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EFEITO
PEDALADA
Texto de Marc Augé
Oream Bike Oelivery, série de pinturas de Jessica Findley
As bicicletas ganham o mundo, tomam-se partes indissociáveis
daqueles que as pedalam, dissolvem barreiras sociais, fazem
submergir a poluição do petróleo e o proselitismo religioso.
O politeísmo ciclista subverteu o monoteísmo petrolífero.

eixemos livre a imaginação. Imaginemos uma cidade respondentes; enquanto isso, há a faixa reservada para os
D grande - Paris, por exemplo - daqui a trinta anos. O
problema da circulação terá sido resolvido de uma vez; por
ciclistas, assim como a calçada corresponde aos pcdesrres.
Bicicletas podem ser alugadas em todas as grandes
todas. Os bondes. ôaibus e trens subterrâneos terão se ex- estações de trem e peno de quase todas as estações de
pandido abundantemente acé a última fronteira da antiga metró, bonde e ônibus. Existem também amplos esta-
região parisiense. Os transpones públicos ignoram o traça- cionamentos para bicicletas. O aluguei é particularmente
do tradicional da Paris i11tra11111ros e, n~ vasto comple- interessante para os visitantes (Paris continua sendo o
xo, os itinerários trru1sversais. cada dia mais numerosos, primeiro destino turistico do planeta), pois muitos pari-
permitem unir os diversos pontos da maneira mais direta sienses já são proprietários de seu meio de deslocamento
possivel. Entre cinco e nove da manhã, circulam os veícu- preferido, e, com frequência, se ocupam em distingui-lo
los de entrega, carga e descarga. Naturalmente. os veiculos com algum toque pessoal.
prioritários (ambulâncias, médicos, bombeiros ou a polícia) A perninalização das bicicletas é muito mais refinada
têm hierarquia rc..-vogacória. Para os demais. imensas torres e criativa do que a dos carros, que consistia, sobretudo,
de estacionamento - projetadas pelos mais eminentes ar- em agregar-lhes pequenos objetos de fetiche - bonecos de
quitetos do planetij - constituem, em distintos pontos. os pano, imagens de São Cristóvão ou qualquer classe de ta-
limites da Grande Paris, e são curiosidades monumentais lismã de diversas índoles. Desde o início do século XXI,
muito apreciadas pelos turistas. muitos ciclistas reinventam seu veículo, às vezes modifi-
Os motoristas de carro e os motociclistas vão até esses cando radicalmente a fonna. Convém dizer que a bicicleta
pontos buscar os seus veículos quando querem sair da ca- é, em si mesma, um objeto pequeno e incorporado, e não
pital. Alguus preferem guardar seus carros mais peno de um espaço habitado, como é o do automóvel. Não guarda
casa, estacionados na sua própria garagem, e, para tanto, nada, não se decora o interior. ainda que pequenos ua-
têm uma autorização que lhes pcm1ite sair de Paris e voltar balhos artesanais possam ser ag11.,gados. No limite entre
para casa através de um dos quatro itinerários de saída e <.'SSCS apliques e os objetos de feticlte, estão essencia.lmentc
entrada reservados para os carros. Essa tolerâucia não se os acessórios que permitem tra11sponar cena quantidade
aplica aos carros novos e estima-se que, num prazo relati- de coisas: os cestos ou as bolsas. Também são imponantes
vamente curto, d<!Saparecerão os quatro itinerários. Proibi- as diversas formas de iluminação ou placas refletoras que
do o trânsito de automóveis dentro da cidade, o conjunto reforçam a segurança. No limite entre o interior decorado
dos espaços de circulação cresceu enormemente graças à e a incorporação, estão as roupas que os ciclistas decidem
supressão dos lugares onde estacionar f pem1itido. Con- usar e que também podem responder a uma prt.-ocupaçáo
sequentemellle, os veículos prioritários, bondes, ônibus e com a S<:gurança (capacetes, capas com faixas luminosas.
táxis se deslocam fácil e comodamente nas suas vias cor- etc.) ou simplesmente a questões de comodidade ou hábito.

