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4 | JORNAL DA UNIVERSIDADE | JULHO DE 2013

Ideias
FLÁVIO DUTRA/JU

Em Porto Alegre, grupos têm se


manifestado em defesa do uso
coletivo do espaço público e contra
o privilégio dado ao automóvel

Ainda há tempo:
por uma Copa com calçadas e bicicletas
Eber Pires Marzulo* namento – Largo Vivo; nos atos contra a colocação quizado e associado a outras formas de movimento cidade mais agradável para se andar a pé, de bici-
de ícones de companhia patrocinadora da Copa do nas cidades e metrópoles. cleta ou afins e para usar o transporte público. Se
Em madrugada já fria no final de maio, barracas Mundo em locais públicos; no fechamento de vias O que vemos, nas ações voltadas à Copa, é uma levarmos em conta que tais melhorias tendem a ter
de jovens estudantes em vigília protegendo árvo- com uso de bicicletas – conhecido como Massa inversão. Fora os BRTs, que ocuparão em sua maio- perenidade e o aumento da capacidade das vias para
res ameaçadas de corte pela prefeitura municipal Crítica; na ocupação de vagas para estacionamento ria os antigos corredores de ônibus, modernização os automóveis tende a se esgotar rapidamente, vide
para construir mais pistas em avenida central são com atividades culturais – Vaga Viva; e no acampa- necessária mas absolutamente insuficiente, não se o exemplo local da Terceira Perimetral, os custos de
abruptamente abertas pela Polícia Militar. Muitos mento em parque público contra o corte de árvores tem nada de relevante para a melhoria do sistema tais investimentos seriam ainda menores. Lembre-
dos ocupantes foram arbitrariamente presos. Essa para a duplicação de avenida. Saliente-se a conexão público de transporte de massa, em particular do mos que, enquanto o crescimento da população de
foi a forma que os poderes públicos municipal e difusa entre ações de caráter internacional, como o trem metropolitano. Ciclovias andam a passo de Porto Alegre diminui, o número de carros aumenta
estadual encontraram para enfrentar os protestos Massa Crítica e o Vaga Viva. Vistas em seu conjun- tartaruga e calçadas, nas quais caminhar é uma exponencialmente.
de estudantes. Na tradição do Estado Moderno, os to, as manifestações apontam nitidamente para a aventura de risco para joelhos e tornozelos, têm Assistir à Copa ou a qualquer grande partida
jovens estavam defendendo o que é público e, logo, emergência de uma consciência civil em defesa do investimento zero. Os recursos públicos são gastos de futebol na cidade ficaria muito mais agradável
no exercício de seus direitos como cidadãos. Trata- espaço público e contrária à priorização dada pelas em obras viárias para o automóvel, projetando-se com transporte público acessível e de qualidade. O
-se, então, de um caso de Justiça e não de Estado. O ações públicas aos interesses privados. uma cidade com largas pistas, muitos novos viadu- torcedor poderia, por exemplo, ir de trem ou BRT
direito à resistência é um princípio do Estado demo- Há algo de particularmente relevante nos protes- tos, edifícios-garagem no centro e área pericentral e até uma estação de aluguel de bicicletas, tomar uma
crático que extrapola os limites do Estado de Direito. tos do ponto de vista do Planejamento Urbano, pois vias cada vez mais engarrafadas. Cada pista a mais, ciclovia e, no final, deixar o veículo em outra estação
As manifestações recentes em Porto Alegre têm ao mesmo tempo que explicitam a inexistência de cada estacionamento a mais absorverá mais carros, para seguir por alamedas para pedestres, cantando
como centro o debate sobre o espaço público. Um debates públicos sobre as decisões do governo muni- aumentando o tempo de viagem e prejudicando e conversando com aquele estranho ao lado com o
dos primeiros levantes teve como protagonistas cipal, o que intervêm diretamente na vida cotidiana todo o fluxo, inclusive do transporte público. Além qual naquele momento comunga da mais profunda
jovens estudantes que agiram contra a decisão da da população da cidade e da região metropolitana, disso, a política de preços para o uso do transporte identidade: o amor pelo futebol.
prefeitura de cortar árvores para aumentar a quan- alinham-se às políticas públicas urbanas desenvolvi- público é inibidora de seu consumo para as popula- Ainda dá tempo. Em lugar de fazer estaciona-
tidade de pistas em avenida da orla do Guaíba na das nas capitais democráticas do mundo ocidental. ções mais pobres. A manutenção, ainda nos dias de mentos, pistas e viadutos para mais automóveis nas
