi imediata. Grande parte da ordem eclesiástica repudiou as convicções
de Lutero, evidenciadas nas 95 teses publicadas no ano de 1517 na catedral de Wittenberg, e proibiu
que seus fiéis a seguissem. Mas logo o luteranismo difundiu-se, com o apoio de intelectuais,
humanistas, estudantes e da nobreza senhorial, que sonhava em abocanhar os bens da Igreja.
A partir daí, inúmeras religiões foram formadas, sempre tendo um pensador central como seu
mentor. Ulrich Zwinglio, João Calvino (Calvinismo) e Henrique VIII (Anglicanismo), dentre muitos
outros, fundaram suas próprias religiões, impulsionando a revolução protestante.
Para refletir
Das 95 teses, fizemos uma seleção de dez a fim de que você entenda aquilo que reivindicava Lutero. São elas:
1. Dizendo ‘‘Fazei penitência...’’, nosso Senhor e Mestre Jesus Cristo quis que toda a vida dos
fiéis seja uma penitência.
2. O papa não quer, nem pode, perdoar alguma pena, exceto aquelas que ele tenha imposto
por sua própria vontade...
20. O papa, quando fala de remissão plena de todas as penas, não as compreende todas, mas
semente aquelas que ele mesmo impôs.
21. Erram, pois, os pregadores das indulgências que dizem que, pelas indulgências do papa, o
homem fica livre de toda a pena e fica salvo.
28
A cultura de uma era: Humanismo, Renascimento, Reformas e Racionalismo • CAPÍTULO 2
27. Pregam doutrina puramente humana os que dizem que ‘‘logo que o dinheiro cai na caixa
a alma se liberta (do Purgatório)’’.
28. É certo que, desde que a moeda cai na caixa, o ganho e a cupidez podem ser aumentados;
mas a intercessão da Igreja só depende da vontade de Deus.
32. Serão condenados para toda a eternidade, com os seus mestres, aqueles que creem estar
seguros da sua salvação por cartas de indulgências.
35. Pregam o contrário da verdade cristã os que ensinam que a contrição não é necessária às
pessoas que querem remir ou adquirir bilhetes de confissão.
36. Qualquer cristão, verdadeiramente arrependido, tem plena remissão da pena e da falta;
ela lhe é devida mesmo sem cartas de indulgências.
43. É preciso ensinar aos cristãos que aquele que dá aos pobres, ou empresta a quem está
necessitado, faz melhor do que se comprasse indulgências (LUTERO apud MARQUES;
BERUTI; FARIA, 2003, p. 119-120).
» Preocupação com a formação dos clérigos e criação de seminários para esse fim;
» Salvação obtida pela fé e pelas boas obras, além da manutenção da noção de livre arbítrio
(aceitação ou não da graça divina);
Como podemos observar, a Contrarreforma teve um caráter bastante conservador, pois tratou
basicamente de reafirmar a ortodoxia católica. Entretanto, a Reforma de Lutero causou reviravoltas
29
CAPÍTULO 2 • A cultura de uma era: Humanismo, Renascimento, Reformas e Racionalismo
Uma dessas novas interpretações foi perpetrada pelo humanista João Calvino, francês que, logo
que se converteu à religião protestante, passou a estudar sistematicamente essa nova crença.
Do seu pensamento, surgiram tratados religiosos que traziam uma nova visão da Reforma e logo
uma nova doutrina foi formada, o calvinismo.
Segundo o calvinismo, o homem nasce predestinado, não detendo o menor controle sobre o
seu destino. Ao contrário do que afirmava Lutero (que pregava que o homem poderia ser salvo
pela fé), a doutrina de Calvino afirmava que Deus já escolhera os indivíduos que seriam salvos
e os que seriam condenados, e suas ações no campo terreno de nada adiantavam para reverter
sua situação.
No que se refere às questões éticas e morais, o calvinismo era conservador e tinha como
particularidade a rigidez de costumes que impunha aos fiéis. Na Suíça, por exemplo, após a
queda do duque de Savóia, implementou-se o governo da Igreja calvinista do país. O resultado foi
a adoção de um severo órgão de vigilância, responsável por fiscalizar a existência de atividades
amorais e de punir aqueles que as praticassem. Proibiu-se a dança e os jogos, os altares foram
retirados dos templos e a liturgia foi extremamente simplificada, de modo que se tornasse
inteligível não só para os intelectuais clericais.
Talvez aí esteja o maior motivo para explicar o fascínio que o calvinismo, tão opressor, causou
na Europa, encontrando muitos adeptos, em especial na Suíça, França (onde seus seguidores
eram chamados de Huguenotes), Holanda, Escócia e Inglaterra (onde eram conhecidos como
puritanos).
Assim como na Suíça e na França, a reforma proposta por Lutero influenciou a construção de
novas concepções religiosas também na Inglaterra. O Anglicanismo, religião criada pelo rei inglês
Henrique VIII, evidenciou mudanças referentes também a aspectos de caráter político. Durante
o governo desse monarca [1509-1547], a burguesia exercia enorme pressão para que o aumento
do poder do Parlamento fosse autorizado pelo monarca. Com isso, os burgueses buscavam
fortalecer sua presença na sociedade, o que apenas um Parlamento (formado por burgueses e
senhores simpáticos a eles) forte poderia garantir.
Caso conseguisse seu intento, a burguesia passaria a ter poder político para legislar sobre as
atividades comerciais e financeiras, diminuindo o poder da Igreja e do controle do próprio rei.
30
A cultura de uma era: Humanismo, Renascimento, Reformas e Racionalismo • CAPÍTULO 2
Henrique VIII, para não ceder às pressões, objetivou angariar mais fundos para a monarquia.
Assim, confiscou diversos bens da Igreja.
Essa decisão enfureceu o papa, que ficou ainda mais abestalhado quando Henrique solicitou a
anulação de seu casamento com a espanhola Catarina de Aragão. Com o divórcio, o monarca
pretendia impedir que a Inglaterra viesse a cair em mãos espanholas após sua morte, já que não
possuía herdeiros masculinos com a princesa.
Autocoroou-se chefe religioso e obrigou os líderes clericais do país a reconhecê-lo como tal,
jurando-lhe fidelidade. Com a artimanha, conseguia não só silenciar o papa, como, também,
livrava-se de Catarina. Além disso, assegurou a continuidade da soberania inglesa sobre seu próprio
trono e, com a apropriação (agora legal, já que o rei era também chefe religioso) das riquezas da
Igreja, financiou a Coroa, contendo as pressões burguesas. Em suma, porém, o anglicanismo não
representou uma Reforma teórica de fato (como o foi o calvinismo, por exemplo). Foi, isso sim,
uma autêntica manobra política, sagaz e oportuna, que foi tão bem-sucedida que se tornou uma
religião de fato, embora muitos de seus preceitos sejam idênticos aos católicos, principalmente
após 1563, com a publicação da Lei dos Trinta e Nove Artigos, em que se encontram todos os
fundamentos da doutrina anglicana, pela rainha Elizabeth I.
Claro está que todas essas cooptações não foram automáticas. Em muitos lugares a população
e/ou o rei resistiram. Em Espanha, Portugal e nas repúblicas italianas, a Inquisição procurou
conter o avanço da Reforma. No Sacro Império Romano Germânico, a questão provou uma
disputa de grandes proporções e mesmo com o Édito de Worms, publicado em 1521 por Carlos
V, proibindo os escritos e a adoção da “seita” (assim era chamada) de Lutero, a religião reformada
proliferou. Na França, os huguenotes cada vez mais tomavam espaços e rivalizavam com os
católicos, culminado no famigerado massacre da noite de São Bartolomeu, na qual foi grande o
número de mortes. Inúmeras batalhas proliferaram por toda a Europa desses tempos, sendo a
maior delas a Guerra dos Trinta Anos [1618-1648].
Sugestão de estudo
Ver o filme A rainha Margot (La reine Margot, 1994), de Patrice Chéreau, que tem como pano de fundo as guerras de religião e
o massacre da noite de São Bartolomeu, na França.
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CAPÍTULO 2 • A cultura de uma era: Humanismo, Renascimento, Reformas e Racionalismo
“Na verdade, tudo o que se refere ao século XVIII é estranho, quando examinado em detalhe”
(DARNTON, 2005, p. 8). A questão que o historiador norte-americano Robert Darnton pensou
para esses tempos não é de uma estranheza em si, mas de uma estranheza para nós. Estranho,
pois compartilhamos em lugares opostos ciência e religião; luz e escuridão; riso e tragédia.
Mas, em certos momentos, esses opostos mais se completavam que se afastavam. A Revolução
Científica, ainda no século XVII, estabeleceu o início de um rompimento com as concepções de
mundo fundadas em Ptolomeu e Aristóteles, mas continuaram influenciadas pelo Cristianismo
Ocidental.
Na Europa do século XVI, começava a surgir uma nova forma de conhecimento e, sobretudo, uma
nova forma de se conhecer o mundo. O questionamento de verdades e preceitos estabelecidos
desde a época que hoje chamamos de medieval estava cada vez mais evidenciado em movimentos
com o Renascimento e a Reforma. Contudo, não existe um lugar de nascimento da ciência
moderna, pois as personagens principais dessa complicada realidade histórica estavam nas mais
diversas partes da Europa: Nicolau Copérnico era polonês; Francis Bacon, Robert Boyle e Issac
Newton ingleses; Descartes e Pascal franceses; Tycho Brahe dinamarquês; Paracelso, Kepler e
Leibniz germânicos; Huygens holandês; Galileu e Torriceli italianos. Como afirma um dos maiores
especialistas no assunto, o historiador Paolo Rossi:
É nesse sentido que o que podemos chamar de “ciência moderna” não nasceu no clima artificial
dos laboratórios de pesquisa ou no campus tranquilo da universidade (assim como nos dias de
hoje), pois essas instituições não haviam sido criadas pelo trabalho dos “filósofos naturalistas”.
