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245-00

Série Estratégias de Ensino 60

IRANDÉ
ANTUNES
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EDITOR:
Marcos Marcionilo

CONSELHO EDITORIAL:
Ana Stahl Zilles [Unisinos]
Angela Paiva Dionisio [UFPE]
Carlos Alberto Faraco [UFPR]
Egon de Oliveira Rangel [PUC-SP]
Henrique Monteagudo [Universidade de Santiago de Compostela]
José Ribamar Lopes Batista Jr. [UFPI/CTF/LPT]
Kanavillil Rajagopalan [UNICAMP]
Marcos Bagno [UnB]
Maria Marta Pereira Scherre [UFES]
Roberto Mulinacci [Universidade de Bolonha]
Roxane Rojo [UNICAMP]
Salma Tannus Muchail [PUC-SP]
Sírio Possenti [UNICAMP]
Stella Maris Bortoni-Ricardo [UnB]
Vera Lúcia Menezes de O. e Paiva [UFMG/CNPq]
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Direção: Andréia Custódio


Capa e diagramação: Telma Custódio
Revisão: Parábola Editorial
Imagens da capa: br.depositphotos.com/ @ JrCasas

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

A642t

Antunes, Irandé, 1937-


Textualidade : noções básicas e implicações pedagógicas / Irandé
Antunes. - 1. ed. - São Paulo : Parábola, 2017.
recurso digital

Formato: ebook
Requisitos do sistema:
Modo de acesso: world wide web
Inclui bibliografia
ISBN: 978-65-86250-04-6 (recurso eletrônico)

1. Língua portuguesa - Estudo e ensino. I. Título. II. Série.

17-44958 CDD: 469.8


CDU: 811.134.3’27

Direitos reservados à
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reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios
(eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada
em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão por escrito da
Parábola Editorial Ltda.

ISBN: 978-65-86250-04-6
© do texto: Irandé Antunes, 2017
© da edição: Parábola Editorial, São Paulo, outubro de 2017
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A Eduardo, nosso lindo Dudu,


que, se rendendo à magia dos ‘super-heróis’,
vive a expectativa de uma vida sem limites.
Mal sabe ele que a linguagem
tem muito desse poder!
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SUMÁRIO

NOTA DO EDITOR................................................................................9

APRESENTAÇÃO............................................................................... 13

um
ENTRANDO NO ASSUNTO DA CONVERSA ................................................ 21

dois
TEXTOS: UM NOVO MODISMO?............................................................. 25
1. Fundamentos............................................................................ 25
2. Em sala de aula ......................................................................... 28

três
O TEXTO COMO OBJETO DE ESTUDO DA LÍNGUA...................................... 31
1. Fundamentos ........................................................................... 31
2. Em sala de aula ......................................................................... 34

quatro
QUALQUER CONJUNTO DE PALAVRAS É UM TEXTO?.................................. 43
1. Fundamentos ........................................................................... 43
2. Em sala de aula ......................................................................... 48

cinco
EM QUE CONSISTE A COESÃO DO TEXTO?............................................... 55
1. Fundamentos............................................................................ 55
2. Em sala de aula ......................................................................... 69
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seis
EM QUE CONSISTE A COERÊNCIA DE UM TEXTO?....................................... 73
1. Fundamentos ........................................................................... 73
2. Em sala de aula ......................................................................... 79

sete
A COERÊNCIA NO TEXTO POÉTICO........................................................ 85
1. Fundamentos............................................................................ 85
2. Em sala de aula......................................................................... 88

oito
CONTINUIDADE REFERENCIAL: O QUE É? ............................................... 93
1. Fundamentos............................................................................ 93
2. Em sala de aula........................................................................102

nove
EM QUE CONSISTE A INFORMATIVIDADE DO TEXTO? ............................... 107
1. Fundamentos...........................................................................107
2. Em sala de aula........................................................................ 113

dez
EM QUE CONSISTE A INTERTEXTUALIDADE?............................................117
1. Fundamentos........................................................................... 117
2. Em sala de aula........................................................................ 121

onze
OS GÊNEROS DE TEXTO: NOÇÕES E PRÁTICAS PEDAGÓGICAS .....................129
1. Fundamentos........................................................................... 129
2. Em sala de aula........................................................................ 135

doze
E A GRAMÁTICA NESTA ‘HISTÓRIA TODA’? .............................................141
1. Fundamentos........................................................................... 141
2. Em sala de aula........................................................................ 145

treze
OS LINGUISTAS E O ENSINO DA GRAMÁTICA............................................151

catorze
UM ‘OUTRO’ PROGRAMA DE ESTUDO?...................................................157

quinze
PARA APROFUNDAR A CONVERSA .......................................................161
Referências.................................................................................164

8 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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NOTA DO EDITOR

A Irandé Antunes, nos seus 80 anos

P
ara alegria nossa, leitore(a)s seus do Brasil inteiro, Irandé
Antunes, aos 80 anos completados em 27 de julho de 2017,
vive a primavera, floresce de modo pleno.
Quem recebe a distinção de fazer parte de seu círculo íntimo
não contém a admiração diante de sua energia e de tanto e tão
constante empenho em estar perto e disponível para acolher sua
família e seus amigos, que são miríade.
Quem tem a oportunidade de ler seus livros e de viver a sen-
sação de entrar não num livro, não numa exposição doutoral,
mas numa conversa face a face, inevitavelmente se contagia pelo
entusiasmo da Autora e por sua luta de mais de cinquenta anos
na elaboração de pontos nucleares de uma educação linguística
mais coerente, coesa e de incidência explícita sobre a realidade
brasileira do ensino de língua materna em todos os seus níveis.
Quem tem a honra de editar seus livros desde 2003 vê a con-
solidação da figura pública de uma Autora que – de um já remoto:
“Quem é esse Irandê Antunes?”, assim mesmo com um ê circun-
flexo e perguntando por um autor, não por uma autora –, veio a
se tornar a mais amada escritora da Parábola Editorial, atenta-
mente lida e ouvida no país todo por estudantes de Letras e de Pe-
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dagogia e professore(a)s de todos os níveis de ensino. Basta ver a


boa acolhida de todos os seus livros, constantemente reeditados:

Aula de português – Encontro & interação;


Análise de textos – fundamentos práticos;
Gramática contextualizada – Limpando o pó das ideias simples;
Língua, texto e ensino – Outra escola possível;
Lutar com palavras – Coesão & coerência;
Muito além da gramática – Por um ensino de línguas sem pedras no
caminho;
Território das palavras – Estudo do léxico em sala de aula.

E, mesmo assim, Irandé hesita, sabiam?


Toda vez que um livro novo se gesta, derivando de uma ne-
cessidade detectada em suas muitas viagens para falar com seu
público em todo o país, ela se toma de angústia e receios de estar
se repetindo, citando a si mesma, repisando o já dito por muito(a)s
antes dela. E então, corre para o telefone, e seu editor lhe assegu-
ra: “Irandé, temos mesmo de repetir os princípios de uma educa-
ção linguística que acolha e respeite o falante pleno que chega à
escola e nela permanece ao menos – é o que desejamos – por todo
o ciclo da educação básica. Repetir, insistir, repisar os princípios
de uma pedagogia de ensino na qual acreditamos [uma pedago-
gia da variação linguística] é um dever de civilização, é tarefa
política à qual não podemos nos furtar. Vamos, sim, repetir os
princípios sob um novo ângulo, até conseguirmos alguma mu-
dança, mínima que seja”.
Contudo, em se tratando de Irandé Antunes, repetição, repe-
tição não há. O que temos é uma obra entremeada, intertextual,
que dialoga com o público a partir das necessidades teóricas por
ela constatadas in loco e face a face. Basta olhar o objeto de cada
livro acima mencionado para nos dar conta da variedade de pro-
postas feitas por ela e que, por si, já daria novo rumo e resposta à
pergunta já antiga feita por muitos dos que lidam com os desafios
e percalços da sala de aula e que os linguistas são chamados a res-
ponder: “Se não é para ensinar gramática, é para ensinar o quê?”

10 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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Ora, consciente de que a gramática não deve ser o único eixo do


ensino de língua, Irandé Antunes vem respondendo a essa ques-
tão em cada novo livro publicado, como veremos agora em Textua­
lidade – noções básicas e implicações pedagógicas (2017: 151):

O que os linguistas defendem é que não dá mais para ensinar APENAS


gramática. Defendem — como acabamos de demonstrar — que a gra-
mática é um componente da língua, não o único. É um componente
necessário, mas não suficiente.

Aqui se ancora o compromisso didático-político de nossa Au-


tora: escrever para quem está em sala de aula, ou se prepara para
assumir uma em breve. Irandé Antunes dedica sua obra inteira
a apresentar as possibilidades que as ciências da linguagem tra-
zem para o ensino de língua num tom de conversa íntima que
faz com que professores e estudantes entendam o que, muitas ve-
zes, vem revestido de um hermetismo intencional, de um falar só
para os pares acadêmicos, mesmo quando se trata de introduções
às várias áreas do saber linguístico. Por isso, ela queria subtitu-
lar o novo livro que aqui apresentamos como um “um começo de
conversa” sobre linguística textual diante da constatação de que
o(a)s professore(a)s da rede são vítimas históricas de grande des-
contextualização do conteúdo linguístico e, a essa altura, da falsa
necessidade de preservar um ensino engessado, que não leva em
conta o aluno, que não olha a aluna no rosto para poder partir da
plenitude desses seres falantes que enchem nossas salas de aula.
Os “vazios teóricos” que Irandé detecta nesse público viram
livros. Desde Aula de português – Encontro & interação, é sempre
a mesma dinâmica que move a Autora: falar com e para quem
está no começo, “graduandos de Letras e de Pedagogia, profes-
sores recém-formados ou aqueles que já se ocupam da educação
básica” (2017: 16). Tudo para evitar que “equívocos e entendimen-
tos simplistas” (2017: 17) sigam dando tom, forma e conteúdo à
atuação profissional desse contingente de profissionais que não
encontra “facilmente obras que, sem descurar de uma boa fun-
damentação teórica, atendam às suas condições de ‘iniciantes’, fa-

NOTA DO EDITOR 11
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zendo, para eles, quase uma ‘tradução’ do que propõem as teorias


mais atuais” (2017: 17). Aí está a intenção da obra toda de Irandé
Antunes e, especialmente, deste Textualidade – Noções básicas e
implicações pedagógicas.
Haveria muito a dizer, mas o espaço já se extingue... Resta
apenas destacar a decisão da Autora de se postar na linha de
frente da transmissão do acervo de conhecimento das ciências
linguísticas aos professores. Se para isso for preciso repetir o que
já soa por demais conhecido nas esferas acadêmicas, não há pro-
blema. O público de fora dos muros da academia, profissionais
angustiados em sala de aula, são um contingente muito mais am-
plo, de cuja atuação bem [in]formada depende a transformação
educacional que todos almejamos e pela qual nos empenhamos.
E quando esse conteúdo é transmitido com a força persuasiva da
prosa de Irandé, a transformação começa a nos parecer possível e
próxima. Vamos lê-la então e ver como transformar nossa prática
de ensino.

***
Irandé, parabéns pelos seus 80 anos e obrigado pela fecun-
didade, por tudo o que nos ensina. Não à toa você se apresenta
sempre como “professora de português”. Por você nunca ter se
distanciado de seus pares, seu público é unânime em dizer:

“Todos amam Irandé!”

É verdade. Todos nós a amamos.

M arcos M arcionilo
São Paulo, Primavera de 2017

12 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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APRESENTAÇÃO

M
inha pretensão para este livro é oferecer aos professo-
res da educação básica e a alunos dos cursos de Letras
e Pedagogia uma introdução aos estudos da textua-
lidade e do texto, com esclarecimentos a respeito de questões
mais gerais e preliminares. Uma espécie de iniciação básica... Um
começo de conversa... O que significa que é uma ‘iniciação’ (‘um
começo’) de ‘uma conversa’ que vai se prolongar e se aprofundar
depois... Quero eu!
Além dessa iniciação aos conteúdos ligados a esses tópicos
textuais, pretendo trazer algumas orientações e sugestões de
como os professores poderiam iniciar os alunos nesses estu-
dos textuais, tirando do foco do ensino — como vem acontecen-
do, ainda hoje, em muitas escolas do país — conceitos e atividades
mais restritos à gramática da palavra e da frase.
Por exemplo, em geral, aos alunos das séries iniciais não se
pede que escrevam pequenos textos (já que ainda não estão al-
fabetizados), mas se pede que formem frases isoladas, a partir
de palavras também isoladas, reconhecidas com base em figuras
que nem sempre têm vínculo que as associe semântica ou prag-
maticamente. Uma atividade que nega o princípio básico da lin­
guagem — sua funcionalidade — e o outro da textualidade — que
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é a articulação entre seus constituintes e a unidade semântica e


pragmática daí decorrente.
O óbvio — que nunca é demais insistir — é que ninguém
anda por aí formando frases... A gente diz coisas que fazem al-
gum sentido e que têm alguma finalidade em certo contexto real.
E as diz... para determinados interlocutores.
Mais: logo depois de alfabetizadas — numa “pressa” injus-
tificada —, as crianças costumam ser solicitadas a contarem o
número de letras ou dos fonemas das palavras, ou o número
de versos de um poema ou o número de parágrafos de uma
fábula; a classificarem palavras quanto ao número de sílabas,
e outras coisas que, com certeza, poderão ter sentido em outras
etapas da trajetória de estudo da língua, mas não neste momen-
to da escolarização.
Enquanto isso, as questões mais pertinentes às atividades de
falar e de escutar, de ler e de elaborar um texto — até mesmo as
mais preliminares — não costumam ser objeto de consideração.
É como se não existissem.

***
Por isso me dirijo prioritariamente a professores da educação
básica e a alunos de Letras e de Pedagogia. Nada impede, no en-
tanto, que alguém interessado em iniciar-se no mundo do texto
e de suas categorias dê uma olhadinha nestas páginas, a fim de
ampliar sua formação linguística, já que, como se sabe, o texto e
seus conceitos não têm preenchido a pauta dos programas de estu­
do nem mesmo nas séries mais avançadas.
Não alimento, pois, outras pretensões, a não ser isto mes-
mo: favorecer a introdução desse público em um universo
conceitual­ainda pouco acessível e tradicionalmente preterido e
assim oferecer subsídios — bem claros e acessíveis (espero!) —
para que novos objetos de ensino sejam incorporados às aulas
de português.
Não terei pudor em ser taxativa ou mesmo repetitiva em re-
lação a certos pontos teóricos ou metodológicos considerados ex-

14 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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tremamente relevantes e, pelo que se sabe, ainda ausentes das


práticas escolares de muitas escolas, públicas e particulares.
Está em jogo, pois, meu costumeiro empenho em apoiar os
atuais­(e futuros) professores na tarefa de compreenderem as ques­
tões linguísticas em bases teóricas mais amplas e consistentes e,
assim, chegarem às questões textuais e, consequentemente, a um tra­
balho escolar mais produtivo e relevante, individual e socialmente.
É, no mínimo, desconfortável constatar o quanto as questões
linguísticas são estreitamente percebidas, sobretudo por aqueles
que tiveram em seu currículo ‘aulas de português’. A compreen-
são a que tiveram acesso, de tão simplista, inconsistente e irre-
levante, só concorre para reforçar os mitos de que ‘o português
é uma língua muito difícil’; ‘os brasileiros falam mal o português
e, por isso, o futuro da língua está ameaçado’; ‘o povo fala tudo
errado’; ‘somente uns poucos conseguem aprender a escrever’ etc.
Não se pensa, por exemplo, nos muitos fatores, inclusivamen-
te escolares, que estão na base dessas crenças; crenças, como
disse, simplistas, inconsistentes e nocivas aos propósitos de uma
educação linguística coerente com as atividades de linguagem.
Me espanta constatar que, ainda agora, haja tantas pessoas
(com curso universitário, inclusive) que fazem referência a ‘ví-
cios de linguagem’ e creem nisso!; me pergunto por que ‘ver-
dades’ como essa colam tão facilmente na mente das pessoas e
dificilmente saem de lá!
Como alguém pode aprender a escrever textos, se a experiên-
cia de aprendizagem que pratica é ‘escrever palavras ou frases
isoladas’? Ou é ‘escrever sem saber pra quem e pra quê’? Se a
experiência do dia a dia escolar exclui a leitura de textos, ou a ela
recorre apenas para que os alunos contem, por exemplo, quantos
substantivos apareceram no texto, sem outra finalidade senão
mostrar que sabem reconhecer um substantivo?
Por isso, tenho reiterado que sinto uma grande pena ao cons-
tatar que, em estudos sobre a língua, a experiência das pessoas
não é capaz de fazê-las perceber a amplitude, a relevância — e
até o fascínio — das questões linguísticas, submetidas, quase

Apresentação 15
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sempre, à redução e aos simplismos de programas fora da prática


social, isto é, fora dos usos sociais da atividade verbal.
Suponho que faltam aos professores considerações teóricas
acerca de outras perspectivas e de outros fenômenos linguísti-
cos, além daqueles essencialmente gramaticais. É sabido que
muitos dos professores que estão no comando das salas de aula
provêm de cursos de graduação pouco credenciados, pela falta
de um corpo docente devidamente preparado e afeito a pesqui-
sas e a mudanças reclamadas pelas condições culturais de agora.
São reféns esses professores de concepções sobre as línguas
que se detiveram na mera descrição de sistemas abstratos, quer
dizer, desvinculados dos contextos reais, fora das situações so-
ciais de uso, sem o apoio de textos, sem interlocutores, sem in-
tenções, hipotéticos, algo apenas passível de acontecer, mas não
tendo de fato acontecido; nesse caso, com predominância da mor-
fossintaxe da palavra e da frase.

***
Vale, já nesta altura de nossa conversa, um esclarecimento: o
texto de que vou me ocupar é, prioritariamente, o texto linguísti­
co, ou seja, o texto constituído de palavras.
Essa minha opção não significa desconhecimento da natu-
reza textual-discursiva que podem assumir desenhos, imagens,
gestos, fotos, pinturas, grafites, gráficos, os quais também se sub-
metem a certas condições que caracterizam um ‘objeto de lin-
guagem’ e, assim, podem funcionar como ‘textos’. Minha opção,
reitero, resulta de meu empenho em divulgar novas concepções
entre os professores que, em situação de sala de aula, tratam com
o objeto ‘linguagem-língua’, objeto tão secularmente mal compre-
endido na imensa abrangência de suas funções sociais.
Por que continuo insistindo em falar com quem ‘está no co-
meço’ de uma trajetória de formação linguística, isto é, graduan­
dos de Letras e de Pedagogia, professores recém-formados ou
aqueles que já se ocupam da educação básica?

16 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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É que para esse público não se encontram facilmente obras


que, sem descurar de uma boa fundamentação teórica, atendam
às suas condições de ‘iniciantes’, fazendo, para eles, quase uma
‘tradução’ do que propõem as teorias mais atuais, sobretudo
aquelas que têm como foco a dimensão ‘textual-discursiva’ da
língua, na perspectiva da linguagem como atividade de intera-
ção, regulada também pelos amplos fundamentos da pragmática.
Essa opção se justifica ainda pela certeza de que a Linguís-
tica é disciplina relativamente recente nos cursos de Letras, não
consta em todos os currículos dos cursos de Pedagogia e, em um e
outro curso, ocupa um tempo de estudo não muito longo.
Meus contatos com esse público me proporcionam a feliz
oportunidade de identificar seus ‘vazios teóricos’, seus possíveis
equívocos e entendimentos simplistas, os quais — pressupomos
— repercutem na forma como eles atuam em sala de aula.
Com base nessa pressuposição é que organizamos cada capí-
tulo do livro em duas seções:
(1) uma em que exponho elementos da ‘fundamentação teórica’;
(2) outra em que apresento as implicações pedagógicas dessa fun-
damentação para as atividades de ‘sala de aula’, com exceção
dos capítulos um, treze, catorze e quinze, que, por sua natu-
reza, não admitiriam a divisão em seções.
Essa organização pretende atender a dois objetivos:
(1) expor, em termos mais acessíveis, alguns princípios teóricos
sobre a textualidade e o texto;
(2) ponderar sobre as práticas pedagógicas implicadas pela ad-
missão desses princípios.
Tenho em mente os termos da Constituição Federal de 1988,
em seu artigo 205, o qual determina que

a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será pro-


movida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao
pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício
da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988;
realce meu).

Apresentação 17
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Também tenho presente o que está em destaque nos PCN


(2000: 14): a educação deve ser estruturada em quatro alicerces
(1) aprender a conhecer;
(2) aprender a fazer;
(3) aprender a viver;
(4) aprender a ser.
A linguagem é constitutiva desses quatro tipos de aprendi­
zagem!
Em síntese, creio que há lugar para a conversa que pretendo
começar a ter aqui nestas páginas!!!
E há muito que fazer a partir dela!
Esta expectativa é que me move neste momento.

18 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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“Privilegiar o estudo do texto na sala de aula é acei­


tar o desafio do convívio com a instabilidade, com
um horizonte de possibilidades”
(W. Geraldi. Aula como acontecimento, 2010: 119).

***
“O texto abre as portas para o inusitado, para o
mundo da vida invadir a sala de aula, para o
acontecimento conduzir a reflexão, sem que os
sentidos se fechem nas leituras prévias e privilegia­
das com que os trechos têm sido silenciados quando
presentes na sala de aula”
(W. Geraldi. Aula como acontecimento, 2010: 124).

Apresentação 19
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Licensed to Robson - robson.uneb@gmail.com - 686.355.245-00

um
ENTRANDO NO ASSUNTO
DA CONVERSA

N
ossa conversa se insere em um campo dos estudos da lin-
guagem conhecido como a linguística de texto. É um cam-
po relativamente novo, que teve seu desenvolvimento no
começo da segunda metade do século XX. Esse campo foi conside-
rado pelos linguistas que defendiam sua aceitação, como:
(1) um novo modo de fazer linguística;
(2) uma nova perspectiva na observação e descrição do objeto lin-
guístico, o que implicou uma reavaliação dos princípios e mé-
todos da linguística geral, embora pretendesse deslocar mais
do que substituir os paradigmas da investigação linguística;
(3) um programa de investigação capaz de reafirmar a impor-
tância da linguística no centro de outras ciências sociais (se-
gundo consta em Schmidt, 1978: 1-14);
(4) “uma das linhas de pesquisa mais promissoras da linguísti-
ca” (Marcuschi, 2008: 1).
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Quais os pressupostos que fundamentaram as propostas de


uma linguística do texto?
O pressuposto básico foi a convicção de que:

Uma vez que a linguística pretende exercer a função de ‘ciência da lin­


guagem’, “é a ela que compete a análise da língua tal qual ela acontece
numa sociedade efetiva”. Ocorre que, em qualquer sociedade, o que se
pode ver como ocorrência necessária é “a língua-em-funções; nunca
o amontoado de signos abstratos da linguística tradicional” (Schmidt,
1978: 7).

Outro pressuposto está intimamente ligado a esse primeiro e


se assenta no princípio de que:

Não existe um uso significativo da língua fora das inter-relações pes­


soais­e sociais situadas (Marcuschi, 2008: 23).

Dessa forma, fica explícito que toda atuação verbal acontece


sempre em textos portadores de uma função comunicativo-intera­
cional e está, em cada ocorrência, integrada num sistema mais
amplo de atuação, que é a atuação social que as pessoas empreen­
dem no dia a dia de suas relações.
Desses pressupostos, para todas as línguas, decorrem os fe-
nômenos:
(1) da textualidade, o qual implica que toda e qualquer atividade
de linguagem somente ocorre em forma de textos; assim, tudo
o que as pessoas dizem, em qualquer circunstância social,
constitui um texto; a dimensão desse texto não importa;
(2) da intencionalidade, o qual implica que toda atividade de lin­
guagem somente acontece com uma finalidade específica, ou
seja, com determinada intenção ou objetivo;
(3) da semanticidade, o qual implica que a atividade da lingua-
gem é uma atividade que lida com a produção e a expressão
de sentidos; portanto, ela significa sempre;
(4) da comunicabilidade, o qual implica que as ações de lingua­
gem se destinam a estabelecer e a produzir eventos de comuni­
cação, de intercâmbio, de troca entre os sujeitos participantes;

22 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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(5) da referência a parceiros, o qual implica que as atividades de


linguagem supõem sempre a condição da interação entre dois
ou mais sujeitos, ativos e mutuamente colaborativos.
Esses fenômenos constituem características irredutíveis da
língua concebida como meio discursivo e social de interação verbal.
E quais teriam sido então as motivações para que a linguística de
texto se impusesse como opção de estudo do fenômeno da linguagem?
Em resposta a essa questão, podemos destacar:
(1) a orientação da linguística em direção à linguagem como ati­
vidade de interação e como forma de atuação humana (atua-
mos, agimos também pela linguagem);
(2) a consciência de que a falta de um componente pragmático dei­
xa a investigação linguística numa condição de séria incomple­
tude (toda ação de linguagem supõe as condições concretas de
sua realização);
(3) a pretensão de abranger a linguagem como um todo, inte-
gralmente, portanto, o que implica a integração com outras
ciências (como a sociologia, a psicologia), e outras teorias do
discurso (como a retórica, a estilística, a poética);
(4) mais imediatamente, a compreensão de que muitas questões
linguísticas não podem ser resolvidas apenas no âmbito da frase.
Pelo exposto, já se pode entender a relevância desse ‘recente
ramo da linguística’ e já se pode antever também que suas bases
teóricas terão muitas implicações para as atividades de ensino e
de aprendizagem da língua, que acontecem sob a gestão escolar.

***
Parece claro que os pressupostos e as motivações apresenta-
dos para justificar a relevância da linguística de texto se ajustam
exatamente àqueles objetivos pretendidos para a tarefa da educa-
ção, pois é no estudo e na análise das atuações comunicativas —
quer dizer, das atividades de linguagem em textos — que se pode,
com amplo sucesso, preparar as pessoas para o mercado de tra-
balho e para sua participação cidadã na condução de sua própria
vida e da vida da sociedade em que está inserido.

Continuemos a desenvolver o assunto de nossa conversa!

Entrando no assunto da conversa 23


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dois
TEXTOS: UM NOVO MODISMO?

1. Fundamentos

E
m consonância com o desenvolvimento dos estudos da se-
mântica e, sobretudo, da pragmática, surgiu o interesse da
linguística em abranger a língua como um todo e, assim,
fugir da concentração unilateral e reduzida tradicionalmente
adotada. Abranger a língua como um todo supõe percebê-la na sua
complexidade, já que toda língua é um sistema plural de compo­
nentes linguísticos e cognitivos estreitamente vinculados e depen-
dentes das situações socioculturais de cada grupo.
Daí, também, o interesse da linguística em eleger como lugar
central de estudo e pesquisa os usos reais da língua, em seus di-
versos contextos sociais. Não se pode entender o que o outro diz
sem levar em conta os elementos espaçotemporais e culturais da
situação, isto é, os elementos exteriores aos fatos linguísticos que
se quer entender.
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Naturalmente, então, a linguística passou a ter interesse em


desenvolver uma teoria do texto, uma vez que os usos reais da lín-
gua — isto é, toda ação de linguagem (falar, escrever, ouvir, ler) —
só acontecem sob a forma de textos. Quer dizer, apenas por meio
de textos é que entramos em contato verbal com outros. Isso é uma
evidência irrefutável, mas, parece, uma evidência que nem sem-
pre tem sido percebida por todos.
Nesse contexto, se chegou à compreensão de que as teorias
sobre a frase já não eram suficientes para explicar muitos dos
fenômenos da comunicação linguística, sobretudo aqueles depen-
dentes das diferentes situações de uso. Atualmente, dada a divul-
gação de algumas questões textuais, já ganhou certo consenso
— pelo menos teoricamente — o princípio de que muitas ques­
tões linguísticas só podem ser apreendidas na dinâmica textual e
fundamentadas nas teorias sobre o texto.
Um exemplo disso é a operação de valorizar ou de enfatizar
um termo mais que outro, ou de optar, na sequência do texto, pelo
uso do artigo indefinido ou do artigo definido; outro exemplo são
as retomadas lexicais ou gramaticais (as chamadas ‘anáforas’), as
quais, em um texto mais longo, são muito comuns, garantindo a
continuidade e, daí, a sua unidade semântica.
A continuidade temática de um texto — condição da sua coe-
rência, e para a qual concorre a repetição de palavras — também
pode exemplificar a insuficiência da frase na explicação de cer-
tos fatos da atividade verbal.
Estava clara a necessidade de um novo modelo teórico, ‘de
uma possível nova linguística’, que ultrapassasse o âmbito da
frase. P. Hartmann, um dos fundadores da linguística de texto,
em 1968, referindo-se a problemas da frase, afirmou:

Se desejarmos praticar e desenvolver a ciência da linguagem em ple-


nitude e diferenciação adequada a seus objetos, é preciso partir da real
situação do objeto no domínio da realidade linguística (apud Schmidt,
1978: 5; destaque meu).

O apelo maior consistia, então, em chegar a ‘uma ciência da


linguagem em plenitude’ e a ‘uma linguística adequada a seu objeto’.

26 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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O que seria esse objeto: a língua em si mesma? Abstrata? Hi-


potética? Ou a língua tal como ela se nos apresenta nas situações
do dia a dia?
E como a língua se nos apresenta? As evidências, em qual-
quer situação de linguagem, comprovam que ela acontece:
(1) sempre em textos;
(2) sempre dentro de um contexto sociocomunicativo; ou seja, den­
tro de uma situação em que pessoas interagem;
(3) sempre articulando elementos linguísticos (lexicais e gra-
maticais) e elementos cognitivos resultantes da experiência
vivida e preservada na memória, o chamado ‘conhecimento
enciclopédico’;
(4) sempre vinculada a um propósito. Ou, noutras palavras, com
uma função comunicativa qualquer. Ninguém fala para nada,
sem finalidade. Nem que seja simplesmente para não ficar
calado. Como definiu Schmidt (1978: 7), “a linguagem não é
usada em função de si mesma, mas sempre com o fim de se
obter algum resultado”.
Se à linguística corresponde a função de ‘dar conta da lingua-
gem’, é a ela que compete o estudo da língua, tal como ela ocorre
nas diversas situações sociais, o que a caracteriza como ‘língua-
-em-funções’, língua concreta, dialógica, interacional e eminente-
mente textual-discursiva.
Estava proposto, então, o ponto de partida para uma compre-
ensão mais global do fenômeno linguístico: ou seja, ‘o signo lin-
guístico original’, aquele que revela a natureza mesma da língua
e que se faz presente, em sua dimensão global, na textualidade.
“Desde que ela exista, a comunicação se dá de forma textual” (Sch-
midt, 1978: 164).
Esse princípio constitui uma norma universal, válida e neces­
sária para a efetivação de qualquer ação de linguagem.
Ou seja, o novo objeto da linguística é a textualidade da lín­
gua. Concretamente, os textos realizados pelos (e entre os) parcei­
ros de comunicação. O conceito de texto tem experimentado, como
outros conceitos, determinados alargamentos ou expansões, por

Textos: um novo modismo? 27


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conta mesmo de visões mais amplas com que a linguagem verbal


tem sido percebida.
Assim é que, no momento atual, predomina uma compreen-
são do texto mais cognitiva (atenta à mobilização dos diferentes
conhecimentos armazenados na memória) e mais pragmática
(atenta à consideração dos contextos de uso da língua) evidente-
mente. O ‘novo signo’ é, nas palavras de Schmidt (1978), o “texto-
-em-função”, isto é, o texto em seu funcionamento concreto, o que
abarca outros fatores além daqueles linguísticos e expande os
próprios conceitos de coesão e de coerência.
Neste livro, a concepção em que me baseio é exatamente essa
visão mais alargada, que envolve as próprias condições pragmáti-
cas (contextuais) em que as ações de linguagem se efetivam.