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E. assim como no século anterior, cada um elege a sua seguir o ritmo perdido dos anos passados e por cumprir a
bicicleta, a cor, o estilo e outros detalhes para que ela pos· tarefa que, um século antes, era dos vendedores de frutas e
sa ser ret-onhecida rapidamente dentre as demais. Paciente hortaliças a cada estação. Apesar do aquecin1ento acelera·
e fiel. ela faz parte de seu proprietário. O vinculo que os do do planeta e das perturbações climáticas - que continu-
une faz lembrar um pouco o que evocava Aristófanes no am surpreendendo os mais velhos, embora os menores de
Banquete de Plarcio: o verdadeiro ciclista não existe plena• trinta os considerem naturais• e apesar da globalização do
mente sem que lhe seja restituída a metade perdida de seu memido de alimentação, muitos fazem como se tudo fos-
ser inicial, ou seja, ele existe quando se confunde com sua se como antes e só vendem c:astanhas no inverno, cerejas
bicicleta num só corpo. O vinculo que os une é um vinculo na primavera. melões no verão e cogumelos no outono.
de amor e, literalmente, de reconhecimento, que o tempo Nunca se sabe com certeza a procedência desses produtos
não destrói, mas assegura. se preciso for, mediante recor- supostamente de estação, mas dá gosto alentar esses mer-
dações e a nostalgia da separação. cadores de ilusão e nostalgia.
Os "artesãos· levam muito mais longe o trabalho de Por outro lado, há alguns anos a moda tende ao n:tró e
personalização, com muita cngenhosidade. Alguns até por todos os lados se veem "ciclotaxis", carrinhos chineses
reinventaram a bicicleta alargando o guidào, colocando o a pedalada que se inspiram nos que cortavam as ruas de
=nto para trás, a fim de melhorar, teoricamente, o rendi• Paris um século antes, no periodo da guerra e da ocupação
mento do esforço fisico, cujas virtudes econômicas haviam alemã. Quando é preciso, os seus condutores recorrem à
abalado Illich décadas antes. Alguns se reclinam sobre a ajuda de motores elétricos relativamente potentes e abso-
bicicleta como se fosse uma cama. Outros dominam a rua lutamente não contaminantes, com os quais podem erans•
debru,-ados em suas máquinas de rodas imensas, como portar comodamente dois adultos. Os que mais apreciam os
se estivessem sobre palafttas. Na verdade, em todas essas "ciclotaJós" são os turistas e os da quinta idade. Os moto•
práticas está presente a preocupação por fazer-se notar: res elétricos imegrados, quase invisiveis e completamente
quanto mais original é o velocípede, mais visível é quem silenciosos. são muito ôtcis cm encostas empinadas para
o conduz. Há até sites populares na Internet que celebram aqueles com a desvantagem da fragilidade • em mzão da
essas invenções. As pessoas reconhecem os ciclistas, sabem idade ou de uma debilidade passageira -, mas eles recu-
seus nomes ou apelidos quando os veem passar (alguns peram a moral quando tomam consciência do espetáculo
levam uma pequena bandeira com suas cores, que pode ser de excessiva facilidade que oferecem aos que os observam.
vista à distáncia). Esse é o novo espetáculo das ruas. O motor elétrico é o instrumento da perfeita igualdade. A
Unindo o útil ao agradável, outros anexaram carrinhos única fonna indiscutivcl de discriminação positiva.
e percorrem os mercados entregando mercadorias - e são As bicicletas duplas, chamadas de tandems. estão na
sucesso entre os turistas. Tradicionalíslas, esforçam-se por moda novamente. Belo símbolo da nt-cessária solidariedade

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dos casais, elas estimulam novas exprcssõl'S para celebrar cial e na politica. As barreiras entre classes evidcndam-
a amizade e o amor Lais como "compan:ilhar o tandem.. •se ou entram em colapso, As potências 1>ctroliferas têm
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ou "pedalar juntos~ Espíritos mais complicados reinven- cada vez menos clientes e. como uma consequência que
taram as bicicletas com três assentos. semelhantes às que deixa enrusiasmados os observadores mais materialistas, o
existiam em 1936, como comprovam os documentos da proselitismo religioso s11bmerge. Temos a impressão de qur
época, exibidos como se fossem premonitórios. o politeísmo ciclista subverteu o monoteísmo petrolífero.
Certamente há uma compe1;ção feroz na fabricação de bi-
Oefeito cicletas. mas o público potencial é enorme e, além di$o, as
"Efeito pedalada" é a nova expressão da moda, em substi- exigências aumentam constantemente. As bicicletas afri-
!1.lição à expressão "efeito borboleta", usada anteriormente canas estão dificultando a vida dos fabricantes asiáticos.