Na maior parte das vezes, esses “homens de ciência” haviam entrado em conflito e polemizado
com as universidades.
Entretanto, havia consciência de que aquilo que faziam era fundamentalmente novo, o que explica
o termo novus usado de forma quase obsessiva em várias centenas de títulos de livros científicos
do século XVII. É nesse sentido que alguns pontos garantiam especificidade ao entendimento
da Ciência na época Moderna, conforme aponta Rossi:
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A cultura de uma era: Humanismo, Renascimento, Reformas e Racionalismo • CAPÍTULO 2
Entre fins do século XV e o Seiscentos, a sociedade europeia passou por inúmeras transformações
que colocaram em xeque as estruturas da unidade cristã no Ocidente. Enquanto as Reformas
promoveram uma nova espiritualidade, calcada, pelo lado protestante, em um contato direto
com Deus e na possibilidade do sacerdócio universal, e, pela confissão católica, numa luta pela
ortodoxia religiosa. O Renascimento, por sua vez, inspirava-se no retorno às formas da Antiguidade
clássica. Não que sua arte tenha apenas imitado os antigos, mas que a adaptação, inovação
e desenvolvimento teve na tradição clássica sua maior inspiração. Portanto, Renascimento e
Reforma protestante lançaram críticas à sociedade medieval por meio do retorno ao passado,
seja aquele da arte ou dos apóstolos.
Talvez uma das realidades mais radicais enfrentadas pelos homens desses tempos, seja o
encontro (ou desencontro) com novos mundos. A tradição judaico-cristã construiu uma
narrativa na qual a humanidade descendia dos três filhos de Noé: Sem, Cam e Jafé. Deles,
originou-se, segundo essa mesma tradição, os semitas, os africanos e os europeus, os persas e
os indianos (respectivamente). Porém, como explicar esse novo homem que habita esse novo
continente da América? O que foram fazer os europeus além de suas terras? É o que vamos
pensar no próximo capítulo.
33
CAPÍTULO 2 • A cultura de uma era: Humanismo, Renascimento, Reformas e Racionalismo
Sintetizando
34
EXPANSÃO MARÍTIMA E COMERCIAL
CAPÍTULO
3
Apresentação
O capítulo 3 do Livro Didático da disciplina História Moderna permite conhecer diferentes aspectos
da Economia da Era Moderna. Começaremos os nossos estudos refletindo profundamente sobre
a Expansão Marítima.
Objetivos
Esperamos que, após o estudo do conteúdo deste capítulo, você seja capaz de:
35
CAPÍTULO 3 • Expansão Marítima e Comercial
Introdução
Fernando Pessoa, um dos maiores poetas portugueses da virada para o século XX, escreveu este
poema, intitulado Mar português. A precisão e apelo de Pessoa deixa entrever algo de dramático na
grande expansão europeia e portuguesa. Contudo, se todas as lágrimas valeram a pena é preciso
entender seus porquês. Este capítulo procura dar conta do que foi o comércio e a economia na
época Moderna, tanto quando entender o que foi a expansão marítima dos séculos XV e XVI e a
crise do século XVII. Vamos a elas.
A conquista de Ceuta, em 1415, foi o marco inicial da expansão marítima portuguesa. Ainda não
era europeia, mas portuguesa com certeza. Frequentemente, a expansão é associada à tomada
de Constantinopla pelos turcos-otomanos [1453] e a possível busca de uma nova rota comercial
para a Índia. Porém, um evento de 1415 pode ser caracterizado por um acontecimento de 1453?
Cremos que não. Algumas das motivações desenvolvidas pela historiografia mais tradicional não
dão conta de explicar os porquês da expansão portuguesa. Afirma o historiador Luiz Felipe Thomaz:
36
Expansão Marítima e Comercial • CAPÍTULO 3
expansionista) e a busca do reino mitológico do Preste João (questão essa presente há mais de
século e em outras regiões, tal como Inglaterra e Veneza) como fundamentais para a expansão.
Um último fator também é recorrente em muitas análises: o interesse no ouro do Sudão, decorrente
da “escassez monetária” europeia. É verdade que os metais amoedáveis (passíveis de serem
cunhados) eram cada vez mais escassos na Europa, mas, também, é certo que deveriam ser as
repúblicas italianas as mais interessadas, em face do avanço da monetarização em sua economia.
É claro que essas explicações são importantes, mas, segundo a argumentação de Thomaz, não
determinaram suas condições. Então, o que a determinou?
Para refletir
A segunda utopia sugerida pelo personagem é a das maravilhas do Oriente. Pois se o Extremo Oriente é o domínio dos povos
de Gog e Magog, que no fim do mundo virão aniquilar a humanidade para fazê-la comparecer ao Julgamento Final, entre
esse Extremo Oriente diabólico e a cristandade ocidental, povoada de homens e mulheres marcados pelo pecado original,
mas salvos pela encarnação de Jesus, estende-se o mundo do Oriente, formado pelo que os cartógrafos e os enciclopedistas
da Idade Média chamam de três Índias. Elas eram compostas pela Índia Maior, convertida ao cristianismo pelo apóstolo
Tomás; pelo que os geógrafos atuais chamam de Arábia; e, por fim, pela África, ou ao menos pelo que dela se conhecia e que
corresponde ao Chifre de África, que então se chamava Etiópia. Essa região das três Índias era, para os cristãos do Ocidente,
um mundo de maravilhas que, principalmente a partir do século XII, desempenha um papel poderoso no imaginário
medieval [...]”.
Os comentários de Marco Polo foram fundamentais para a propagação do mito no fim da Idade Média. Diz o navegador: “era
este o Prestes João, de quem falavam todos, no grande Império. Os tártaros davam-lhe uma renda de dez cabeças de gado
(o dízimo). Mas o povo multiplicou-se, e, quando isto viu, o Prestes João decidiu dividi-lo por várias regiões, e enviar, para
governá-las, alguns dos seus barões” (MARCO POLO, 1994, p. 92).
“No século XIV, os comentários ocidentais transportam-no da primeira Índia para a terceira, isto é, para a Etiópia. Ele é então
confundido com certo rei núbio, David, que realmente teria existido. O que dá definitivamente peso a essa transferência
geográfica são os comentários sobre sua existência na Etiópia por parte dos exploradores portugueses. Ainda em 1515, o
príncipe Pedro, de Portugal, traz de uma viagem para a Etiópia uma pretensa carta do padre João. Por sua vez, Giuliano
di Piero de Medici recebeu a carta de um viajante que encontrou os rastros do padre João, o qual, depois de seu reino da
Etiópia, teria conservado laços com a Índia do Sul, convertida por São Tomás. [...] Em meados do século XVI, o padre João
apaga-se pouco a pouco, por vezes em proveito de outros padres João históricos ou imaginários, e a partir do fim do século
XVI sai da história real para entrar na história do imaginário” (LE GOFF, 2014, p. 384-386).
Um cronista e guarda-mor do arquivo português da Torre do Tombo, Gomes Eanes de Zurara [1410-
74], dizia na Crônica da tomada de Ceuta por el-rei dom João I: “nós [portugueses] de uma parte nos
cerca o mar e da outra temos muro no reino de Castela”. O deve querer dizer isso? Portugal, após
37
CAPÍTULO 3 • Expansão Marítima e Comercial
ter conquistado ante os mouros todo o espaço geográfico em 1249 (tomada do Algarve), não tinha
para onde expandir seus territórios. Vinha, à época, se tornando o principal entreposto comercial
entre o Mediterrâneo e o norte da Europa e encontrava no reino de Castela a impossibilidade de
expansão para dentro da Península. Castela (assim como Portugal) estava em meio à Reconquista,
uma espécie de cruzada contra os reinos islâmicos (mouros) da Península Ibérica, e já havia iniciado
uma expansão para além do Gibraltar, chegando a Tetuão (próximo a Tanger) em 1399, e Aragão, um
século antes, já havia ido em direção às ilhas Baleares e o interior do Mediterrâneo. É dessa forma
que o início da expansão teve ligação profunda com o processo de conquista interno à Península
Ibérica. Para os nobres portugueses, a conquista da Península e a derrocada dos muçulmanos na
região eram por demais benquistos, porém, ambas foram inviabilizadas por Castela, mas, também,
criaram uma alternativa àquele intento: a tomada de Ceuta, no norte da África.
Luiz Felipe Thomaz parte da ideia de que a conquista do norte da África deveu-se ao “Projeto
Marroquino” na sua luta contra os mouros, pois não havia como expandir dentro da Península.
Todavia, isso não significa que não havia interesses econômicos na conquista de Ceuta: era
uma cidade importantíssima do ponto de vista da geografia comercial, interessantíssimo aos
mercadores, na qual era conferido à navegação de comércio pelo estreito de Gibraltar e às pescas
em todo o Golfo das Éguas com muito maior segurança. Define, assim, o historiador:
Aqui reside um ponto interessante da análise de Thomaz: ele argumenta que a expansão
portuguesa foi “o último capítulo” da História Medieval e não o primeiro da Modernidade – ao
menos até 1481, início do reinado de dom João II, e 1487, chegada de Bartolomeu Dias ao Cabo
da Boa Esperança. Com o infante dom Henrique, o principal interesse é o Marrocos – se bem que
a dimensão atlântica fosse ensaiada até o Cabo do Bojador, em 1434, limite do conhecimento
naval europeu – com o objetivo de promover o fim da presença islâmica naquele território.