2. Em sala de aula

Diante desse novo ‘signo’, é necessário que o professor, já nos


anos iniciais da escolarização, tome o texto como objeto de suas
exposições e análises; fale sobre ele; fale nele e dele.
Indo além do campo teórico, convém que o professor procure
incentivar a prática da leitura e da análise de textos de todos os
modelos: pequenos, grandes, literários ou não. Textos, não frases
soltas! Que os alunos tenham a oportunidade de conviver com os
livros, manuseá-los, ganhar intimidade com eles!
Que o professor procure, pouco a pouco, que seus alunos com-
preendam a natureza semântica e as condições concretas de ocor-
rência dos textos, a fim de que eles possam entendê-los segundo
essas condições: uma atividade que envolva sempre expressão de
sentidos e de intenções; ou seja, que tenha como constituintes es-
senciais a semântica e a pragmática.
Assim deve, em linguagem acessível, tornar os conteúdos
mais significativos e aguçar o interesse dos alunos em direção
à busca dos sentidos e dos resultados esperados em textos orais
ou escritos de qualquer tipo e gênero, uma vez que todo texto

28 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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sempre ‘significa’ e constitui uma ‘forma de atuação’. Que exista


o cuidado de ir além da simples pergunta: o que o autor disse?
Convém chegar a outras questões mais amplas, mais contextuais,
como: por que ele disse? Com que intenção? Que recursos usou para
se fazer entender em seus sentidos e intenções?
Ou seja, cumprindo o que seriam as tarefas de quem pre-
tende compreender globalmente o fenômeno da linguagem e as-
sim reconhecer a textualidade como sua forma ‘necessária de
ocorrer’, cabe ao professor de línguas investigar em sala de aula
as propriedades, as estratégias, os meios, os recursos, os efeitos,
em suma, as regularidades implicadas no funcionamento da lín­
gua em processos comunicativos de sociedades concretas, o que
envolve a produção e a circulação de todos os tipos e gêneros
de textos.
Além disso, convém ir mostrando que qualquer texto é parte
de uma situação, de um contexto social de interação. Mesmo sem
falar em ‘pragmática’ (mas sabendo claramente o que é!), o pro-
fessor, diante desse ‘novo objeto de ensino’ terá que incluir, em
suas exposições e análises, as condições de realização da produ-
ção e da recepção de qualquer texto:
(1) quem está envolvido na interação?
(2) em que situação social?
(3) movido por quais propósitos?
(4) esperando que resultados?
(5) dentro de que assunto ou tema?
(6) sob a forma de que gênero? etc. etc.,
(7) pressupondo que outros conhecimentos além do linguístico?
Em síntese, a proposta de fazer do texto o eixo de ensino, ou,
noutras palavras, O objeto de estudo da língua não é um modis­
mo. Não é uma ‘invenção’ a mais, trazida por aqueles que se me-
tem a propor inovações pedagógicas e a romper com os modos
tradicionais de ensinar a língua na escola.
É, ao contrário, resultado da compreensão das reais condições
de ocorrência de qualquer atividade de linguagem. Reiterando: to­
dos nós, em qualquer situação, só nos comunicamos verbalmente

Textos: um novo modismo? 29


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por meio de um gênero de texto, oral ou escrito. Daí que qualquer


abordagem que pretenda ocupar-se dos usos da linguagem terá
que ser forçosamente em textos.
A propósito, uma análise dos avanços da ciência linguística
seria muito útil a pais e professores que resistem a novas concep-
ções, mesmo contrariando as evidências de um mundo e de uma
ciência que não param de mudar. Além desses, haveria lugar (e
como!) para que jornalistas, psicólogos, advogados, médicos, eco-
nomistas, professores (de qualquer área) ampliassem seus conhe-
cimentos acerca do fenômeno da linguagem, podendo assim abrir
mão de conceitos tão simplistas, reduzidos e preconceituosos que
foram adquirindo ou na escola, ou por influência das investidas
sociais e medíocres da mídia oral e escrita.

30 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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três
O TEXTO COMO OBJETO DE
ESTUDO DA LÍNGUA

1. Fundamentos

S
e nos convencêssemos de que usar uma língua — falando,
ouvindo, lendo, escrevendo — é alguma coisa que se faz
apenas sob a forma de textos, nenhum outro item poderia
ser objeto de estudos, de análise, de avaliação, de prática senão o
texto, senão concretamente todo gênero de texto com que a gente
se depara no dia a dia. Obviamente, o professor não está proi-
bido de tratar de unidades menores (palavra, morfema, sílaba
etc.), sempre que isso seja textualmente relevante e sob a devida
orientação para a textualidade.
Apenas o texto possibilita a compreensão mais global e mais
consistente do fenômeno linguístico. Todas as possíveis variações
de interpretação, de sentidos e referências são mais complexas no
texto do que em frases soltas.
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Na verdade, é no âmbito das realizações textuais que se pode


ver toda a complexidade da conexão entre o linguístico, o cognitivo
e o contextual. Ou, noutros termos, toda a vinculação entre o sin-
tático, o semântico e o pragmático. Isto é, a vinculação entre as
combinações de distintas unidades, os sentidos daí decorrentes,
os saberes implicados e os efeitos derivados das diferentes condi-
ções de uso.
Um texto é, assim, uma unidade complexa; dizendo de outro
jeito, uma unidade indissociavelmente constituída de sintaxe, se-
mântica e pragmática e que mobiliza diferentes sistemas de co-
nhecimento, como veremos mais adiante.
Um estudo que se detenha apenas no linguístico, isto é, ape-
nas nas categorias morfossintáticas da língua (como ainda se faz
em algumas escolas, com produção e análise de frases soltas ou
retiradas de textos), é um estudo parcial, reduzido, artificial e
pouco esclarecedor do que, de fato, acontece quando as pessoas
estão em interação verbal.
Quem na vida real fala ou escreve a não ser para o outro?
Quem fala sem qualquer objetivo? Quem fala de qualquer jeito,
usando não importa que palavras? Quem, em suas ações de lin-
guagem escrita, escolhe as palavras que vai usar por critérios or-
tográficos? (Infelizmente, tudo isso somente acontece nas escolas;
somente acontece em grande parte das escolas espalhadas por
esse Brasil afora! Por isso — me parece — nunca é demais insistir
na relevância do estudo da linguagem em uso).
Evidentemente, esse estudo mais global — que insista em ir
além da palavra, da frase e além do estritamente linguístico — é
mais abrangente, é mais complexo e, com certeza, mais motivador,
pois exige o domínio de outros conjuntos de conhecimentos, muito
além do que sejam as classes gramaticais e suas características mor-
fossintáticas. Por isso, esse estudo talvez tenha sofrido adiamentos...
Ou seja, um estudo mais abrangente, mais consistente da lín-
gua exige, por exemplo,
(1) que conheçamos particularidades semânticas das palavras —
como a possibilidade de uma mesma palavra poder expressar

32 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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vários significados (ou a polissemia das palavras); ou de duas


ou mais palavras terem significados equivalentes (sinônimos)
ou contrários (antônimos); de existirem palavras com ‘senti-
dos gerais, amplos’ (hiperônimos), cabendo, assim, em muitos
contextos diferentes (como as palavras ‘coisa’, ‘item’, ‘elemen-
to’, ‘fator’, ‘procedimento’, ‘equipamento’ etc.); ou os efeitos de
sentido decorrentes, por exemplo, das criações metafóricas ou
metonímicas, das variações de entonação, dos recursos que ex­
primem ênfase, contraste, cautela, das alterações da ordem das
palavras na sequência do enunciado, entre outros;
(2) que conheçamos as regularidades textuais — como os recur-
sos (gramaticais e lexicais) que promovem a coesão do tex-
to e as condições de sua coerência (linguística e contextual)
e de sua relevância informativa, com ênfase nas retomadas
referenciais e na associação semântica entre as palavras do
texto; bem como os meios de fazer o tipo e o gênero do tex-
to conformarem-se, em sua composição, às suas condições de
uso sociointerativo e poderem, assim, funcionar como ação
de linguagem;
(3) que conheçamos as particularidades da situação em que teve
lugar o uso efetivo da língua (particularidades pragmáticas)
— como as estratégias disponíveis para deixar o texto ade-
quado e relevante, em relação às condições culturais de seus
interlocutores, de seus propósitos comunicativos e da situa-
ção social em que ocorreu;
(4) que mobilizemos, para além do linguístico, os conhecimentos
que já dominamos e temos estocados na memória, a partir de
nossas rotinas com os diferentes usos da linguagem.
As tarefas de um professor de língua — materna ou estran-
geira — não se esgotam na descrição das categorias lexicais ou
gramaticais, tampouco na enumeração dos erros a serem evita-
dos pelos alunos.
É muito mais ampla a tarefa de um professor de língua, pois
lhe cabe: investigar as propriedades, as estratégias, os meios, os
recursos, os efeitos de sentido, enfim, as regularidades implicadas

O texto como objeto de estudo da língua 33


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no funcionamento da língua, em processos comunicativos de socie­


dades concretas, o que envolve a produção e a circulação de todos
os tipos e gêneros de textos-em-função.
Explorar, analisar textos, adotá-los como objeto de ensino e
aprendizagem em atividades de oralidade, leitura e escrita não é
tão simples assim. Não bastam uns exercícios de identificar pa-
lavras, segundo essa ou aquela classe gramatical, ou reconhecer
sujeitos e predicados de frases inventadas ou retiradas dos textos.
Como não basta memorizar definições ou aprender a distinção
entre unidades de classes diferentes.
Essas noções (e outras) são importantes, têm seu lugar na
aprendizagem da língua, porém não bastam (são insuficientes),
quando o que se pretende é levar os alunos a poderem falar, ler
e escrever textos que digam com clareza e coerência o que é re-
levante ser dito em cada situação em que ocorrem. E mais, são
absolutamente insuficientes quando o que se pretende é tornar
os alunos capazes de enfrentar o mercado de trabalho e, como ci­
dadãos, participarem criticamente do desenvolvimento e do bem
comum social.

2. Em sala de aula

A propósito de questões implicadas nas teorias textuais, dete-


nho-me neste instante nos primeiros anos da educação básica, quan-
do ainda é muito comum a prática de formar frases. (Essas questões
textuais são, neste ponto do livro, apenas referidas, uma vez que,
em capítulos subsequentes, serão tratadas com mais detalhes.)
Por exemplo, é comum, a partir de umas figurinhas, pedir às
crianças que escrevam os nomes que aquelas figuras represen-
tam e depois vem a costumeira atividade de formar frases com
essas palavras. Resultado: sai uma série de frases sem que uma
tenha nada a ver com a outra, sem que, de alguma maneira, uma
continue a outra; sem que uma guarde qualquer associação com
nenhuma outra. Cada uma é cada uma; sem ligação de qualquer

34 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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tipo, a não ser isso mesmo: são frases soltas que remetem a uma
série de objetos também soltos, sem qualquer dependência con-
textual explícita. Fora de uma cena social concreta, sem sujeitos
interlocutores e sem um propósito comunicativo qualquer. Não
importa o que se diz nem como é dito. Importa somente formar
uma frase em que apareça determinada palavra.
Nessas condições, se pratica ‘a não linguagem’, pois ninguém
se comunica segundo esse modelo. Nessas condições, se exercita
a não textualidade da língua e se contraria o modo de ocorrência
de qualquer atuação que as pessoas executam por meio da fala
ou da escrita.
As frases são constituintes integrantes dos textos e, somente
nessa condição (quer dizer, dentro dos textos que compõem), po-
dem ser interpretadas. Isoladas, são objetos teóricos, são hipóte-
ses de algo que poderia, um dia, vir a ser dito.
Vejamos o que nos dizem as teorias do texto:

A frase deve ser analisada a partir do texto-em-função, e não o texto


a partir da frase. É ao nível do texto, ou melhor, como processo de
textua­l ização, que a frase adquire sua função (Schmidt, 1978: 172).

Que ação ou atividade comunicativa — podemos nos pergun-


tar — alguém está fazendo quando “forma frases soltas”, naquele
modelo costumeiro da escola?
Por que, desde as primeiras experiências de escrita, já não le-
var os alunos a escreverem textos, ou seja, palavra ou conjunto de
palavras que funcionem comunicativamente? Poderíamos recor-
rer aos pequenos textos, do tipo ‘textos mínimos’, isto é, ‘textos de
frase única’, formados apenas de uma ou poucas mensagens, mas
com intenções comunicativas claras e facilmente identificadas.
Convivemos com muitas centenas deles; em toda parte, sobretudo
nos contextos urbanos.
Em vez de formar frases, teria muito mais sentido ler e escre-
ver esses pequenos textos, como:
(1) listas;
(2) lembretes;

O texto como objeto de estudo da língua 35


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(3) avisos;
(4) informações;
(5) bilhetes;
(6) propagandas;
(7) pequenas mensagens (de amizade, de congratulação, de soli-
citação);
(8) pequenas sínteses ou comentários a propósito de um tema etc.
Todos eles, na verdade, cumprem, como lembramos, as mais
diferentes funções comunicativas; não estão circulando por acaso
ou apenas hipoteticamente.
Por exemplo, ‘avisos ou advertências’ como:

36 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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e muitos, muitos outros avisos, lembretes, informações precisam


ser vistos, na sua funcionalidade; portanto, como textos.
Mesmo que alguns desses textos sejam compostos apenas de
uma ou de umas poucas palavras, não são frases. São textos, pois:
(1) são atos comunicativos;
(2) existem porque alguém os criou e os dirige a outro alguém;
envolvem, pois, determinados interlocutores;
(3) expressam sentidos e revelam uma determinada orientação
temática; são, assim, interpretáveis;

O texto como objeto de estudo da língua 37


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(4) cumprem uma função comunicativa claramente identificável


(hoje, e no mundo do trabalho, muito mais que em épocas
passadas);
(5) fazem parte de determinadas situações sociais;
(6) são de um gênero reconhecível (incluindo os novos gêneros
que apareceram com o uso dos meios virtuais eletrônicos);
(7) e se inserem num determinado contexto social, em consonân-
cia com o que prescreve cada espaço cultural e, assim, fazem
parte da memória cultural de cada grupo.
Evidentemente, a concepção teórica que aqui admitimos,
sobre linguagem-língua, é a concepção interacional, dialógica,
funcional, segundo a qual as pessoas envolvidas na atividade de
linguagem colaboram ativa e reciprocamente na produção e no
entendimento dos sentidos e das intenções pretendidos para de-
terminada situação.
Ainda a propósito de ‘texto’ e ‘frase’, vale comentar o seguinte:
um texto não é uma frase grande, nem a frase, se estendida, é um
texto. Os dois objetos são de natureza distinta. O texto tem autoria;
prevê interlocutores; tem um propósito comunicativo definido; é
parte de alguma situação social. É um evento real, com data e es-
paço próprio. A frase é uma hipótese, é um modelo daquilo que
poderia ser dito, daquilo que o sistema da língua reconheceria
como aceitável. É mera possibilidade. Uma possibilidade muito li-
mitada, se a gente a toma fora de qualquer contexto.
Diante da frase “João é um menino inteligente.”, sem expli-
citação da função com que isso é dito e em que situação, respon-
dendo a que propósito, o que se pode dizer? Milhares de coisas.
Nem dá para enumerar aqui... Ou seja, a frase solta é só uma pos-
sibilidade de um ‘dizer aceitável’, em algum ‘contexto provável’.
Consequentemente, ninguém pode recorrer aos mesmos con-
ceitos teóricos quando analisa frases e quando analisa textos.
Qualquer falante do português reconheceria como não aceitá-
veis, segundo o sistema de regras estabelecidas pela língua por-
tuguesa, conjuntos de palavras como:
(1) *Meu inscreveu nem filho me concurso eu sem saber no. (Em
vez de: Meu filho me inscreveu no concurso sem eu nem saber).

38 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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(2) *Eu quando não acreditei disseram tinha que eu ganhado


concurso me o. (Em vez de: Eu não acreditei quando me disse­
ram que eu tinha ganhado o concurso).
(3) *Ninguém meia-noite tem coragem dirigir de estrada nesta
depois da. (Em vez de: Ninguém tem coragem de dirigir nesta
estrada depois da meia-noite).
(4) *Filhas minhas a São Paulo viajaram os pais com. (Em vez de:
Minhas filhas viajaram a São Paulo com os pais).
Todo falante de português reconhece que os itens ‘com’, ‘no’,
‘da’ não ocorrem em final de enunciado. Assim, qualquer um re-
conheceria esses conjuntos como não sendo português; como não
estando conforme o sistema de combinação das palavras próprio
do português. Qualquer um estranharia esses conjuntos de pala-
vras. Mais significativo ainda é poder constatar que nenhum fa­
lante do português produziria tais conjuntos, nem mesmo aqueles
analfabetos e com pouquíssimo índice de letramento. O conheci­
mento que qualquer um tem da gramática da língua e a expectativa
de ser entendido não permitiriam combinações como aquelas.
Em síntese, qualquer falante reconheceria aqueles conjuntos
como não sendo modelos ou hipóteses de possíveis ‘coisas a serem
ditas em português’. Algo, pois, que ninguém diria.
Os textos, ao contrário, são eventos reais. Aconteceram. Têm
autores e ouvintes ou leitores e desempenham uma função comu-
nicativa precisa. Em suma: texto é o que, de fato, foi dito ou escrito
numa dada situação de interação acerca de algum objeto, com al­
guma finalidade particular (perguntar, informar, avisar, advertir,
esclarecer, explicar, cumprimentar, aconselhar, definir, pedir, co-
mentar, prometer, acusar, defender etc. etc.). Independentemente
de sua dimensão, pois um texto é definido por sua orientação te­
mática e sua função comunicativa, e não por seu tamanho.
E qual seria a consequência mais provável de recorrer, com
tanta frequência, a essas atividades de formar frases soltas?
Simplesmente, a seguinte: deixar os alunos habilitados a “for-
mar frases”, o que eles aprendem magistralmente, contrariando
até mesmo aquela nossa sensação de que, por vezes, a gente ensi-
na e eles não aprendem.

O texto como objeto de estudo da língua 39


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Uma das dificuldades evidentes na elaboração de um texto é a


escolha e a ordenação das sequências, conforme o tipo ou o gêne-
ro de texto em questão. Na simples composição de frases, desapa-
rece a exigência de ordenação e, assim, qualquer sequência pode
ocorrer. A atividade de simplesmente formar frases dispensa o
cuidado do interlocutor em eleger uma sequência textual compa-
tível com seus propósitos comunicativos, ou com o gênero textual
praticado, ou com as condições concretas dos interlocutores.
É na sala de aula, sobretudo, que os alunos devem tomar cons-
ciência de que estão, ininterrupta e inevitavelmente, inseridos nas
práticas ou nas rotinas das atividades comunicativas humanas.
A título de ilustração, recorro a uma situação vivida em certa
escola. A professora, diante de uma cena rural em que estavam
várias galinhas, solicitou aos alunos que escrevessem uma men-
sagem a uma das galinhas, em forma de carta de aconselhamento.
Até aí, sem entrar na análise da relevância da situação, tudo mais
ou menos: estava indicado o destinatário (a galinha); o gênero do
texto (carta); o propósito comunicativo (fazer um aconselhamento).
E o que produziu o aluno? Na verdade, o que ele reproduziu?
É evidente que o aluno seguiu o modelo do que está habitua­
do a fazer: juntar frases soltas que não se continuam; que não
têm unidade. E acabou dando provas de que ‘aprendeu o que foi
ensinado’ e produziu um “não texto”, como se pode ver a seguir.

Eu gosto de comer ovo de galinha.


Galinha vá botar ovo para mim.
O pintinho nasse da galinha.
A galinha da fazenda de meu avô tem muitos pintinhos.
A galinha come milhos.
Minha mãe féis galinha para o almoço.

Fico imaginando qual terá sido a reação da professora a esse


resultado. Terá mostrado que um texto não se faz assim, apenas
juntando umas frases que não se continuam? Ou terá se limitado

40 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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a corrigir a ortografia? Terá sinalizado sua aprovação com um


‘Muito bem!’, uma vez que a tarefa foi cumprida?
Mas... cadê a carta? Cadê a forma de composição própria de
uma carta? Cadê a mensagem de aconselhamento? Cadê a conti-
nuidade das referências e das predicações?
É verdade que, em cada frase, se fala de ‘galinha’. Mas, em
cada uma, se trata de uma galinha diferente. Não ocorre, nesse
conjunto, uma referência a uma ‘galinha’ determinada, que, as-
sim, seja objeto do dizer de quem fala. Também não se vê con-
tinuidade daquilo que é afirmado (na predicação) acerca dessas
‘galinhas’. Qual o tema, qual o tópico tratado nesse pretenso tex-
to? ‘Galinha’? Mas de que ‘galinha’ se fala? Não dá para identifi-
car. Nem sequer se pode afirmar que o tema dessa série de frases
seja o bichinho ‘galinha’, em geral. Muito menos se poderia reco-
nhecer algum fio de unidade nas afirmações feitas. Cada segmen-
to se refere a um objeto diferente, e, sobre esse objeto, é feita uma
afirmação diferente. Não posso me calar diante da hipótese de
que a professora não mostrou em que e por que a solicitação da
tarefa não foi cumprida.
Em suma, não se pode reconhecer aí a produção de um texto.
Do que se pode concluir que as habituais atividades de formar
frases soltas tiveram êxito, e a aprendizagem de como fazer um
texto, respeitando as propriedades que o constituem e o definem
como tal, ficou para depois — possivelmente para muito depois
(ou para nunca).
Em síntese, é preciso ter em conta dois pontos importantes
nas considerações sobre ‘frases’: um é aquele que considera a frase
como constituinte do texto; outro é aquele que toma a frase como o
próprio texto (que é o caso dos textos de frase única). No caso do
texto do aluno analisado acima, não houve texto do qual as frases
seriam seus constituintes. Tampouco cada frase tinha uma fun-
ção comunicativa particular. Trabalho inócuo. Perda de tempo e
de recursos humanos!
E quais as propriedades, as regularidades que um texto deve
ter? É o que pretendemos desenvolver em capítulos seguintes.

O texto como objeto de estudo da língua 41


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quatro
QUALQUER CONJUNTO DE
PALAVRAS É UM TEXTO?

1. Fundamentos

Q ualquer conjunto de palavras é um texto? E qualquer con-


junto de frases é um texto?
Imaginemos que nós encontrássemos, em algum lugar, a se-
guinte peça ou passagem linguística.

Lesão
Desafio, máquina, tempo, banco, gente, milhas, mun-
do, momentos, flocos, reportagem.
Turbulência, início, passeio, caminho, verdade, luz,
orgulho, missão, jovem, dinheiro, sabor, sol, rede,
qualidade, notícia, desconto, receitas.
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Proteção, barraco, ideia, concorrência, perda, promo-


ção, amigos, história, excesso, mês, grupo, aluguel,
máquina, assunto, claro, saberes.
Mudança, título, impressão, público, formação, ponto,
povo, ocasião, linha, academia, gigante.
Página, simplicidade, vida, recurso.

Diríamos que se trata de um texto?


É possível identificar o tema de que se trata?
É possível fazer um resumo desse conjunto de palavras?
E se encontrássemos outra composição, como a que podemos
ver abaixo?

Exercício
Alguns medicamentos ajudam a prevenir o desgaste
das articulações. O que vale é que a cultura popular
está em alta. Por que tanta polêmica? No trabalho
temos de saber nos portar.
O aquecimento global está em recorde batido pelo
terceiro ano consecutivo. Depois de surpreender e fi-
car abaixo da meta no ano passado, a inflação conti-
nua baixa.
Nos meses de janeiro e fevereiro preparamos rotei-
ros encantadores. O pior na economia já passou. O
grande desafio de um apreciador de vinho é escolher
o que degustar.
Esse plano é especial para quem quer ampliar seus
conhecimentos sobre a sustentabilidade.

Diríamos que é um texto?


Outra vez, é possível identificar o tema de que se trata? É pos-
sível fazer um resumo desse conjunto de frases?
Considerando o que já adiantamos nos dois capítulos anterio-
res, podemos afirmar que ambas as peças não constituem textos.

44 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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Poderíamos, então, responder, com toda a convicção, que um con­


junto aleatório de palavras ou de frases não constitui um texto.
Para que um conjunto de palavras ou de frases seja um texto,
é necessária uma condição básica: que esse conjunto possa satisfa­
zer às exigências de uma ‘ação de linguagem’, semântica, cognitiva
e socialmente relevante, o que, mesmo intuitivamente, se percebe
com certa facilidade. Vejamos.
As teorias sobre o texto propõem o seguinte: para que um
conjunto de palavras preencha as condições de poder funcionar
como texto e ser reconhecido como tal deve apresentar:
(1) coesão, ou ter seus constituintes relacionados entre si;
(2) coerência, ou ser interpretável e adequado às condições de
sua ocorrência;
(3) informatividade, ou trazer alguma ‘novidade’, ou prover al-
guma imprevisibilidade;
(4) intertextualidade, ou estabelecer relação com outros textos
prévios, já em circulação.
Como especificar essas condições (também conhecidas como
‘propriedades’)? Vamos a uma primeira compreensão, mas numa
perspectiva bem geral e sucinta, uma vez que vamos desenvolver
tais propriedades mais adiante em capítulos à parte.
(1) A coesão é a propriedade segundo a qual cada elemento do
texto deve estar ligado a pelo menos um outro. O sentido do
termo ‘coesão’ já aponta para esta condição: algo coeso é algo
que está ligado, que está relacionado a outro item qualquer. No
texto, então, tudo deve estar articulado; tudo deve estar rela-
cionado, interligado: as palavras; os períodos; os parágrafos.
Nada solto; nada como aconteceu naquele pretenso texto da
carta à ‘galinha’. Tudo deve concorrer para o texto ganhar
continuidade, mantê-la e, assim, chegar a uma unidade, a um
sentido global que tudo integre. Os sentidos das palavras, as
referências feitas, as informações expressas ou implícitas,
tudo deve estar em algum tipo de relação, de nexo; tudo deve
caminhar para uma reconhecível orientação temática e de
intenção (daí a atenção dos interlocutores envolvidos para

Qualquer conjunto de palavras é um texto? 45


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indicarem e perceberem o tema e a intenção que, em cada


texto, estão em jogo). Existem diferentes recursos — como
vamos especificar mais à frente — que criam e sinalizam os
nexos necessários à unidade semântica e pragmática do tex­
to. Os sentidos e as intenções, sobretudo em sua dimensão
global, vão sendo identificados a partir de tais recursos, os
quais, dessa forma, funcionam como pistas, como indícios. A
superfície de qualquer texto mostra diferentes pistas e indi-
cações de por onde vão os sentidos e as intenções pretendidos
pelos interlocutores.
(2) A coerência é a propriedade que deixa o texto na condição de
um todo interpretável. Ou seja, a atividade empreendida pe-
los interlocutores gira em torno de fazer-se compreender (pelo
lado de quem está com a palavra) e gira em torno de recuperar
(ou entender) os sentidos do que é dito (pelo lado de quem ouve
ou lê a palavra). É um jogo. Um jogo interativo e de mútua coo­
peração. Quem fala ou quem escreve procura expressar senti-
dos e intenções ou, noutras palavras, fazer-se entender; quem
ouve ou quem lê procura encontrar sentidos naquilo que é
dito. As ações de linguagem são, assim, uma atividade coleti­
va e colaborativa de produção e de compreensão de sentidos e
de intenções. Essa atividade acontece de maneira tão natural,
tão intuitiva que nem sequer nos damos conta das comple-
xas operações que fazemos para, juntando tudo em um bloco
coeso, encontrar integração e unidade de sentido. Apesar de
a coerência estar intimamente vinculada à coesão — pois os
sentidos estão, em grande parte, sinalizados linguisticamente
— sua efetivação não se apoia apenas no material linguísti-
co presente no texto. Muitas vezes, a coerência de um texto
é recuperada com base em nosso conhecimento de mundo,
em nosso conhecimento prévio da situação (os chamados ‘sa-
beres enciclopédicos’) e no repertório vocabular que conse-
guimos desenvolver ao longo da vida (os chamados ‘saberes
lexicais’), como vamos especificar com mais detalhes em ca-
pítulos subsequentes. Assim, o conhecimento da situação em

46 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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que acontece a atividade de linguagem constitui uma condi-


ção necessária para a interpretação adequada de cada texto.
Itens que indicam elementos pertencentes a essa situação
(como o autor, a época e o espaço cultural de origem do texto)
e pertencentes ao texto (como título, forma de composição e
de vocabulário em uso etc.) são algumas pistas segundo as
quais o interlocutor vai avançando na interpretação coerente
do texto, ou seja, vai construindo expectativas ou hipóteses
acerca de seu conteúdo e de sua função e vai delimitando o
alcance dessa mesma interpretação. Daí a grande importân-
cia de identificar os elementos de contextualização da situa-
ção e do texto. A suposição de que um texto é interpretável e,
portanto, coerente normalmente nos leva a pressupor que ele
carrega alguns sentidos e, nessa pressuposição, fazemos todo
o esforço para identificar seus sentidos e ainda seu propósito
comunicativo, ou a intenção de quem falou ou escreveu.
(3) A informatividade é a propriedade que tem a ver com a rele-
vância informativa do texto; isto é, está relacionada ao fato de
os textos trazerem, em alguma medida, certa ‘novidade’, ou
trazerem informações que respondam a interesses dos inter-
locutores envolvidos. Os textos devem fugir à obviedade, ao
‘já sabido’. Normalmente ninguém fala para dizer o que todo
mundo já sabe. Entretanto, a relevância informativa de um
texto admite graus. Há contextos em que o texto adequado
deve apresentar uma escala zero de novidade, como certas
placas de trânsito, cuja ‘informação’, por conta mesmo de
suas condições de uso e funções, repete-se indefinidamente,
sem nenhuma novidade. Daí que essa ‘relevância informati-
va’ está também vinculada à adequação do texto à situação,
o que já nos leva a admitir a necessidade de uma coerência
pragmática. Quer dizer, a coerência do texto também inclui o
grau de imprevisibilidade em relação à situação em que acon-
tece a atividade de linguagem.
(4) A intertextualidade é a propriedade que, em geral, resulta da
vinculação de um texto a outros já existentes, isto é, a outros

Qualquer conjunto de palavras é um texto? 47


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já previamente em circulação, presentes na memória discursiva


da comunidade. Em certa medida, todo texto é um ‘intertexto’,
no sentido de que as coisas que nele são ditas retomam, de mui-
tas maneiras, o já dito em outros textos que ouvimos ou lemos
ao longo da vida. De qualquer forma, nenhum texto, do ponto
de vista informativo, começa do ‘zero’. O que nele é dito já per-
tence ao ‘repertório geral’ dos grupos a que pertencem os interlo­
cutores. Por vezes, a vinculação de um texto a outro responde a
uma decisão particular de quem fala ou escreve, no sentido de,
intencionalmente, buscar apoio para o que é dito em outro texto
prévio; seja para concordar, seja para refutar.