com o mesmo sentido. Como podemos lembrar, o •efeito Pesquisadores multiplicam os descobrimentos ou re-
borboleta" surgiu em 1972, na oonferencia do meteorolo• descobrimentos (bicicletas dobráveis, portáteis, mou11tai11
gista Lorenz. com a provocativa pergunta que lhe dava tí- bikes, musicais, insubmergivcis, aquáticas, bicicletas a
tulo: "(...] o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode vela...), Os cientistas estão a um passo de desoobrir como
provocar um tomado no Texas?" Hoje, os cientistas sociais capturar e transfonnar a energia despendida pelos ciclistas;
se perguntam se a teoria do caos não poderia ser aplicada para tanto, estão sendo construidas estradas experimentais
com uma pcr1inência ainda maior à atualidade mundial. especialmente equipadas. Acredita-se que com esse apro-
Com o sentido agudo da predição retrospectiva que veitamento poderiam ser alimentados setores complet0s do
frequentemente os caracteriza, os cientistas sociais sa- campo energético. Às vezes, algu.ns manifestam o medo de
lientam que possivelmente tudo começou um dia com a que o frescor inicial do movimento ciclista mundial fique
iniciativa municipal de uma cidade da Europa do Norte. eventualmente afetado por essas derivações. mas. por cn•
com o propósito de oficializar e proteger a primeira pe- quanto, o entusiasmo pem1anece in1acto.
dalada de um cidadão. O exemplo se expandiu como um Convocados por numerosos governos ("Ciclistas do
rastro de pólvora, como ocorreu na França. Primeiro em mundo, uni-vosl") cm Pequim, Joanesburgo e São Fran-
algumas cidades menores, depois cm Lyon e Paris e rapi- cisco, milhões de ciclistas de todas as idades participam de
damente em todas as demais cidades francesas, mas tam- festas gigantescas. A produção está a pleno vapor. Os téc·
bém - e sobrerudo - cm todas as metrópoles mundiais. nicos cm comercialização e promoção rivalizam em cnge-
O aumento da qualidade de vida e a melhora da si• nhosidade. O capitalismo tira seu proveito, mas as cxigên•
ruação ecológica do planeta são as consequências mais cias dos usuários no can1po da organização do trabalho, da
evidentes para a maioria, mas os efeitos secundários são educação e do tempo livre são tais que surge o seguinte
simplesmente assombrosos, principalmente na esfera so- questionamento: se finalmente a prática da bicicleta não

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será o que pennitiu inventar a tcre<:ira via, aquela que, en- Se essas imagens nos fascinam, é porque ilustram e
tre o liberalismo e o socialismo, preocupa-se antes de despertam nosso desejo de escapar da gravidade do co-
tudo com a felicidade dos indivíduos. Foram organizadas lidiano. Não há dúvida de que o uso da bicicleta nos
conferências internacionais para se analisar mais profun- permite satisfazer cm parte esse desejo de Ouide-t, leveza
damente a questão. As duas ultimas, realizadas no cam• (estava quase dizendo "de liquidez"), esse desejo que ex-
pus de Aubervilliers ("A bicicleta e o flID das ideologias", pressam tão bem as palavras que utilizamos para falar
de 2036, e "A bicicleta ou a morte de Deus·, de 2037), das novas tecnologias ("surfamos· ou ·navegamos" pela
tiveram repercussão mundial. Internet). ·os rios são caminhos que andam·, es,·reveu
finalmc.nlc., algumas iniciativas felizes l"Omprovaram Pascal. É compreensível que, de modo inverso. os ho-
que o homem genérico (o ser humano, homem ou mulher, mens tenham desejos de transformar os caminhos em
jovem ou velho) e seu novo camelo fonnam, de agora em rios. Sem outro auxílio que não a força do corpo, a
diante, um só ser. A mais re<:<:nte dessas iniciativas é tam- bicicleta oferece a oportunidade de realizar, em certa
bém a mais vertiginosa, e sua imagem ftcar.i gravada inde- medida, o ideal de mobilídade natural e fluida. O s0-
levelmente nas nossas memórias: desde que o primeiro ser 1!.bo do ciclista é identificar-se na terra com o peixe na
bwnano pedalou e.m Mane sob o olhar de nove milhões de água ou a ave no céu, mesmo quando é preciso aceitar
terráqueos. alguma coisa mudou na história do planeta e na as limitações que o espaço lhe impõe. Pois o mérito do
consciência dos homens. ciclismo - a diferença dessa ilusão demasiado seduto-
ra - é precisamente nos proporcionar uma consciência
Com os pés no chão mais aguda do espaço e do tempo.