38
Expansão Marítima e Comercial • CAPÍTULO 3
Saiba mais
O infante dom Henrique [Porto, 1394 – Sagres, 1460] foi uma das mais importantes figuras do início da era dos
descobrimentos, conhecido como “o Navegador”. Foi responsável pela expedição ao Marrocos [1414-1415] e às Canárias
[1416], além de ser um dos maiores incentivadores da expansão para além do cabo do Bojador [1434].
Para o historiador John Thornton (2010, p. 145), a expansão para a África deu-se por três frentes:
39
CAPÍTULO 3 • Expansão Marítima e Comercial
» A exploração dos mares a oeste de Portugal e a descoberta das ilhas atlânticas, a partir
da década de 1420;
» A demanda do Preste João e uma rota para as suas terras, bem como o desenvolvimento
do comércio de ouro e escravos, sobretudo após os acordos com reis africanos e o difícil
avanço até o golfo da Guiné.
Porém, engana-se quem acredita que os portugueses eram superiores belicamente e conquistaram
facilmente a África. Thornton afirma que os navios portugueses zarpavam fortemente armados
a fim de atacar “quaisquer gentes desprevenidas”. A estratégia deu certo nas ilhas atlânticas, mas
naufragou na costa da África central onde os povos tinham embarcações que podiam adentrar
no mar traiçoeiro e combater em pé de igualdade. Entre 1445 e 1452, derrotaram os portugueses
na água e em terra, obrigando-os a repensar sua estratégia nessas paragens. Diogo Gomes foi
incumbido de negociar um acordo de paz a fim de desenvolver um comércio seguro e pacífico.
Devido à desconfiança com as guerras, somente a partir de 1462 que os lusos conseguiram
acordos que permitiram o acesso aos rios do Senegal e da Gâmbia. Os senegâmbios haviam
demonstrado a inferioridade bélica de Portugal, mas, também, apresentado uma alternativa
à guerra: os portugueses passaram a se alistar como mercenários especializados nos exércitos
africanos e fornecer armas e demais produtos, obtendo, em troca, riquezas e acordos comerciais.
A essa época, eram os comerciantes e a nobreza – e não a coroa – que promoviam a expansão,
mas “depois de os exploradores descobrirem mercados lucrativos e seguros ou de terem feito
a conquista, a tendência da coroa foi impor regulamentos ou até apropriar-se dos direitos dos
antigos proprietários e concedê-los a favoritos” (THORNTON, 2000, p. 148). Havia diversos
equívocos náuticos, sobretudo após a chegada ao Golfo da Guiné e a crença de que, caso seguissem
em direção ao leste, chegariam ao reino da Etiópia, onde vivia o Preste João. Porém, a geografia
africana continuava ao sul, surpreendendo todos, inclusive o navegador Diogo Cão que não
conseguira encontrar o fim da África entre 1482 e 1485. A tarefa coube a Bartolomeu Dias, já em
1487, que voltou da descoberta do Cabo das Tormentas (trocado de nome pelo rei para Cabo da
Boa Esperança) com ótimas notícias. Portugal, na década de 1480, estava convencido do caminho
africano, tanto é que nada interessava a proposta de Cristóvão Colombo: chegar à Índia pela
navegação a oeste. Colombo deixou Lisboa e foi tentar a sorte em Sevilha. Foi Isabel de Castela
quem se interessou pela proposta, obrigando o conde Niebla a participar da empreitada a fim
de compensar seus crimes de contrabando e pirataria. Desse modo, 1492 foi um ano basilar na
história da Espanha (GRUZINSKI, 2001): ano do fim da Reconquista, com a tomada de Granada;
da expulsão dos judeus; da publicação da primeira gramática de língua castelhana, por Antonio
de Nebrija; e da chegada de Colombo à América (embora o navegador tenha morrido acreditando
que havia chegado na Terra do grande Khan, China, e nas Índias).
Castela e Aragão, a bem da verdade, deram pouca atenção à conquista de Colombo, pois seus
olhos estavam, assim como os portugueses, voltados para o Mediterrâneo e o norte da África,
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Expansão Marítima e Comercial • CAPÍTULO 3
procurando conter o avanço do Império Otomano na luta contra o Islã. Para Castela, a batalha
de Lepanto [1571] fora crucial, pois marcou o fim dos embates com os muçulmanos e a efetiva
preocupação com a América. Para Portugal, fora a trágica batalha de Alcácer-Quibir, no Marrocos,
na qual o rei dom Sebastião morreu com toda a grande nobreza portuguesa em 1578. O norte
da África foi sempre traumático para os portugueses. Já dizia o poeta Fernando Pessoa, “Oh mar
salgado, quanto do teu sal são lágrimas de Portugal”. Na batalha para tentar tomar Tânger, em
1437, dom Fernando, filho do rei dom João, foi preso pelo governador derrotado de Ceuta. Este
deu o ultimato: “a flor de todas as terras da África”, Ceuta, ou a vida do infante. Por fim, após os
debates do reino, a escolha tomada fez os mouros pendurarem o cadáver despojado das vísceras,
esquartejado e salgado de dom Fernando na muralha de Fez – de onde saiu apenas em 1471,
quando os portugueses finalmente tomaram a cidade.
De todo modo, após o retorno de Bartolomeu Dias, a esperança até as índias era grande,
atrapalhadas apenas pelas notícias que vinham de Sevilha com a descoberta de Colombo. Alguns
historiadores acreditam que os portugueses já soubessem da existência de terras a oeste do
Atlântico, justificando a mudança da bula Inter Coetera para 370 léguas de Cabo Verde, ao invés
das 100 léguas iniciais. O novo acordo ficou conhecido como Tratado de Tordesilhas [1494], mas
ele não deve ser observado apenas do lado ocidental, afinal os portugueses almejavam preservar
toda a África e a Índia.
Provocação
Acaso ou intencionalidade?
“Rios de tinta têm corrido na discussão do acaso ou intencionalidade da aterragem da armada de Cabral no Brasil. Coube a
William Brooks Grenlee, The voyage of Pedro Álvares Cabral to Brazil and India, em 1937, assim resumir tal debate:
1. Acaso
» A armada perdeu o rumo nas proximidades das Ilhas de Cabo Verde e afastou-se para oeste.
» Para revisitar terra a ocidente supostamente incluída numa carta náutica de Andréa Bianco, anterior a 1448.
» Para revisitar terra a ocidente supostamente incluída num mapa de ‘Bisagudo’ mencionado na carta de Mestre João.
» Para reclamar oficialmente para Portugal esta terra, que teria sido visitada por Duarte Pacheco Pereira, em 1498, segundo
interpretação do seu Esmeraldo de Situ Orbis.
» Para dar solidez à afirmação da descoberta de terras naquela zona durante o reinado de D. João II.
» Para certificar-se de que a terra, se houvesse, estaria no território português, a leste da linha de demarcação fixada, pelo
Tratado de Tordesilhas, a 370 léguas a oeste das Ilhas de Cabo Verde.
41
CAPÍTULO 3 • Expansão Marítima e Comercial
» Para determinar se o continente sul-americano terminava naquele paralelo (o da aterragem), de molde a que a rota da
Índia pudesse ser cursada.
» Para aproveitar-se do alísio de nordeste e, com ele, fazer a rota algo mais para oeste para melhor navegação para o Cabo
[da Boa Esperança], na esperança de descobrir o limite ocidental das calmas equatoriais e contornar o alísio de sudeste.
A meu ver, a arribada foi proposital, intencional, para reconhecer a terra suspeitada já em Portugal e convenientemente
situá-la para apoio na rota da Índia e não num encontro casual quando a armada passava ao largo da costa” (GUEDES, 1998).
Nove anos após, em 1497, coube à coroa preparar a viagem de Vasco da Gama. Foi expedição
única: organizada pela coroa e contrariou expectativas, “quando a frota do Gama chegou ao
oceano Índico não rumou diretamente à terra de Preste João” (THORNTON, 2000, p. 152).
Fora o porto de Sofala o destino, “onde se comercializava ouro”. Nesse sentido, as duas últimas
décadas do século XV foram cruciais para a mudança de objetivo, transformando a expansão
portuguesa, ainda medieval, em expansão marítima e comercial europeia, propriamente moderna.
A partir daí, diversas conquistas e descobrimentos foram se somando em um processo que ficou
conhecido como “desencravamento planetário”, na perspectiva de Pierre Chaunu (1976), ou de
“Ocidentalização do mundo”, conforme Serge Gruzinski (1999).
A segunda viagem para a Índia partiu em 1500, sob o comando de Pedro Alvares Cabral – dois anos
antes da quarta e última viagem de Colombo à América. Cabral chegou à América no mesmo ano,
tomando posse da Ilha de Vera Cruz (logo após chamada de Terra de Santa Cruz, mas conhecida
mesmo pelo nome do comércio, o pau abrasado: Brasil), seguindo viagem até Calicute, na Índia,
já em clima bastante hostil. Na África Oriental, a política portuguesa, na primeira metade do
século XVI, foi “alicerçada na capacidade dos portugueses de saquearem qualquer cidade ou
povoação que conseguia acumular alguma riqueza” (THORNTON, 2010, p. 153). Também é fato
que os portugueses procuram, em alguns casos, criar um sistema de governo das conquistas a fim
42
Expansão Marítima e Comercial • CAPÍTULO 3
43
CAPÍTULO 3 • Expansão Marítima e Comercial
É nesse sentido que o processo de expansão europeu forma um sistema que interliga todo o
mundo por meio do comércio. Portugueses, genoveses, venezianos, espanhóis, holandeses,
ingleses, franceses encontraram no comércio atlântico a peça-chave desses tempos. É disso que
trataremos no próximo capítulo. Vamos a ela?