2. Em sala de aula

O texto e suas propriedades deveriam ser o ‘eixo’ do ensino


da língua, como apontam os Parâmetros Curriculares Nacionais
(1998). As razões para isso — voltamos a insistir — estão no en-
tendimento de que a linguagem é sempre eminentemente discursi­
va, isto é, só se concretiza sob a forma de textos; quer dizer, sob
a forma de conjuntos que, em sequência de nexos ou de laços,
expressem sentidos e cumpram funções comunicativas entre in-
terlocutores em interação.
Na perspectiva da fala, da escuta, da escrita ou da leitura, o
ponto prioritário do desenvolvimento que a escola pretende pro-
mover deveria ser a compreensão dessas propriedades textuais,
nas suas complexas relações com as situações culturais em que a
linguagem acontece, o que atinge outras questões como, por exem-
plo, os tipos e gêneros de texto. Só por esses meios se pode respon-
der àquela finalidade da educação referida antes, qual seja, a de
preparar os alunos para o mercado de trabalho e para participar,
como cidadão, da vida sociocultural de suas comunidades.
Atualmente, algumas das propriedades textuais já entraram
no discurso da escola. Sobretudo as propriedades da coesão e da
coerência. Entretanto, por vezes, me dá a impressão de que al-

48 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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guns professores falam na ‘coesão do texto’, por exemplo, mas


não sabem exatamente em que consiste essa coesão. Falam muito
vagamente, mas não saberiam dizer por que um texto está coeso
ou, ao contrário, por que um texto apresenta falhas de coesão. O
mesmo se poderia dizer em se tratando da coerência.
Podemos, então, levantar uma questão: um texto coeso é um
texto que apresenta o quê? Um texto falho em coesão é um texto ao
qual falta o quê? O que um professor percebeu quando anota, ao
lado do texto do aluno: “Falta coesão”? Que clareza o professor
tem acerca do que seja a coesão de um texto? Que recursos exis-
tem para criar e sinalizar essa coesão?
Os programas de estudo da língua incluem a exploração des-
ses recursos coesivos, identificando-os como pistas ou indícios
dos sentidos e das intenções pretendidos, sobretudo na dimensão
global do texto?
O leitor, principalmente o leitor iniciante, é orientado para
observar as linhas do texto à procura dessas pistas ou desses in-
dícios que levam à continuidade e à unidade dos sentidos? Ou
ainda permanecemos presos à mera identificação da classe gra-
matical a que pertence uma ou outra palavra?
No discurso da escola, ainda se fala muito pouco, por exem-
plo, em intertextualidade. Ainda não é objeto de análise o fato
de se recorrer a passagens de outros textos, para apoiar o que
se diz ou para ser objeto de refutação. Ainda falta mostrar em
que medida a gente pode recorrer à palavra do outro, citá-la, por
exemplo, sem que fique prejudicada a originalidade ou a autoria
de nosso texto. Nesse sentido, pode-se chamar a atenção para a
inconveniência de certas citações inoportunas e irrelevantes, que
acabam afetando a autoria do texto e sua relevância informativa.
Além disso, se fala muito pouco na propriedade da informati-
vidade do texto. Ou seja, se omite qualquer referência ao fato de
que, em situações normais, ninguém fala ou escreve para dizer o
óbvio, para dizer coisas que todo mundo já sabe, para dizer coisas
que não tenham nenhuma importância ou interesse para um ou
outro interlocutor.

Qualquer conjunto de palavras é um texto? 49


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Nessa perspectiva, é muito relevante o conceito de que a ati­


vidade da linguagem é responsiva, no sentido de que quem fala ou
escreve está, de certo modo, respondendo a algum interesse de al-
gum de seus interlocutores. Em outras palavras, ninguém diz o
óbvio, ninguém diz o que ninguém quer saber, ninguém fala para
dizer coisas que não precisam ser ditas.
Para a escola tudo, porém, isso é diferente. Em geral as coi-
sas são ditas para, simplesmente do ponto de vista linguístico, se
mostrar como devem ser ditas, sem relação com as situações em
que ocorrem.
Daí a pressa (injustificada!) de a escola, logo no início da edu-
cação básica, definir o que são ditongos, tritongos, hiatos, dígra-
fos; como podem ser os substantivos, os pronomes etc.
Não se percebe que o aluno (mesmo criança) já sabe usar
essas especificações linguístico-gramaticais, com bastante pro-
priedade, e, mais adiante, em um nível em que caiba a ‘iniciação
científica’, terá oportunidade de ampliar o conhecimento dessas
e de outras particularidades de sua língua, se estiver suficiente-
mente motivado para isso.
O que vale é observar, estar atento para descobrir o que o
aluno, em cada etapa de sua escolaridade, ainda não sabe e precisa
aprender, tendo em vista suas atividades de intercâmbio, de in-
teração, de trocas comunicativas, nas mais diversas situações de
convivência e de trabalho.
Vale um exemplo de uma atividade escolar, como testemunho
de que a dimensão da textualidade está fora das análises que
acontecem nas aulas de português.

50 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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O fato de o material proposto para análise ser uma tira cria


nos leitores a expectativa de que o foco da questão incidirá sobre
algum aspecto da textualidade. No entanto, um exame, mesmo
sumário, das questões levantadas pela professora revela que se
passou longe, bem longe dimensão textual. Vejamos.
Como se vê, trata-se de uma cena em que uma criança se di-
rige a seu pai, pretendendo revelar seu descontentamento com
o tipo de pai que tem. Para esse contato, o filho usa o recurso
da ‘entrevista de pesquisa’ e assume o papel de entrevistador, o
que confere à situação e ao ‘pesquisador’ mais importância e, em
consequência, mais credibilidade. O filho inicia seu diálogo com
o trecho “De acordo com as pesquisas”, um trecho que, como sa-
bemos, confere autoridade às afirmações que serão feitas e, ao
mesmo tempo, exime o entrevistador da responsabilidade sobre
o que é dito. Ou seja, o filho é bastante sagaz quando entende que
precisa amenizar o resultado final da pesquisa e, assim, trans-
fere a autoria do que vai dizer para ‘o público ausente’, sujeito
da pesquisa. Outra vez, mostra-se sagaz quando finge que não
entendeu a única intervenção do pai. Em síntese, trata-se de uma
interação de enfrentamento, na qual convém ao protagonista as-
sumir determinadas estratégias que possam suavizar a dureza
da declaração nada agradável a ser feita no final, ‘como resultado
das pesquisas’. A solução encontrada pelo filho, diante da ordem
do pai, também é textualmente relevante, pois fazer de conta que
não entendemos o que nos foi dito é uma questão de desautorizar
o que foi dito. Ou seja, está em jogo um contato entre pai e filho,
em que o teor das declarações precisa ser amenizado. O filho per-
cebe essa conveniência e opta, então, por um jeito de dizer, jeito
que, além de lhe garantir mais credibilidade, o exime da auto-
ria e, consequentemente, de qualquer responsabilidade sobre o
que é dito. Para entender bem este texto, além do conhecimento
linguístico, é necessário mobilizar uma série de ‘conhecimentos
de mundo’, como o conhecimento de estratégias de como abordar
alguém numa situação de constrangimento e de como eximir-se
da responsabilidade sobre o que é, desagradavelmente, afirmado.

Qualquer conjunto de palavras é um texto? 51


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Em suma, o que a tira põe às claras daria ótimos comentá-


rios, tanto do ponto de vista cognitivo-pragmático — em relação
à cena de interação armada entre os interlocutores — quanto do
ponto de vista propriamente linguístico.
Pois bem, qual foi a atividade que a professora propôs aos alunos?

(a) Retire do texto:

n um adjetivo _____________________________

n uma locução adjetiva _____________________

(b) Dê o adjetivo que corresponde à locução do item (a).


________________________________________

(c) A palavra ADORÁVEL é acentuada porque ______


________________________________________

Onde ficou a análise da tira? Que passagens do diálogo foram


mais significativas e por quê?
Nunca vamos saber como os alunos perceberam o diálogo,
pois as perguntas da avaliação já definiram os focos da “inter-
pretação”, que recaem, todos, em aspectos metalinguísticos de al-
gumas palavras. A verdade é que nem era necessário trazer um
texto — no caso, uma tira — para explorar o que foi questionado.
A prática de ‘retirar’ do texto uma palavra ou um fragmento
— prática bastante questionável, mas em uso frequente até nos
livros didáticos — só não é totalmente inócua porque o que se
pergunta são coisas da metalinguagem.
Mas a linguagem — em seu exercício e em sua complexidade
— ficou completamente de fora. Retirar uma palavra do texto é o
mesmo que descontextualizá-la; é o mesmo que reduzir sua carga
semântica ou esvaziar seus efeitos de sentido. Pelo contrário, é
no interior de um texto que a palavra ganha seu sentido pleno e
sua força intencional. Com esse tipo de prática, com esse tipo de
atividade, aonde podem chegar os alunos?

52 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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Curioso é que a gente ainda se admire de que os alunos —


mesmo no final da educação básica —, depois de passarem, no
mínimo, onze anos de estudo, continuem revelando grandes difi-
culdades na escrita de textos.
O mais grave é existirem pais que apoiam esse modelo de es-
tudo, pois ele ‘parece’ responder à necessidade de aprendizagem
da gramática, um saber, creem eles, suficiente para quem aspira
ser competente e enfrentar, vida afora, concursos, vestibulares
e entrevistas para seleção de candidatos ao mundo do trabalho.
Haja milagres!
E se milagres não houver?

Qualquer conjunto de palavras é um texto? 53


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cinco
EM QUE CONSISTE
A COESÃO DO TEXTO?

1. Fundamentos

1.1. O que é a coesão do texto?

O
alcance da propriedade da coesão é bastante vasto; mui-
to vasto mesmo. O que me parece mais acertado, então,
é, neste momento, expor algumas noções mais gerais e
apontar os recursos mais comuns e que podem ser objeto de ex-
ploração numa sala de aula de iniciantes. O mesmo posso dizer
em relação à terminologia própria dessa área. Opto também por
simplificá-la, recorrendo a explicações bem acessíveis e à apre-
sentação de exemplos. O foco deste trabalho — reitero — não é,
a dimensão teórica da questão, embora não esteja em jogo abrir
mão da sua consistência. Meu propósito é de ‘iniciação’, ou seja,
de ‘entrada’ na área da textualidade, de forma contundente e bem
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fundamentada, mas não exaustiva, em respeito aos leitores que


agora tenho em vista.
A coesão, como o próprio nome indica, é a propriedade res-
ponsável por deixar todos os segmentos do texto articulados, re-
lacionados, conectados. Ela abarca, portanto, todos os recursos
(lexicais e gramaticais) que deixam esses segmentos (concreta-
mente: palavras, períodos, parágrafos, blocos supraparagráficos)
ligados entre si ou inter-relacionados.
Nada no texto está desconectado, solto, sem articulação com
qualquer outro elemento. Em todo texto, as coisas vão se retomando,
vão criando uma sequência, um fio, uma espécie de continuidade.
Qualquer falante, mesmo intuitivamente, procura sinalizar
onde estão os itens que, na superfície do texto oral ou escrito,
expressam essa continuidade. E qualquer ouvinte procura re-
cuperar os nexos estabelecidos e é capaz de perceber — e de se
surpreender — quando essa inter-relação entre os elementos do
texto é quebrada.
A capacidade para os diferentes usos da linguagem supõe,
assim e necessariamente, por parte de quem fala ou escreve o
desenvolvimento dessa competência para ‘articular’ os sentidos
expressos e, do lado de quem ouve ou de quem lê, para perceber
como essa articulação está sinalizada no plano da ordenação ou
da sequência do texto.
Por essa razão, se admite que a coesão transpareça na super-
fície linguística do texto, no sentido de que é nessa superfície que
constam as suas ‘marcas’.
É preciso indicá-las na produção do texto e, na sua recepção,
identificá-las para o maior êxito interpretativo do evento comu-
nicativo.
Nesse sentido, coesão e coerência se interdependem, pois a coe-
rência do texto, do ponto de vista linguístico, é mais facilmente perce-
bida graças às marcas lexicais e gramaticais da coesão estabelecida.
Essas marcas funcionam como verdadeiras pistas da conti-
nuidade do sentido, a qual vai resultar na unidade semântica e
pragmática que distingue todo texto coerente.

56 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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1. 2. C
 omo se consegue deixar um texto coeso?
Ou com que recursos podemos obter a coesão de um texto?
Todos os recursos que criam e sinalizam o efeito semântico
de coesão são ‘indícios’ de uma articulação pretendida pelo autor,
o qual espera que o ouvinte ou o leitor, em sua atividade de inter-
pretação, a reconheçam.
Na verdade, todos esses recursos constam no texto para faci-
litar o trabalho interpretativo de quem o ouve ou lê. Em suma,
um texto coeso é mais facilmente interpretável do que outro sem
marcas de conexão.
Mas então, de que recursos dispomos para deixar o texto coeso?
Comecemos pelos recursos gramaticais, os quais são mais fa-
miliares às considerações que normalmente são feitas nos livros
didáticos.
Existem classes de palavras cuja função principal é criar e
sinalizar os nexos que vão garantindo a articulação entre os di-
ferentes segmentos do texto; isto é, vão criando e sinalizando a
necessária coesão entre esses segmentos, os quais podem ser pala-
vras, orações, períodos, parágrafos e até blocos supraparagráficos.
São termos, por isso mesmo, conhecidos como ‘marcadores’,
exatamente porque ‘marcam’, porque ‘assinalam’ o ponto em que
ocorreu algum tipo de conexão.
As conjunções, as preposições, alguns advérbios e respectivas
locuções são exemplos típicos desses marcadores que vão indican-
do os pontos em que incidem as conexões. Não por acaso conjun-
ções e preposições são normalmente chamadas de conectivos.
Tais marcadores são também chamados de ‘articuladores tex-
tuais’. A esse propósito, sugiro a leitura do capítulo 11 de Koch
(2002), onde a autora traz uma enumeração bastante extensa dos
tipos de articuladores de uso mais frequente, com explicações e
exemplos que merecem ser analisados, pois o enfoque que preva-
lece é o de sua funcionalidade semântica e discursiva.
Acontece que essa conexão — expressa no nível da sintaxe
(ou seja, aparecendo na linha da superfície onde as palavras es-

Em que consiste a coesão do texto? 57


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tão combinadas) — também atinge o nível semântico, isto é, o ní-


vel dos sentidos do texto, pois todos aqueles ‘marcadores’, além de
cumprirem o papel de conectores, expressam sentidos; têm signi-
ficados, portanto.
Podem expressar, entre os segmentos do texto, sentidos de
adição, oposição, alternância, explicação, causalidade, temporali­
dade, proporcionalidade, o que, mais uma vez, mostra a interde-
pendência entre sintaxe e semântica, ou, para o que está em foco
no momento, entre coesão e coerência.
Vale ressaltar, portanto, que a continuidade sintática sinaliza­
da na superfície do texto corresponde a uma continuidade semânti­
ca, isto é, de sentido.
Nessa perspectiva, o uso dos vários tipos de conectivos assu-
me uma grande importância, uma vez que, como pistas, vão in-
dicando o rumo que o texto vai tomando em direção a seu final.
Um ‘mas’, um ‘entretanto’, um ‘porém’, por exemplo, indicam que
‘o rumo da conversa’ vai tomar uma direção diferente da que vi-
nha sendo tomada. Sinalizam e, assim, conduzem a percepção do
ouvinte ou do leitor para um curso oposto. Um ‘e’, um ‘além disso’
indicam, em geral, que se vai somar ou adicionar mais um argu-
mento; um ‘isto é’, normalmente, indica que se vai recorrer a uma
explicação, a uma paráfrase.
Quer dizer, os conectivos — conjunções, preposições, alguns
advérbios e respectivas locuções — são extremamente significati-
vos na continuidade do texto, pois indicam o curso ou a sequên-
cia que deve ser dada aos sentidos do texto.
Em geral, textos em que constem diferentes marcadores são
mais facilmente interpretáveis; ou seja, oferecem menos dificul-
dades para se estabelecer a necessária articulação, que, por sua
vez, facilita a percepção da sua unidade semântica global.
Não basta, evidentemente, analisar frases soltas com a simples
finalidade de reconhecer o tipo de conectivo em uso: se coorde-
nado, se subordinado, se desse ou daquele tipo. Essa identificação
deve ser feita na atenção aos sentidos entre os segmentos e sob
a perspectiva global do texto em análise. Por exemplo, é muito

58 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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provável que, em um texto do tipo narrativo, predomine o uso


de conectivos que expressem um sentido de sequência temporal;
como é mais provável que, em um texto dissertativo-argumenta-
tivo, predomine o uso de conectivos lógicos.
Trata-se, o tempo todo, de probabilidades. Um texto, como diz
Geraldi, é o lugar da “instabilidade” e aceitar analisá-lo é abrir-
-se para um “horizonte de possibilidades”.
Ainda no domínio da gramática, incluímos, como recurso de
coesão, o uso dos diferentes pronomes, os quais, na superfície do
texto, introduzem as referências a uma ou a outra entidade e opor-
tunamente possibilitam a continuidade dessas referências, isto é,
sinalizam a continuidade de quem ou do que se está falando.
O domínio do uso dos pronomes é também bastante vasto e
complexo. Não dá para esgotar, neste espaço, as especificidades
de seu emprego. Dá, isso sim, para ressaltar sua função textual
de permitir a introdução de referências em um texto ou de reto­
mar, na linearidade de sua sequência, referências anteriores, o
que constitui um dos recursos que — muito frequentemente —
promovem a coesão e a coerência necessárias ao texto.
Os pronomes assumem, assim, uma função textual muito ex-
pressiva, responsável por deixar claro, para o ouvinte ou leitor,
de quem ou de que se está falando ou se continua a falar.
Muito da falta de clareza dos textos — até mesmo na con-
versação corriqueira — reside no mau emprego das expressões
pronominais, uma vez que a identificação das ‘coisas ou pessoas’
para as quais essas expressões remetem depende muito mais de
partes anteriores do texto onde ocorreram do que de suas pro-
priedades sintáticas ou semânticas.
Quantas vezes a gente participa de conversas em que nosso
interlocutor se refere a ‘Inês’ e a ‘Mariana’, por exemplo, e, na
continuação da conversa, aparece um ‘ela’ (perturbador!), pois a
gente não sabe se se trata de Inês ou de Mariana?
Estou recorrendo a essa situação no intuito de mostrar que as
lições gramaticais da escola ou se perderam no tempo ou não inci-
diram sobre a prática de nossos usos de linguagem bem corriquei-
ros. Estacionamos, sem dúvida, na metalinguagem descritiva dos

Em que consiste a coesão do texto? 59


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tipos de pronome e de seus respectivos nomes e não tivemos acesso


às significativas funções dos pronomes no que concerne à coesão e
à coerência do texto. Faltou, pois, aprender a lição principal.
O estudo dos pronomes tem, assim, relevância prática aplica-
da a seus usos, se os considerarmos nessa perspectiva das cadeias
coesivas, ou seja, da continuidade que eles podem promover na
sequência de um texto coeso e coerente.
Vejamos três exemplos.

EXEMPLO 1

Canto
Na minha janela
Pousou rapidinho
Um passarinho.
Da sua passagem
Caiu uma pena.
Escrevi com ela
Este poema.
Elza Beatriz, Caderno de segredos. São Paulo: FTD, 1989, p. 53.

EXEMPLO 2

Os poemas são pássaros que chegam


Não se sabe de onde e pousam
No livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
Como de um alçapão.
Mário Quintana, Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Agui-
lar, 2005, p. 469.

EXEMPLO 3

Bilhete
Se tu me amas, ama-me baixinho
Não o grites de cima dos telhados

60 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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Deixa em paz os passarinhos


Deixa em paz a mim!
Se me queres,
enfim,
tem que ser bem devagarinho, amada,
que a vida é breve, e o amor mais breve ainda...
Mário Quintana, Esconderijos do tempo. Porto Alegre: L&PM, 1980.

Para a compreensão desses trechos, do ponto de vista da re-


ferenciação (ou seja, das coisas ou das pessoas de que se fala),
temos que voltar a fragmentos anteriores do texto ou apelar para
dados do contexto em que atuamos, a fim de poder identificar as
entidades referidas pelos pronomes e assim estabelecer a coesão
e a coerência do que é dito.
A inabilidade no uso dos pronomes é responsável por muita
ambiguidade e por muita falta de clareza dos textos que ouvimos
e lemos. É muito pouco útil saber apenas que aquelas palavri-
nhas são pronomes pessoais, retos ou oblíquos.
O fundamental é identificar as referências que eles retomam
na continuidade do texto.
No exemplo 1, há um nexo entre as unidades ‘um passarinho’
e ‘sua passagem’ (passagem do passarinho), e também entre ‘Caiu
uma pena’ e ‘Escrevi com ela’.
O exemplo 2 é mais complexo, pois é possível identificar aí
uma ambiguidade: quem ‘alça voo’? Os pássaros ou os poemas?
Apelando para uma interpretação metafórica, pode-se dizer que
pode ser qualquer um dos dois, pois se trata de um poema, um
gênero onde o jogo dos sentidos é mais condizente com suas fun-
ções estéticas.
O exemplo 3 tem a revelar que o pronome, eventualmente,
pode retomar não um sintagma nominal — como em ‘uma pena’
— mas uma predicação inteira, como em:

Se tu me amas, ama-me baixinho


Não o grites de cima dos telhados.

Em que consiste a coesão do texto? 61


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Ou seja, “não grites que me amas de cima dos telhados”. Esse


uso é menos corriqueiro, suponho, mas ocorre frequentemente
em textos menos informais.
Em suma, o estudo dos conectivos e dos pronomes somente
será significativo se for abordado sob a perspectiva mais ampla
da textualidade, seja na oralidade, seja na escrita.
Em geral, a teoria sobre a coesão também inclui como recur-
so coesivo a elipse, o que requer mais habilidade do ouvinte ou do
leitor para perceber um sinal cujo sentido se manifesta pela sua
ausência, como se pode ver no exemplo 3:

Se tu me amas, ama-me baixinho


Não o grites de cima dos telhados

A marca da flexão verbal de pessoa (Não o grites) legitima o


apagamento do pronome ‘tu’, que ocorreu no primeiro verso. A
continuidade referencial, porém, foi garantida.
Acho interessante essa inclusão da elipse entre os recursos
coesivos, pois ela sempre confere um status mais textualmente
significativo e mais próximo da dimensão cognitiva e funcional
das categorias gramaticais.
Em geral, nos compêndios de gramática, a elipse é trata-
da apenas como categoria sintática, restrita ao âmbito da frase.
Nessa perspectiva tão limitada, ela é mais frequentemente vista
quando se percebe o apagamento do sujeito ou do complemento
do verbo. Nada mais. Nenhuma referência costuma aparecer à
função da elipse na esfera do texto.
No entanto, ela faz parte das estratégias de reiteração, de re-
tomada, de repetição, no sentido mais amplo. Embora seja perce-
bida pela ‘falta’ de um termo na superfície do texto, esse termo é
inteiramente recuperável pela continuidade requerida pelo texto
e pelas marcas morfossintáticas presentes.
Com razão os autores propuseram a inclusão da elipse como
um dos recursos que concorrem para a continuidade sintático-se-
mântica do texto. Mesmo sendo esse recurso percebido pela falta
de algum segmento na superfície do texto.

***

62 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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Voltemos ao ponto dos recursos de que dispomos para deixar


o texto coeso; agora, saindo do campo gramatical e nos restringin-
do ao âmbito lexical1.
Em geral, o vocabulário de um texto é visto apenas como
meio de expressão dos sentidos pretendidos. Acontece que o voca-
bulário usado em um texto desempenha também, além da função
semântica, um papel de promover e marcar a coesão do texto, pelo
viés, sobretudo, da sua continuidade temática.
Um texto se desenvolve em torno de determinado assunto,
tópico ou tema, que, por sua vez, se desdobra em subtemas ou
subtópicos. Acontece que essa concentração temática do texto —
condição de sua coerência — é expressa, sinalizada também pe-
las palavras que constam na sua superfície.
Então, tem todo o sentido admitir que haja, em qualquer texto
mais extenso, palavras que se repitam, ou que voltem a ocorrer,
sobretudo aquelas que mais proximamente se ligam à temática
global desenvolvida no texto.
Em um texto sobre ‘democracia’, por exemplo, é muitíssimo
provável que essa palavra volte a ocorrer mais de uma vez, assim
como outras dela derivadas, como ‘democraticamente’, ‘democra-
tizar’ etc.
Nessa perspectiva, a repetição de palavras deixa de ser um
‘hábito vicioso’, a ser evitado, sobretudo na escrita, e passa a ser
reconhecida como um dos recursos pertinentes à coesão do texto.
Evidentemente, essa opção por repetir palavras está também
sujeita às ‘normas’ de um discurso funcional e adequado a seu
contexto de uso. Quer dizer, a repetição deve responder a algum
propósito comunicativo, como repetir para ‘marcar a manutenção
do tema’, para ‘ressaltar ou enfatizar um conceito’, para ‘estabele-
cer um contraste’ etc. Não é, portanto, repetir por repetir. Mas re-

1
Sugiro a leitura de Lutar com palavras – coesão e coerência (Antunes, 2003), onde são
dadas fartas explicações a respeito dos recursos gramaticais e lexicais que promovem a
coesão do texto. Além das explicações – em linguagem bem acessível – podem ser vistos
muitos exemplos da aplicação desses recursos, em textos reais, de diferentes gêneros. O
foco de Lutar com palavras é especificamente a coesão e a coerência. O objetivo deste pre-
sente livro pretende cobrir mais que essas duas propriedades textuais.

Em que consiste a coesão do texto? 63


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petir por alguma conveniência ditada pela continuidade temática


do texto ou por alguma demanda do evento comunicativo.
Outro recurso que funciona no âmbito lexical como elemento
criador e sinalizador de nexos coesivos é, na sequência do texto,
o uso de uma palavra sinônima em lugar de outra (como em ‘o
menino’ — ‘o garoto’), ou por seu hiperônimo (como em ‘o gato’ —
‘o animal’) ou, ainda, por uma descrição definida relevante para
certo contexto (como em ‘a escola’ — ‘a instituição de ensino’).
Esses usos (substituições, para alguns autores) caracterizam
verdadeiras retomadas, reafirmações ou reiterações de referên-
cias anteriores.
De qualquer forma, fica explicada, embora muito sumaria-
mente, a intervenção do léxico na criação e na sinalização da
coesão do texto. Até mesmo em recentes livros didáticos de por-
tuguês, as unidades da gramática, concretamente os conectivos,
parecem ser os únicos itens que criam e sinalizam a necessária
continuidade entre orações, períodos e parágrafos do texto.
Além da repetição de uma palavra e de sua substituição
por outra mais ou menos equivalente, existe no campo lexical
recurso bastante produtivo e relevante para a coesão do texto.
Trata-se da associação semântica entre as palavras; aquilo que
também é conhecido como o recurso da ‘contiguidade semânti-
ca’ entre as palavras.
Assim, por exemplo, alguém que escreve um texto cuja temá-
tica é ‘O meio ambiente’, sem dúvida, vai promover a sua coesão,
entre outros recursos, pela escolha de palavras que guardam al­
gum tipo de relação semântica com esse tema.
É muito provável então que, nesse texto, ocorram palavras
como ‘natureza’, ‘saúde’, ‘planeta’, ‘clima’, ‘ameaça’, ‘cuidados’,
‘desenvolvimento tecnológico’, ‘progresso econômico’, ‘qualidade
de vida’, ‘sustentabilidade’ e outras semanticamente afins. Esse
recurso corrobora a admissão de que nossas atividades de lin-
guagem articulam conhecimentos linguísticos e conhecimentos
de mundo, o que ressalta, sem dúvida, a natureza cognitiva das
ações de linguagem.

64 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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É muito provável também que palavras-chave ligadas ao nú-


cleo do tema ocorram repetidas mais de uma vez, como ‘ambien-
te’, ‘saúde’, ‘planeta’, ‘clima’, ‘qualidade de vida’ etc.
Dessa forma, tanto as palavras que se repetem em um tex-
to, como aquelas associadas semanticamente a outras constituem
procedimentos que promovem e sinalizam a continuidade se-
mântica (ou temática) de um texto. Contribuem, portanto, para
sua coesão e sua coerência. Voltaremos a esse tópico.
Nesse sentido, a coesão de um texto não é resultado apenas de
itens da gramática (como simplistamente muitos pensam!). Itens
do léxico (ou do vocabulário presente no texto) também concor-
rem significantemente para esse fim.
Ou seja, para a coesão de um texto, é preciso que as relações de
sentido se continuem, sejam reiteradas e concorram para integrar
em uma unidade global reconhecível as ideias ou as informações
expressas. Nesse sentido, as palavras do léxico desempenham um
papel fundamental para a interpretabilidade do texto.
Em que blocos de articulação, então, podemos situar esses di-
ferentes recursos, gramaticais e lexicais, da coesão do texto?
Lembremos três desses blocos de articulação:

(A) Reiteração ocorre cada vez que se volta a referir um determinado


item; cada vez que se volta a falar do mesmo; seja
por meio da repetição literal de palavras; ou pela reto-
mada pronominal, ou elíptica, ou ainda pela retomada
lexical de segmentos anteriores do texto; os recursos
da paráfrase e do paralelismo também se incluem no
domínio da reiteração;

(B) Associação ocorre pela associação semântica entre as palavras


presentes no texto (palavras de significados afins);
pela associação, não se volta a falar do mesmo, mas se
fala de coisas relacionadas a esse ‘mesmo’;

ocorre pelo uso de conectivos (preposições, conjunções,


(C) Conexão advérbios e respectivas locuções), que estabelecem ne-
xos entre diferentes segmentos do texto.

Em que consiste a coesão do texto? 65


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Explicando com mais detalhes: pela reiteração, como o pró-


prio nome indica, se reafirma, se retoma algo já expresso ante-
riormente. Em linhas gerais, tudo o que é retomado, que volta a
ser referido ou, de alguma maneira, volta a ser dito se encaixa
nesse bloco da reiteração. A própria repetição de palavras ou o
emprego de uma palavra em substituição a outra constituem re-
cursos para a formação de nexos coesivos por reiteração.
De certa forma, a associação semântica entre as palavras não
deixa de ser uma espécie mais branda de reiteração, uma vez que
as palavras, sendo semanticamente afins, concorrem para uma
aproximação de sentido ou uma relação de proximidade semântica.
Também são coesivos os recursos da paráfrase (que corres-
ponde a dizer o mesmo com outras palavras) e do paralelismo
(que corresponde a dizer o diferente, mas valendo-se das mesmas
estruturas).
A paráfrase costuma ser bastante comum em textos explicati-
vos. O interesse por deixar claras as definições de certos conceitos
ou certas explicações leva ao emprego, quase sempre reiterado,
desse recurso. As expressões ‘isto é’, ‘quer dizer’, ‘ou seja’, fun-
cionam como índices de que o segmento seguinte corresponde a
uma paráfrase.
Por outro lado, também é coesivo o recurso do paralelismo,
que consiste em dizer pares de coisas diferentes, mas sob uma
mesma estrutura morfossintática2.
Um exemplo de paralelismo pode ser visto nesse anúncio do
Citibank:

Eu não sabia que o Citibank tinha financiamento de imóveis. Eu não


sabia que nem precisava ser cliente. Eu não sabia que o piano da mi-
nha filha pesava tanto.

É evidente o efeito reiterativo (e, portanto, coesivo) do parale-


lismo sintático com que cada segmento do texto começa (é certo
que esse efeito foi reforçado pela repetição das palavras); mas,

2
Em Lutar com palavras (pp. 62-85), desenvolvi essa questão da paráfrase e do paralelis-
mo, com explicações e fartos exemplos.