região central da cidade. Foram dias de protesto Se o primeiro aspecto demonstra um grave retro- hoje, de tarifas por trecho é vergonhosa. Os cálculos cercanias de nossos estádios, se devem construir
e acampamento, repetindo a tática utilizada nos cesso na experiência de democracia participativa estão prontos há anos nas principais capitais do grandes esplanadas para deslocamento a pé, um
últimos anos em diferentes pontos do planeta que inseriu Porto Alegre como referência mundial, mundo ocidental sobre como viabilizar o valor do sistema de transporte coletivo barato e confortável,
em movimentos cuja pauta foi a crise financeira o segundo coloca nossos gestores públicos na reta- deslocamento por passageiro-dia, e não por viagem. articulado às estações de bicicletas e às próprias
internacional, como no Occupy nos EUA e como guarda do que vem se estabelecendo desde os anos Perde-se oportunidade ímpar. O caso mais agudo esplanadas para caminhar. Com estacionamentos
nos Indignados na Espanha, passando pelas lutas 90 como consenso em termos de políticas públicas é o da falta de investimento na melhoria das calçadas. distantes e também articulados às esplanadas e ci-
democráticas no norte da África, em especial na de mobilidade, isto é, a priorização do transporte A legislação que imputa aos proprietários a respon- clovias. Sem engarrafamento, sem disputa e estresse
Praça Tahrir, no Egito, até as lutas ainda em curso em público confortável, do transporte individual não sabilidade não faz sentido. Nada mais público, pois entre pedestres e motoristas, sem caminhadas pelo
Istambul na Praça Taksim. Os combates políticos motorizado ou ciclomotorizado e do deslocamento a de uso e acesso comuns, do que as calçadas de nossas meio das ruas, desviando das calçadas estreitas e
na Praça Taksim têm particular semelhança com pé. Mas nem tudo sem perdas. Nossas mobilizações cidades. Todavia, não bastasse o descompromisso malconservadas.
os de Porto Alegre, por aqueles se tratarem, em estão sintonizadas com a contestação mundial e com do poder público municipal em sua manutenção A cena final utópica: a torcida andando por
seu princípio, segundo a imprensa internacional, o sentido das intervenções urbanas mais recentes nas e melhoria, este ainda a preenche com inúmeros grandes calçadas livres de obstáculos, cantando
de protestos contra a tentativa do governo turco de principais cidades do mundo. obstáculos, como placas de sinalização, pontos de as cores de seu clube ou seleção de preferência,
privatizar parte da Praça. Anacrônico seria uma palavra gentil para nomear ônibus e lotação, e postes para a fiação de cabos de comprando amendoim, pipoca, churrasquinho,
Os protestos na capital gaúcha, desde 2011, têm se o que significa, no presente, investir no aumento de forma completamente irracional. Andar caminhan- cachorro-quente e a cerveja mais gelada ou de sua
caracterizado pela defesa do uso coletivo do espaço pistas para automóveis, em viadutos e na construção do na cidade é um risco, mesmo sem atravessar as preferência ao longo do caminho ao qual chegou de
público e contra o privilégio dado ao automóvel. de estacionamentos. Mais ainda em áreas centrais. ruas pensadas apenas para os carros. A saída seria bicicleta, BRT ou micro-ônibus. E na volta, ainda
Em manifestações locais organizadas por rede de Anacrônico, pois o esgotamento do modelo de simples: racionalizar a distribuição das paradas jun- mais comemoração, festejando a vitória de seu time
vizinhos contra a implantação de viadutos; nos deslocamento intraurbano e metropolitano baseado tamente às placas de sinalização. A fiação infernal – sem preocupação com o trânsito.
protestos na região central contra o aumento das no automóvel é um consenso. Seja do ponto de vista e de risco pendurada em postes deveria estar há
tarifas do transporte público; nas manifestações estrito da mobilidade, seja como postura ambiental, muito enterrada. Teríamos – com pouco investi- * Professor do Programa de Pós-graduação em
contra a liberação do Largo Glênio Peres, defronte o momento em todo o mundo é de expansão e mento, comparado aos custos das obras voltadas às Planejamento Urbano e Regional (Propur) da
ao Mercado Central, para utilização como estacio- qualificação do transporte público de massa hierar- melhorias para a circulação de automóveis – uma Faculdade de Arquitetura da UFRGS

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