Sintetizando
44
CIVILIZAÇÃO MATERIAL E MERCADO
CAPÍTULO
4
Apresentação
O capítulo 4 deste Livro Didático de História Moderna enfrenta a definição dos conceitos de
comércio e mercados em sociedades pré-capitalistas. Nesse sentido, o mercantilismo e a formação
de um sistema-mundo foram os aspectos mais expressivos da economia moderna, mas todos
esses modelos tiveram de se medir com a grande crise que abalou as estruturas feudais em boa
parte da Europa.
Objetivos
Esperamos que, após o estudo do conteúdo deste capítulo, você seja capaz de:
45
CAPÍTULO 4 • Civilização Material e Mercado
Se as expansões abriram novas rotas para o comércio praticado na Europa medieval, também
precipitaram uma nova concepção econômica. Mas antes de tratar dela, é preciso lembrar que
a realidade econômica anterior à consolidação do capitalismo foi bem mais complicada do que
se imagina. Sobre essa questão, afirma Fernand Braudel:
As cidades eram os núcleos originados por excelência pelo desenvolvimento da troca, do comércio.
Lá que se fazia grande parte do jogo de trocas do período medieval. Elas nasceram para isso.
Porém, a sobrevivência de seus habitantes dependia tanto das feiras quanto dos pequenos artesãos
que fabricavam roupas e calçados. A “vida material” devia atentar, primeiramente, pelo valor da
troca ou, nessas sociedades não monetarizadas, pelos valores políticos, sociais ou afetivos. A vida,
na sua materialidade, era frágil. O tempo, o transporte, o crescimento ou redução demográfico,
uma epidemia poderiam alterar toda uma estrutura social.
O necessário e o supérfluo se digladiam ao sabor do contexto. Trigo, arroz, milho são alimentos
fundamentais dessa sociedade e sempre de acesso mais facilitado. Carnes, vestuários e habitação
já tomam a complexidade, faltando quase sempre ao acesso dos mais pobres. O açúcar foi luxo até
a colonização da América, tanto quanto a pimenta até o estabelecimento do comércio oceânico
com a Índia. As penas de cisne para os dormitórios, os talheres de prata, os pratos individuais
eram artigos inacessíveis à maioria esmagadora da sociedade. A batata, logo na mesa de todo
europeu, salvou o velho continente das sucessivas ondas de fome e carestia. Em contraste, o
lenço era artigo de luxo e, mesmo entre aqueles que tinha condições para tê-lo, pouco utilizavam.
As mangas das camisas ou barras de toalhas eram o local quisto para limpar a boca, assoar o
nariz, secar o suor entre outras atividades. A vida era simples e complexa, pagas pela jornada, pela
corveia ou pelo comércio ultramarino. Não importa, a vida material era necessidade de todos e
ela movimentava a Europa há séculos. Esses variados tipos de comércios de vários tempos e tipos
sobreviviam e se misturavam na Europa Moderna. A eles um outro tipo era acrescido e passava
a regular a vida: sociedade de mercado.
46
Civilização Material e Mercado • CAPÍTULO 4
A economia da Idade Média foi caracterizada, mormente, pela esfera do autoconsumo. Porém,
os excedentes, quando existiram, podiam ser trocados ou, no limite, comercializados em feiras
ou burgos próximos às aldeias camponesas. Embora existam grandes comerciantes, foi somente
no fim do medievo que se operou o início da transformação do comércio. As principais regiões da
economia comercial europeia eram as cidades do norte da Itália, as cidades da Liga Hanseática no
norte da Alemanha, a região de Flandres e as feiras da Champagne. Assim, cada região fomentava
uma rede comercial que propagava o uso do metal e do papel (letra de câmbio) como objeto de
troca para além de suas fronteiras. Essa operação comercial onde estiveram presentes os maiores
comerciantes da Europa iria criar uma figura social nunca antes vista: o mercador. Segundo Jacques
Le Goff, o comerciante associado às redes comerciais percorreria pessoalmente as mais distantes
rotas comerciais por terra e mar, provocando a conexão entre regiões distantes e estabelecendo
47
CAPÍTULO 4 • Civilização Material e Mercado
relações de amizade entre os povos originadas no comércio – esta é a característica que mais se
aproxima daquela sentença de Hugo de Saint-Victor. Contudo, a partir do século XIII, nas cidades
italianas, vislumbra-se um processo de sedentarização do comércio e, com isso, a incorporação
do crédito como uma nova atividade ligada à circulação de mercadorias.
Figura 15. Rotas comerciais dos genoveses – do Oriente próximo ao norte da Europa.
O “mercador-banqueiro [...] avança o capital para uma viagem de negócios e o mercador itinerante
[...] empreende a viagem. [...] Se há perda, o que empresta suporta todo o peso financeiro, perdendo
aquele que pediu emprestado apenas o valor de seu trabalho. Se há ganho, o emprestador, que
ficou em casa, é reembolsado e recebe uma parte dos lucros, em geral três quartos” (LE GOFF, 1982,
p. 18). Essa relação altera, no plano moral, as relações religiosas: “o orgulho [superbia], pecado
feudal por excelência, até aí em geral considerado como a mãe de todos os vícios, começa a ceder
essa primazia à avareza [avaritia], o desejo do dinheiro” (LE GOFF, 2005, p. 251). A representação
desse último pecado ficou imortalizada nas páginas de William Shakespeare.
A Idade Moderna potencializou o meio circundante, sobretudo com a ação das monarquias e com a
própria expansão marítima do comércio fomentada por elas. Esse processo provocou, na expressão
do historiador Pierre Chaunu, o “desencravamento planetário”, ou seja, o desenvolvimento de
uma primeira mundialização do planeta, interligando partes nunca antes conectadas.
48
Civilização Material e Mercado • CAPÍTULO 4
comercias com as cidades italianas (Gênova e Veneza, sobretudo). Contudo, esse modelo
urbano, paraíso das cidades, foi a opção política que fundou, já no século XVII, sua derrocada,
mas, também, seu transbordamento para fora de si mesma. Ou seja, o comércio foi ao mesmo
tempo responsável pela glória e pela decadência das cidades – e da própria Itália – ao dar o tom
desses novos tempos. Assim, o desenvolvimento comercial implicou uma expansão do espaço
– no qual o território dominado faz-se maior que aquele que lhe pertence. Para a Itália, fora o
Mediterrâneo; para Espanha e Portugal, fora o mundo Atlântico.
O historiador Fernand Braudel tem uma explicação bem interessante sobre esse ponto. Diz ele:
“a história da Europa desde muito é uma corrida: cidade contra Estado, digamos lebre contra
tartaruga. Ora, a lebre, a cidade mais ágil, ganhou logo no começo, como era lógico. Mas o século
XV, no Ocidente, assiste de novo à subida e à chegada das lentas tartarugas. O Estado territorial
triunfa [...]” (BRAUDEL, 2007, p. 44). As cidades-estado, muito mais vigorosas e dinâmicas,
foram devoradas e compelidas pelos robustos Estados territoriais. É o caso de Barcelona [1460]
e Granada [1492], submetidas a Castela e Aragão – tornando-se, doravante, a Espanha; mas é
também o caso de Vicenza, Pádua, Verona, Brescia, Bérgamo e Udine sujeitas a Veneza. A cidade
isolada capitulou.
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CAPÍTULO 4 • Civilização Material e Mercado
Mercantilismo
A política econômica por excelência desses tempos fora o Mercantilismo. Segundo o historiador
Francisco Falcon, o Mercantilismo foi um “conjunto de ideias e de práticas econômicas que
caracterizaram a história econômica europeia e particularmente a política econômica dos
Estados europeus durante o período situado entre os séculos XVI e XVIII” (FALCON, 1981, p. 21).
Nunca operou como uma doutrina ou sistema econômico coerente (tal como o capitalismo),
mas era uma espécie de receituário infalível de como as monarquias e repúblicas deviam operar
a fim de controlarem a economia e aumentarem suas receitas.
Os Estados eram “sujeitos e objetos” da política mercantil que, conforme Max Weber, “significa a
transferência do interesse do lucro capitalista para a política” (1974, p. 167). Fato esse que, como
era de se esperar, lhe rendeu inúmeras críticas pelo pai do liberalismo, Adam Smith, entre elas
de ferir a “liberdade de comércio”. Embora fossem assistemáticas, ou seja, nunca tenham tido
coesão, podemos estabelecer em linhas gerais suas características:
» Era uma política laica, na medida que abandonava o princípio cristão do “preço justo”
e da “usura”;
Em linhas gerais, tais características definiram o que foi a prática do Mercantilismo. Jean Bodin
assim resumiu todo o objetivo econômico de uma época: “A abundância de ouro e de prata é a
riqueza de um país”. Contudo, quando aplicada, essa prática econômica conheceu particularidades.
Vamos às mais famosas:
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Civilização Material e Mercado • CAPÍTULO 4
» Inglês: Expresso por meio dos Atos de navegação, de 1651, no qual – grosso modo – só
poderiam fazer comércio com a Inglaterra navios ingleses, resultando na produção de
uma enorme indústria naval que rivalizaria e superaria a grande frota holandesa.
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CAPÍTULO 4 • Civilização Material e Mercado
Esse era um mundo tomado pela grande Guerra dos Trinta Anos, que envolveu a Europa como
um todo. Um tempo em que os Habsburgos de Castela e do Sacro Império Romano Germânico
perdiam cada vez mais sua hegemonia na Europa, cedendo espaço para os Bourbons franceses.