66 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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nem por isso, é menos significativo. Vem daí o valor altamente


expressivo desse anúncio.
Já pela associação semântica entre as palavras, a continui-
dade se vai operando exatamente por essa afinidade ou essa
aproximação de sentido (‘democracia’, ‘governo’, ‘povo’, ‘liber-
dade’ etc.). Para essa associação, nos valemos não apenas dos co-
nhecimentos linguísticos. Recorremos também, e sobretudo, aos
chamados ‘conhecimentos enciclopédicos’ (ou, mais claramente
falando: recorremos aos nossos conhecimentos de mundo).
Com base nesse tipo de conhecimentos, ampliamos nossas pos-
sibilidades de associar os sentidos das palavras, inclusivamente
pela proximidade com que partilham o mesmo espaço (físico ou
cultural) ou por relações provocadas pelo uso de metáforas, me-
tonímias, hiponímias.
Por exemplo, como justificar a associação que podemos fazer
entre ‘cinema’ e ‘pipoca’, senão pelas práticas atuais de ‘tra-
zer a pipoca para o mesmo espaço do filme’? Como esse caso,
muito outros poderiam ser citados. Basta a gente ficar atento
para descobrir!
Vale dizer que o recurso da associação semântica é tido como
o recurso coesivo mais generalizado, mais provável de ocorrer
em todo texto um pouco mais longo. A própria unidade semân-
tica requerida pela coesão e pela coerência exige essa afinidade
semântica entre as palavras. Em suma, queremos ressaltar que
esse tipo de recurso é comuníssimo a qualquer texto, por conta
mesmo da exigência de sua unidade semântico-pragmática.
Um nexo e outro e mais outro, por exemplo, sejam de que re-
curso for, formam uma cadeia de nexos, ou uma cadeia coesiva.
Comumente, os textos mais ou menos extensos apresentam tais
cadeias de nexos, uma vez que os períodos ou os parágrafos estão
articulados, conectados por todos esses recursos, promovendo,
assim, sua necessária continuidade de sentido.
É evidente a necessidade de um equilíbrio entre o ‘já sabido’
e o ‘novo’, entre o mesmo e o diferente — possibilitados, respecti-

Em que consiste a coesão do texto? 67


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vamente, pela centração temática e pela progressão temática. A


continuidade que caracteriza a coesão não leva a que, em todo o
texto, se diga sempre o mesmo. Ao lado da centração temática há
a exigência da progressão temática. O equilíbrio que está em jogo
aqui significa que, em um texto tematicamente centrado, se fala
do mesmo, mas para dizer dele coisas diferentes.
Pela conexão se promove a articulação mais propriamen-
te gramatical, pois os itens que constituem os nexos são a clas-
se dos conectivos (preposições, conjunções, alguns advérbios e
respectivas locuções). São definidos como ‘articuladores’, como
‘marcadores’, como ‘sequenciadores’, pelo fato, isso mesmo, de
estabelecerem e marcarem a articulação, a conexão, a sequência
entre diferentes segmentos (que podem ser orações, períodos, pa-
rágrafos ou blocos supraparagráficos).
Conjugado a esse poder articulador, tais recursos de conexão
têm um peso semântico; isto é, expressam relações de sentido
muito significativas para a compreensão lógica e argumentativa
de partes do texto.
Em suma, pela reiteração, pela associação ou pela conexão
tudo no texto está em grande interdependência de sentidos e de
intenções. A atividade de linguagem é o exercício dessa produção
e dessa interpretação dos sentidos e das intenções pretendidos.
Fora disso, não existe linguagem.
Vale chamar a atenção para o fato de que existem sequências
de enunciados que já são prototípicas de certas situações e, por
isso, já são normalmente esperadas. A seguir a uma pergunta,
uma saudação, se espera uma resposta; a seguir a uma sugestão,
se espera uma declaração de aceitação ou de recusa.
Ou seja, é no seio da atividade comunicativa que se vai pro-
videnciando o tipo de sequência que dará ao texto a esperada
unidade (ou seu sentido global). Dessa forma, a competência lin-
guística não é tudo. Tampouco a competência gramatical. São
necessárias, mas não são suficientes. Há todo um aparato cogni-
tivo-pragmático, que, na verdade, comanda as escolhas do que
dizer e do como dizer.

68 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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2. Em sala de aula

Pela exposição que acabamos de fazer, já dá para avaliarmos


o quanto temos que explorar com os alunos as funções textuais
de ‘palavras repetidas’, de ‘palavras semanticamente afins’, de
‘palavras sinônimas ou heteronímicas’, de ‘pronomes’, de ‘elip-
ses’, de ‘conectivos’, na perspectiva de como todos esses itens con-
tribuem para criar e para sinalizar a coesão de um texto — uma
das condições de sua textualidade.
Essa perspectiva é notadamente relevante porque leva o foco
da aprendizagem para os usos da língua (o que supõe o texto),
afastando, naturalmente, aquela prática bem simplista e ainda
comum nas escolas (e respaldada pelos livros didáticos) de ape-
nas descrever cada classe de palavras, com seus esquemas de di-
visões e subdivisões e seus respectivos nomes, sem ressaltar as
funções que as diferentes categorias gramaticais têm no processo
de expressão dos sentidos do texto.
Essa perspectiva da textualidade é relevante, ainda, porque
neutraliza aquele hábito tradicional, quase obsessivo, de ver as
coisas da língua sempre sob o ponto de vista de sua correção gra­
matical: ‘assim, errado’; ‘daquele jeito, certo’. Parece que só te-
mos ‘olhos’ para distinguir o certo e o errado, e só temos sempre
esta opção: escolher o certo, independentemente de onde estamos,
com quem e fazendo o quê.
Em geral, as análises de livros didáticos têm revelado que o
foco das descrições, quanto ao uso dos pronomes, tem mais a ver
com aspectos da estrita correção gramatical, como, por exemplo:
o uso de ‘para mim ler’, em vez de ‘para eu ler’ (emprego das for-
mas átonas ou tônicas); o uso de ‘eu conheço ela’, em vez de ‘eu a
conheço’ (emprego dos pronomes retos ou oblíquos na posição de
complemento verbal); ou uso de ‘Você sabe como eu te amo’, em
vez de ‘Tu sabes como te amo’ (sincronia quanto à flexão de ‘pes-
soa’). Sempre, como disse, o foco são questões de correção grama-
tical. Fica sem consideração a grande função dos pronomes na

Em que consiste a coesão do texto? 69


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clareza de por onde vai a continuidade do texto, sobretudo aquela


que envolve o campo das referências feitas.
A restrição que se tem feito, aqui e em outras oportunidades,
à exploração de ‘frases soltas’ se deve exatamente a esse imperati-
vo de que um texto deve estar coeso, pois, em frases justapostas ou
desconectadas, falta o efeito das ‘ligações’ que caracterizam essa
propriedade da textualidade. Aprender a escrever em atividades
de ‘formar frases’ é desaprender os usos normais da linguagem.
Além disso, a prática de, às vezes, isolar os elementos da fra-
se ou de um texto para analisá-las separadamente contraria em
cheio o princípio da ‘associação semântica’ entre as palavras.
Esse princípio, como vimos quando falamos dos recursos coesi-
vos, se baseia no próprio processo de como conhecemos as coisas
da experiência: conhecemos todas elas em blocos, esquemas, con­
juntos, associando-as, aproximando-as. Isolá-las, distanciá-las
contraria a forma de como procedemos naturalmente em nossa
relação com as coisas do mundo.
É preciso criar o hábito de levar os alunos a procurar na su-
perfície do texto as marcas (ou os marcadores) da continuida-
de de sentidos, a qual caracteriza um texto bem formado. Essas
marcas são isto mesmo: verdadeiras pistas que orientam por
onde vão os sentidos e por onde se pode reconhecer as intenções
do que é dito.
Entre essas marcas, são relevantes as unidades lexicais pre-
sentes no texto e a continuidade que elas promovem. Podem ser
vistas repetições, retomadas por sinônimos (‘uma igreja’ — ‘o
templo’) ou por hiperônimos (‘uma tartaruga’- ‘o bicho’), ou pala-
vras que guardam entre si afinidade semântica (‘água’ — ‘vinho’)
ou pragmática (‘chuva’ — engarrafamento’).
O mesmo se pode afirmar dos vários tipos dos chamados co­
nectivos. Não basta reconhecê-los como ‘conjunção’ ou ‘preposição’,
como conectivos coordenativos ou subordinativos em seus subti-
pos específicos. É preciso fixar-se nas relações de sentido que tais
conectivos criam e sinalizam. É preciso entender por que estão na-
quele ponto do texto, a que pretensão do autor parecem responder.

70 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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Tradicionalmente, as atividades relacionadas a esse recurso


da conexão se esgotavam no simples reconhecimento do tipo de
conjunção em uso, estendendo-se daí para, em outras oportuni-
dades, classificar as orações encabeçadas por esses conectivos.
Tudo acabava aí. Sem explicitar que efeitos de sentido foram pro­
vocados por esses articuladores.
É preciso olhar para o texto, ler o texto, entender o texto. É
preciso mobilizar todo tipo de conhecimento para que a compre-
ensão do que foi dito se aproxime o mais possível do que foi pre-
tendido pelo autor. A atividade de tentar “dizer de outro modo o
que foi dito”, ou de dizer o mesmo em outros contextos, pode fa-
vorecer a apreensão mais exata do que foi dito ou os ‘jeitos mais
adequados de dizer o que se quer dizer’, num jogo de sentidos
essencial a toda ação de linguagem.
Tem sentido reiterar, então, que não basta esmerar-se para
que o texto esteja corretamente falado ou escrito. Se tudo estiver
certinho, do ponto de vista gramatical, mas faltarem as marcas
da coesão, ou seja, não estiverem indicados os laços que façam
sentido na perspectiva global do texto, a compreensão ficará de-
ficitária ou, pelo menos, dificultada. Um texto sem as marcas da
coesão na sua superfície normalmente, repito, dificulta a sua in-
terpretação e o entendimento da sua coerência.
Em sala de aula, sobretudo, é preciso instituir a prática de
analisar textos3, orais e escritos, de todos os gêneros e com dife-
rentes níveis de complexidade, tendo em consideração, é claro, a
faixa etária dos alunos e seu nível de escolarização.
Que essas análises atinjam o plano semântico global do texto,
para que seja habitual o cuidado de reconhecer:
(1) o tema principal do texto;
(2) seu objetivo central;
(3) o núcleo pretendido para as ideias desenvolvidas;
(4) os interlocutores esperados;
(5) o gênero;

3
Para esse tema, cf. minha obra Análise de textos: fundamentos e práticas. São Paulo:
Parábola Editorial, 2010.

Em que consiste a coesão do texto? 71


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(6) além dos recursos escolhidos para deixar o texto mais facil-
mente interpretável — o que implica deixá-lo também mais
próximo da coerência pelos nexos coesivos de que dispõe.
Em suma, na sala de aula, o interesse maior deve ser a des-
coberta do quanto somos ‘seres de linguagem’, e, por isso, somos
capazes de criar e viver diferentes mundos.

***
Em relação aos livros didáticos, temos que reconhecer a
sensível evolução na qualidade de suas bases teóricas e de suas
propostas pedagógicas. Apesar de nem sempre as perspectivas
textuais terem inspirado suas descrições, normas e atividades,
muita melhoria pode ser constatada.
No entanto, concordo com a observação de Geraldi (1991): se
o livro didático facilitou o trabalho do professor, por outro lado,
diminuiu sua responsabilidade quanto aos conteúdos a serem ob-
jetos do ensino e, naturalmente, quanto à seleção de atividades
a que recorrer. Segundo Geraldi, uma das consequências dessa
‘dispensa’ do professor de, ele próprio, ‘dirigir e organizar’ seu
trabalho foi o descaso com a elevação de suas exigências de for-
mação pedagógica e o consequente aumento de seu desprestígio
profissional e social. Por esse viés, fica evidente que as coisas se
entrelaçam, se interdependem: melhorias trazem melhorias; re-
trocessos desencadeiam retrocessos. Usemos da criatividade para
romper com essa conexão.

72 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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seis
EM QUE CONSISTE
A COERÊNCIA DE UM TEXTO?

1. Fundamentos

S
e a coesão pode ser percebida como uma ‘conexão sequen­
cial’ — manifestada na linha superficial do texto, pois seus
recursos ali aparecem e podem ser vistos — a coerência, an-
tes, se manifesta no nível dos sentidos e, por isso, constitui uma
‘conexão conceitual’, quer dizer, uma ‘continuidade de sentidos’. O
principal da linguagem para quem fala ou escreve é: expressar
sentidos; para quem ouve ou lê: buscar, encontrar esses sentidos.
Tudo, na linguagem, gira em torno da significação.
E onde está este ‘sentido’? Nas palavras do texto, apenas? Nos
saberes armazenados pelo interlocutor, apenas? Nos dois pontos:
no texto e nos interlocutores? Sim: o sentido do texto é uma cons-
trução que tem como origem os dois pontos: texto e interlocuto­
res. Ambos exercendo um papel extremamente ativo, cooperador.
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­A ssim, juntas, coesão e coerência, constituem o núcleo do que


seja um texto interpretável e capaz de funcionar como ação de
linguagem.
Vale voltar um pouco a esse tópico de ‘onde’ estão os senti-
dos que fazem a coerência do texto ou a sua ‘conexão conceitual’.
Vamos lá.
Os sentidos que constituem essa ‘conexão conceitual’ deri-
vam, por um lado, dos significados das palavras presentes no
texto; por outro, derivam dos saberes que temos guardados em
nossa memória e que são ativados, oportunamente, conforme as
pendências de cada contexto. Esses saberes correspondem ao que
chamamos de ‘nosso conhecimento de mundo’ ou de ‘nosso conhe-
cimento enciclopédico’, ou ainda de ‘nosso repertório cultural’.
De fato, o conhecimento que temos de como os acontecimentos
acontecem, que elementos incluem ou pressupõem, que sequên-
cias ou que rotinas implicam, constitui uma fonte indispensável
para o êxito na compreensão das ações de linguagem. É a dimen-
são cognitiva da linguagem, que, felizmente, tem recebido mais
atenção de linguistas e gramáticos.
Nesse sentido é que se diz que os conhecimentos linguísticos
são insuficientes para a atividade de entender um texto oral ou
escrito (menos ainda, é claro, são insuficientes os conhecimentos
gramaticais, sobretudo sua nomenclatura). A toda hora, nós pres-
supomos esse ‘conhecimento de mundo’, nós o mobilizamos, no em-
penho cooperativo por ‘entender’ o que o outro disse ou escreveu.
De outra forma, como entender que grupo de políticos brasi-
leiros está sendo referido quando alguém fala “na bancada da bí-
blia, do boi e da bala”? Ou “nos tucanos da mais alta plumagem”?
Como entender, ainda, a associação que podemos estabelecer en-
tre ‘cinema’ e ‘pipoca’? Ou como entender o comentário de que
“neste domingo a rede não balançou para o Flamengo”?
Por isso, para recuperar a coerência de um texto, ativamos os
sentidos não apenas das palavras presentes ao texto. Na verdade,
ativamos “os modelos globais”, os “esquemas” mais ou menos ro-
tineiros que construímos na e para a experiência sociocultural

74 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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do dia a dia e os guardamos na memória. Com base nesses mode-


los é que interpretamos as informações novas, projetamos expec-
tativas e ainda supomos sequências ou finais para os fatos ou as
situações com que nos deparamos.
A coerência não depende apenas da materialidade do texto.
Como vimos, ela é construída na relação colaborativa entre inter-
locutores, a partir de um contexto, de uma situação comunicativa
qualquer e aliada ao conjunto de saberes já sedimentados na me-
mória. O contexto em que acontece o evento sociocomunicativo
é parte constitutiva dessa coerência; é, portanto, muito mais que
um item acessório ao qual eventualmente se recorra.
Logo, a coerência do texto — repito — não resulta apenas das
palavras presentes à superfície do texto. Resulta das palavras, é
verdade (de seus sentidos de base, de seus sentidos figurados, de
seus pressupostos), mas também dos saberes prévios do interlo-
cutor e das inferências autorizadas por esses saberes e relevantes
em cada contexto.
Imaginemos o seguinte diálogo:

— Amanhã tem início a temporada das férias escolares!


E alguém completa:
— Que bom! O trânsito vai melhorar!

O nexo que dará consistência a esse diálogo e que torna pos-


sível a sua interpretação não está no sentido das palavras que fo-
ram escolhidas. Como relacionar ‘férias escolares’ e ‘melhoria do
trânsito’? O que uma coisa tem a ver com a outra? O nexo entre
uma coisa e outra é possível graças ao conhecimento prévio que
temos de como as coisas acontecem nas situações urbanas do dia
a dia: a movimentação das pessoas em direção às escolas provo-
ca engarrafamento no trânsito de veículos. Tanto é verdade que,
fora de um contexto urbano, a intervenção do segundo interlocu-
tor, com certeza, não ocorreria.

Em que consiste a coerência de um texto? 75


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Vale a pena ter consciência de que a interpretação dos senti-


dos do que dizemos é fruto, também e muito, dos conhecimentos
que já temos acerca das coisas de que falam os textos.
Em sala de aula, nossas explicações acerca da língua são de-
masiado linguísticas; e pior, são demasiado gramaticais. Na ver-
dade, os sentidos do que dizemos, oralmente ou por escrito, estão
além daquilo que a materialidade das palavras expressa. O texto,
na visão da linguística de texto, constitui um evento comunica-
tivo no qual co-ocorrem ações linguísticas, cognitivas e sociais.
Portanto, o linguístico é necessário, mas não é suficiente.
Analisemos, ainda, o sentido de uma placa em que consta a
informação:

O sentido pretendido é apenas o literal? Ou seja, a proprie-


dade tem um dono específico? Ou o que se quer dizer vai além?
O que se pretende mesmo é dar uma informação ou bancar uma
proibição? Somente com o conhecimento de certos dados próprios
desse contexto, de acordo com as normas socioculturais vigentes,
é que se pode encontrar toda a coerência para o sentido de um
texto como esse.
O gênero do texto já funciona como um limite para as pos-
síveis composições e, por outro lado, para as possíveis interpre-
tações. Por exemplo, a própria forma de uma carta já direciona
nossa perspectiva de leitura. De antemão, sabemos o que possi-
velmente está contido lá e, por outro lado, o que, normalmente,
estará excluído.
Essa é uma razão a mais que fortalece a proposta de fazer das
questões textuais o eixo do estudo da língua. É que não basta sa-
ber ler, no sentido de relacionar sinais gráficos e sons verbais. A
convivência com diferentes textos, de diferentes gêneros, desen-

76 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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volve em nós essa competência para ler diferentemente; ou seja,


para ler de maneira singular cada gênero. Assim, não se lê do
mesmo jeito um poema e uma notícia; uma carta e uma resenha
de livro ou de filme; um comentário opinativo e uma exposição
de cunho científico.
A esse propósito, vale indagar: a escola tem tido o cuidado de
levar o aluno a ler ‘diferentemente’, conforme a especificidade tex­
tual-pragmática de cada gênero de texto?
Além do gênero e de possíveis marcas que sinalizam por onde
vão os sentidos (como repetições, pronomes, conectivos etc.), o tí­
tulo do texto também é bastante significativo para se avançar em
expectativas das possíveis interpretações pretendidas.
Neste texto, pelas referências a ‘marcas’, ‘sinais’, ‘indícios’ de
articulação, já se pode concluir a favor da interdependência entre
a coesão e a coerência do texto. São tipos específicos de conexão:
uma conexão perceptível, no plano sintático da superfície do tex-
to — pode-se até ‘contar’ quanto nexos ocorreram — e uma cone-
xão conceitual, no plano semântico do texto. Não que sintaxe e
semântica constituam planos totalmente autônomos. São insepa-
ráveis; mas são diferentes. Costuma-se admitir que a coesão está
mais para a sintaxe e a coerência, mais para a semântica. Ambas,
porém, resultam na formulação e na declaração de sentidos.
Charolles também desenvolveu estudos sobre a coerência tex-
tual, propôs o que ele chamou de ‘regras da coerência’, uma espé-
cie de condições para que um texto possa ser reconhecido como
coerente.
Segundo Charolles (1988):
(a) para que um texto seja coerente, é necessário existir uma
espécie de ‘retomada’, de ‘reiteração’ de elementos ligados à
unidade semântica global do texto; quer dizer, é necessário
existir uma continuidade de referências e de sentidos, ou uma
reocorrência de itens já expressos. Charolles chamou a essa
regra de ‘regra da repetição’, a fim de significar, exatamente,
que uma das condições da coerência é que alguma coisa no
texto tem que continuar, tem que se manter, tem que ser repe­

Em que consiste a coerência de um texto? 77


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tida ou reiterada. Em um texto coerente, existe um ‘mesmo’


que perpassa todo o seu fio.
(b) Para que um texto seja coerente, é necessário que, por outro
lado, algo de novo seja dito; isto é, que haja progressão no de-
senvolvimento do tema, do tópico, da cena, do objeto e dos
objetivos do dizer. Aquele ‘mesmo’ assegurado pela primeira
regra deve-se completar com a presença de elementos novos,
fazendo o texto progredir no desenvolvimento de seu núcleo.
Se em um texto algo se mantém ou a gente fala do mesmo,
não significa que ‘desse mesmo’ seja dita, em todo o texto,
a mesma coisa; espera-se uma progressão temática, que in-
tervirá na relevância informativa do texto. Lembremos que,
normalmente, ninguém fala para dizer o óbvio. Todo texto é
orientado para um fim, para um desfecho, para um remate,
preparado exatamente pelos dados expressos nessa orienta-
ção. Todos temos, em relação a esse fim, uma expectativa e,
por isso, nos perguntamos: “Aonde isso vai dar”?
(c) Para que um texto seja coerente, é necessário que em seu per-
curso não se encontre nenhum elemento semântico em con­
tradição com algum conteúdo posto ou pressuposto em partes
anteriores do texto.
(d) Para que um texto seja coerente, é necessário que os fatos,
os objetos que ele expressa estejam associados ou inter-re-
lacionados no mundo das coisas representadas. Essa regra é
fundamentalmente contextual (ou pragmática): ela estabe-
lece que os tópicos ativados em um texto sejam percebidos
como relacionados, componentes que são dos mesmos espaços
naturais ou culturais de nossa experiência. Basta lembrar os
nomes que expressam relações de parte/todo; de continente/
conteúdo; de causa/efeito, e de tantas outras formas de ligação
entre as coisas do mundo. O que se pretende com essa regra
é exatamente pontuar que, em um texto, não se fala de coisas
‘que não têm nada a ver umas com as outras’. Naturalmente,
o reconhecimento das relações estabelecidas entre as coisas
está em harmonia com as qualidades que lhes são atribuídas

78 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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no mundo interpretado. Algumas dessas relações, no discur-


so ordinário, vêm manifestadas pelos diferentes tipos de co-
nectores, como as relações de causalidade, por exemplo.
Em geral, essas regras são intuitivamente percebidas, já na
infância, desde as primeiras experiências com a linguagem fala-
da. Isso até nos alivia um pouco e nos prepara para as possíveis
explicitações que podemos fazer mais adiante. A verdade é que
não costumamos ‘dizer coisas sem sentido’, coisas contraditórias,
contrassensos, ou coisas aleatórias, sem ligação, de qualquer es-
pécie, umas com as outras.
Pelo exposto, podemos facilmente reconhecer que não faz
parte de nossas experiências habituais ‘produzir textos incoeren-
tes’; o que não quer dizer que não seja relevante tomar conheci-
mento explícito das exigências e condições da coerência textual.
É relevante, sim! E cabe à escola, no trato com os textos, promo-
ver essa explicitude.
A professora que solicita dos alunos que encontrem em revis-
tas ou jornais palavras que se escrevem com ss, com ç, com sc e
que escrevam uma historinha com essas palavras desconhece as
regras da coerência (sobretudo a regra da relevância) e fere sen-
sivelmente a rotina normal de nosso uso da linguagem. Ninguém
seleciona as palavras de um texto que vamos proferir a partir
de suas condições ortográficas. Todos selecionamos as palavras
conforme seus sentidos e segundo elas possam expressar o que
queremos e podemos dizer.
A função da escola é exatamente esta: explicitar e ampliar as
habilidades comunicativas que, mesmo intuitivamente, já conse-
guimos desenvolver.

2. Em sala de aula

Todos esses fundamentos teóricos podem inspirar e conduzir


o trabalho em sala de aula. Sobretudo, se o foco desse trabalho é o
texto, em seus múltiplos desdobramentos. Com certeza, as pro-

Em que consiste a coerência de um texto? 79


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priedades da coesão e da coerência são de grande importância,


uma vez que são propriedades essenciais ao entendimento de
como funciona a trama da interação verbal.
A análise habitual, em textos orais e escritos, de como tais
propriedades se manifestam representa a atividade mais produ-
tiva para que os alunos percebam que coisas acontecem — como
acontecem — quando a gente fala ou escreve, ouve ou lê.
Naturalmente, essa perspectiva de análise vai muito além
do que se costuma fazer, pois deixa de privilegiar a correção
gramatical ou a simples identificação da classe a que pertencem
certas palavras.
O que estará em jogo é a compreensão global do texto e a per-
cepção do que foi posto para produzir os efeitos de sentido a que o
texto pretende chegar. Ou seja, o que foi dito; por que foi dito; como
se conseguiu dizer o que foi dito; que pistas dessas estratégias fo-
ram deixadas ou, pelo menos, são pressupostas ou inferíveis.
Na escola, muito frequentemente, as supostas análises de tex-
to — sobretudo dos textos opinativos — se reduzem à prática de
‘comentar’ o tema tratado, corroborando ou refutando suas ideias.
Na verdade, o que acontece é que, a partir da leitura, se constrói
outro texto, uma espécie de grande paráfrase ou de grande expli-
cação de seu conteúdo. Dessa forma, a análise propriamente do
texto não acontece, já que não se procurou constatar que proces-
sos cognitivos e que recursos foram postos em prática para que
entendêssemos o que foi expresso.
Ou seja, os textos funcionam como indícios, como uma prova
(material, inclusive) do que foi dito. As palavras estão lá; explíci-
tas e implícitas; declaradas ou pressupostas; literais ou metafóri-
cas. Nenhuma está muda. É preciso descobrir a razão de estarem
ali, exatamente no ponto em que estão.
É preciso vivenciar o princípio de que a linguagem é dialógica:
em uma ponta da interação certas coisas foram ditas para que, na
outra ponta, alguém as compreendesse e fosse por elas atingido.
Vejamos algum exemplo de como essas análises poderiam
acontecer. Comecemos por um poema em que transparece, com

80 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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alguma evidência, uma sequência narrativa de fatos conflitantes


e a explicação para seu inesperado desfecho.

Enredo para um tema

Ele me amava mas não tinha dote,


Só os cabelos pretíssimos e uma beleza
De príncipe de estórias encantadas.
Não tem importância, falou a meu pai, se é só por
isto, espero.
Foi-se com uma bandeira
E ajuntou ouro para me comprar três vezes.
Na volta me achou casada com D. Cristóvão.
Estimo que sejam felizes, disse.
O melhor do amor é sua memória, disse meu pai.
Demoraste tanto que... disse D. Cristóvão.
Só eu não disse nada,
Nem antes, nem depois.
Adélia Prado. Bagagem. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 103.

O poema apresenta uma espécie de desabafo de uma mu-


lher que fala de como aconteceu sua experiência de noivado
e casamento.
Logo no primeiro verso, declara o motivo maior de seu pro-
blema: Ele me amava mas não tinha dote, o que se agrava pela
razão a seguir: Só os cabelos pretíssimos e uma beleza de príncipe
de estórias encantadas.
E continua a narrativa, que levanta no leitor a expectativa
de uma solução que fosse satisfatória, como, de fato, é sugerido
pela concordância do ‘príncipe’: Não tem importância, falou a meu
pai, se é só por isto, espero, e pela decisão logo tomada com seus
efeitos benéficos conseguidos: Foi-se com uma bandeira e ajuntou
ouro para me comprar três vezes.
Prossegue a narrativa do conflito: Na volta me achou casada
com D. Cristóvão (o que frustra as expectativas positivas do lei-
tor). Estimo que sejam felizes, disse.

Em que consiste a coerência de um texto? 81


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Vem, em seguida, a interferência atenuadora do pai, tentando


compensar o constrangimento da cena pelo qual sabe ser respon-
sável: O melhor do amor é sua memória, disse meu pai.
Também atenuadora é a intervenção do atual ‘companheiro’:
Demoraste tanto que... disse D. Cristóvão.
E vêm os versos principais do poema, onde está o núcleo do
desabafo, ou da queixa da filha, e onde se pode surpreender a
desaprovação de sua própria reação: Só eu não disse nada, Nem
antes, nem depois.
Tem sentido também descobrir a ordenação temporal ou o
encadeamento dos fatos, de modo a reconhecer aquela sucessão
que seja significativa para a trama pensada. Nessa ordenação, as-
sume relevância a sequência das ‘falas’, exatamente para realçar
o silêncio da filha.
Do ponto de vista linguístico, um detalhe bem significativo é a
reiteração de ‘palavras’ do campo semântico da interação verbal,
como ‘falou’, como ‘disse’, esta última forma repetida quatro vezes.
Essa reiteração é bastante significativa, pois, além de perpassar
todo o texto (confirmando, assim, aquela exigência da coesão e da
coerência), contrasta com o silêncio da filha, silêncio que é indício
de sua submissão, de sua alienação diante das próprias decisões,
mesmo aquelas que dizem respeito a suas opções de vida adulta.
De fato, a oposição entre ‘dizer’ e ‘não dizer’, como forma de
assumir as rédeas da própria vida, constitui o núcleo temático do
poema, que, na verdade, traz subjacente uma crítica sutil, mas ve-
emente, à subordinação historicamente incondicional da mulher.
Ainda do ponto de vista da coesão linguística, a associação
semântica entre ‘amar’, ‘amor’, ‘casar’, ‘príncipe’, ‘histórias en-
cantadas’, ‘dote’, ‘ouro’, bem como os segmentos ‘estimo que se-
jam felizes’ e ‘o melhor do amor é a sua memória’ deixam toda a
narrativa bem articulada e coerente, pois uma coisa leva a outra.
Mas se pode reconhecer que toda a sequência da narrativa teve
um propósito: preparar a cena para a queixa da filha e deixá-la
pertinente; justificá-la, afinal. A oposição criada entre o silêncio
da filha e a fala de todos os outros personagens ressalta a rele-

82 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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vância de seu desabafo, bastante contundente, aliás: Só eu não


disse nada, nem antes, nem depois.
Merece comentário a existência de uns ‘vazios’ que o leitor
vai sabiamente preenchendo, na tentativa de estabelecer a coe-
rência, pressupondo que ela existe; é só uma questão de procurá-
-la. Vejamos, por exemplo, a alusão à exigência de ‘ter dote’ e o
empecilho que, naquele contexto, significava não tê-lo. Os dois
versos finais supõem uma interpretação mais contextual do que
meramente linguística.
A propósito desses vazios do texto, se poderia afirmar que
eles são absolutamente habituais, pois o interlocutor, em geral,
pressupõe os conhecimentos (linguísticos, enciclopédicos e con-
textuais) que seu parceiro de interação domina e, assim, evita ser
redundante dizendo coisas já sabidas e, portanto, sem interesse.
Fica mais uma vez demonstrado que a competência para a
linguagem — coesa, coerente, relevante, adequada à situação —
não depende apenas dos saberes linguísticos, muito menos de co-
nhecimentos meramente gramaticais.
Qualquer pessoa que faz uso da palavra precisa estar conti-
nuamente atenta para fazer uma espécie de filtragem entre aqui­
lo que precisa ser explicitado e aquilo que pode ser pressuposto
como sabido e, dessa forma, pode ficar implícito.
Quem escuta ou lê também sabe que nem tudo está explícito
e, assim, vai preenchendo cada lacuna, vai estabelecendo os ne-
xos eliminados, a fim de recuperar os sentidos pretendidos. Quem
escuta ou lê tem, normalmente, a expectativa de que o texto seja
dotado de coerência e, dessa forma, empreende todo esforço, até
chegar a estabelecer essa coerência.
A interação verbal é, verdadeiramente, um jogo complexo,
mas colaborativo. O equilíbrio entre o que explicitar e o que su-
por recuperável pelos conhecimentos já estocados na memória
do interlocutor não pode ser negligenciado em qualquer intera-
ção. Interagir verbalmente é, na verdade, um processo dinâmico
e complexo; supõe mobilizar conhecimentos já armazenados, ao
mesmo tempo em que supõe poder associar tais conhecimentos a
outras condições contextuais e históricas.