Evocar demasiadamente a utopia pode fazer-nos correr o Podemos ver claramente isso cm Paris, onde as bi•
risco de uma qu<.-da muito alta. Por isso, ene<:rro essa evo- cicletas de aluguei se acumulam nas estações situadas
cação da pedalada na ausência de gravidade. Entretanto, na base dos declives. As caminhonetes encarregadas da
creio que hoje conhecemos e reconhecemos a falta de gra- provisão das estações se ocupam da tarefa de recarregar
vidade mais do que nunca. As imagens do mundo atual os topos das ladeiras, permitindo que aqueles que assim
ressuscitam esse sonho enquanto nos ofere<:<:m o espetá- o desejem se entreguem sem problemas às delicias da
culo de aviões gigantescos que levantam voo levando a roda livre e da descida sem fim. Mas até esses usuários
bordo centenas de passageiros, de foguetes deeola.ndo ma- esquivos do esforço muscular aprendem, à sua maneira,
jestosamente do Cabo Canaveral, do cintilar • na tela de a explorar o espaço e a paisagem concretos. Se resistem a
nossos televisores • de megalópoles filmadas à noite de um subir a rua Saint-Jacques ou a des Martyrs. nem sempre
helicóptero invisível, do espetáculo do planeta observado o fazem porque querem ou por puro hedonismo; frequen-
de satélites e até de personagens fictícios, como Batman ou temente evitam o esforço porque tomam consciência da
Homem-Aranha, propulsionados por efeitos espe,:iais. própria idade ou sentem que estão fora de forma - e
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remediam essa debilidade da melhor maneira possível. to concretamente, em suas dimensões físicas ; oferece-
Passado algum tempo, depois de uma dieta mais saudável -nos resistência e nos obriga a um esforço de vontade,
e algum exercício fisico, farão nova 1cn1ativa. mas, ao mesmo tempo. se abre como um espaço de li-
O milagre da bicicle1a é a sua persuasão suave, que berdade íntima e de iniciativa pessoal. como um espaço
faz as vezes de uma amável chamada à ordem biológica, poético no sentido pleno e primeiro do termo: como
assim como impõe uma vigilância miniroa a todo af,. poiesis ou criação.
cionado â sua prática. Todos os convites à passividade As crianças, mais que os adultos, são filósofas por
se desfazem quando os ciclistas montam numa bicicleta. natureza e se interrogam conslan1emcnte. Aindo não
O ciclista passa a ser rrsponsávcl por si mesmo e ime- estão habituadas e o espetáculo das coisas im·r1e, a,
diatamente toma consciência disso. Simultaneamente ele surpreende tanto quanto o das diversas formas de vida.
toma consciência do lugar que lhe corresponde - passível Ao mesmo tempo, se comportam como poetas; brin-
de ser percorrido em todos os sentidos -. assim como dos cam, inventam ficções. mas, distintamente do adoles•
itinerários que o distanciam desse lugar e dos outros que cente - que sempre corre o risco de cullivar a neurose
o trazem de volta. Se, além disso, pensarmos que, em e de se deixar apressar pelas fantasias de seus sonhos
geral, a prática da bicicleta nos oferece a possibilidade de diurnos, como nos lembra Freud no artigo ·o poeia r
submersão nas recordações de infância e na continuidade a fantasia" - 1 as crianças sabem considerar as drcuns-
da própria vida, podemos chegar a conclusão de que a tàncias e distinguem seu mundo lúdico do mundo real.
experiência da prática ciclisia é uma prova existencial Subir numa bicicleta nos devolve, por um lado, uma
fundamental, que assegura a consciênc.ia identitária da- alma de criança e. assim, nos restitui a capacidade de
queles que a ela se entregam: pedalo, logo existo. brincar e o sentido do real.
O sucesso atual da bicicleta, sobretudo entre os jo- Assim. o emprego da bicicleta constitui uma espé-
vens, é antes de tudo um fato revelador, um sintoma. cie de recordatório (como quando se reforça uma dose
De fato, o que nos escapa hoje, neste mundo de imagens de vacina), mas também de formação continua para o
e mensagens midiáticas, é fundamentalmente o princí- aprendizado da liberdade, da lucidez e - atrav<'s ddas,
pio de realidade. Somos presenteados, a um custo muito talvez - de algo que se assemelharia à felicidade. O mero
baixo e a todo momento, com a expressão do nosso sen- fato de que a prática da bicicleta proporcione assim uma
timento de existir, sem percebermos até que ponto essa dimensão perceptivel ao sonho de um mundo utópico -
opinião é modelada pelo meio ambiente. no qual o prazer de viver seria a prioridade de cada um e
Em parte, a moda da bicicleta revela sem dúvida esse asseguraria o respeito de todos - nos dâ uma razão para
fenómeno de opinião, mas, desde o momento em que ter esperanças. Retorno à utopia ou retorno ao real: dá
montamos numa delas, as coisas mudam e nos reencon- no mesmo. Viva as bicicletas para transformar a vida 1
tramos conosco mesmos. O mundo exterior nos é impos- O ciclismo é um humanismo. *

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