E a monarquia inglesa perdia seu rei para uma Revolução. Um orador inglês disse com razão, em
1643, que “estes dias são dias de convulsões e essas convulsões são universais: no Palatinado, na
Boêmia, na Germânia, na Catalunha, em Portugal, na Irlanda, em Inglaterra” (Apud TREVOR-
ROPER, 1991, p. 43). Muitos homens daquela época imaginavam que seu mundo estava mesmo
em crise, tamanho o volume de revoltas e alterações. Sem dúvida, esses tempos são marcados
por uma totalidade contraditória: ao mesmo tempo em que carregam permanências do passado,
trazem consigo os germes do futuro. O século XVII é um tempo tipicamente transitório no qual
estão presentes a busca pela permanência e estabilidade da sociedade, paradoxalmente que
se funda uma ideia de mudança e individualização, substituindo uma civilização cujo alicerce
era a ideia do dever coletivo para outra fundada sobre os direitos da consciência individual.
A esse profundo sentimento de inquietude – que deu especificidade à Época Moderna – Paul
Hazard deu o nome de crise da consciência europeia – que teve seu ápice entre os anos de
1680 e 1715.
Contudo, para muitos historiadores, a crise do século XVII apresentou motivações estritamente
econômicas. A queda dos preços, o baixo volume da produção interna europeia e o declínio de
grande parte do comércio internacional foram fatores decisivos para essa vertente explicativa.
Já outros pesquisadores viram nas guerras do século XVII uma chave essencial para entender
essa crise. Vamos entender melhor essas explicações.
Os historiadores alinhados com o marxismo entendem que a crise do século XVII representou
a última etapa de transição entre feudalismo e capitalismo. Todavia, o próprio Karl Marx não
situou bem a questão. Em seus primeiros escritos – como O manifesto comunista e A ideologia
alemã –, apontou que o capitalismo existia dentro do feudalismo e só entrou na corrente
principal da História quando as classes burguesas romperam os grilhões desse sistema. Já em
textos posteriores (Crítica à economia política e Capital), Marx compreendeu que a superação do
feudalismo deu-se nas relações de propriedade, especialmente na expropriação do campesinato
inglês (WOOD, 2001, p. 36).
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Civilização Material e Mercado • CAPÍTULO 4
uma burguesia revolucionária, mas atravancada pelo sistema conforme a visão da historiografia
marxista foi o resultado do conflito de
feudal. Entretanto, a crise foi, de fato, estudada pelo historiador
classes entre a burguesia e a nobreza –
Eric Hobsbawm que partiu dessas premissas para responder o parlamento e o rei – que possibilitou
às seguintes indagações: o que diferiu a crise do século XIV o rompimento dos entraves para
a instauração do capitalismo na
daquela ocorrida três séculos depois? Por que a expansão
Inglaterra. Essa revolução insere-se
marítima e comercial não conduziu a Europa diretamente para em um quadro maior, conhecido
uma revolução industrial? Quais foram os obstáculos para o como Revolução inglesa, que possui
Assim, poder-se-ia pensar que essa crise não foi nada mais que resultado e efeito direto das
várias guerras do século XVII. No entanto, como explicar que ela também tenha afetado regiões
europeias que não conheceram os “generais e intendentes do exército”? (1974, p. 87) É fato que
esses componentes apenas agravariam a crise já em curso. Nas palavras do historiador: “para
que o capitalismo se implante, a estrutura da sociedade feudal ou agrária deve passar por uma
revolução. A divisão social do trabalho terá que ser muito elaborada, caso se deseje incrementar
a produtividade, e a força social do trabalho deve ser radicalmente distribuída – passando da
agricultura para a indústria – durante esse processo. [...] Enquanto não houver uma grande
quantidade de trabalhadores assalariados, enquanto os homens satisfizerem suas necessidades
através da própria produção ou através do intercâmbio em numerosos mercados locais [...],
existirá um limite para o lucro capitalista” (1974, p. 88).
A crise do século XVII provocou, de fato, uma enorme expansão dos mercados europeus, mas
pouco alterou sua estrutura social, cerceando seu alcance ou, ainda, criando seus próprios limites,
sua própria crise. Dessa forma, afirma Hobsbawm, a expansão econômica verificou-se em um
quadro social em que não foi possível a superação dos entraves feudais, mas, pelo contrário, a
adaptação deste àqueles.
53
CAPÍTULO 4 • Civilização Material e Mercado
Nesse sentido, a crise do século XVII forjou sua própria solução ao eliminar as barreiras feudais
e contribuir para a consolidação de um novo sistema econômico: o capitalismo. A Inglaterra,
país da revolução burguesa completa, foi o primeiro país a subordinar política à economia e
o primeiro a superar os grilhões medievais. “A Revolução Inglesa, portanto, com todos os seus
resultados de grande alcance, é – num sentido real – o produto mais decisivo da crise do século
XVII” (1974, p. 118).
O historiador inglês Trevor-Roper parte da premissa de que existiu de fato uma crise geral
europeia, mas discorda quanto a suas motivações. Segundo ele, a análise marxista é construída a
priori (ou seja, estabelecendo a causa pelo efeito), pois sabendo que o capitalismo se consolidou
primeiro na Inglaterra em um momento entre o início das descobertas e a revolução industrial
e tomando por certo que esse rompimento foi violento, eles “encontram, exatamente a meio
caminho dessas datas limites, a violenta revolução puritana na Inglaterra, exclamam eureka!
A partir daí, as outras revoluções europeias se encaixam como revoluções burguesas abortivas”
(TREVOR-ROPER, 1981, p. 49).
O historiador lança luz sobre as manifestações da crise na esfera política, estudando as muitas
“revoluções” que aconteceram no período, entre elas: a revolução puritana inglesa [1640],
a fronda na França, o golpe de Estado de 1650 na Holanda, as sublevações de Catalunha,
Portugal e Andaluzia em 1640-41 e de Nápoles [1647-1648]. Essas “revoluções”, se estudadas
em separado constituem explicações independentes, mas se colocadas em relação constituem-se
manifestações de um mesmo problema, uma crise geral. Assim, “na medida em que foi
uma crise geral – ou seja, abstraindo das variações locais irrelevantes –, foi mais lata e mais
vaga do que isso: de que foi, na realidade, uma crise das relações entre sociedade e Estado”
(Idem, p. 72).
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Civilização Material e Mercado • CAPÍTULO 4
Diferente desses dois últimos pesquisadores, a historiadora russa Lublinskaya tem outra
explicação para essa crise. Primeiro, ela questionou a generalidade, a gravidade e a duração da
crise, desconstruindo a ideia de que foi uma crise geral defendida por Hobsbawn e Trevor-Roper.
Em seguida, apontou que a heterogeneidade das estruturas econômicas e as diferentes tendências
políticas na Europa (ou mesmo dentro de cada Estado) impediram o aparecimento de crise geral
em todos os níveis. Sendo assim, da mesma forma que as motivações são antes particulares que
gerais, as soluções para as possíveis crises são diferentes em cada Estado. Por sua vez, os primeiros
séculos da época moderna não devem ser vistos como etapas de embate entre duas formas
sociais puras, feudalismo e capitalismo, mas como uma etapa com características próprias, cuja
natureza econômica e social deveriam ser estudadas na sua especificidade.
A autora, para embasar sua análise, toma como exemplo o caso francês apresentando alguns
fatores que teriam levado à crise, são eles: guerra civil (fronda), baixa produtividade manufatureira,
acumulação de capital limitada e ausência de grandes recursos coloniais (1983, p. 133). Por fim,
segundo seu entendimento, a crise seria resultante da debilidade da produção manufatureira
em uma fase inicial do capitalismo e de uma luta entre os diferentes ritmos do desenvolvimento
de uma economia capitalista nos países europeus.
Porém, é importante ressaltar que, segundo adverte o historiador francês Jean de Vries (1983), crise
nem sempre é sinônimo de retrocesso econômico ou social, mas, pelo contrário, é possibilidade
de transformação. No século XVII, algumas economias europeias apresentaram capacidades
diversas para tirar proveito dos múltiplos problemas que ocorriam. É nesse momento que
França, Inglaterra e Holanda assumem a hegemonia geopolítica europeia. Da mesma forma,
o seiscentos marcou o fim das guerras de religião na Europa e o início de um jogo em que a
política dos Estados europeus, suas alianças e interesses, ganhava a cena do tabuleiro. A guerra
dos trinta anos, que iniciou como um conflito político-religioso, tomou dimensões europeias.
As questões religiosas foram tão logo passadas a segundo plano e a política geral dos Estados
tomou a cena. Foi uma luta contra posição preeminente e a política mundial dos Habsburgos e,
no limite, espanhola – o fim do sonho imperial de Carlos V. Mas o início de uma Era da Política.
Tema de nossos próximos capítulos.
Sintetizando
55
CAPÍTULO
O TEMPO DOS ESTADOS:
ABSOLUTISMO E CENTRALIZAÇÃO
POLÍTICA NA ÉPOCA MODERNA 5
Apresentação
Talvez a novidade mais visível da época Moderna, em comparação com o mundo medieval, seja o
nascimento e consolidação do Estado. Por isso, no capítulo 5 do nosso Livro Didático, trataremos
das seguintes temáticas: Absolutismo, Centralização do Poder e as Monarquias.