Em que consiste a coerência de um texto? 83


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Existe tacitamente nesse jogo um contrato mútuo entre os in-


terlocutores, segundo o qual cada um deve se dispor a colaborar
com o outro; faz parte, naturalmente, da trama comunicativa o
pressuposto de que o nosso interlocutor coopera conosco em nossas
atividades de linguagem; a situação em que se foge a esse pressu-
posto é irregular, embora possa acontecer sob objetivos variados.
Ser competente do ponto de vista da comunicação supõe —
insisto — mais do que o conhecimento da língua; muito menos o
conhecimento da gramática, muitíssimo menos ainda o conheci-
mento da metalinguagem gramatical.
Com a apreciação do poema acima, eu quis mostrar um pouco
como uma análise centrada em dimensões eminentemente textu-
ais pode e deve acontecer. Observe-se que foi objeto de análise o
que era relevante para se entender o enredo da narrativa: identi-
ficar os personagens e seu papel no desenrolar da cena. Para isso,
era totalmente significativo saber quem usou a palavra, para di-
zer o quê. A significação desse item estava na oposição anunciada
no final do poema, pois todos falaram, em várias circunstâncias,
só eu não disse nada, nem antes, nem depois.
Em relação aos sentidos pretendidos, pouco adiantaria, por
exemplo, ficar no reconhecimento dos substantivos que constam
no poema.
Quis mostrar, sobretudo, que o importante é compreender o
texto, é entender seu conteúdo global e, mais, com que intenção,
com que propósito, isso e aquilo foram ditos ou ficaram por dizer.
É, afinal, alcançar a sua coerência.
As marcas da coesão são decisivas para esse alcance.
Em se tratando de um poema, o que resta é curtir...

Há dias, se pedia em uma escola que os alunos (do 3º ano do


ensino fundamental) “contassem” quantos versos tem o poema
dado para leitura. ‘Contar os versos’, para quê? Que importância
tem isso?
Onde ficou a compreensão do poema? Onde os frutos de tê-lo
compreendido?

84 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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sete
A COERÊNCIA
NO TEXTO POÉTICO

1. Fundamentos

V
ale a pena dizer algumas palavrinhas à parte sobre as
especificidades da coerência nos textos literários, mais
precisamente, nos textos poéticos. Reiterando os pontos
principais de nossa conversa, a coerência é uma das proprieda-
des constitutivas da textualidade, o que equivale a afirmar que
todo texto — independentemente de seu gênero, de seu tipo, de
sua função e, até mesmo, de sua extensão — requer a coerência
como uma das suas características fundamentais.
Como propriedade semântica dos discursos, a coerência diz
respeito aos sentidos atribuídos ao texto, ou à associação semân-
tica que lhe confere unidade. Supõe a disposição natural dos su-
jeitos da comunicação verbal de, na sua interação, produzirem
somente enunciados que façam sentido, isto é, que sejam interpre­
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táveis, dentro das possíveis correspondências que se pode estabe-


lecer entre a linguagem e o mundo, real ou fictício.
Embora todos os textos se diferenciem quanto ao tipo de
função que cumprem, o texto poético é, pacificamente, admitido
como uma especificidade funcional bastante particular. Seus pa-
drões de realização situam-se numa ordem que muito o distancia
dos textos de outras funções. Nele, a manipulação das unidades
linguísticas serve não tanto ao plano do significado, mas, sobre-
tudo, ao plano do significante, contrariando o que se poderia
esperar de uma ação de linguagem. Consequentemente, a organi-
zação temática de um poema, por exemplo, deixa de respeitar os
esquemas previsíveis das interações comuns.
Por quê? Porque o texto poético é, eminentemente, arte. E
toda arte, por definição, é uma idealização do real, o que signifi-
ca que se move em um plano totalmente ideal, sem compromisso
com os limites da realidade concreta. Assim, o ‘real’ da poesia se
identifica com a própria criação ideal do poeta, um plano onde
não existem contradições nem ‘limites para as palavras’, como
muito bem afirmou Manoel de Barros, em um de seus poemas.
Basta lembrar, por exemplo, que, no texto poético:
(1) a construção da referência é feita, quase sempre, a entida-
des genéricas, imprecisas, polivalentes, sem características
de unicidade; daí que deixa de ter importância a identifica-
ção inequívoca das entidades referidas ou a pressuposição da
existência do objeto ou da entidade designada;
(2) a demarcação espaçotemporal do universo referido costuma
assumir um caráter quase absolutamente ‘sem tempo e sem
lugar’; atemporal e atópico, portanto;
(3) a voz do sujeito da enunciação, ou do sujeito que fala se alie-
na para ser a expressão de qualquer um, ou de todos.
Resta a distribuição métrico-rítmica das palavras e a exploração
de seus sentidos figurados, a fim de possibilitar a composição de ou-
tro mundo, o da fantasia, o da ficção, onde os limites são muito mais
tênues e imprecisos que nas interações comuns, ou até nem existam.

***

86 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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Que elementos constituem, então, a coerência do texto poéti-


co, partindo do pressuposto de que, se é texto, deve ter coerência?
Em termos gerais, a coerência do texto poético tem de ser
buscada fora das previsibilidades básicas de significado das pa-
lavras, além, portanto, do absolutamente convencional e previsí-
vel. Parte, então, daquele propósito de se conceder um ‘intervalo
à realidade’ para, fugindo de seus limites, criar um momento de
fantasia, de ficção. Ou seja, a coerência do texto poético surge na-
quele instante em que se suspende a fidelidade ao mundo real
para dar acesso ao mundo do imaginário.
Do ponto de vista da sua funcionalidade, daquilo que ultra-
passa o seu aparato linguístico, esse é o parâmetro da coerência
do texto poético.
Do ponto de vista linguístico, a coerência do texto poético é
inteiramente imanente a ele. Ou seja, se cada texto, em alguma
medida, cria sua própria coerência, no texto poético essa possi-
bilidade é muito mais forte. Aí, as unidades linguísticas ganham
autonomia de uso e de combinação, perdem a subserviência aos
padrões impostos pelas convenções do sistema. São peças de um
jogo cujas regras particulares se criam no próprio ato da enuncia-
ção, exatamente pela quebra do que era regularmente previsível.
Os sentidos pretendidos por estas unidades deixam de ter
relevância a partir das configurações semânticas que assumem
no interior do sistema. Instaura-se uma textualidade em que um
“eu”, autônomo, atemporal e sem rosto, é soberano para um dizer
incomum, que vale só enquanto expressão, só enquanto efeito es-
tético, sem a primazia da fidelidade aos sentidos dicionarizados e
às imposições gramaticais e pragmáticas.
Instaura-se, assim, uma textualidade de fato muito particular,
justificada por si mesma, alheia aos fatores interacionais que con-
dicionam a previsibilidade de outras manifestações de linguagem.
Esse quase extremismo do texto poético, na fuga às regu-
laridades do discurso, poderia implicar a ideia de que ‘fazer
poesia é muito fácil’. Ou, ingenuamente, se poderia aceitar que
qualquer texto que fuja aos padrões regulares seria um texto

A coerência no texto poético 87


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poético. O jogo é bem outro. A manipulação da falta de limite


para criar seu próprio ‘limite’ supõe o conhecimento da nature-
za desses limites em falta e a habilidade de conversão disso em
realizações de natureza estética.
Todas essas considerações não nos levam, contudo, a dei-
xar de reconhecer que poesia se faz também com palavras, com
construções e estruturas linguísticas. No texto poético, como
em qualquer outro, os elementos linguísticos se combinam para
constituírem o tecido que faz a unidade do texto. O que varia são
os parâmetros pelos quais se regulam essas combinações. Daí
que a busca da coerência do texto poético extrapole os esquemas
comuns com que a interação verbal ocorre socialmente, na sua
função transacional e, até mesmo, expressiva.

2. Em sala de aula

As atividades de sala de aula, no ensino da língua, por ve-


zes, desvirtuam inteiramente esse aspecto estranho e original
da poe­sia, quando, por exemplo, reduz o texto poético a um pre-
texto para a fixação de padrões silábicos ou de outras questões
gramaticais, abstraindo da poesia o encantamento que ela é
chamada a provocar.
Ler poesia exige sentimento, emoção, ‘gozo’, partilha de uma
experiência estética, que supera a mera troca de informações.
Na sala de aula, a leitura de poemas em voz alta é mais
do que uma simples leitura, como quem lê, por exemplo, uma
notícia ou um aviso. A leitura de poemas, em respeito à sua
natureza eminentemente estética, não é uma leitura; é uma de­
clamação, que deve ser feita em um ambiente de total concen-
tração, para deixar o encantamento f luir. Por isso, uma vez ou
outra, quem lê pode interromper a ‘declamação’ para exclamar:
‘Que coisa bonita’!
Rubem Alves, em um de seus textos, falou de como a escola
em geral não cria condições para criar e fortalecer nos alunos o

88 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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gosto pela literatura. Por vezes, lamentavelmente, nem mesmo os


professores curtem esse gosto! Disse ele:

As escolas terão realizado sua missão se forem capazes de desenvolver


nos alunos o prazer da leitura. Ele é o pressuposto de tudo mais. Quem
ama ler tem nas mãos as chaves do mundo. Mas o que vejo acontecen-
do é o contrário. São raríssimos os casos de amor à leitura desenvolvi-
do nas aulas de estudo formal da língua. (...)
Vendem-se, nas livrarias, livros com resumos das obras literárias que
caem nos vestibulares. Quem aprende resumos de obras para passar
no vestibular aprende mais que isso: aprende a odiar a literatura.
Esta, como o corpo da pessoa amada, não é objeto de conhecimentos
científicos; é objeto de prazer. Sonho com o dia em que as crianças que
leem meus livrinhos não terão de grifar dígrafos e em que o conheci-
mento das obras literárias não será objeto de exames vestibulares: os
livros serão lidos pelo simples prazer da leitura.
Folha de S.Paulo, Opinião: 3, 24 de março de 1999.

Me parece óbvio que a concentração em categorias da gramá-


tica — com todos os seus desdobramentos metalinguísticos — não
deixa tempo para a escola promover experiências com a leitura
de romances, contos, crônicas, fábulas e, sobretudo, de poemas.
“A gente tinha que andar com a matéria pra frente”, se justificou
um aluno à pesquisadora Lilian Silva, frente à declaração de que
se lia pouco na escola.

***
Para corroborar tudo que foi dito neste capítulo, leiamos o poe-
ma abaixo, de autoria do poeta Manoel de Barros, poema que, pare-
ce, foi feito, exatamente, para exemplificar tudo que a gente afirmou.

O menino que carregava água na peneira

Tenho um livro sobre águas e meninos.


Gostei mais de um menino que carregava água
na peneira.

A coerência no texto poético 89


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A mãe disse que carregar água na peneira era o


mesmo que roubar um vento
e sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.
A mãe disse que era o mesmo que catar espinhos
na água.
O mesmo que criar peixes no bolso.
O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.
A mãe reparou que o menino gostava mais do vazio,
do que do cheio.
Falava que vazios são maiores e até infinitos.
Com o tempo aquele menino que era cismado e
esquisito
porque gostava de carregar água na peneira
Com o tempo descobriu que escrever seria o mesmo
que carregar água na peneira.
No escrever o menino viu que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo ao mesmo tempo.
O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.
Foi capaz de interromper o voo de um pássaro bo-
tando ponto final na frase.
Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.
O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor.
A mãe reparava o menino com ternura.
A mãe falou: Meu filho você vai ser poeta!
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os vazios com as suas peraltagens,
e algumas pessoas vão te amar por seus despropósitos!
Manoel de Barros, Exercícios de ser criança. Rio de Janeiro:
Salamandra, 1999.

Como se pode constatar, no mundo criado pelo poeta, ‘uma


pedra pode dar uma flor’, pode-se ‘carregar água numa peneira’,

90 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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pode-se ‘criar peixe em bolso’, pode-se ‘roubar um vento’, pode-se


‘catar espinhos na água’; um menino pode ser ‘noviça, monge ou
mendigo’ etc.; ou seja, não importam as ‘leis das coisas’. É permi-
tido, é aceito, ter ‘despropósitos’ e até ser amado por eles, contra-
riando toda a ordem regular da experiência real.
É preciso despertar nos alunos o gosto por entrar nesse ‘mun-
do dos despropósitos’, nesse mundo em que se pode “fazer peral-
tagens com as palavras”, para fugir à inclemência de ser apenas
uma ‘criatura provisória e limitada’.

A coerência no texto poético 91


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oito
CONTINUIDADE REFERENCIAL:
O QUE É?

1. Fundamentos

A
continuidade referencial do texto constitui o que a nomen-
clatura linguística chama de processo de referenciação,
um dos processos fundamentais para o funcionamento da
expressão e da compreensão em linguagem. Vamos lá.
Este ponto das teorias textuais, o processo de referenciação,
é demasiado complexo, até porque entra de cheio nos campos
da semântica e da pragmática; ou seja, está em íntima relação
com as condições concretas de realizações das ações de lingua-
gem — falar, escrever e seus respectivos correlatos. Além disso,
envolve conceitos eminentemente textuais e discursivos, ainda
pouco explorados.
Como a pretensão aqui é facilitar a compreensão desses con-
ceitos pelos leitores iniciantes, opto por desenvolver os tópicos
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principais mediantes ‘perguntas’ a que oportunamente vou res-


pondendo e exemplificando.
Espero facilitar a compreensão de alguns dos aspectos mais
pertinentes envolvidos nesse processo discursivo, que é o de ‘fa-
lar das coisas’, para depois poder predicar sobre elas, de forma
que a interação chegue ao sucesso desejado.
Vamos à primeira questão.

1.1. O que seria o processo de referenciação?


Em que consiste?
Segundo os defensores das teorias da pragmática linguísti-
ca, quando falamos, em geral, executamos tipos diferentes de
ações ou atos:
(a) o ato de enunciar palavras (que corresponde aos atos de
enunciação, ou seja, os atos de falar ou de escrever);
(b) o ato de referir (que corresponde ao ato de ‘falar de certo
objeto’);
(c) o ato de predicar (que corresponde ao ato de ‘dizer alguma
coisa acerca desse objeto’);
(d) um ato de fala determinado; como, por exemplo, relatar,
explicar, informar, perguntar, afirmar, ressaltar, pedir, or-
denar, ameaçar, prometer, elogiar, acusar, defender e muitos,
muitos outros atos de fala.
Por exemplo, em um enunciado como: “A economia nacional
voltou a acelerar”, é possível constatar a execução:
(a) do ato de enunciar, oralmente ou por escrito;
(b) do ato de referir (se falou da ‘economia nacional’);
(c) do ato de predicar (se disse que ela ‘voltou a acelerar’);
(d) do ato de fala de informar, de fazer uma declaração.
Vale considerar que, contextualmente, esse enunciado pode-
ria ter realizado um ‘ato de fala’ com a finalidade de ‘defender
ou até de acusar alguém ou alguma instituição’; ou ainda com a
finalidade de estimular ou de reforçar novas esperanças para a
saída de crises etc. Isto é, só contextualmente é que se pode defi-

94 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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nir com clareza o ‘ato de fala’ (ou o propósito comunicativo) que


está em jogo.
O processo de referenciação consiste, então, na efetivação do
‘ato de referir’, ou seja, do ato de ‘falar de algo’, o que, como vi-
mos, implica a indicação da coisa da qual se está falando. Esse
processo corresponde apenas a um dos ‘atos’ que constitui o jogo
completo da interação. Vimos que, além do ato de referir, ocorre o
ato de predicar e prováveis atos de fala. Mas o ato de referir é que
se insere no processo de referenciação.
As coisas que são objetos de nosso ato de referir — coisas
de que falamos — correspondem ‘às entidades designadas’ no
texto. Essas entidades são os ‘objetos-de-discurso’, ou os ‘refe-
rentes textuais’. No exemplo acima, a entidade designada que
corresponde ao ‘objeto-de-discurso’ ou ao ‘referente textual’ foi
‘a economia nacional’.
Em um texto mais longo que esse trecho, um mesmo refe-
rente textual pode assumir designações diferentes, no sentido
de que, na sequência do discurso, eles podem sofrer uma mu-
dança de estado qualquer, podem ganhar novas propriedades e,
assim, provocar alterações na forma como os interlocutores se
referem a eles.
Por exemplo, em continuação ao enunciado acima, poderia
ser coerente referir-se à ‘economia em crise’, à ‘economia estima-
da’, à ‘economia avançada’, à ‘economia recuperada’, à ‘economia
internacional’ e outras designações que caberiam, conforme a si-
tuação em que acontecia o evento comunicativo.
A fim de ficar mais claro para meus leitores iniciantes, vou
usar a nomenclatura de ‘referentes textuais’, em vez de ‘objetos
de discurso’ para designar as “coisas de que a gente fala no tex-
to”. Nesse âmbito do processo da referenciação, existe muita com-
plexidade — de conceitos e de nomes — até porque essa matéria
entra de cheio na pragmática do discurso, além de que esses con-
ceitos e nomes ainda não são muito divulgados, nem mesmo na
maioria dos cursos de Letras.
Voltemos à questão principal.

Continuidade referencial: o que é? 95


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 eferimo-nos às coisas por meio de que expressões?


1.2. R
Se as coisas de que falamos nos textos são os ‘referentes textu-
ais’, a esses referentes nos referimos por meio do que chamamos
de expressões referenciais. Elas cumprem em um texto a função
discursiva de designar, de nomear, de indicar um objeto, uma
entidade, uma propriedade, um processo, um acontecimento ao
qual nos queremos referir.
Linguisticamente, essas expressões assumem a forma de
construções sintáticas que têm como núcleo substantivos — os sin-
tagmas nominais, como veremos mais adiante.
As expressões referenciais não constituem simples designa-
ções, como se fossem uma espécie de etiqueta identificadora, num
processo em que a cada coisa corresponderia um nome. As ex-
pressões com que nos referimos às coisas do mundo são designa-
tivas, mas carregam também um peso ideológico, ou certo viés
de valoração, conforme a percepção cultural de quem, em deter-
minado contexto, recorre a elas. Daí por que, em certa circuns-
tância, um acontecimento poderá ser referido pela expressão ‘o
problema’ ou ‘a solução’. Depende do olhar valorativo com que é
percebido (veremos mais exemplos dessa questão no decorrer do
presente capítulo).
Quais são essas expressões com que nos referimos às coisas?
Que tipos elas assumem?
Essas expressões podem ser:
(a) expressões referenciais definidas; entre elas, os nomes pró-
prios (Pedro), os pronomes (ele) e as descrições definidas,
como em ‘a economia nacional’ (um sintagma nominal com
um determinante definido);
(b) expressões referenciais indefinidas, como as descrições indefi-
nidas, como em ‘uma economia em crise’ (um sintagma nomi-
nal com um determinante indefinido);
(c) expressões referenciais genéricas, que podem assumir a forma
de descrições definidas ou de descrições indefinidas, como
em ‘a crise’ ou ‘uma crise’, referindo-se a ‘qualquer crise’.

96 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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Se analisarmos direitinho, em qualquer texto um pouquinho


mais extenso, vamos encontrar esses diferentes tipos de expres-
sões referenciais, conforme queiramos nos referir a um membro
específico de determinado conjunto: ‘Pedro’; ou a um membro não
específico desse conjunto: ‘qualquer professor’, ou à classe inteira
que contém esse membro: ‘o professor’, ‘todo professor’, no senti-
do genérico.
Talvez fique mais claro apresentar exemplos com referências
a coisas concretas. Por exemplo:
— se pretendo me referir a determinado membro de um conjun­
to, posso optar por um nome próprio — Brasil; ou optar por
um pronome ‘ele’; ou por uma descrição definida — ‘o maior
país da América Latina’; ‘esse país’ (um sintagma nominal
com determinante definido); ou seja, estou me referindo a
um membro particular, específico de um conjunto (o conjunto
dos países);
— mas se pretendo fazer uma referência a um membro qualquer
de um conjunto, vou optar por uma descrição indefinida —
‘um país’, ‘algum país’ (um sintagma nominal com determi-
nante indefinido);
— e se pretendo fazer referência a todos os membros de uma clas-
se inteira, posso recorrer tanto a uma expressão definida (no
singular ou no plural) como a uma expressão indefinida: por
exemplo, ‘o país’, ‘os países’, ou ‘um país’, querendo abranger
todos os membros que compõem esse conjunto dos ‘países’.
É no decorrer da interação que decidimos qual das expres-
sões responde melhor às condições do contexto em que estamos.
A verdade é que, no percurso de nossas atividades discursivas,
esse processo de referenciação é constante e bastante saliente,
pois atinge de cheio a clareza do texto, concorrendo para sua
inegável qualidade.

***
É bom ter isso em conta: as expressões referenciais de que
nos valemos para falar das coisas assumem a forma de sintag­

Continuidade referencial: o que é? 97


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mas nominais, os quais, lembremos, têm como núcleo os subs-


tantivos e os pronomes. Não por acaso os substantivos têm, nos
textos em geral, grande visibilidade, ou seja, são mais facil-
mente percebidos.

1.3. C
 omo acontece o processo de referenciação
ao longo de um texto?
No desenvolvimento do processo referencial de um texto, cos-
tumam acontecer certas operações básicas, a saber:
(a) a operação de ‘ativação’ — que consiste em introduzir um
‘referente textual’, isto é, de falar pela primeira vez em de-
terminada coisa; a expressão linguística usada para designar
esse referente adquire certa importância e fica na memória
discursiva dos interlocutores; comumente, essa referência é
feita por meio de uma expressão referencial indefinida (‘Era
uma vez um rei... ’);
(b) a operação de reativação — que consiste na ação de voltar a
falar do ‘referente textual’ anteriormente mencionado ou de
retomá-lo na continuação do texto; dessa forma, o referente
textual introduzido, e agora reativado, continua em foco; se
se tratar do mesmo referente, a menção de retomada é feita
por meio de uma descrição definida ou de um pronome; (‘Era
uma vez um rei’. ‘Certo dia, o rei’; ou ‘Certo dia, ele... ’); nesse
caso, trata-se de uma reativação correferencial, isto é, quando
o mesmo referente é outra vez mencionado;
(c) a operação de disjunção referencial — que consiste na inter-
venção segundo a qual outro referente textual é introduzi-
do, deixando em segundo plano o referente anterior; ou seja,
tirando-o do foco. Por esse aspecto, podemos admitir que
quanto mais um objeto é, na sequência do texto, referido —
quer dizer, é reativado — mais aumenta a possibilidade de a
expressão linguística que o representa estar diretamente li-
gada à continuidade temática do texto. Outra vez, fica eviden-
ciada a função que a reiteração (incluindo, a repetição literal

98 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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de uma palavra) pode assumir para criar e sinalizar a coesão


do texto. Poderíamos, então, analisar textos, inclusive escri-
tos, sob esse aspecto da reincidência de palavras. Possivel-
mente, teríamos muitas surpresas! Mas seríamos capazes de
rever nossas orientações acerca da função textual-discursiva
da ‘repetição de palavras’. Lembremos também que a intro-
dução de novos objetos de discurso se conforma às possíveis
associações em relação a outros objetos já introduzidos. Não
é feita, portanto, de maneira aleatória ou indissociada de ou-
tros objetos já referidos. Por exemplo, em continuação ao epi-
sódio em que se fala de um ‘rei’, podíamos, em seguida, nos
deparar com o trecho seguinte: ‘Aconteceu que o palácio em
que morava’... Naquela composição mostrada antes, sobre a
galinha (ver p. 40), não tivemos um texto, pois faltou a conti-
nuidade tanto no que concerne aos objetos referidos (em cada
segmento, a expressão ‘galinha’ se referia a entidades não re-
lacionadas contextualmente), quanto no que se refere à predi-
cação efetuada (em cada segmento se predicava sobre coisas
que não se relacionavam com outras precedentes);
(d) a operação de desativação — que consiste em deixar de se re-
ferir a determinada coisa na continuidade referencial do tex-
to. Se certo ‘referente’ ocupou pouco espaço na cena do texto,
é possível que ele não esteja vinculado ao tema ou à intenção
central do texto.
Convém estabelecermos relações com conceitos já explorados
em partes anteriores deste livro. Por exemplo, as operações de
ativação e de reativação, de que tratamos no parágrafo logo aci-
ma, nos remetem às regras da coesão e da coerência textual. Vol-
tar a se referir a determinada coisa constitui, na verdade, uma
operação de reiteração, de repetição (em sentido amplo), a qual
consta entre os tipos de relações e de regras que criam e sinalizam
a continuidade sintático-semântica e pragmática, necessária à coe­
são e à coerência do texto.
Nesse movimento, a marcha que se pode admitir para um
texto é, portanto, a de ‘idas’ e ‘voltas’, ou seja, a de ativar um refe-

Continuidade referencial: o que é? 99


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rente textual (nomeando-o pela primeira vez — movimento para


a frente) e a de, na sequência, reativar esse referente, voltando a
ele (nomeando-o outra vez — movimento para trás).
Dessa forma, podemos reconhecer para as expressões referen-
ciais dois grandes papéis: a de introduzir um novo referente no tex-
to e a de promover a continuidade de referentes já anteriormente
mencionados. Ambos os papéis são da maior importância para se
chegar à clareza acerca da concentração temática do texto.
Evidentemente, esses movimentos são apenas parte do pro-
cesso global que ocorre com a expressão de sentidos em um texto.
Não basta introduzir uma referência e a ela voltar para se conse-
guir chegar à textualidade.
Em suma, referir é uma atividade discursiva e eminen-
temente pragmática de designar, de indicar por meio de uma
expressão linguística as coisas de que estamos falando e que,
portanto, são objeto de nosso dizer. É nessa perspectiva que fa-
lamos em ‘continuidade referencial’, o que, textualmente, tem
uma importância fundamental. Observemos que, geralmente,
diante de um discurso de outro, começamos por perguntar: ‘Do
que ele está falando’?
Muitas vezes, podemos indicar um objeto de que estamos falan-
do por meio de um gesto, de uma expressão facial e não de uma ex-
pressão linguística. O contexto é que dita o recurso mais adequado.
Essa continuidade referencial acontece de forma sequencia-
da, mas não acontece de forma linear, ou seja, apenas constando
superficialmente na linha do texto sem que a isso corresponda
uma sequência referencial ou predicativa. (Volto a me lembrar
do texto que falava, em cada segmento, de ‘galinha’, mas que na
sua sequência não mantinha um ‘foco específico’ de abordagem,
fosse referencial, fosse predicativo).
Nesse ponto de nossa discussão, é pertinente abranger outras
categorias eminentemente textuais, como, por exemplo, a anáfora
e a catáfora, categorias que, com certeza, são de altíssima frequ-
ência em nossas atividades discursivas (sobretudo, a anáfora). Na
sequência de um texto, podemos reativar uma referência ante-

100 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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riormente ativada: ‘um rei’ — ‘o rei’. Essa operação se caracteriza


por uma ‘anáfora’, ou seja, constitui uma retomada de uma refe­
rência feita anteriormente.
As anáforas podem ser correferenciais (os referentes ativados
e reativados são os mesmos: ‘um rei’ — ‘o rei’: trata-se da mes-
ma entidade), como podem não ser (os referentes ativados e reati-
vados são distintos ‘um rei — outro rei’) e podem ser conectadas
apenas por associação (‘um rei — o palácio’). As catáforas, menos
comuns em nossos textos do dia a dia, ocorrem quando esse mo-
vimento de ativação e de reativação aparece invertido: primeiro
vem a referência que seria de retomada e, depois, a que seria a
referência base; por exemplo: ‘Ele — o rei’. Normalmente, as catá-
foras aparecem mais comumente em textos de caráter literário.
É comum fazer distinção entre ‘referência virtual’ e ‘referên-
cia atual’. Os substantivos, no dicionário ou na memória dos fa-
lantes, têm apenas referência virtual; quer dizer, podem um dia
preencher o núcleo de um sintagma nominal e serem usados por
alguém para se referir a determinada coisa. Por exemplo, o nome
‘casa’ (que, fora de uso, tem apenas referência virtual), em uma
situação concreta qualquer, pode ser usado para designar um ob-
jeto: ‘a casa antiga’, ou ‘a nova casa’, ou ‘a casa pintada de amare-
lo’, ou ‘a minha casa’ etc., e aí, nessas situações, passou a assumir
uma ‘referência atual’. Ou seja, passou da possibilidade de ‘vir a
referir’ para ‘referir’ concretamente determinado objeto. Passou,
então, da condição de referência virtual para referência atual. Em
suma, no dicionário, os substantivos têm referência virtual ape-
nas; nos textos, eles têm referência atual evidentemente.
A afirmação de que a referenciação é essencialmente prag-
mática decorre do fato de que é em uma situação concreta de in­
teração que se pode decidir pela ‘mais adequada expressão’ — ‘a
nova casa’, ‘a minha casa’, ‘a nossa casa’ etc.
Para facilitar a compreensão desta questão, vejamos: os subs-
tantivos correspondem aos objetos de que podemos falar. Fora
dos textos, então, eles são apenas ‘virtuais objetos de nossos pro-
váveis discursos’; têm, portanto, referência virtual. Quando nós,

Continuidade referencial: o que é? 101


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de fato, os utilizamos em uma situação qualquer, eles assumem a


forma sintática de um sintagma nominal e, nessa condição, desig-
nam determinada entidade. Passam, então, a ganhar referência
atual. Somente em uso, em um texto qualquer, a expressão tem
referência atual. Por exemplo, a expressão ‘a minha casa’ designa
a casa da pessoa que está falando. Se outra pessoa disser também
‘a minha casa’ a expressão já designa outro objeto. Por isso que
a referência atual de determinada expressão só é identificada na
situação ou no evento em que ocorreu.
Com certeza, essas noções são apenas ‘começo de conversa’.
Uma conversa que não costuma ter lugar nem mesmo nos livros
didáticos para o ensino médio. Pagamos o preço de uma linguísti-
ca que só tardiamente entrou nos currículos dos cursos de Letras.
Mesmo assim, podemos ‘tirar o atraso’. Com muitas vantagens!

2. Em sala de aula

Esse conjunto de princípios teóricos é, como tenho falado,


bem complexo, embora implique operações cognitivas que a gen-
te realiza intuitivamente todo dia. Faz parte dos conhecimentos,
das competências que vamos internalizando ao longo de nossas
experiências de interação.
O caráter de complexidade desses princípios não nos dispen-
sa de, pouco a pouco, conhecê-los explicitamente. O fato de saber
que existem e como acontecem nos torna mais aptos a tomar de-
cisões mais acertadas.
Então, alguma coisa a respeito desse processo de referenciação
pode ir sendo explicada em sala de aula, conforme parecer oportuno.
Por exemplo:
(a) o uso dos pronomes só tem sentido se explorado em textos e
nessa perspectiva da referenciação; a avaliação do emprego
desses pronomes, em vez de se restringir à mera classificação
morfossintática das formas (se pronome reto, se oblíquo, se
possessivo, se demonstrativo), poderia focalizar que referentes

102 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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ativam ou reativam e, ainda, em que pontos do texto ambas as


coisas aconteceram; em um texto, a reativação de um referente
muito distante da referência introdutória pode trazer dificul-
dade para a identificação do nexo referencial pretendido;
(b) os problemas da falta de clareza dos textos, quase sempre,
têm origem na maneira inapropriada com que se provi-
dencia essa sequência de expressões referenciais, o que
deixa obscura ou ambígua a indicação de quem ou de que
se está falando;
(c) na perspectiva desses princípios, os substantivos em uso
— que compõem sintagmas nominais — ganham mais visi-
bilidade, pois explicitam a sequência de referências que cons-
tituem a sequência referencial do texto e são decisivas para
um entendimento claro do que é referido;
(d) esses conceitos ligados à referenciação favorecem analisar a
superfície do texto, quando se poderá comprovar o que foi
referido, com que frequência e com que expressões, o que
pode funcionar como pistas para a definição e identificação
do tema principal e dos subtemas tratados no texto.
Portanto, falemos dessas outras categorias linguísticas, mais
processualmente textuais. Vamos, vamos além das ‘classes de
palavras’ e dos ‘termos da oração’. Indo além, vamos encontrar
os textos!
E, como se manifestam, na sequência do texto, essas opera-
ções de ativação ou de reativação de referentes textuais?
Vejamos, em um texto, como as estratégias de referenciação
descritas aconteceram.

A ambição superada

Certo dia uma rica senhora viu, num antiquário, uma


cadeira que era uma beleza. Negra, feita de mogno
e cedro, custava uma fortuna. Era, porém, tão bela,
que a mulher não titubeou — entrou, pagou, levou
pra casa.