Objetivos
Esperamos que, após o estudo do conteúdo deste capítulo, você seja capaz de:
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O Tempo dos Estados: Absolutismo e Centralização Política na Época Moderna • CAPÍTULO 5
Introdução
Talvez a novidade mais visível da época Moderna, em comparação com o mundo medieval, seja o
nascimento e consolidação do Estado (ou da centralização política em torno do rei) como sujeito
político e soberano. A célebre frase “o Estado sou eu”, dita pelo rei de França, Luís XIV, dá um
pouco esse tom. Porém, diferente da primeira interpretação, o “eu” não diz respeito ao indivíduo
(rei), mas sim à razão de Estado (uma maneira própria e política de se pensar a governança do
Estado). Veja a imagem aqui representada em sua soberania e magnitude:
Esta representação nos convence da força desse rei e, consequentemente, de seu Estado, não
é verdade? A pintura foi conscientemente construída com essa intenção. Luís XIV, o grande
Rei-Sol. Ele reinou na França durante 72 anos (entre 1643 e 1715), transformando-se em
símbolo da monarquia absoluta europeia, marcada pelo luxo e pela riqueza. A figura do rei
foi cuidadosamente esculpida para corresponder à estética da construção da “coisa pública”:
os saltos altos garantiam um olhar de cima, acima dos demais; logo pela manhã, perucas e
pomposas roupas endossavam o indumentário soberbo, como se a realeza sempre fosse assim;
o cetro deveria estar seguro em sua mão e não como base de apoio, afinal, o Rei não podia se
apoiar em nada. Tudo nos mínimos detalhes.
57
CAPÍTULO 5 • O Tempo dos Estados: Absolutismo e Centralização Política na Época Moderna
Em sua obra clássica – O Mediterrâneo no tempo de Filipe II – o grande historiador francês Fernand
Braudel afirma que
No século XVI, os Estados afirmam-se cada vez mais como grandes coletores e
redistribuidores de rendimentos; apoderam-se, por meio do imposto, da venda dos
cargos, das rendas, dos confiscos e de uma enorme parte dos diversos ‘‘produtos
nacionais’’. Esta múltipla penhora é eficaz dado que os orçamentos flutuam por
junto sobre a conjuntura e seguem a maré dos preços. O desenvolvimento dos
Estados está assim diretamente ligado à vida econômica, não é um acidente ou
uma força intempestiva [...]. Querendo-o ou não, são os maiores empreendedores
do século. É deles que dependem as guerras modernas, com efetivos e com
despesas cada vez maiores; tal como as maiores empresas econômicas: a Carrera
de Índias a partir de Sevilha, a ligação de Lisboa com as Índias Orientais, a cargo
da Casa da Índia, ou seja, do rei de Portugal.
[...] Por meio de todas estas atividades, o Estado coloca de novo em circulação
o dinheiro que vem parar aos seus cofres e quando a guerra impõe as suas
exigências, despende mesmo para além dos seus rendimentos. Guerras,
construções e empresas são assim, mais do que se pensa, incitamentos
econômicos. [...]
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O Tempo dos Estados: Absolutismo e Centralização Política na Época Moderna • CAPÍTULO 5
De certo, por outro lado, o “tempo dos Estados” foi marcado por um processo de centralização
política na pessoa do rei. O historiador marxista Perry Anderson, no seu livro Linhagens do Estado
absolutista, afirma que o Estado absoluto, é, em verdade, um rearranjo do Estado Feudal (ou
senhorial), pois, ao invés de contradizer a nobreza, manteve e ampliou os poderes dos nobres
a fim de alargar e consolidar seu poder político e territorial. Essa perspectiva defende que a
centralidade do poder nas mãos do monarca equilibraria as disputas de classes entre nobres
e burgueses, superaria as diversidades locais (como o direito consuetudinário) e estabeleceria
uma unificação territorial e administrativa com a criação de uma estrutura burocratizada.
Seu maior expoente fora a monarquia francesa, sobretudo, a de Luís XIV, que na frase “O Estado
sou eu”, expressaria todo o vigor da vertente explicativa.
Mesmo não estando de todo equivocada, é preciso ressaltar que não estamos querendo afirmar que
existiu um poder absoluto sem restrições – e nem Perry Anderson assim o pensou. O absolutismo,
segundo o entendimento do historiador Nicholas Henshall, foi antes propaganda que realidade
histórica, pois “os governantes se consideravam ‘absolutos’ no sentido de que monopolizaram as
prerrogativas principescas de guerra e paz, patronato e distribuição de cargos, e não reconhecerem
nenhuma limitação legítima de suas decisões”, porém, na prática, “monopolizavam legitimamente
o que se conhecia como ‘assuntos de estado’: nos demais teriam que conseguir o consentimento”
(HENSHALL, 2000, p. 49-50). Assim, a ação do poder real era de fato negociada e medida por uma
complexa rede de relações que o fazia dialogar com os demais poderes periféricos.
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CAPÍTULO 5 • O Tempo dos Estados: Absolutismo e Centralização Política na Época Moderna
Para Elliott (2002), a monarquia de caráter composta era formada por um número variado de
reinos que possuíam estatutos, direitos e privilégios anteriores à constituição e vinculação com
uma autoridade monárquica central. Nesse sentido, a Espanha de Filipe II era um conjunto de
reinos (Navarra, Leão, Aragão, Catalunha e Portugal, só para ficar na Península Ibérica) com certa
autonomia no interior de uma monarquia mais ampla – sob a soberania de Castela (centro).
Igualmente, a Inglaterra teve sob seus domínios a Irlanda, a Escócia e o País de Gales em uma
perspectiva composta.
Assim, pode-se concluir que o fortalecimento do centro deu-se não só pelo uso da força como
pela negociação, pois ao soberano cabia o equilíbrio social, o respeito aos privilégios e a prática
da justiça. Todavia, a Época Moderna, em contraste com a Idade Média, assistiu a constituição
de um poder central capaz de mobilizar em sua órbita os demais poderes e sínodos.
Entre os fatores dessa mudança, podemos citar o aumento na diferenciação das funções (a
função militar – conde, marquês, duque – transforma-se em título), a falta de terras, o aumento
demográfico e, consequentemente, a formação de cidades – o que possibilitou o aumento do
comércio. Os moradores das cidades passaram a pagar impostos para que os senhores feudais
contratassem guerreiros, ao invés de serem obrigados a participar das guerras. Contudo, isso
não significa dizer que os pequenos comerciantes fizessem tal pagamento de bom grado; pelo
contrário, só faziam se fossem forçados.
Saiba mais
A ação desse processo civilizador não fora somente privilégio da nobreza, enquanto estamento. Toda a sociedade da Época
Moderna estava em profunda transformação e essas mudanças eram, igualmente, uma tentativa de diferenciação entre ser
natural e ser social.
Um livro, publicado em 1530 por Erasmo de Roterdã, A civilidade pueril, tornou-se tão logo um best-seller. Esse breve tratado
didático fixa “o gênero literário que garantirá à pedagogia das ‘boas maneiras’ sua mais ampla difusão social”. Sua inovação
é tida por três características: a) é dirigida para as crianças, enquanto os textos anteriores ensinavam indiscriminadamente
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O Tempo dos Estados: Absolutismo e Centralização Política na Época Moderna • CAPÍTULO 5
jovens e adultos; b) é direcionada a todas as crianças e não somente à nobreza; c) procura ensinar a todas as crianças um
código válido, padrão e universal. Um dos tratados sobre “boas maneiras” que segue ao de Erasmo (G.B. della Porta – 1586)
estabelece que “controlar a expressão do rosto, os gestos e as atividades equivale a afirmar uma humanidade contra tudo que
a ameaça e em primeiro lugar contra a animalidade latente que se deve aprender a perseguir em si mesmo” (REVEL, 1991,
p. 171-173). A seguir ao texto, vê-se esta imagem.
Na Idade Média, eram os senhores feudais e a Igreja que cobravam impostos, principalmente
por meio do trabalho – corveia, mão-morta, dízimo, etc. –, porém, com a gradual transformação
da sociedade e a mudança nas relações de poder dentro dela, esses impostos cobrados pelos
senhores feudais acabaram por assumir o caráter de pagamentos habituais, dando origem ao
que chamamos de ‘‘monopólio da tributação’’ (ELIAS, 1993, p. 171-190).
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CAPÍTULO 5 • O Tempo dos Estados: Absolutismo e Centralização Política na Época Moderna
Mestre Ermengol, Detalhe de Prazeres perigosos da vida mundana, século XIII (DUBY, 1990).
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O Tempo dos Estados: Absolutismo e Centralização Política na Época Moderna • CAPÍTULO 5
Figura 21. A nobreza cortesã. Carl Van Loo et sa famille, século XVIII.
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CAPÍTULO 5 • O Tempo dos Estados: Absolutismo e Centralização Política na Época Moderna
Contudo, para equilibrar as forças entre a nobreza – que perdia poder social com a expansão do
setor monetário da economia – e a burguesia – que crescia socialmente, em razão dos mesmos
fatores – o monarca criou o chamado mecanismo régio (ELIAS, 1993, p. 140). Este consistia na
capacidade do rei em retribuir com títulos seus súditos em troca serviços. Devido a esse mecanismo,
existente somente quando os monopólios da violência e da tributação estavam centralizados
nas mãos do rei, a nobreza e a burguesia necessitariam encontrar outros meios de luta.
A nobreza já não era mais a classe hegemônica (dominante), nem tampouco podia mais utilizar-
se das armas para conseguir atingir seus objetivos. A disputa agora era pelo prestígio e poder
social dentro dos domínios do monarca, ou seja, dentro da corte. Isso implicava um refinamento
da conduta perante os outros. Assim, cria-se um paradoxo: enquanto a burguesia queria crescer
socialmente e tinha recursos (dinheiro) para isso, a nobreza almejava se manter no ápice da
sociedade, criando impedimentos para a ascensão social dos burgueses, são eles: a etiqueta
(conjunto de normas e regras de condutas próprias de um grupo ou cerimonial – usada na
França), a limpeza de sangue (proibição a quem não era católico e europeu – usada nos países
ibéricos) e vícios mecânicos (proibição para aqueles que trabalham com as mãos).