Continuidade referencial: o que é? 103


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A cadeira era tão bonita que os outros móveis, antes


tão lindos, começaram a parecer insuportáveis à sim-
pática senhora (era simpática).
Ela então resolveu vender todos os móveis e comprar
outros que pudessem se equiparar à maravilhosa ca-
deira. E vendeu-os e comprou outros.
Mas, então a casa, que antes parecia tão bonita, fi-
cou tão bem mobiliada que se estabeleceu uma de-
sarmonia flagrante entre casa e móveis. E a senhora
começou a achar a casa horrível. E vendeu a casa e
comprou uma outra, maravilhosa.
Mas dentro daquela casa magnífica, mobiliada de
maneira esplendorosa, a mulher começou, pouco a
pouco, a achar seu MARIDO mesquinho. E trocou o
MARIDO por um OUTRO, jovem, belo e inteligente.
Mas mesmo assim não conseguiu ser feliz. Pois na-
quela casa magnífica, com aqueles móveis admirá-
veis e aquele MARIDO fabuloso, todo mundo achou
que ela era extremamente vulgar.
Millôr Fernandes, Fábulas fabulosas. Rio de Janeiro: Nórdica,
1991, p. 26.

Vou me deter em aspectos que podem clarificar as questões que,


neste ponto do trabalho, estamos discutindo. Vamos por partes.
(a) Logo no início do texto, encontramos a referência a “uma rica
senhora”, que é a ‘referência introdutória’ e, ainda, a ‘referên­
cia ativada’, a qual fica em foco na memória discursiva do
leitor. Podemos, então, levantar a hipótese de que é desse ‘re-
ferente’ que o texto vai tratar. Reparemos que, sintaticamente,
a expressão com a qual a referência é feita é uma expressão
referencial indefinida (‘uma rica senhora’). Vale ter em conta
que outra referência a essa mesma entidade será feita a seguir
por uma expressão referencial definida, como de fato ocorreu
em: ‘a mulher’, ‘a simpática senhora’, ‘a senhora’. Essa sequên-
cia de expressões funciona como pista de que esse referente
continua em foco (e vai até a última linha do texto, retomada

104 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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pelo pronome ‘ela’), constituindo a figura central da narrati-


va. Esses nexos — pelos quais a referência feita incide sobre a
mesma entidade — caracterizam uma situação de correferên­
cia. Ou seja, em ‘a mulher’, ‘a simpática senhora’, ‘a senhora’,
‘ela’, trata-se da mesma entidade referida.
(b) O mesmo acontece em relação à introdução de outro referen-
te textual: ‘uma cadeira’; ‘a cadeira’; ‘a maravilhosa cadeira’;
isto é, outro referente é trazido à cena, mas guarda relação
com os objetos já referidos antes (‘a senhora’, ‘um antiquá-
rio’, ‘a casa’).
(c) Outro referente aparece, ‘a casa’, ocorrendo nesse ponto do tex-
to sem artigo (nem ‘uma casa’, nem ‘a casa’: ‘levou pra casa’);
com base em nossos usos habituais, sabemos que o sintagma
‘casa’, sem artigo, caracteriza estarmos nos referindo à ‘casa
onde vivemos’. Na sequência do texto, a referência à entidade
‘casa’ sofre mudanças de estado: ‘a casa, que antes parecia tão
bonita’ é vista agora como ‘a casa horrível’, é trocada por ‘ou-
tra’ (casa) maravilhosa, a qual corresponde, mais adiante, à
expressão ‘daquela casa magnífica’; essas mudanças de carac-
terização dos referentes ilustram um aspecto de que falamos
antes, isto é, o de como as entidades referidas podem assumir
outras propriedades e, assim, comportar outras categorizações
ao longo do texto. A primeira ‘casa’ passou de ‘casa bonita’ a
‘casa horrível’; na verdade, as mudanças ocorridas (da casa,
da cadeira, dos móveis, do marido) só servem de pretexto para
chegar à mudança principal: a de ‘uma rica senhora’, que se
converte em uma pessoa ‘extremamente vulgar’. A propósito,
as referências a ‘senhora’, ‘cadeira’ e ‘casa’ perpassam todo o
texto — indicação de que representam objetos-chave na trama
da narrativa. Já a palavra ‘antiquário’ apareceu apenas uma
vez, sinal de que não constituía no cenário representado um
papel central, muito embora sua memória possa ser reativada
cada vez que se faz referência a ‘móveis’.
(d) A referência ao ‘marido’ só ocorre nas últimas linhas do tex-
to, o que caracteriza a introdução tardia de um novo refe-

Continuidade referencial: o que é? 105


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rente, mas nem por isso deixa de ser um referente relevante


para o enredo da narrativa. Pelo contrário, a referência a ele
representa um argumento de força, pelo que significa, em
nossos esquemas culturais, o episódio nele envolvido.
(e) Reparemos que as coisas de que se fala no texto — ou os seus
referentes textuais — guardam sensíveis relações ou afini-
dades no mundo espacial ou cultural de nossas experiências:
senhora, marido, cadeira, móveis, antiquário, casa, vender,
comprar, fortuna etc.
É indiscutível que essas e outras noções que fazem parte de
como os textos são construídos e são percebidos são — como te-
nho advertido — complexas, mas nem por isso impossíveis de se-
rem, pouco a pouco, entendidas e apreendidas.
Não podemos esquecer que temos a nosso favor a experiên-
cia do dia a dia, na qual cada ponto abordado é intuitivamente
vivenciado e relacionado, por analogia, a outros. A recorrência
com que essas estratégias acontecem dá às nossas ações um cará­
ter de convenção, de protótipo, de estabilidade. O que precisamos
fazer é tomar consciência explícita de como esses procedimentos
discursivos ocorrem e de promover a sua ampliação, para, assim,
fortalecer e poder regular, melhor e conscientemente, a aplicação
das competências neles implicadas.
É bem diferente falar, ouvir, ler e escrever depois que a gente
estuda essas coisas!

106 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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nove
EM QUE CONSISTE A
INFORMATIVIDADE DO TEXTO?

1. Fundamentos

E
m que sentido se propõe que um conjunto de palavras,
para ser reconhecido como texto, deve ser marcado pela
propriedade da informatividade?
Como avaliar se um texto satisfaz ou não essa exigência?
Primeiramente, vale advertir que o termo ‘informatividade’,
nesse âmbito das propriedades textuais, não significa apenas que
um texto tem como função principal ‘transmitir informações’. Des-
se modo, todo texto — até mesmo o texto literário — circula com a
finalidade de ‘informar sobre algo’. Na verdade, a informatividade
do texto tem a ver com esse aspecto, mas não o esgota. Vamos ten-
tar explicar melhor em que consiste essa propriedade do texto.
O teor de informatividade de um texto é calculado com base
em seu grau de novidade, de imprevisibilidade. Por esse lado, se
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admite que o texto deve trazer informações; por outro, se espera


que essas informações tragam alguma novidade, ou exijam qual-
quer esforço a mais de interpretação por conta de algum elemen-
to imprevisível presente. Essa novidade e essa imprevisibilidade
podem situar-se ou no âmbito da forma ou no âmbito do conte-
údo. Logo, se todo texto é originalmente informativo, não o é do
mesmo modo ou na mesma dimensão.
A ‘novidade’ ou ‘imprevisibilidade’ que está em jogo aqui se
explica pela tendência, habitual nas atividades da linguagem, de
não dizermos sempre o mesmo, ou de dizermos sempre do mes-
mo jeito. O normal, o corriqueiro é que, falando ou escrevendo,
vamos acrescentando algo de ‘novidade’, no conteúdo ou na for-
ma de como dizemos.
Ou seja, há sempre algum teor de imprevisibilidade naquilo
que dizemos. Como já dissemos, o regular é que ninguém fala
para dizer absolutamente o óbvio. O óbvio, o absolutamente igual,
é claro, não interessa. Quer dizer, o que espero comumente é que
alguém me fale para dizer algo que tenha para mim, numa dada
situação, algum interesse.
Essa regularidade tem raízes na dimensão dos usos da lin-
guagem (é, pois, uma propriedade pragmática), no sentido de que
o grau de informatividade de uma ação de linguagem pode variar
em função da situação em que acontece. Assim, um texto pode ter
um grau de informatividade maior ou menor, a depender das
condições de sua circulação. Ou seja, todo texto não apresenta a
‘informatividade’ na mesma medida ou no mesmo grau. Vejamos.
Os autores que propuseram o conjunto das propriedades tex-
tuais admitem que um texto pode apresentar diferentes graus de
informatividade, conforme as condições de sua produção e de sua
circulação. Admitem, assim, três graus: um grau mais baixo; um
grau médio e um grau alto de informatividade.
No grau mais baixo de informatividade, o teor de novidade do
texto é praticamente zero; portanto, a atividade interpretativa de
seu interlocutor é facilitada ao extremo; quase dispensa cálculos
mais elaborados, pois já faz parte do ‘saber coletivo’ do grupo

108 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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ou da comunidade. Estão nesse caso as placas de sinalização do


trânsito e tantos avisos que circulam por aí, até mesmo fora dos
espaços urbanos.

Lembremos as placas com informações, como:

Ou avisos, do tipo:

e tantos outros que circulam por aí.

O que se pode afirmar a respeito do grau de informatividade


desses textos é que o contexto em que eles circulam não compor-
ta ‘novidades’ ou ‘imprevisibilidades’, pois o que se tem a dizer
precisa ser dito exatamente sem acréscimos, com as mesmas
palavras e do mesmo jeito. Exigências de outra ordem, que não
exigências linguísticas, são mais determinantes e decisivas nesse

Em que consiste a informatividade do texto? 109


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contexto, pois atingem a praticidade ou mesmo a segurança das


pessoas envolvidas.
Aqui merece destaque o valor pragmático desses textos com
grau zero de novidade, uma vez que procuram adequar-se à situ-
ação e à finalidade com que circulam, provando que a atividade
da linguagem é e deve ser adequada, ajustada, a cada contexto,
em função, exatamente, da sua funcionalidade.
Vale lembrar que, fora desses contextos que pedem breves
‘indicações’ ou ‘advertências’ (várias!), esses textos não circulam
comumente. São típicos de situações muito específicas. Nem por
isso deixam de ser significativos ou são ‘textos’ de menor impor-
tância social.
Me ocorre, no momento, lembrar uma outra classe de textos
— com esse grau baixo de informatividade — que são aqueles que
fazem parte das programações rituais (como nas liturgias de qual-
quer credo) ou da atividade rotineira dos contatos diários (a exem-
plo de: ‘Bom dia.’, ‘Tudo bem?’, ‘Como vai?’ etc.) Como digo, são
textos que têm um papel na ‘interação nossa de cada dia’, mas não
acrescentam nenhuma novidade, nem trazem qualquer imprevisi-
bilidade de sentido. Convivemos com eles e com sua estabilidade
quase protocolar, submetendo-nos de bom grado às convenções so-
ciais, que regulam, inclusivamente, suas escolhas linguísticas.
Mas nem sempre convivemos apenas com esses exemplares
de textos de tão baixa informatividade. Em meio à diversidade de
situações de contato, deparamo-nos com sensíveis diferenças
de textos, no que concerne a seu grau de informatividade, como
continuaremos a ver.
Em suma, nesse primeiro nível de informatividade, o teor de
relevância dos textos é baixíssimo, exatamente por seu alto grau
de previsibilidade, pois em nada acrescenta à sua codificação ou à
seleção de seu conteúdo. Até podem passar despercebidos.
Em um grau médio de informatividade situam-se, como é de se
esperar, os textos que trazem algum grau de complexidade, seja
no conteúdo, seja na forma, mas algo que, sendo imprevisível, o
seja numa medida acessível a interlocutores não especialistas.

110 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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Creio que a maior parte das interações que acontecem no dia a


dia se enquadra nesse grau médio de informatividade. Ultrapas-
sam o óbvio, mas não exigem grandes esforços de interpretação.
A regularidade dos contextos em que é dito o habitual já funciona
como indicativo seguro da interpretação mais plausível; funcio-
na, assim, como um mecanismo de geração de expectativa. (Não
esqueçamos que a linguagem é dotada de um alto teor cognitivo).
Podemos incluir nesse grau médio de informatividade a cir-
culação de matérias da imprensa jornalística dirigida ao público
em geral. Evidentemente, há jornais dirigidos a grupos específi-
cos (como os jornais de economia), como há, nos jornais comuns,
seções à parte que tratam de temas mais específicos e supõem
leitores com um nível de informação acima da média.
Ou seja, mesmo nesse nível mediano de informatividade,
pode haver variação para mais ou para menos. O que se pode
ressaltar a esse propósito é, mais uma vez, a natureza funcional
das ações de linguagem, as quais, em resposta a seus fins intera-
cionais, procuram se ajustar às condições de cada situação.
A expectativa unânime é de que se tenha a competência co-
municativa suficiente para, do lado de quem está com a palavra,
saber dosar o nível de informação nova e, do lado de quem ouve
ou lê, identificar qualquer quebra daquela suposta regularidade
com que as coisas acontecem, de forma a não comprometer o bom
andamento da interação.
Nunca é demais expor o princípio de que subsiste, em toda
atividade de linguagem, uma espécie de ‘contrato recíproco’ en-
tre os participantes, no sentido de um colaborar com o outro, de
facilitar o entendimento mútuo e chegar a um resultado consen-
sual determinado. Em geral, ninguém fala tentando dificultar o
entendimento do outro; como ninguém, de propósito, aposta em
não entender o que o outro está dizendo, a não ser que isso seja
um propósito justificado por alguma situação muito particular.
O equilíbrio, entre as informações já conhecidas e perfeita-
mente memorizadas e aquelas outras ‘novas’ ou desconhecidas,
faz parte do cumprimento desse princípio da mútua colaboração

Em que consiste a informatividade do texto? 111


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entre os interlocutores. Se ninguém fala para dizer apenas o que


já se sabe, também é verdade que ninguém fala para dizer ape­
nas coisas novas. Pois então, onde ancorar uma informação nova?
E agora consideremos um terceiro grau de informatividade, o
grau mais alto e, por isso mesmo, mais restrito a situações e a
interlocutores bem específicos.
Neste grau, situam-se os textos com altos níveis de ‘novidade’
(no conteúdo ou na forma), o que acarreta imprevisibilidades na
atividade de interpretá-los, de calcular seus sentidos.
Em geral, neste nível estão os textos teóricos — que expõem
conceitos novos, específicos a certas áreas, ou pouco divulgados
— os quais, em geral, supõem o conhecimento de outros concei-
tos prévios e princípios de teorias ou ciências afins. Com eles,
convivemos também, sobretudo em nossos programas de am-
pliação dos estudos para além da formação básica. São eles que
promovem, ao longo da vida, o acréscimo de nossas suposições
ou fundamentos teóricos. Também variam quanto ao teor de sua
densidade informacional, admitindo variações, conforme mais
ou menos restritos a certas áreas do conhecimento ou da realida-
de em foco.
Neste mesmo nível, situam-se ainda os textos literários, em
prosa ou em verso. Como sabemos, esses textos existem fun-
damentalmente para cumprir funções estéticas, centradas na
emoção de criar objetos e representações a partir de um mun-
do fantasioso.
Nesse parâmetro da literatura, não há limites entre o ser, en-
tre o estar e o dizer. Com certeza, o nível de imprevisibilidade
desses textos é altíssimo, pois todas as regularidades — de forma
e de conteúdo — podem ser (e costumam ser) violadas, a bem do
gosto e do sentimento estético. Assim é que, conforme um outro
poema de Manoel de Barros, “A menina apareceu grávida de um
gavião”, contrariando a ordem normal das coisas e instituindo
uma outra ordem na representação ilimitada da fantasia.
Em suma, convivemos com uma gama de textos de níveis di-
ferentes de informatividade. Como também são diversas nossas

112 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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necessidades de informação, ou é diversa a própria dinâmica


dos grupos sociais, que oscilam constantemente entre o novo e
o já estabilizado.
No vaivém da vida, nem tudo se repete na sua total iden-
tidade, como nem tudo é apenas ‘novo’. A experiência, na sua
diligente energia de ‘ir e vir’, de ‘ser’ e de ‘vir a ser’, provi-
dencia ininterruptamente esse movimento entre o novo e o já
sabido. Também com essa diversidade de objetos de conheci-
mento convivemos.
E nós, sem poder fugir a esse movimento entre o ‘novo’ e o
‘dado’, vamos enfrentando, articulando e interpretando um e outro.

2. Em sala de aula

Tem sido frequente a minha referência à concentração da


escola em atividades de gramática, melhor dizendo, em ativi-
dades em torno da identificação de categorias gramaticais, com
ênfase em sua classificação e respectiva nomenclatura. O em-
penho pela leitura e pela escrita de textos tem sido, em geral,
adiado em muitas escolas, com sensíveis prejuízos para todos.
E quando acontecem oportunidades de satisfazer esse empe-
nho, no que concerne à escrita, o foco vai sempre para a ‘escrita
sem erros’, tanto assim que, socialmente, ao professor não é dele-
gada a tarefa de ‘avaliar’ o texto produzido, mas a de ‘corrigir’, o
que implica, semanticamente, encontrar e consertar erros.
Quer dizer, o ideal do ensino tem sido deixar os alunos livres
de erros, os quais são mais ou menos os mesmos: violações de re-
gras de sintaxe, que incluem concordância, regência e colocação
(de pronomes, sobretudo). Nas listas desses erros, constam sem-
pre os mesmos casos.
O que essa prática, na maioria das escolas, tem deixado de
incluir?
Certamente tem deixado de incluir o empenho em estimular
os alunos a serem capazes de elevar gradualmente o nível de in-

Em que consiste a informatividade do texto? 113


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formatividade de seus textos. Ou seja, serem capazes de dizer coi-


sas relevantes, coisas que, se não forem ditas, farão falta; capazes
de, fugindo das obviedades, recorrerem a argumentos consisten-
tes, de explorar o lado novo e imprevisível dos fatos e das situa-
ções. Inclusivamente, pelo uso de um vocabulário menos comum
e mais conforme às especificidades de cada situação.
Convém à escola ter em conta que existem coisas no mundo
da comunicação social para as quais é necessário chamar a aten-
ção e criar a consciência de sua importância. O aprendizado da
escrita de textos que vigorou na escola não incidiu sobre esse cui-
dado por ampliar o repertório cultural e vocabular do aluno, a
ponto de ele ficar convencido de que ‘dizer o óbvio’ não desperta
o interesse do interlocutor e fere, portanto, os princípios básicos
da mútua cooperação que deve existir entre os interlocutores.
E como em sala de aula promover as condições de fugir à ob-
viedade das afirmações e dos argumentos?
A começar pelo professor, que pode dar sinais explícitos de
gosto pela contínua atualização, pois se mostra afeito às práticas
de leitura, às ocasiões de expandir seus conhecimentos, às muitas
oportunidades de especializações, validando o princípio de que
‘nunca teremos aprendido tudo’; ‘nunca estaremos final e defini-
tivamente prontos’.
Aos alunos, liderados pelo professor, não devem faltar as aná-
lises, as reflexões, os debates, as críticas sobre os diferentes es-
paços, opções e valores que caracterizam a sociedade atual, bem
como sobre o que hoje é considerado patrimônio e memória histó-
rica. Não devem faltar as muitas promoções de leitura, de livros,
de jornais, e a audiência de bons debates da mídia mais reflexiva,
mais equilibrada e consistente e mais segura.
Diante de atividades que supõem ideias ou noções teóricas
menos divulgadas, serão imprescindíveis essas oportunidades
de leitura e de ampliação de informações, exatamente para criar
condições de os alunos não se restringirem aos mesmos tópicos,
aos mesmos argumentos. É preciso desenvolver neles as condições

114 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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de trazer outras visões, de acrescentar razões que fundamentem


outros pontos de vista e outras práticas.
Uma boa prática é orientar as leituras em função de determi-
nado tema que será, em sala, objeto de exposição oral ou escrita.
Saber falar do que conhecemos é bem mais fácil. Em grande parce-
la dos professores paira a (quase) certeza de que a dificuldade dos
alunos em escrever se resolve com aulas de gramática (às vezes
com aulas de descrição SOBRE algumas categorias gramaticais).
Na verdade, dar corpo a uma exposição temática supõe leitu-
ras prévias, reflexões, análises, é claro, pois uma condição prévia
para ‘o dizer’ é ter o que ‘dizer’; é dispor de ‘modelos de fatos’, de
‘modelos de situações’, de ‘modelos de procedimentos’, os quais,
construídos e flexibilizados ao longo da vida, servem de base
para a interpretação da coerência. O que é ‘verbalizável’ é o que
é conhecido ou, pelo menos, a partir do conhecido, o que pode ser
pressuposto ou associado a ele.
Daí que a escola deve ser o lugar da investigação, da busca,
da pergunta, da inquietação, da agitação na procura do ‘mais sa-
ber’. Aquelas ‘certezas’ dogmáticas com que fomos ‘aquietados’
não se conformam com os ideais da atitude científica que deve
caracterizar todo estudo autêntico. O que seria do mundo, da ci-
ência, das coisas, de nós, sem a ‘dúvida’, sem a ‘estranheza’ diante
do que é, do que está diante de nós?
Essas orientações podem parecer um tanto quanto utópicas.
Talvez o sejam, considerando a real situação dos professores es-
palhados por esses ‘Brasis’ afora. Mas o que seria de nós todos
sem a utopia? Sem metas arrojadas? Sem as experiências de que-
rer o menos provável, o menos corriqueiro?
Pelo contrário, temos motivos de sobra para renovar, a nós
e à vida. As estatísticas não nos deixam numa ‘zona de confor-
to’. Continuam a nos inquietar, pois ainda não temos uma escola
PARA TODOS, que, como propõem os PCN, seja capaz de “garantir
a todos os alunos o acesso aos saberes linguísticos necessários
para o exercício da cidadania” (1998: 19).

Em que consiste a informatividade do texto? 115


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Não podemos nos furtar ao interesse de saber quais são esses


saberes linguísticos necessários ao exercício da cidadania e, ainda,
em que consiste esse exercício. Vale ainda nos perguntar por que
são os alunos mais pobres aqueles que mais dificuldades têm
no acesso aos saberes necessários ao exercício da cidadania. Por
que, insistimos, são os alunos mais pobres aqueles que mais di-
ficuldades têm em aprender a ler e a escrever? Onde está o nó,
que não temos conseguido desatar? A quem interessa que o nó
não se desfaça?
Ou seja, temos motivos de sobra para nos inquietar (e até
para nos indignar), para nos mobilizar em termos de promover
mudanças que venham na direção de acrescentar ‘saberes’, ‘com-
petências’, de desenvolver a disposição de todos para poderem
participar do desenvolvimento, em todos os sentidos, de nós pró-
prios e das comunidades onde vivemos.

116 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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dez
EM QUE CONSISTE A
INTERTEXTUALIDADE?

1. Fundamentos

O
conceito de intertextualidade, proposto no âmbito da lite-
ratura em meados do século passado, tem-se desenvolvi-
do e ganhado, cada vez mais, uma definição satisfatória,
apesar de sua complexidade, como acontece com quase tudo do
mundo da linguagem.
Vamos ao principal dessa questão.
A intertextualidade é uma condição das ações discursivas,
segundo a qual a linguagem é, essencialmente, uma atividade
que se constitui na retomada de conhecimentos prévios — o que
implica a incorporação de outras experiências de linguagem an­
teriores — gerando, assim, uma ininterrupta continuidade na li­
nha dos discursos humanos. Isso é tão verdadeiro que se pode
afirmar o seguinte:
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(a) nenhum texto parte de um ponto zero; nenhum é, portanto, o


começo absoluto de um ‘dizer’;
(b) todo texto está preso a textos anteriores, seja do ponto de vista
do conteúdo, seja do ponto de vista da forma; logo, todo texto
é um intertexto, pois todo texto dialoga com outros, retoman-
do, desenvolvendo, explicando, confirmando ou se opondo a
conceitos, a ideias ou a formas neles expressos;
(c) essa incorporação de um texto prévio em outro pode assumir
a forma de citação, ou de simples alusão, em dependência dos
propósitos de quem está com a palavra;
(d) a intertextualidade, é assim, constitutiva de qualquer texto;
constitutiva da linguagem humana.
Esse conceito tem como fundamento o fato de que o conheci-
mento humano se constrói na continuidade universal — no tempo
e no espaço — de um grande discurso que jamais se concluiu e que
nunca se concluirá. Tudo o que hoje sabemos veio na esteira do
que outros disseram antes de nós. O saber do futuro tem suas
raízes nos saberes do presente e do passado. Não existe o discurso
totalmente original.
O interessante é que admitir a intertextualidade — que tem
como fundamento conceitual o ‘dialogismo’ proposto pela linguís-
tica de base funcionalista e interacional — já é, por assim dizer,
uma prova de que os conceitos vão se retomando historicamente,
se reafirmando, se refazendo, se ampliando.
O ‘dialogismo’ implicado nessa condição da linguagem huma-
na tem um sentido muito mais amplo do que aquele, comumente
explorado, da ‘troca’ de palavras entre diferentes interlocutores.
O sentido do ‘diálogo’ aqui previsto é o da intervenção ativa de
um discurso na constituição de outros que a ele se seguiram.
Existe, pois, um diálogo universal, tácito, praticamente inevi­
tável, que permanece, mesmo quando os conceitos afins parecem
ser outros.
Vale muito reiterar a ideia de que, nesse sentido, ninguém diz
‘a primeira palavra’ sobre ‘qualquer coisa’. Cada discurso é ape-
nas uma ‘fração’ de um grande discurso, cuja autoria declarada

118 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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podemos ou não conhecer. Nesse sentido, toda comunicação hu-


mana é, em alguma medida, dialógica, quer dizer dialoga com
outras precedentes. A propósito, podemos nos perguntar se “o
monólogo existe de verdade”. Os textos que abordam os mesmos
conteúdos têm, no mínimo, uma intertextualidade temática, coisa
com a qual convivemos todos os dias.
O fato de todo texto se realizar conforme um determinado
tipo e um determinado gênero também caracteriza o recurso
universal da intertextualidade. Quer dizer, ninguém cria do nada
seu próprio modelo de texto — seu gênero, sobretudo, — o que
significa admitir que cada texto retoma de outros seu modelo ou
suas normas de configuração. Uma carta retoma as aparências de
outras cartas; um editorial se parece com outro editorial e assim
por diante. Qualquer criação que pretenda fugir a esses mode-
los tem como base o modelo original do qual pretende escapar. O
meu discurso encontra sempre o discurso do outro.
Concretamente, tudo o que estou afirmando neste livro sobre
textualidade e texto retoma elementos de tudo quanto já ouvi, li,
estudei em minhas experiências passadas.
Essa forma de intertextualidade de que temos falado até aqui
corresponde a uma intertextualidade reconhecida como de na-
tureza ‘ampla’ ou ‘implícita’. Quer dizer, todos os textos — pelo
simples fato de serem textos e torno de determinado tema, pe-
lo simples fato de se conformarem a um ‘tipo’ ou a um ‘gênero’
— são marcados por esse tipo de intertextualidade ampla, mesmo
que não tenhamos disso consciência. Faz parte, inerentemente,
de sua condição de ser texto, de pertencer ao repertório universal
da humanidade e de conformar-se à tradição de seus modelos
socialmente recorrentes.
Por outro lado, existe a intertextualidade em sentido estrito, cada
vez que, de forma mais ou menos explícita, segmentos de um texto
são reutilizados na composição de um outro. Essa operação pode
acontecer em níveis variados, conforme assuma a forma de citações
— o que é muito comum em textos acadêmicos ou nos discursos de
divulgação do conhecimento —, ou assuma a forma de explicações

Em que consiste a intertextualidade? 119


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de ideias reconhecidas como já expressas em outro texto. Consti-


tuem, assim, exemplos da intertextualidade em sentido estrito.
No meio-termo entre a intertextualidade ampla e a outra,
estrita, podíamos inserir as alusões que umas vezes são literais,
mas em outras aparecem modificadas na sua primeira versão,
embora reafirmando seu sentido original ou parte dele.
As alusões são bastante comuns em nossas atividades diá-
rias, muito mais do que pensamos. Costumam acontecer como
retomadas de frações de textos literários, já bastante conheci-
dos, como quando dizemos que ‘tinha uma pedra no meio do
caminho’; ‘navegar é preciso, viver não é preciso’, ‘(amor) que
seja eterno enquanto dure’; ‘por mares nunca dantes navegados’;
‘tudo vale a pena se a alma não é pequena’, entre milhares de
outros. Na maioria das vezes, tais fragmentos são conhecidos e
quem os utiliza o faz na expectativa de que o interlocutor reco-
nheça seus textos-fonte, o que, de fato, aproxima o procedimento
da intertextualidade explícita.
Em geral, as alusões também costumam ter por base pro-
vérbios, bordões ou fragmentos da fraseologia popular, que, por
pertencerem ao domínio público, são facilmente reconhecidos
como frações de um texto alheio, ainda que de origem anônima.
Expressões como ‘entrar com o pé direito’, ‘ter o olho maior que
a barriga’, ‘estar com a pulga atrás da orelha’; ‘conversa pra boi
dormir’ e milhares, milhares de outras são exemplares da natu­
ral intertextualidade que marca toda a nossa atividade de lingua­
gem. (É pena que, em nossas experiência escolares, não sejamos
advertidos da importância dessas estratégias comunicativas tão
produtivas e relevantes!)
Na verdade, trazer partes de um texto para outro constitui
um processo que, normalmente, envolve operações de:
(a) recapitular — trazer à memória o texto de outro;
(b) remontar — buscar outra visão para o ponto em questão;
(c) reenquadrar — adequar essa outra visão ao novo quadro ou
ao novo contexto;
(d) conformar — fazer o texto em elaboração ajustar-se aos mo-
delos de texto socialmente reconhecidos.

120 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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Como se pode ver, são operações que exigem mais do que


a simples reutilização de um texto anterior em um novo texto.
Quem lança mão de um outro texto, ou seja, da palavra do outro,
o faz como estratégia de se servir do que disse o outro para dele se
aproximar — concordando —, ou dele se distanciar — refutando.
Ninguém cita a palavra do outro de forma neutra; simples-
mente, por citar. Há sempre um propósito embutido na operação
de recorrer à palavra do outro. Esse propósito é que vai validar
a estratégia da citação da palavra do outro, ou mesmo da simples
alusão a ela.
Por vezes, tem sentido atentar para certos elementos que
compõem o ‘entorno do texto’, como o título da obra, o prefácio,
as ilustrações, notas sobre autoria ou sobre a história da editora
etc. Esses elementos também guardam certa ‘dependência inter-
textual’ de práticas textuais anteriores.

2. Em sala de aula

Podíamos começar por uma consideração bem geral que tem


como base a experiência de muitas constatações. Vejamos.
Em qualquer análise de livro didático, é possível verificar
que falta a abordagem de questões que poderiam caracterizar a
opção por uma ‘educação linguística’ mais ampla, mais discursiva,
mais distante daquelas tradicionais, centradas na descrição das
classes gramaticais, na análise da classificação das orações e de
seus termos constituintes, bem como na enumeração dos erros,
sobretudo os erros sintáticos, e seus respectivos acertos.
Além da carência constatada nos livros didáticos em relação
a ‘essa educação linguística’, são fartos os chamados ‘comandos
paragramaticais’, espalhados em diferentes canais da mídia e das
redes sociais, que, insistentemente, reforçam a visão simplista
da ‘todo-poderosa gramática’, alimentando, assim, toda sorte de
equívocos e de preconceitos.
Têm lugar, portanto, para se inserir em nossas pautas curri-
culares conceitos menos corriqueiros — como aqueles que envol-

Em que consiste a intertextualidade? 121


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vem as questões textuais — mas tão significativos numa visão


mais ampla das ações de linguagem.
Fazemos, nesse sentido, algumas sugestões.
Muito de todo o conjunto de conceitos sobre intertextualidade
pode e deve ser explorado em sala de aula; pode e deve ser objeto
de atividades, das mais simples às mais complexas. Para início de
conversa, é bom lembrar que até mesmo o tópico ‘intertextualida-
de’ deve ser falado, nomeado, elucidado, aclarado em sala de aula.
Por exemplo, questões como:
(a) o que é intertextualidade;
(b) em que consiste;
(c) como se manifesta;
(d) que funções tem;
(e) que efeitos produz;
(f) o que implica, em termos de um repertório de conhecimentos
armazenados na memória, além de outras,
podem entrar na pauta dos pontos a serem explorados.
Ao lado da exploração dos conceitos, poderiam acontecer as
análises de textos em que se pudessem observar os diferentes
tipos de intertextualidade. Desde aquela decorrente da similari-
dade de gênero, passando por aquela simplesmente temática, até
ocorrências de citação, ou de alusão, considerando, inclusivamen-
te, as supostas intenções pretendidas nessas ocorrências.
Quando for oportuno, convém levar os alunos a identificarem
o texto-fonte do fragmento intertextual, na certeza de que isso
também representa uma estratégia de ampliação de seu repertó-
rio cultural.
Não apenas a literatura pode servir de apoio para essas ati-
vidades, mas, como mostramos, todo o repertório dos provérbios
populares, das frases feitas, das expressões fixas, dos bordões
em uso etc. Será uma oportunidade de a escola promover aque-
le diálogo, aquela ‘comunhão’, com a produção de outros textos,
contemporâneos ou não e assim desenvolver o sentido de perten-
cimento a uma comunidade universal de pensamento e de lin-
guagem. Nada que só a gramática nos deixe ver.

122 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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Essa consciência de estar alinhado com um discurso de todos


está claríssima em versos de Ferreira Gullar, e manifestada com
uma graça impecável. Vejamos.

Muitas vozes

Meu poema
é um tumulto:
a fala
que nele fala
outras vozes
arrasta em alarido.

estamos todos nós


cheios de vozes
que o mais das vezes
mal cabem em nossa voz.
(...)
Meu poema
é um tumulto, um alarido:
basta apurar o ouvido.
Ferreira Gullar. Muitas vozes. In: Toda poesia. Rio de Janeiro:
José Olympio, 2008, p. 454.

Observemos que, na linguagem do poeta, o seu poema é: um


‘tumulto’; um ‘alarido’, expressões que trazem claras as ideias de
‘grupo’ e de ‘coletivo’, que não apenas se juntam, mas que têm
vozes que falam e são arrastadas pela voz do poema, tornando-o
um ‘alarido’. Um coro? Uma algazarra?
Os versos:

estamos todos nós


cheios de vozes
que o mais das vezes
mal cabem em nossa voz

Em que consiste a intertextualidade? 123


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é a síntese que define — com grande consistência e imensa graça


— a dimensão da intertextualidade.
Então, não podemos privar nossos alunos de conhecer e ad-
mirar e curtir essas coisas tão bonitas do mundo da linguagem.
Não podemos sonegar a eles o acesso a esses conhecimentos, tão
mais estimulantes, mais animadores e carregados de sentido hu-
mano e comunitário.

***
Cada vez mais me impressiono com a estreiteza de visão
com que as pessoas — sobretudo as pessoas letradas — têm a
respeito de questões linguísticas. Confundem língua com gra-
mática. Gramática com ortografia. Falar e escrever bem com fa-
lar e escrever sem erro gramatical. Avaliar com corrigir. Não
veem mais que isso. Aprendem, durante onze anos, exatamen-
te, o quê? Nem mesmo conseguem identificar em qual contexto
usar um ‘a’ com o acento indicativo da crase. Muitas vezes, me
lembro daquela advertência dos manuais de trânsito: “Na dúvi-
da, não ultrapasse”. E, recorrendo à intertextualidade, digo: “Na
dúvida, não use a crase”, porque, devido talvez ao cuidado de
não ‘errar’, se esteja incorrendo numa hipercorreção e usando o
acento grave em quase todo ‘a’.
Não podemos adiar a introdução de outros conteúdos para
as aulas de língua, seja língua materna, sejam línguas estran-
geiras, na convicção de que existe uma ciência que tem como
objeto o fenômeno da linguagem e muito pode acrescentar à for­
mação integral das pessoas, como seres vocacionados ao dia-
logismo, ao intercâmbio, à interação, à reciprocidade. Muito
podem acrescentar, em outros termos, à preparação das pesso­
as para o mundo do trabalho, e à continuação de seus estudos
ao longo da vida.
Analisemos como o recurso à intertextualidade pode elevar a
relevância de um texto e a força dos argumentos com que defen-
demos nosso ponto de vista.

124 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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Da fome à obesidade — Sobrepeso atinge mais


da metade da população adulta do país

“A fome dizima as populações do terceiro mundo”, di-


zia Josué de Castro, em 1946, no livro Geografia da
fome. “A fome é escamoteada, é escondida, não se
fala neste assunto, que é vergonhoso, a fome é um
tabu”, afirmava ele. Foi um dos precursores de pes-
quisas sobre a fome no Brasil e no mundo. “Não foi na
Sorbonne, nem em qualquer outra universidade sábia
que travei conhecimento com o fenômeno da fome”,
disse ele. “A fome se revelou espontaneamente aos
meus olhos nos mangues do rio Capibaribe, nos bair-
ros miseráveis do Recife”. Esta foi a sua Sorbonne: “A
lama dos mangues de Recife, fervilhando de caran-
guejos e povoada de seres humanos”.
Menos de uma década depois (1955), outro pernam-
bucano, João Cabral de Melo Neto, publicava um dos
mais famosos poemas da língua portuguesa — “Mor-
te e Vida Severina”. No texto, o poeta denunciava a
miséria reinante no país, ao dizer que “somos todos
Severinos [...], condenados à morte de velhice antes
dos 30, de emboscada antes dos 20, de fome um pou-
co por dia”.
Três décadas mais tarde, em 1984, o cantor e com-
positor baiano Caetano Veloso lamentava: “Enquan-
to os homens exercem seus podres poderes, morrer
de fome, de raiva e de sede são tantas vezes gestos
naturais”. Ou seja, até pouco tempo, a fome era um
assunto tabu e dizimava populações, segundo Josué
de Castro; a fome matava diariamente milhões de
brasileiros, dizia João Cabral; por causa dos podres
poderes, morrer de fome era algo natural, cantava
Caetano.
No início dos anos 90, cerca de 32 milhões de bra-
sileiros viviam abaixo da linha da pobreza, segundo
o “Mapa da Fome”. O tempo passou e, em 2014, a
FAO informou ao mundo que o Brasil — com menos

Em que consiste a intertextualidade? 125


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de 5% da população em insegurança alimentar gra-


ve — saiu do Mapa da Fome Mundial, uma grande
conquista para um país onde “morria-se de fome um
pouco por dia”.
A conquista brasileira foi fruto de muitos fatores,
como as políticas públicas e a atuação da socieda-
de civil. Contudo, se hoje mais brasileiros passaram
a comer mais, é fato também que outros problemas
surgiram, com as mudanças socioeconômicas que
provocaram mudanças nos hábitos alimentares da
população. Segundo o Ministério da Saúde, mais de
50% da população adulta está com sobrepeso, e a
obesidade já beira os 20%. Para se ter uma ideia do
problema, números oficias indicam que o SUS gasta
quase meio bilhão de reais por ano no tratamento de
doenças relacionadas à obesidade. Isso sem contar
outros impactos na economia, como as ausências ao
trabalho. (...)
Apesar de muita gente achar que segurança alimen-
tar e nutricional é apenas o “combate à fome”, o con-
ceito é muito mais amplo do que se imagina. Não é
só comer, não é só “matar” a fome. Estamos falando
de alimentação adequada e saudável, livre de agro-
tóxicos e transgênicos, que não prejudique sua saú-
de nem o meio ambiente. O conceito de segurança
alimentar e nutricional também prevê o respeito e a
preservação dos hábitos alimentares (cultura alimen-
tar) de um povo, de uma região, de uma comunidade,
como, por exemplo, as tradições alimentares dos in-
dígenas, entre outros.
A fome ainda não está de todo vencida, pois há ainda
3,8% de brasileiros privados do acesso diário ao ali-
mento — e a situação é mais séria entre grupos vul-
neráveis (os mais pobres, os negros, os quilombolas,
os indígenas, entre outros). O que se espera é que
fique no passado — e não volte nunca mais — o tem-
po em que se morria de fome um pouco por dia, como

126 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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no poema de João Cabral; o tempo em que morrer de


fome era coisa natural, como na música de Caetano;
o tempo em que a fome era um assunto tabu, como
no livro de Josué de Castro.
Marcelo Torres. http://bit.ly/2hiZvQb [acesso: 20/09/2017,
adaptado).

É interessante perceber como a alusão aos três autores cita-


dos concorreu para intensificar a ideia principal do texto, além
de conferir à sua exposição mais relevância e até certa graça.
Chamo a atenção para o fato de as três citações não apenas
terem como temática a ‘fome’, mas terem privilegiado o aspecto
bem singular com que, em momentos bem diferentes, cada autor
citado visualizou o problema da fome e a reação social que esse
problema causava: a fome matava aos pouquinhos — talvez, não
fosse por isso percebida ou fosse vista apenas como coisa natural
ou assunto a evitar — nada, pois, para causar espanto ou interes-
se. Além das citações terem realçado o lado cruel da fome, puse-
ram a descoberto a indiferença social frente a sua gravidade.
Muito significativa, reconheçamos, é também a forma como,
no final do texto, o autor retomou a visão dos três autores, os
quais, agora, numa espécie de coro, gritam contra o mesmo
fantasma; o mesmo algoz da fome sutil, da fome silenciada, da
fome negada:

O que se espera é que fique no passado — e não volte nunca mais — o


tempo em que se morria de fome um pouco por dia, como no poema de
João Cabral; o tempo em que morrer de fome era coisa natural, como
na música de Caetano; o tempo em que a fome era um assunto tabu,
como no livro de Josué de Castro.

Do ponto de vista da intertextualidade ampla, muito se po-


deria dizer. O texto é permeado de referências a espaços (Brasil,
Recife, Sorbonne, mangue), a entidades (SUS, FAO, Ministério da
Saúde), a povos (negros, quilombolas, indígenas), a coisas do uni-
verso alimentar (caranguejos, cultura alimentar, hábitos alimenta­

Em que consiste a intertextualidade? 127


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res, segurança alimentar, agrotóxico, transgênicos); ou seja, itens


que sobejamente já pertencem ao conhecimento dos leitores e,
por isso, implicam uma relação de ampla intertextualidade.
Recorrer à intertextualidade, na perspectiva, assim, de refor-
çar a propriedade do que dizemos — lançando mão do que outros
já disseram — constitui um recurso muito significativo, que po-
deria estar entre os pontos a serem aprendidos e praticados na
escola, nas oportunidades de ‘produção de texto’. É bom advertir,
contudo, que não basta trazer para nossos textos fragmentos de
textos de outros autores. Como aconteceu no texto analisado logo
acima, convém que esses fragmentos sejam incorporados ao nosso
‘dizer’, pela nossa adesão ou pela nossa recusa a eles, e que guar-
dem nítida relação com os tópicos e os propósitos em desenvolvi-
mento. A bem da ‘autoria’, ponto do que não se pode abrir mão.

***
Não posso deixar de insistir no fato de as lições de gramática
ainda serem, nos tempos de hoje, o foco do ensino da língua em
muitas escolas, quase sempre com o aval dos seus gestores e, mui-
tas vezes, da família dos alunos, a despeito de tantas mudanças
no âmbito das linguagens e das tecnologias ligadas a elas.
Será, pergunto eu, que para chegar ao desempenho (criativo,
expressivo, convincente, atrativo...) a que chegou o autor do texto
‘Da fome à obesidade’ e outros aqui analisados, bastam lições de
gramática, bastam exercícios de formar frases soltas?
Onde fica a formação integral do aluno? Onde fica a sua prepa­
ração para o mundo do trabalho?

128 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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onze
OS GÊNEROS DE TEXTO:
NOÇÕES E PRÁTICAS
PEDAGÓGICAS

1. Fundamentos

F
az parte da tradição escolar a exploração do conceito de
‘tipos de texto’, centrada, sobretudo, nos tipos narrativo,
descritivo e dissertativo, distribuídos conforme os avanços
dos estudos escolares, desde a educação básica.
Devido à pouca atenção da escola às práticas da produção de
texto, essa exploração não foi uma das mais produtivas. Quase
sempre, os alunos não eram advertidos em relação ao tipo de
texto que deviam produzir. Comumente, em um tempo que já
vai longe (espero!), a solicitação se esgotava em um simples co-
mando de ‘Escreva um texto sobre’... ou ‘Conte uma história’...,
sem maiores definições de propósitos, de interlocutores, e — o
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mais grave — sem preparo prévio acerca das especificidades


temáticas, linguísticas e textuais dos tipos de texto implicados
nessas solicitações.
Acontece que os estudos linguísticos se desenvolveram e, nas
ampliações daí decorrentes, ganhou interesse a questão da tipolo­
gia textual, o que acarretou maior visibilidade e mais clara defini-
ção para esse tema e seus desdobramentos teóricos e pedagógicos.
Entre esses desdobramentos, situa-se o ponto dos gêneros tex­
tuais, que têm constituído um tópico bastante discutido e já ex-
plorado em alguns programas e atividades da escola.
Merecem desenvolvimento aqui os conceitos mais gerais e
preliminares acerca de tipos e gêneros textuais. Começo por ad-
vertir que os dois conceitos são muito próximos, tanto que, por
vezes, há quem use um termo pelo outro.
Vamos aos comentários.
Os tipos de texto têm sido mais frequentemente objeto de ex-
plicações que os gêneros. Há tempo que são explorados, sobre-
tudo os tipos narrativos e os descritivos, embora com base em
abordagens bem gerais e superficiais.
Marcuschi (2002: 22), em sequência a outros linguistas que
tratam da mesma questão, admite que:
(a) a expressão tipos de texto é usada para designar uma espécie
de construção teórica definida pela natureza linguística de
sua composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempo verbais,
ligações lógicas). Em geral, os tipos textuais abrangem cerca
de meia dúzia de categorias conhecidas como: narração, argu­
mentação, exposição, descrição, injunção.
(b) A expressão gênero textual é usada para referir os textos ma­
terializados que encontramos em nossa vida diária e que
apresentam características sociocomunicativas definidas por
conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição ca-
racterística. Se os tipos textuais são apenas meia dúzia, os gê-
neros são inúmeros.
(c) Chamo a atenção para a distinção bastante pertinente fei-
ta por Marcuschi entre tipos e gêneros textuais: os tipos são

130 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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‘construções teóricas’, quer dizer, existem enquanto objetos


teóricos; os gêneros são, ao contrário, ‘textos materializados’,
quer dizer, textos concretos, situados e datados. Isso implica
que, concretamente, o que a gente produz ou recebe são gêne­
ros de texto e não tipos de texto. (Essa distinção nos ajuda a
compreender melhor os dois conceitos, tão próximos.)
Trocando em miúdos certos pontos dessas definições, pode-
mos acrescentar a seguir alguns comentários.
(a) Os tipos de texto são reconhecidos por suas marcas linguís-
ticas e não são concretamente exemplares de texto. Os gêne­
ros, ao contrário, são textos concretos, reconhecidos por seu
conteúdo, por seus propósitos comunicativos e sua forma de
composição. Por exemplo: um texto do tipo narrativo pode,
concretamente, ser dos gêneros notícia, relato policial, bio-
grafia, romance, crônica, conto etc.
(b) Dessa forma, segundo Marcuschi (2002: 20), os gêneros ca-
racterizam-se muito mais por suas funções comunicativas,
cognitivas e institucionais do que por suas peculiaridades
linguísticas e estruturais.
Tanto é assim que nomeamos os textos pelos gêneros, não
pelos tipos. Dizemos que recebemos uma carta (não uma
descrição); que lemos uma notícia, uma crônica (não uma
narração); que escrevemos o resumo de um livro (não uma
exposição) etc. Ou seja, os gêneros (aos milhares!) são as for­
mas concretas que os poucos tipos de textos assumem. São,
em outras palavras, realizações empíricas de textos, tal como
os conhecemos em nosso dia a dia:
Ø adivinhação;
Ø anedota;
Ø anúncio;
Ø artigo científico;
Ø aviso;
Ø bilhete;
Ø biografia;
Ø carta;

Os gêneros de texto: noções e práticas pedagógicas 131


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Ø charge;
Ø conferência;
Ø conto;
Ø contrato;
Ø conversação;
Ø convite;
Ø crônica;
Ø declaração;
Ø depoimento;
Ø edital;
Ø editorial;
Ø e-mail;
Ø exposição oral;
Ø fábula;
Ø fôlder;
Ø formulário;
Ø história em quadrinhos;
Ø história;
Ø mensagem de felicitação;
Ø nota;
Ø palestra;
Ø resenha;
Ø resumo;
Ø sermão...
e muitos, muitos outros.
(c) Uma das características fortes dos gêneros é que eles repre-
sentam o lado estável das realizações textuais; ou seja, os
gêneros apresentam-se sob a forma recorrente de ‘modelos’,
admitem uma composição própria, apesar de sua f lexibili-
dade e maleabilidade de forma e conteúdo; o normal é que
a gente queira saber como se faz um resumo, um reque-
rimento, um recibo, uma procuração, um edital, como se
apresenta em público a resenha de uma obra etc.; por isso
mesmo, os gêneros são tidos como “formas relativamente
estáveis” de texto.

132 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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(d) Essa estabilidade dos gêneros decorre do fato de eles serem


resultado de ações convencionais, tipificadas, recorrentes
(todo mundo é capaz de reconhecer uma carta); por isso, os
gêneros textuais contribuem decisivamente para ordenar e
regular as atividades comunicativas do cotidiano (ninguém
faz uma carta sem seguir o modelo próprio de ‘carta’); desse
modo, eles contribuem para facilitar a compreensão, uma vez
que, dada sua estabilidade, os gêneros geram e selecionam
expectativas de compreensão (lemos uma carta, já sabendo o
que costumamos encontrar numa carta; lemos um editorial já
sabendo o que esperar de um editorial, e assim por diante).
(e) Os gêneros textuais (não os tipos) é que respondem a um
determinado propósito comunicativo; por exemplo, o gênero
carta pode ter o propósito de fazer um convite, de fazer uma
solicitação, de agradecer, de felicitar, de comunicar uma deci-
são e outros; um aviso, em geral, cumpre a finalidade de fazer
uma advertência, comunicar ao grupo alguma coisa de seu
interesse particular etc.
(f) Apesar de estáveis, os gêneros são flexíveis; isto é, podem,
no decorrer do tempo, assumir formas novas, conforme as
condições socioculturais em que as pessoas atuam; ou seja,
são construídos historicamente pelas pessoas, em seus gru-
pos sociais de atuação; por isso, são definidos como “produ-
tos histórico-sociais”; o ‘telefonema’ e o ‘bate-papo virtual’
podem ser vistos hoje como transformações do gênero ‘con-
versa face a face’; o e-mail pode ser visto como uma mensa-
gem híbrida (mistura do escrito e do oral), no sentido de que
contém traços de uma carta e, ao mesmo tempo, traços de
uma conversa.
(g) Na verdade, apesar da sua reconhecida flexibilidade, os gê-
neros regulam o que dizer e o como dizer; são, por isso e de
certa forma, normativos, coercitivos, assim como todo produ-
to humano; mas eventualmente um gênero pode assumir a
forma ou a função de um outro (por exemplo, Drummond
escreveu um poema em forma de carta endereçada à mãe —

Os gêneros de texto: noções e práticas pedagógicas 133


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cuja cópia, pela sua beleza, não pude deixar de transcrever


no final deste capítulo).
(h) Cada gênero adota uma forma de composição diferente:
uma carta, por exemplo, se desenvolve, em seu arranjo su-
perficial, em ‘blocos’, uns obrigatórios, outros opcionais;
há gêneros que exigem, para tais blocos, uma sequência
fixa, rígida; outros, uma sequência f lexível; são, por, isso
mesmo, considerados ‘formas típicas’, com características
comuns, usuais, recorrentes, embora possam mudar com o
tempo, como vemos.
(i) Por sua natureza de ‘produto histórico-social’, convivemos
com a possibilidade de surgirem novos gêneros textuais — os
gêneros emergentes — provocados, entre outras razões, pelas
inovações tecnológicas ou pelas novas motivações culturais,
também emergentes; merece citar o gênero ‘telefonema’; mais
tarde, o e-mail, o chat, o blog, entre outros, e agora as mensa-
gens do WhatsApp.
(j) Os gêneros escritos precisam de suportes, que são os materiais
onde eles circulam e aos quais os leitores podem ter acesso;
são exemplos de suportes, portanto, livros, revistas, jornais,
folhetos, painéis, outdoors, cartazes, panfletos, embalagens,
rótulos, fichários, telas de TV e de computador e outros.
(k) Outro ponto ligado a essa questão dos gêneros textuais é o
que se tem chamado de ‘domínios discursivos’, tidos como os
espaços socioculturais em que os gêneros costumam aconte-
cer, ou seja, são produzidos e circulam. Podemos lembrar, por
exemplo, o domínio religioso, o jornalístico, o acadêmico, o pu­
blicitário, o jurídico, o literário, o cotidiano, o eletrônico/digital;
em cada um desses domínios, é praxe a circulação de deter-
minados gêneros, mais ou menos sistematicamente; assim, no
domínio jornalístico, costumamos encontrar exemplares dos
gêneros notícia, reportagem, editorial, artigo de opinião, carta
do leitor, entrevista etc.
(l) Vale considerar que a coerência do texto tem muito a ver com
a adequação da composição do texto às regularidades de seu

134 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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gênero; as alterações por acaso feitas respondem, sem dúvida,


a determinados propósitos e serão, assim, legitimadas pelos
contextos em que os textos circulam; a flexibilidade inerente
aos gêneros textuais torna válidas essas alterações.
Sem esgotar os pontos teóricos que envolvem a questão dos
gêneros textuais1, cremos ter abordado o mais relevante desse tó-
pico, tão significativo para todos aqueles que se dispõem a fazer
do texto o objeto de ensino-aprendizagem da língua, uma vez que
“a comunicação verbal só é possível por algum gênero textual”
(Marcuschi, 2002: 22).

2. Em sala de aula

O que está afirmado no finalzinho do tópico acima já diz


tudo: se toda ação verbal só ocorre sob a forma de algum gênero
de texto, então, trabalhar em sala de aula com textos é, necessaria­
mente, trabalhar com gêneros textuais.
A primeira recomendação a ter em conta é não converter o
tópico ‘gênero de texto’ em um conteúdo a mais, isolado do mun­
do real do discurso, e assim se contentar com ‘passar’ (ou trans-
mitir) definições, classificações, nomenclaturas e outros itens da
metalinguagem, que depois devem ser identificados em ativida-
des e provas.
O que importa é compreender, explorar, analisar o que é rele-
vante saber acerca dos gêneros em geral e de cada um que tenha
sido objeto de estudo. É fundamental praticar, exercitar, analisar,
em atividades planejadas e revisadas, tanto a escrita quanto a lei-
tura dos diferentes gêneros. Assim como não se escreve qualquer
texto de qualquer jeito, também não se deve ler qualquer texto
de qualquer jeito. Um poema, por exemplo, pede um modo de ler

1
Vale a pena consultar o Dicionário de gêneros textuais, de Sérgio Roberto Costa (ver bi-
bliografia). Nessa obra, o autor, além de propiciar uma discussão teórica sobre a questão
dos gêneros textuais, apresenta uma relação dos principais gêneros escritos e orais, com
suas definições e características, o que pode favorecer um trabalho mais amplo e consis-
tente dos gêneros, enquanto objeto didático.

Os gêneros de texto: noções e práticas pedagógicas 135


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(e de escutar) bem peculiar. Evidentemente, essa prática também


atinge a preparação e a análise dos gêneros orais, na sua imensa
diversidade de formas e estilos.
Como sugestão geral para o trabalho em sala de aula, creio
que, para cada semestre, se poderia selecionar alguns gêneros
que seriam objeto de estudo, a partir dos interesses manifes-
tados pelos alunos e conforme as possibilidades comunicativas
já desenvolvidas em séries anteriores. Essa seleção deveria
evidentemente incluir tanto gêneros textuais escritos quanto
gêneros orais.
Podemos admitir que a escola, em seus programas e ativida-
des de ensino, tem negligenciado o desenvolvimento de compe-
tências comunicativas no âmbito da oralidade. Nem mesmo os
livros didáticos têm percebido essa lacuna. E somos testemunhas
das dificuldades que os alunos encontram para apresentar oral-
mente um trabalho, ou fazer uma apresentação em público e,
mais adiante, fazer uma pergunta ou um comentário por ocasião
de uma conferência, por exemplo.
De fato, a oralidade não tem merecido da escola a atenção que
merece. Até mesmo a prática da conversação poderia (e deveria)
ser objeto de análise e de orientação. São notórias as dificuldades
das pessoas, em geral, para participar, com escuta atenta e res-
peitosa, de uma conversa em grupo. Como é comum a dificuldade
das pessoas para fazer a palavra circular, ou seja, para permitir
que outros tenham a vez de entrar na conversa.
A propósito, valia a pena lembrar que as ‘máximas da con-
versação’ dariam uma boa matéria de estudo em sala de aula. No
mínimo, podíamos contribuir para que ‘a escuta atenta’, desde
a mais corriqueira conversação até as interações mais solenes,
poderia ser objeto de exploração e análise em nossos programas
de estudo da língua.
Quanto à escolha dos gêneros a serem objeto de estudo em
sala de aula, lembro a conveniência de incluir uma análise dos
‘enunciados mais comuns que constam nas tarefas escolares e
nas provas de avaliação’. São comuns as interpretações equivo-

136 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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cadas ou incompletas dos alunos, decorrentes da falta de clareza


ou da formulação ambígua desses enunciados. Em geral, eles não
são objeto de análise, em termos do que é pertinente fazer, para
atender, satisfatoriamente, suas solicitações.
Lembro que a finalidade maior para este estudo não poderia
ser outra senão desenvolver nos alunos as competências comuni­
cativas — seja em que série for — para escrever, ler, produzir
e ouvir textos, segundo as características dos gêneros que mais
respondem à demanda social de nossas interações atuais.
Sempre com aquele cuidado de não apenas transmitir con-
teúdos, esse trabalho incluiria, para começar, análises de textos
— uma análise primeira — em que se pudesse perceber quais as
características principais dos gêneros textuais escolhidos.
Entre essas características, se poderia enumerar:
(a) os propósitos comunicativos mais peculiares àquele gênero
(que propósitos tem um aviso, um bilhete, uma carta, um re-
cibo, um relato oral, por exemplo?);
(b) sua forma de composição (que blocos compõem uma carta pa-
drão: quantos, quais, em que ordem se distribuem no texto;
ou seja, como se começa, como se desenvolve, como se finali-
za uma carta); quais blocos são opcionais, quais são obriga-
tórios; uma atividade interessante poderia ser analisar textos
do mesmo gênero e procurar perceber que alterações ocorre-
ram e por que ocorreram;
(c) as opções linguísticas (a seleção lexical ou o vocabulário
escolhido, os tempos verbais, o uso de pronomes, de conec-
tivos, por exemplo) mais frequentes em um texto do tipo
narrativo, ou do tipo descritivo, ou argumentativo, ou injun-
tivo, por exemplo);
(d) o registro de linguagem (mais formal ou mais informal) mais
adequado a esse gênero, em conformidade, é claro, com ou-
tros elementos do contexto em que acontece a interação;
(f) a disposição no papel (ou a apresentação formal) mais co-
mum, mais usual para o gênero em estudo (pensemos na divi-
são do texto em parágrafos quando se trata de uma história,
de uma fábula ou de um comentário);

Os gêneros de texto: noções e práticas pedagógicas 137


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(g) as relações entre oralidade e escrita, suas semelhanças e dife-


renças, que poderiam, na exploração dos gêneros, ser perce-
bidas com mais clareza e consistência;
(h) enfim, analisemos com os alunos como determinados gêneros
são apresentados em nossas interações verbais — escritas ou
orais — do nosso cotidiano, a fim de que eles possam ampliar
as competências que, assistematicamente, já tiveram desen-
volvido em suas experiências de convivência e letramentos.
Ainda nesse âmbito do trabalho em torno dos gêneros tex-
tuais, pensando nos futuros e nos atuais professores, lembro a
grande conveniência de abordar a temática de ‘como elaborar os
enunciados de questões de provas ou das tarefas escolares’. São
muito comuns os episódios de insucesso nesse particular, seja
pela falta de clareza dos objetivos pretendidos, seja pela falta de
clareza ou ambiguidade dos termos da formulação. Atenção tam-
bém merecem essas formulações conforme as respostas espera-
das sejam objetivas ou subjetivas.
Não me parece que esse tema da ‘elaboração de questões e
atividades didáticas’, em geral, tenha ganhado interesse nos cen-
tros acadêmicos que se ocupam da formação docente2.
Uma crítica comum às atuações pedagógicas da escola em ge-
ral diz respeito à distância — quilométrica — que se pode perceber
entre a língua que a gente fala, que a gente ouve, escreve e lê e aquela
outra que é objeto de estudo e de explicação nas aulas de português.
Lembro-me de um dos vestibulares da UFPE (Universidade
Federal de Pernambuco), em que a redação solicitada foi a ela-
boração de uma carta em resposta a uma contestação feita pelo
leitor de um jornal. Participei da avaliação desses textos e fiquei
surpresa ao constatar que, em muitos casos, os vestibulandos não
atendiam àquelas normas preliminares com que se configura o
gênero carta. Os detalhes da indicação da data, do interlocutor,

2
A esse propósito, vale a pena conhecer a publicação de Denise Lino de Araújo (2017)
(ver bibliografia), em que são relatadas experiências que o Grupo de Pesquisa Teorias
da Linguagem em Ensino, realiza na Universidade Federal de Campina Grande (Campina
Grande, PB).

138 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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das saudações iniciais, do propósito da carta, da divisão do texto


em parágrafos não eram respeitados.
Uma pergunta que não posso calar: o que fizeram esses alunos
em onze anos de aulas de português?
Uma exploração bem consistente dos gêneros textuais pode-
ria ser uma ponte entre essa língua que se estuda, que se quer
aprender cada vez mais e aquela que falamos, que ouvimos, que
escrevemos e lemos em nosso dia a dia.
Ou seja, será que essa conciliação, essa convivência entre
‘as duas línguas’ não seria mais facilitada pela exploração dos
gêneros textuais, e, com certeza, bem mais produtiva? Será que
ela não poderia neutralizar aquela “ideologia da incompetência”,
criada e fortemente sedimentada pela escola em todos aqueles
que frequentaram aulas de português? Geraldi (2010: 89) fala na
“inculcação da incompetência” que, em geral, atinge as pessoas
que frequentam a escola: descobrem que não sabem falar e que o
português é uma língua muito difícil. Será, ao contrário, que essa
convivência entre ‘as duas línguas’ não poderia favorecer, inten-
samente, a autoestima dos alunos em relação ao uso da língua?
Mesmo correndo o risco de ser repetitiva, pergunto: a gente
vive por aí formando frases; a gente vive por aí contanto os fone­
mas ou as letras de uma palavra ou os versos de um poema?
Por que a escola não se concentra naquilo que a gente pre-
cisa saber, do ponto de vista dos usos sociais e interativos da
linguagem?
Como prometi, transcrevo a seguir o poema de Drummond,
em forma de carta à mãe. Merece uma análise, incumbência que
deixo para meus leitores.

Carta

Há muito tempo, sim, não te escrevo.


Ficaram velhas todas as notícias.
Eu mesmo envelheci: olha, em relevo,
estes sinais em mim, não de carícias

Os gêneros de texto: noções e práticas pedagógicas 139


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(tão leves) que fazias no meu rosto:


são golpes, são espinhos, são lembranças
da vida a teu menino, que ao sol-posto
perde a sabedoria das crianças.