Todas essas transformações sociais, sobretudo após as guerras de religião, deram nova forma
ao discurso político dos Estados europeus do oeste (notadamente, França, Inglaterra, Espanha
e Portugal). No próximo capítulo, essas especificidades serão discutidas. Até lá.
Sintetizando
64
CAPÍTULO
O TEMPO DA POLÍTICA 6
Apresentação
Tomada da construção de um Estado cada vez mais centralizado e que justifica a si mesmo,
os tempos modernos inauguram uma Monarquia na qual o príncipe seja o grande soberano.
Neste capítulo 6, a derradeira de nosso Livro Didático, trataremos do processo de centralização
nas diferentes Monarquias, notadamente aquelas da parte oeste da Europa (Portugal, Espanha,
Inglaterra e França).
Objetivos
Esperamos que, após o estudo do conteúdo deste capítulo, você seja capaz de:
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CAPÍTULO 6 • O Tempo da Política
O Tempo da Política
Em fins da Idade Média [séculos XIII-XIV], com o desenvolvimento das monarquias e a redescoberta
de Aristóteles, o ofício de governar (regimén) passa a se confundir com o ato de reinar (regnum).
Isso se explica, primeiro, por um incerto equilíbrio no “interior de um mundo harmonioso e
hierarquizado, entre a naturalidade do regnum [concedido por Deus] e a finalidade do Regimén” – o
governo das almas (SENELLART, 2006, p. 42). Portanto, a forma pela qual se manifestava a crença
e o exercício da pessoa real mantinha profundas relações com a explicação religiosa – teologia.
Assim, as cerimônias procuravam afirmar e evidenciar a origem divina do poder real, sagrando-o
por meio da unção com os santos óleos ou manifesto por meio da cura de seus súditos. Havia
um caráter sagrado na instituição monárquica, no qual o rei, seu representante por excelência,
não podia ser igual ao geral dos homens (LADURIE, 1994, p. 11).
O monarca, por assim dizer, possuía dois corpos: um mortal, como o de qualquer homem –
perecível ao tempo; o outro, aquele que encara a instituição monárquica, é imortal. Essa teologia
política deu origem à teoria acerca dos “dois corpos do rei”. Mas por que teologia política? Porque
é por meio da Teologia que se concebe o poder real. O historiador inglês Ernst Kantorowicz (1998),
em seu famoso Os dois corpos do rei, demonstra que, a partir da ideia mitológica de que Cristo foi
um deus que se tornou homem – sofrendo e morrendo como humano –, mas que permaneceu
vivo após a morte terrena, será a peça-chave para entender a política – sobretudo inglesa – na
passagem da Idade Média para a Renascença. Transfere-se, assim, aos governantes, a dupla
natureza de Cristo: homem e deus. O rei será homem, cujo corpo é sujeito às enfermidades, às
paixões e limitações da condição humana, e deus, cujo ‘‘corpo místico’’, imortal, encarna o poder
de Cristo na Terra.
Saiba mais
Um rei nunca pode coexistir com outro, assim como um rei vivo não deve assistir o funeral daquele morto. A transmissão
dos poderes é feita no instante do falecimento: “o morto apossa-se do vivo e o novo príncipe, como o sol ou fênix, emerge
em sua realeza, sem esperar, nos minutos que se seguem as trespasse de seu genitor ou de seu ascendente. O astro do dia foi
obscurecido apenas alguns instantes pelas nuvens da morte” (LADURIE, 1994, p. 11).
O conceito jurídico dos dois corpos do rei está presente na Inglaterra elisabetana na obra de Shakespeare, Ricardo II (1595).
Vamos ler um trecho? Perceba o diálogo que há entre os dois corpos, entremeados pela morte e pela condição divina.
66
O Tempo da Política • CAPÍTULO 6
Essa ideia do corpo místico, na renascença, ocupou o centro da arena política. Contudo, o “corpo
místico” (francês) traduziu-se em “corpo político” (inglês), cujos membros seriam os súditos e
o rei sua cabeça. “O imaginário da época confirmava esta concepção ao utilizar, por exemplo,
termos médicos para designar o objeto material da governação (era como um ‘corpo’ que devia ser
preservado da doença), ou termos náuticos (um ‘navio’ que devia ser guiado longe dos perigos)”.
Assim, para governar, em ambos os casos, tinha-se de “aprender e por em prática alguns preceitos
de base que, se fossem corretamente aplicados, se convertiam numa arte” (KAMEN, 1994, p. 16).
Nesse momento, o campo político passa a separar-se de uma ordem dos fins e se aproximar
da noção de regnum – ato de reinar –, libertando-se do horizonte teológico e adotando como
finalidade a prática de seu exercício. Todavia, na prática, “os homens de Estado do período barroco
continuaram a agir dentro de parâmetros substancialmente medievais” (KAMEN, 1994, p. 16).
Foi no século XVII que a gestão do Estado passou por um processo de instrumentalização,
tornando-se uma ciência na qual os príncipes deviam ser educados e seus ministros instruídos.
Com o alargamento das perspectivas sobre o poder, foi se consolidando um conjunto de instruções
políticas destinadas à governança – não mais restrita aos reis, mas, também, aos ministros de
Estado. “Começou-se, portanto, a escrever acerca dos homens de Estado e, o que é ainda mais
importante, eles próprios começaram a escrever acerca da sua profissão”, como as Memórias e
o Testamento Político de Richelieu para França.
O conturbado contexto desse século (Guerra dos 30 anos e crise do século XVII) promoveu uma
gradativa “instrumentalização” do governo, conforme se vê em Thomas Hobbes. Nesse sentido,
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CAPÍTULO 6 • O Tempo da Política
o conceito de soberania começa a ser pintado com cores mais intensas em uma tela que passará
gradativamente a contrastar os fins éticos do regimén da pura dinâmica das forças do regnum –
que já começa a tomar forma do Estado que conhecemos hoje, em oposição ao Stato.
detém a autoridade absoluta a fim de que a paz questão das relações entre igreja e estado: a igreja cristã e
o estado cristão formavam um mesmo corpo que deveria
aos indivíduos viva no corpo político. Então, o
ser encabeçado pelo monarca – único com o direito de
bom governo, segundo a concepção de Hobbes, interpretar as Escrituras, decidir questões religiosas e
teria por finalidade alcançar a vida civil, o bem- presidir o culto. Já em sua obra seminal de 1651, Leviathan,
or matter, form and power of a commonwealth, ecclesiastical
estar e a existência pacífica dos indivíduos que
and civil (Leviathan, ou a matéria, a forma e o poder de
constituem a sociedade, submetendo-os, por um estado eclesiástico e civil), Hobbes esclarece as linhas
sua vez, à obediência completa ao monarca em de suas ideias: a primeira lei natural do homem é a da
limitações jurídicas e o respeito ao bem comum. para sobreviver, de desenvolver ao máximo seus recursos
materiais e humanos” (SENELLART, 2006, p. 43).
A autoridade real teve de se medir com os
68
O Tempo da Política • CAPÍTULO 6
aparelhos administrativos da esfera local, ao mesmo tempo em que contou com diversas inovações,
como a centralização e compilação jurídica das legislações do reino sob a tutela real, que forneciam
especificidade a esse tempo. As configurações sociais, políticas e econômicas também eram outras.
Os nobres desempenhavam cada vez menos o poder militar, que progressivamente era exercido (ou
monopolizado) pelo rei, seja por meio de tropas pagas, seja por meio dos mercenários. O campesinato
participava lentamente de um processo, que teve seu ápice no século XVIII, de desestruturação das
relações de produção servil. Os comerciantes, ou mesmo a burguesia, começavam a enriquecer e,
se em alguns países “engessaram” seus capitais buscando títulos e terras – que a rigor, não tem nada
de arcaizante –, em outros aplicou num processo que se fomentava: acumulou com a circulação
do comércio e investiu em manufaturas e, posteriormente, em fábricas.
O Estado, ou a monarquia, teve na igreja e na nobreza seus mais firmes concorrentes. O poder
ultramontano redefiniu os jogos de poder na esfera “internacional” (ou “supranacional”, como se
diz hoje), enquanto as elites tensionaram o rei à esfera local e “nacional”. As colônias serviram, da
mesma forma, e com outro grau de negociação, para desequilibrar e equilibrar uma vez mais essas
relações. Pactos foram feitos, desfeitos, rearranjados e descaminhados, alternando conjunturas,
mas realçando no tempo o poder real. Movimento e processo que imprimiu peculiaridade aos
Estados ou monarquias da Época Moderna.
Estudos de Caso
Não se pretende, aqui, estabelecer critérios rígidos para explicar a formação das diversas
monarquias nascentes na Europa nos séculos XV e XVI. Pelo contrário, a meta é abordar tais
processos dando destaque para as particularidades de cada região evidenciando seus principais
desdobramentos. Vejamos os casos enumerados a seguir.
Portugal
A formação de Portugal como um reino independente remonta ao ano de 1096, quando dom
Henrique, quarto filho do duque da Borgonha recebe do rei de Castela e Leão, Monso VI, o
Condado Portucalense. Não possuía o território, até então, uma autonomia maior do que a de
outros domínios senhoriais que sempre mantiveram relações de vassalagem com o suserano.
Foi Monso Henriques [1109-1185], filho do conde dom Henrique e de dona Teresa, quem alargou o
território de Portucale à custa de muçulmanos e leonenses, assumindo o título de rei de Portugal.
69
CAPÍTULO 6 • O Tempo da Política
Em 1143, pelo Tratado de Zamora, Monso VII de Leão reconhece finalmente a independência
de Portugal ao admitir o título de rei usado por Monso Henriques. Este, por sua vez, apressa-se
a declarar a vassalagem do novo reino ao Papa, mas o reconhecimento formal pela Santa Sé
chegará mais tarde em 1179, por meio da bula Manifestis Probatum, do Papa Alexandre III.
João I, rei de Espanha, casado com a filha do rei português dom Fernando, reclama a herança
do reino quando da morte deste em 1383. A maioria dos nobres portugueses, seguindo a
mentalidade feudal da época, reconheceram e apoiaram a ascensão do referido rei espanhol
sobre as possessões portuguesas.
Entretanto, dom João, Mestre de Avis, com o apoio da incipiente burguesia e do povo lisboeta,
expulsa da capital os pró-castelhanos, confirmando sua autoridade como rei português depois
da aclamação recebida das Cortes de Coimbra. Tal episódio, associado à vitória na batalha de
Aljubarrota [1385], garantiu a manutenção da independência lusa dentro da Península.
Com dom João I, Portugal assegurou sua independência política, mas a mentalidade aristocrática
continuou a mesma e com ela a política de casamentos cruzados que outrora já havia trazido
problemas para a região.
Apesar das constantes ameaças políticas, Portugal conseguiu iniciar o processo de centralização
do poder político em torno do rei, consolidando a formação de um aparato administrativo amplo
que pudesse efetivar sua autoridade sobre as províncias do reino, dando, assim, um passo crucial
para o desenvolvimento das técnicas de navegação e para o futuro descobrimento e conquista
de novas possessões localizadas fora da Península.
Espanha
O reino espanhol nasceu da união dos reinos de Castela e Aragão, consolidada pelo casamento
de Isabel I e Fernando II, em 1469. Até então, o espaço ocupado pelo novo reino subdividia-se
em outros pequenos Estados independentes como Leão e Navarra, além das possessões ainda
dominadas pelos mouros.
Aragão era há muito tempo uma potência territorial e comercial no Mediterrâneo, com o controle
da Sicília e da Sardenha. Castela era um reino com uma aristocracia possuidora de enormes
propriedades e poderosas ordens militares; tinha, também, um considerável número de cidades,
embora não tivesse ainda uma capital fixa. A nobreza castelhana se apoderara de vastas extensões
de propriedade agrária pertencente à monarquia durante as guerras civis do final da Idade Média.
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O Tempo da Política • CAPÍTULO 6
Nos números, Castela apresentava um perfil demográfico e econômico mais amplo do que
Aragão. Contudo, as estruturas políticas encontravam-se fragilizadas com uma monarquia
afrontada pelos poderes políticos dos senhores locais e que não possuía meios de efetivar um
projeto político centralizador e absoluto.
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CAPÍTULO 6 • O Tempo da Política
Aragão, apesar de ainda possuir uma nobreza forte e ativa (Valência, Catalunha), destacava-se
pelo império mercantil que havia criado ao longo dos anos. Barcelona, a maior cidade da Espanha
medieval, possuía a classe comercial mais rica da região. Todavia, a crise do século XIV desmontou
toda organização produtiva levando à bancarrota diversas companhias de comércio. No campo,
as sublevações aumentaram e o poder dos senhores locais passou a ser cada vez mais contestado.
No aspecto político, o reino de Aragão era constituído pela união de três principados: Aragão,
Catalunha e Valência. Sua organização administrativa respeitava a autonomia dos três principados,
que possuíam suas próprias cortes e instituições repressivas. No geral, o quadro apresentado
demonstra uma perspectiva refratária à construção de um absolutismo centralizado. Apesar de
todas as medidas realizadas pelos reis católicos em suprimir a autonomia política das cidades,
extinguir as ordens militares e manter o poder de ação dos corregidores, os poderes locais se
mantiveram.
França
Diferentemente de outras áreas da Europa, a monarquia francesa, mesmo que fragilmente,
encontrava-se vinculada por meio das relações de vassalagem com os principais ducados e
condados da região. Essa realidade, segundo Perry Anderson, permitiu a existência de uma
hierarquia jurídica propícia à unificação política do reino.
Foi justamente o referido conflito que possibilitou a emancipação fiscal e militar da monarquia
francesa em relação às limitações de organização provenientes do período medieval. A vitória
na guerra só foi possível graças à reestruturação do exército, agora regular e comandado pela
aristocracia, mediante a imposição de um tributo aprovado pelos membros da nobreza e cobrado
pelo monarca: a talha real ou taüle royale [1439-1440]. Iniciava-se nesse período o desenvolvimento
de uma política fiscal unitária capaz de auxiliar a unificação política do reino.
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O Tempo da Política • CAPÍTULO 6
Luís XI, que subiu ao trono em 1461, lançou-se com inflexível resolução sobre a oposição interna
e externa à dinastia Valois. Durante seu governo, o referido rei consolidou as fronteiras do reino,
aumentou o número de impostos e neutralizou as intrigas aristocráticas. Pela primeira vez a
monarquia francesa controlava politicamente todas as províncias vassalas da época medieval,
apesar de ainda existirem cidades independentes do rudimentar aparato administrativo criado
pelos Valois.
Já na primeira metade do século XVI, a França, sob o reinado de Francisco I e Henrique II, era um
reino próspero. Reduziu-se gradativamente às atividades representativas. Os Estados-Gerais já
não eram mais convocados desde 1517 e a política externa tendia a tornar-se uma prerrogativa
exclusivamente real. Ampliou-se também os direitos jurídicos da monarquia que, agora, por
intermédio de assembleias especiais, passava a controlar as ações dos tribunais provinciais, os
parlaments.
Contudo, apesar de tais medidas, a realeza francesa respeitava os privilégios tradicionais dos
nobres e dos membros da Igreja. A isenção fiscal era marca fundamental de um amplo conjunto
de benefícios sociais que garantiam para o rei a supremacia político-administrativa do reino.
Inglaterra
A formação do Estado centralizado inglês desenrola-se dentro do contexto de invasão de povos
guerreiros provenientes da região norte da Europa, principalmente entre os séculos IX e XI.
Guilherme, o conquistador, duque da Normandia, após invadir o território inglês [1066], passa
a distribuir terras entre os aliados que participaram no movimento de conquista da região.
Aos poucos, a estrutura feudal vai sendo consolidada. O território é dividido em grandes áreas
produtivas (latifúndios), com todos os membros da sociedade submetidos à autoridade do rei.
Um exemplo nítido dessa realidade foi a criação do cargo de Sheriff. Estes, por sua vez,
representavam o poder do governo central em cada condado, mantendo a ordem e distribuindo
a justiça real.
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CAPÍTULO 6 • O Tempo da Política
Dentro desse quadro, cria-se uma legislação feudal rígida que intensifica e estende a exploração a
todos os cultivadores camponeses (servos; vilões). Estes não possuíam direitos e eram obrigados
a pagar pesados tributos ao senhor feudal da região.
Com a morte de Henrique I, a Inglaterra deságua num longo período de crise política, onde as
disputas entre as famílias nobiliárquicas contribuem para uma considerável fragmentação do
poder central. Contudo, Henrique de Anjou, neto de Henrique I, reunifica o país, reequilibrando a
aliança política entre o governo central e os nobres locais que, apesar de manterem seus privilégios
sociais, respeitavam os acordos vassálicos que os ligavam à figura do rei.
Porém, essa conduta de equilíbrio político é quebrada novamente com a ascensão do rei
João-sem-terra que, obstinado em ampliar suas possessões territoriais, determina o aumento do
número de impostos e passa a confiscar terras sem os devidos julgamentos. Em 1215, os nobres
ingleses criam um conjunto de reivindicações que visavam limitar o poder político do rei João.
O principal objetivo da Magna Carta era evitar o aumento abusivo dos impostos e criar uma
comissão composta por 24 membros que fiscalizariam a conduta política do rei, garantindo,
assim, os interesses dos nobres e da nascente burguesia mercantil.
É justamente a partir desse período que o Parlamento, antigo Conselho Real, passa a agir como
fiscal sobre o modo de se gastar o dinheiro arrecadado, controlando e examinando as despesas
efetivadas pelo rei. O controle exercido por essa assembleia determinará, futuramente, mudanças
na estrutura política da Inglaterra que, ao contrário dos países ibéricos, caminhará para um
modelo político baseado numa monarquia constitucional.
Esse quadro de mudanças é acompanhado de perto por novas disputas internas travadas pelo
controle do trono real. A Guerra das Duas Rosas, levada a cabo pelas duas principais casas
nobiliárquicas da Inglaterra (Lancaster x York), insere-se dentro do quadro de crise econômica do
século XIV, crise esta que desestabilizou a expansão comercial e produtiva dos séculos anteriores.
A estabilidade política e comercial inglesa renova-se com a ascensão dos Tudor em meados do
século XV. Henrique VII apropria-se das terras dos nobres derrotados, aliando-se gradativamente
aos comerciantes enriquecidos. Sua conduta política voltou-se para a ampliação das relações
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O Tempo da Política • CAPÍTULO 6
Henrique VIII amplia o projeto político do seu antecessor confiscando propriedades da Igreja
Católica e criando o Anglicanismo. É dentro de seu governo que as bases produtivas inglesas se
ampliam drasticamente, contribuindo para transformações de caráter econômico que, já dentro
do século XVII, desembocariam no surgimento e desenvolvimento das relações capitalistas
de produção e na Revolução política de 1640, que viria a determinar definitivamente o fim do
governo absoluto inglês.
Sintetizando
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