A falta que me fazes não é tanto


à hora de dormir, quando dizias
“Deus te abençoe”, e a noite abria em sonho.

É quando, ao despertar, revejo a um canto


a noite acumulada de meus dias,
e sinto que estou vivo, e que não sonho.

C. Drummond de Andrade. Lição de coisas. Rio de Janeiro:


José Olympio, 1962, p. 63.

140 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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doze
E A GRAMÁTICA
NESTA ‘HISTÓRIA TODA’?

1. Fundamentos

T
udo indica que ainda prevalece uma séria incompreensão
acerca do que é ‘gramática’, e isso dificulta em muito a es-
colha do que deve ser o foco do ensino de línguas, sobretu-
do do ensino de língua materna.
Daí a dificuldade em se rever a grade dos conteúdos a serem
explorados, a escolha das atividades a serem propostas, a aborda-
gem, enfim, que o professor tende a fazer em sala de aula.
Essa incompreensão dos que fazem a comunidade escolar —
gestores, educadores de apoio, professores — é subsidiada forte-
mente pela comunidade da família e, até certo ponto, pelos alunos
de séries mais avançadas. Se tem gramática, a aula é boa. Se não
tem gramática, é embromação. (Muitas vezes, essa ‘gramática’
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corresponde apenas a noções de morfossintaxe — analisadas em


frases soltas — e suas respectivas classificações e nomenclaturas.)
Em geral, qualquer movimento que tenha em seu bojo a pre-
tensão de romper com certos paradigmas tradicionais assusta. Pa-
rece carregado de riscos. Não é diferente com essa tendência de
reconhecer a textualidade como condição necessária para a exis­
tência de qualquer espécie de linguagem e foco de todo ensino de lín­
gua, principalmente na perspectiva de uma educação linguística.
Por sua vez, essa nova tendência deriva da concepção de que
toda ação de linguagem é uma atividade de interação, entre dois
ou mais sujeitos, que agem em mútua cooperação e partilham um
conjunto de conhecimentos, de intenções e interesses. Por esses
termos, fica claro que as novas concepções de linguagem admi-
tem como componentes fundamentais a sintaxe, a semântica e,
sobretudo, a pragmática.
Para que possamos entender melhor essas ‘novas concepções
de linguagem’, vale destacar alguns pontos, muitos deles já defi-
nidos neste livro.
Em nenhum momento, as ciências da linguagem pretende-
ram desmerecer, ou até mesmo negar, a necessidade e a função
da gramática. Nem tampouco desestimular, ou mais ainda, su-
bestimar a relevância de seu estudo. Nunca esteve em jogo na
linguística a proposta de um paradigma que excluísse a gramá-
tica. Seria um absurdo.
O que aconteceu foi que, com a inclusão da pragmática,
ocorreu a ampliação do objeto da linguagem e uma maior aber-
tura em relação às concepções sobre sua natureza e realização.
Uma vez que a ‘língua’ passava a ser vista como “a língua-em-
-funções e não como o conjunto de signos abstratos das con-
cepções tradicionais”, outros elementos foram incluídos, com
ênfase nos vários itens implicados nos ‘usos reais, concretos e
múltiplos’ da linguagem.
Nessa ampliação de perspectiva, ganhou destaque o consti­
tuinte cognitivo, absolutamente necessário à efetivação de qual-
quer atividade de linguagem.

142 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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Procurando entender melhor, vejamos as explicações seguintes.


Concorrem para a compreensão ou apreensão dos sentidos
de um texto quatro grandes sistemas de conhecimento. Conse-
quentemente, para qualquer atividade de linguagem, é preciso
mobilizar:
(1) o conhecimento linguístico — o conhecimento lexical e o
gramatical);
(2) o conhecimento enciclopédico — o ‘conhecimento de mun-
do’, ou seja, o conhecimento dos esquemas, dos cenários, dos
modelos episódicos de como as coisas acontecem no dia a dia
de nossas experiências, tudo conforme os padrões culturais
de cada tempo e de cada lugar. Esse conhecimento é acumu-
lado dinamicamente na nossa memória e ativado em cada ex-
periência do dia a dia;
(3) o conhecimento sociointeracional — o conhecimento dos
princípios sociais que regem a interação comunicativa, ou
seja, das normas que regulam ‘nosso comportamento comu-
nicativo’ em nossas rotineiras práticas de uso da linguagem.
Pode-se pensar que não, mas existem regras que governam
a atividade de falar e de ouvir o que o outro diz, em público
ou em particular; também existe o sujeito ‘bem comportado’
comunicativamente, pois “a comunicação linguística é parte
de uma interação social” (Schmidt, 1978: 38).
(4) o conhecimento das regularidades textuais — o conhe-
cimento dos modelos textuais com que nós interagimos, ou
seja, a diversidade de tipos e de gêneros orais e escritos em
uso no dia a dia de nossas interações. Não podemos esquecer
que qualquer texto está submetido a operações de controle,
como estão todas as coisas que fazem parte do universo so-
ciocultural.
Observemos que a gramática ocupa apenas parte de um dos
sistemas de conhecimento a serem mobilizados. Ou seja, por esse
esquema, pode-se fundamentar o princípio de que o conheci-
mento gramatical, se é necessário, também não é suficiente.

E a gramática nesta ‘história toda’? 143


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Quer dizer: não existe atividade de língua sem gramática;


então, ela é necessária; mas também existe a exigência de outros
tipos de conhecimento; então, a gramática não é suficiente.
Contrariamente a essa evidência, impera em quase todas as
escolas a ideia consensual de que ‘saber gramática’ é a maior exi-
gência (senão, a única) para um uso — oral e escrito — da língua
que seja relevante e adequado a todas as situações de interação.
Em consonância com esse consenso, os programas escolares,
subsidiados por alguns livros didáticos, recheiam suas grades
programáticas com a descrição de cada uma das classes gramati-
cais e, mais adiante, com o quadro da classificação das orações e
seus respectivos termos, à luz, sobretudo, da morfossintaxe.
Isso ocorre mesmo quando o ponto que está em pauta é o es-
tudo de uma propriedade especificamente textual. Por exemplo,
o estudo dos pronomes é visto sem se ressaltar sua expressiva
função na criação e na sinalização da coesão textual. A propósito,
vale observar que em geral a categoria gramatical que é explora-
da como sendo recurso de coesão são os conectivos. Parece que os
únicos itens que promovem a articulação dos vários segmentos
do texto são as conjunções.
Na verdade, os livros didáticos têm procurado responder com
mais precisão a essas novas concepções de linguagem, de texto
e de gramática e têm demonstrado sensíveis melhorias em suas
propostas de estudo da língua. No entanto, há ainda certa resis-
tência quanto a assumir uma prática pedagógica diferente da-
quela tradicional.
A ‘gramática’ foi mitificada como a ‘salvadora da pátria’, e não
é fácil desfazer certos mitos. A comunidade escolar — incluindo
aqui muitos pais de alunos — ainda crê na quase onipotência da
gramática. Falta um debate, inclusive um debate público, em que
outras concepções do fenômeno linguístico esclareçam as funções
da gramática, destacadamente, seus limites.
Voltando à questão dos diferentes sistemas de conhecimen-
tos necessários à construção e à compreensão dos sentidos de um
texto, vejamos alguns exemplos colhidos em trechos da mídia,

144 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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que põem a descoberto a relevância cognitiva daquele conheci-


mento enciclopédico.
Quer dizer, sem o conhecimento de mundo como iríamos en-
tender expressões como as que citamos abaixo, todas colhidas em
textos da imprensa atual? Vejamos:
Ø “partido recém-saído das fraldas”;
Ø “ascensão meteórica”;
Ø “liderança em farrapos”;
Ø “piruetas políticas”; “piruetas verbais”;
Ø “alguém que persegue os holofotes”; “sob os holofotes de toda
a mídia”;
Ø “aquele que vive na Idade da Pedra”;
Ø “a seleção da toga não mediu esforço para brilhar”;
Ø “um clima de Fla-Flu”;
Ø “o que importa é a pirotecnia”;
Ø “um carnaval de absurdos”;
Ø “com base nessa cartilha”;
Ø “manobra circense”;
Ø “no olho do furacão”;
Ø “relação umbilical”;
Ø “funcionário fantasma”;
Ø “avalanche de delações”;
Ø “Operação Lava-Jato”, e muitas, muitas outras.
A fixação no linguístico — melhor dizendo, na gramática,
melhor ainda, na nomenclatura gramatical — faz com que não
percebamos essas e outras coisas. Só ter olhos para a gramática,
ou para o estritamente linguístico, nos impede de ver muitas
outras coisas bem significativas para o exercício das atividades
de linguagem.

2. Em sala de aula

Em se tratando das primeiras séries, comecemos por assumir


o desafio de que as noções gramaticais não devem ser o primeiro

E a gramática nesta ‘história toda’? 145


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ponto a preencher a grade de conteúdos a serem aprendidos pelos


alunos na escola. Até porque, como se sabe, qualquer criança em
condições de normalidade já domina muito das regras gramati-
cais de sua língua.
Isso é inteiramente evidente, embora nem mesmo os profes-
sores percebam o quanto a criança já tem incorporadas as regras
do sistema de sua língua. Se estivermos atentos, e se aceitarmos
isso como um pressuposto válido, seremos capazes de perceber
as tentativas da criança na direção de encontrar as alternativas
adequadas para o que pretende dizer.
Uma vez, na saída de uma escola, ouvi um diálogo entre mãe
e filho, uma criança de 5 anos mais ou menos. A mãe disse ao
menino:

— Quando você chegar em casa tem uma surpresa


para você em cima de sua cama.
O menino, com a entonação de quem está realmente
surpreso, falou em seguida:
— Uma surpresa para mim em cima da minha cama?

Na hora, pude constatar quanto a criança tinha sido hábil


na compreensão do que ouvira da mãe. Em sequência à fala da
mãe, suprimiu o que não era necessário (‘Quando você chegar em
casa’) e usou adequadamente os pronomes que a ele se referiam:
‘para você’ é, agora, ‘para mim’; e ‘em cima de sua cama’ é, ago-
ra, ‘em cima da minha cama’.
Um autêntico jogo com a necessária troca de peças, conforme
as exigências da gramática específica da língua. Operação que
denota claramente um conhecimento de quem sabe as regras —
nada simples — da determinação pronominal, mesmo que não
tenha consciência desse saber.
Nas primeiras séries, comecemos, então, por acatar o pressu-
posto de que a criança já mobiliza determinados saberes, inclusi-

146 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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ve aqueles saberes linguísticos, específicos de sua língua. E não


tenhamos a impressão de que lhe vamos ensinar A língua. Na
verdade, concluindo, grande parte das regras da língua a criança
já conhece.
Mas não conhece tudo. Não tem experiência para tanto. É aí
que cabe o nosso investimento: no que ela ainda não sabe e é indi­
vidual e socialmente relevante que aprenda.
A intervenção da escola deveria ser cuidadosa e respeitar o
estágio atual em que estão os alunos. Não há por que, nas primei-
ras séries da educação básica, já trazer noções e nomenclaturas
de categorias gramaticais mais avançadas. Toda a prioridade da
escola deve estar, nessa altura, na aprendizagem da leitura e da
escrita e em habilitar os alunos a usos menos corriqueiros da ora­
lidade. Esse princípio já é consensual nas orientações dos órgãos
públicos encarregados da educação escolar.
A partir da escrita de pequenos textos — que devem ser iden-
tificados pelo nome do gênero (bilhete, mensagem de parabéns,
convite, aviso, listas etc.) — o professor pode ir identificando os
pontos mais urgentes e mais relevantes a serem objeto de consi-
deração. Volto a insistir na produção de pequenos textos e, não, na
formação de frases soltas a partir de palavras ou figuras escolhi-
das aleatoriamente.
Nessa produção de pequenos textos é que, de forma contextua­
lizada, o professor vai chamando a atenção para, por exemplo, o
uso de maiúsculas e minúsculas, para o uso de alguns sinais de
pontuação, para a introdução de certas regras da ortografia, sem-
pre em atenção ao que as crianças vão demonstrando entender.
Mas é sumamente importante, na leitura das produções dos
alunos, o professor conceder primazia às observações que dizem
respeito à clareza da mensagem, ou ao que supostamente o alu-
no quis dizer com as palavras que escolheu. Convém evitar, já
nesse começo, a declaração de que ‘isso está errado’, ‘falar as-
sim é errado’ e outras equivalentes. Ou seja, não insistir, logo
à entrada, na identificação de ‘erros’ e na sua equivalente ex-
pressão correta.

E a gramática nesta ‘história toda’? 147


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Em geral, é nesse período que se inicia nas pessoas que pas-


sam pela experiência escolar a formação da “ideologia da incom-
petência” (de que fala Geraldi); ou seja, aquela crença de que ‘não
sabem falar a língua’.
Pelo contrário, todo empenho é pouco quando se trata de es-
timular a autoconfiança dos alunos, quando se trata de desmiti-
ficar o mundo da ‘gramática correta’, ingenuamente vista como
detentora do saber linguístico máximo e inquestionável.
Associado a esse estímulo, deve-se estar atento para con-
trariar outro mito, fortemente generalizado (sobretudo, entre
brasileiros escolarizados), aquele de que ‘a língua portuguesa é
uma língua muito difícil’ e de que dominá-la constitui uma faça-
nha inatingível, ou atingível apenas por uns poucos superdota-
dos. Pelo contrário, muito do conhecimento linguístico os alunos
já dominam, satisfatoriamente e, com certeza, o vão ampliando
quando também vão sendo diferenciadas suas experiências de
convívio social.

***
Vimos, no espaço anterior da ‘fundamentação teórica’, os sis-
temas de saberes que concorrem em qualquer atividade de lin-
guagem. Vimos como o conhecimento linguístico — que abrange o
conhecimento do léxico e o conhecimento da gramática — constitui
um desses sistemas. Mas ficou claro, também, que o conhecimen­
to da gramática é apenas parte do conhecimento linguístico, que,
por sua vez, é apenas parte dos saberes necessários para que nos­
sas atuações verbais aconteçam.
Vale insistir na ideia de que o conhecimento gramatical é
necessário, mas nunca suficiente. É um engodo de grandes pro-
porções tratar da gramática como se ela fosse um constituinte su-
ficiente para a realização de toda e qualquer ação de linguagem.
Convencidos — nós, gestores, professores e pais — desses li-
mites da gramática (necessária, mas nunca suficiente), vamos as-
sumir o eixo pelo qual seu estudo deve acontecer na escola, desde
a educação básica: os usos sociais da língua, concretizados em ma­

148 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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teriais textuais orais e escritos, de diferentes gêneros, domínios dis­


cursivos, suportes e propósitos comunicativos.
Assim seremos mais flexíveis para acatar as mudanças que
vão sendo atestadas em usos atuais dos falantes com níveis de
escolaridade mais altos e em situações de monitoramento. O que
a gramática estabelece como norma será ensinado e respeitado,
mas com a devida flexibilidade, desde que essa norma seja, de
fato, respeitada por aquela porção de falantes mais escolarizados.
Eu poderia citar como exemplo os usos de certas regências
verbais, como o caso dos verbos ‘assistir’, ‘namorar’, ‘preferir’,
‘visar’ e outros, os quais são usados pelos falantes mais letrados,
mesmo em contextos formais, contrariando as normas tradicio-
nais da gramática. Por que insistir nessas normas? Se a exceção
se tornou o uso dominante, por que não investigar se não é ela a
nova regra?
Na verdade, o que estamos propondo é a constituição de uma
nova concepção coletiva de língua, gramática e de competência
linguística. Uma ‘nova concepção’ que goze de menos rigidez, de
mais flexibilidade, de mais autonomia em relação aos padrões do
passado lusíada ou da tradição literária brasileira.
Por que continuar identificando como erro certas regências
verbais ou certas práticas de colocação de pronomes que estão
fora do uso — na fala e na escrita de brasileiros letrados em situa­
ções mais monitoradas?
Nesse sentido, uma excelente medida — nas séries mais
avançadas — seria recolher, em textos de jornais ou revistas de
prestígio, exemplos nos quais aquelas normas tradicionais se-
riam continuadamente substituídas por outras, atestando que
esses novos usos já estariam incorporados às regularidades da
norma culta.
Carlos Alberto Faraco, em seu livro Norma culta brasileira —
desatando alguns nós (2008), na pretensão de esclarecer a questão
nada simples da ‘norma culta’, a identifica como aquela norma
utilizada em situações de monitoramento, pelos usuários urbanos
que têm o grau máximo de escolarização.

E a gramática nesta ‘história toda’? 149


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Ou seja, em um entendimento mais científico, os tradicionais


compêndios de gramática deixariam de ser a única referência
quando se pretende identificar o uso socialmente prestigiado de
uma língua.
O que ele sugere vai na direção do que adverte Bagno (2012),
em sua Gramática pedagógica do português brasileiro — quando
propõe que as variedades urbanas de prestígio reais constituam
a base para a elaboração de um novo senso comum sobre a língua
portuguesa em uso no Brasil.

150 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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treze
OS LINGUISTAS E
O ENSINO DA GRAMÁTICA

T
em havido certo equívoco em relação à intervenção dos lin-
guistas quando se trata do ensino da gramática nas escolas. Há
quem creia que os linguistas defendem a ideia de que “saber
gramática não é um lance importante” e de que, portanto, “não é para
se ensinar gramática”. Atribuem aos linguistas o princípio de que, em
termos de linguagem, “vale tudo”; “o importante é se comunicar”.
O que os linguistas defendem é que não dá mais para ensinar
APENAS gramática. Defendem — como acabamos de demonstrar
— que a gramática é um componente da língua, não o único.
É um componente necessário, mas não suficiente. Não há como
excluir a gramática das línguas. Todos sabemos que gramática
não é uma questão de opção.

Assim como nenhuma sociedade humana prescinde de comunicação,


nenhuma existe sem uma língua, e todas as línguas têm gramática.
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(...) Mas estudar gramática não leva, nunca levou, ninguém a desen-
volver suas habilidades de leitura, escrita ou fala, nem sequer seu co-
nhecimento prático do português padrão escrito (Perini, 2010: 19).

É preciso ir além, é preciso saber muito mais coisas além de


gramática... É preciso conhecer o léxico da língua e suas possi-
bilidades de se renovar; é preciso conhecer os muitos recursos
— sintáticos e semânticos — para produzir, com as palavras, di-
ferentes efeitos de sentido; é preciso o cálculo do que deve ser
explicitado e do que pode ficar implícito; é preciso conhecer as
propriedades que fazem do conjunto de palavras um texto; é
preciso conhecer os modelos textuais, no que diz respeito a seus
tipos e gêneros; é preciso conhecer as estratégias de adequar o
texto a diferentes propósitos comunicativos, a seus contextos de
uso, a seus interlocutores; é preciso ir além da frase; é preciso ir
além da morfologia, para chegar à sintaxe (às regularidades de
combinação das palavras), à semântica (aos recursos de produção
e apreensão de sentidos), à pragmática (às implicações dos usos
em diferentes situações).
É preciso admitir, como fizeram tantos outros linguistas, que
para os textos, onde se materializam os eventos comunicativos,
convergem ações linguísticas, ações sociais e ações cognitivas.
Portanto, o saber gramatical é apenas parte do que se precisa
saber para atuar verbalmente.
Além disso, os linguistas, entre outras coisas:
• defendem que nenhuma língua é uniforme, é inalterável;
toda língua muda no tempo e no espaço, concretamente, nos
contextos sociais em que é usada; é inevitável haver dife-
rentes normas, como é esperado que existam diferenças em
tudo o que se insere no âmbito da cultura; portanto, fugir à
norma-padrão não é uma decorrência de o falante ‘ser rude’;
‘ser pouco inteligente’ ou ‘ter dificuldades de aprender’, como
alguns acreditavam antigamente;
• defendem que aprender gramática não é o mesmo que apren-
der nomenclatura gramatical;

152 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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• defendem que a ‘frase’ é um espaço muito reduzido e, assim,


não dá conta da complexidade dos usos da língua; logo, não é
a formação de frases ou não são as análises de frases que vão
desenvolver as habilidades de ler, escrever e entender textos
mais extensos e mais complexos;
• defendem que não existe um falar que seja intrinsecamente
melhor que outro. Existe um falar mais adequado que outro a
determinada situação; por isso, o ideal da competência comu-
nicativa será dominar várias normas, ou seja, saber recorrer
a diferentes registros de linguagem que sejam adequados à
situação, aos interlocutores, aos propósitos em pauta; a apren-
dizagem da norma culta está, assim, naturalmente prevista
entre as propostas de linguistas, em razão mesma da neces-
sidade de adequação dos textos às condições da situação em
que está inserido; lembro a famosa máxima proposta pelo
professor Bechara e frequentemente citada quando está em
discussão a questão das ‘normas linguísticas’: “O ideal é fazer
de nosso aluno um poliglota de sua própria língua”. Ou seja,
o ideal dos ideais seria que nosso aluno conhecesse palavras,
expressões, construções ou práticas linguísticas próprias do
meio rural, do meio urbano, de diferentes regiões do Brasil e
de outros países de língua portuguesa. Quanto mais extenso
for o conhecimento da diferença de padrões, mais possibili-
dades de entendimento mútuo;
• defendem o fim de toda rigidez descontextualizada, sem pro-
pósito qualquer, na convicção de que, por vezes, transgredir
uma norma pode ser um recurso com efeitos interativos bem
atraentes; é interessante observar que a própria transgressão
— com uma intenção particular — só é possível para quem
conhece bem os termos da norma;
• defendem que uma pessoa não pode ser discriminada ou ser
menos valorizada e ganhar menos respeito porque fala dife-
rente dos padrões mais formais estipulados pelas gramáticas;
• defendem a contínua prática da leitura, da escrita e da aná-
lise de textos, do debate de ideias, não apenas como pretex-

Os linguistas e o ensino da gramática 153


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to para ‘aprender’, mas como oportunidade de participar da


produção e da divulgação do conhecimento e de todos os bens
culturais;
• defendem, não o fim do ensino da gramática, mas que o en-
sino da gramática seja feito numa perspectiva científica, com
objetividade, sem reducionismos ou simplismos, “observando
a língua como ela é, não como algumas pessoas acham que
ela deveria ser” (Perini, 2010: 21);
• defendem que o ensino da gramática seja feito numa pers-
pectiva consistente, crítica, maleável e socialmente relevante,
a partir de textos autênticos, falados e escritos, dos quais se
possa depreender o funcionamento da língua na construção
dos sentidos. O enfoque deve ser essencialmente semântico­
-pragmático-discursivo (Bagno, 2010: 20);
• defendem que o ensino da gramática seja feito

à luz de teorias que postulem a língua em seu dinamismo, como um


conjunto articulado de processos. (...) Quando falamos ou quando es-
crevemos, uma intensa atividade é desencadeada em nossas mentes.
Isso ocorre com enorme rapidez, acionando quatro sistemas linguísti-
cos, cada um deles configurando por um elenco de categorias: o léxico,
a semântica, o discurso e a gramática (Castilho, 2010: 31-32).

Na verdade, os linguistas têm consciência de que “os cidadãos


ainda não foram suficientemente expostos a um novo modo
de refletir sobre a língua” (Castilho, 2010: 102). Perini (2010:
21) se aproxima desse ponto de vista quando afirma:

Não é possível estudar gramática (nem disciplina nenhuma) sem do-


minar certos conceitos básicos; e os conceitos de gramática são em
grande parte inadequados.

• defendem, em suma, que a escola possibilite o acesso a ou-


tras ‘concepções’ acerca dos fenômenos linguísticos, acerca
da gramática, inclusivamente, não tentando ‘simplificar’ um
sistema altamente complexo, até certo ponto estável e até cer-
to ponto em constante movimento;

154 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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• defendem que a escola promova uma verdadeira educação


linguística, não o ensino puro e simples de uma gramática,
cujas normas, em grande parte, parecem não acompanhar o
dinamismo ininterrupto das comunidades de falantes, o que
já é consequência do grande movimento que caracteriza as
mudanças pelas quais o mundo vem passando, sobretudo no
campo das ‘inteligências ‘ e das linguagens;
• defendem, com o professor Ataliba de Castilho, que

As regularidades que as gramáticas identificam devem fundamentar-


-se no uso comum da língua, quando conversamos, quando lemos jor-
nais, como cidadãos de uma democracia (Castilho, 2010: 32).

Os linguistas e o ensino da gramática 155


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catorze
UM ‘OUTRO’
PROGRAMA DE ESTUDO?

U
ma medida que talvez pudesse proporcionar outra dire-
ção para o ensino e aprendizagem da língua materna nas
escolas poderia ser uma mudança significativa de foco em
nossos programas e em nossas expectativas de aprendizagem.
Ou seja, o que é que em geral direciona nosso estudo da lín-
gua, desde as séries iniciais da educação básica? O que a socieda-
de em geral acredita que se deve ensinar nas aulas de português
e cobra isso com todas as letras em cada oportunidade?
É claro que o que esperam não é o ensino da produção de tex-
tos orais e escritos; que não é o ensino das teorias e práticas de
leitura; que não é a pesquisa e a reflexão sobre as concepções de
linguagem, de língua e de seus componentes; que não são as condi­
ções de sucesso que as exigências modernas das práticas de comu­
nicação exigem; que...
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Poderíamos avançar muito mais nessa relação ‘do que não é...’
Com base nas concepções teóricas e suas contribuições que
fundamentaram as ciências da linguagem nos últimos anos, e re-
tomando aqui explicitamente uma demarcação conceitual que tem
todas as características de ser básica, essencial, lanço mão de um
princípio já introduzido no início deste trabalho (p. 22):

Uma vez que a linguística pretende exercer a função de ‘ciência da lin-


guagem’, é a ela que compete a análise da língua tal qual ela acontece
numa sociedade efetiva.

Ocorre que em qualquer sociedade o que se pode ver como


ocorrência necessária é

a língua-em-funções; nunca o amontoado de signos abstratos da linguís­


tica tradicional (Schmidt, 1978: 7).

Fica claro então que as concepções teóricas que inspiram a


percepção do fenômeno da língua são atualmente bem mais am-
plas, bem mais globais; exigem outro tratamento, outro ‘foco’,
outro ‘objeto’, outras perspectivas, a bem dizer, para sua investi-
gação, aprendizagem e estudo.
Exigem tais concepções concretamente a centração na na­
tureza sociointerativa da linguagem, sob a forma de textos reais,
contextualizados, do que decorre a intervenção dialógica dos inter­
locutores, a exigência de uma orientação temática e a perspectiva
de um propósito comunicativo determinado.
Em palavras claras (e propositalmente reiterativas), tais con-
cepções exigem que os textos sejam O objeto de ensino em todas as
suas especificações e modos de ocorrência.
Isso implica pedagogicamente que todo curso de língua é cur­
so onde se aprende a falar, a ouvir, a ler e a escrever e a conviver
com diferentes fontes de informação; onde se aprende a desenvolver
competências em linguagens, em novos sistemas de informação e
se cultiva o desenvolvimento de um pensamento crítico e inovador;
onde se concebe o aprimoramento pessoal como forma de se alcan­
çar o bem-estar e o êxito coletivos; onde também se estuda gra-

158 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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mática, mas sob outra medida, outras perspectivas e finalidades.


Pensamos com Castilho (2010: 29), quando adverte que “é possível
fazer gramática de um modo inteiramente novo em relação ao
que a tradição nos tem legado”.
Para tanto,
(a) se estuda, se investiga, se analisa o léxico da língua, a gra-
mática, as normas da conversação, as especificidades dos
tipos e dos gêneros textuais, as estratégias presentes nos
processos da oralidade interativa, da leitura interpretativa
e da escrita dialógica;
(b) se estuda, se investiga e se analisa a dimensão histórica das
línguas, como fenômenos a serviço da criação e da transmis-
são do patrimônio cultural de cada povo e de cada grupo e,
como tal, um fenômeno mutável e flexível;
(c) se promove a interdisciplinaridade e a contextualização de todos
os saberes, rompendo com a fragmentação que tem desfigurado
as tentativas pedagógicas de oferecer novos conhecimentos;
(d) se investe no convívio com diferentes fontes e modos de letra-
mento, em resposta às demandas tecnológicas que atingiram
em cheio o mundo da linguagem;
(e) se fortalece a devida preparação dos alunos para o mundo do
trabalho — no qual a adesão às novas concepções e às novas
propostas de intervenção é vital e, portanto, uma questão de
mais qualidade de vida.
Enfim, uma escola para o nosso tempo! Tomando da tradição
aquilo que pode fortalecer o lado humano e coletivo das desco-
bertas e dos modos de ser no presente momento. Sem medo das
mudanças e sem a nostalgia simplista de acreditar, sempre, que
‘bons tempos eram aqueles do passado’.
Concordamos com o professor Ilari, quando ele diz na apre-
sentação da Gramática de Castilho (2010: 29): “É possível fazer
gramática de um modo inteiramente novo em relação ao que a
tradição nos tem legado”.
É possível, acrescento eu, criar outra identidade para a língua,
para seu ensino e seu estudo e para a imagem do professor de por-
tuguês, no Brasil e, quiçá, em outras partes do mundo lusófono.

Um ‘outro’ programa de estudo? 159


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quinze
PARA APROFUNDAR A CONVERSA

N
este capítulo, indico aos leitores e às leitoras que tenho
em mente algumas obras das mais correntes e acessíveis,
a fim de que possam desenvolver, com mais alcance, os
pontos teóricos e metodológicos apresentados ao longo deste livro.
Espero ter estimulado o interesse pelo conhecimento das
questões da textualidade e de suas possíveis aplicações no tra-
balho diário em sala de aula. Assim, a necessidade de um maior
aprofundamento virá naturalmente e, por conta própria, as opor-
tunidades serão buscadas e bem aproveitadas.
Em relação a essa busca dos professores por mais oportuni-
dades de estudo e de reflexão sobre teorias e práticas de ensi-
no e aprendizagem da língua materna, queria lembrar que, nem
sempre, as oportunidades vêm gratuitamente a nós; precisamos
buscá-las, muitas vezes, pedir o acesso a elas, insistir, levados
pela certeza de que, com mais e melhores fundamentos teóricos,
poderemos responder, com mais eficácia, às exigências de uma
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educação linguística que seja, de fato, a prioridade ideológica, polí­


tica, social, institucional e prática do projeto educacional da nação.
São muitas as situações institucionais que constituem blo-
queios à maior eficácia do trabalho pedagógico, o que se reflete
visivelmente no desprestígio social (e salarial) da carreira do
magistério. A própria estrutura das escolas não favorece um
trabalho mais centrado na participação efetiva dos alunos, pois
nem os professores dispõem de condições favoráveis para pla-
nejar e avaliar melhor seu trabalho, nem os alunos, em salas
superlotadas, podem fazer atividades que exijam mais concen-
tração e aplicação pessoal, como, por exemplo, produzir, com a
desejada assiduidade, materiais que impliquem a efetiva intera-
ção oral ou escrita.
Como em um ‘efeito dominó’, é visível também o desinteresse
daqueles que concluem o ensino médio pela procura dos cursos
de Letras e de Pedagogia. Como se esse desinteresse não bastasse,
há a desconfiança de que alguns desses cursos carecem da de-
vida qualidade, submetidos, em muitos casos, a improvisações e
a um funcionamento precário. Temos consciência de todas essas
situações de dificuldades.
No entanto, cremos não poder perder a crença de que vale a
pena tentar e assumir, categoricamente, a possibilidade de ven-
cer os desafios. Não cremos em fatalidade. Cremos na ação deci-
dida de todos, governo e sociedade — do maior ao menor — para
levar a sério as exigências da educação de base, que é, de fato, a
prioridade indiscutível.
Uma dessas exigências é a formação — ampla e contínua
— de quantos cuidam da educação. Professores e gestores. Na
consciência de que as soluções não vêm por milagre ou por má-
gica, mas são resultado do esforço — diário e persistente — de
todos quantos assumiram o dever e o desafio de cuidar da for-
mação das pessoas.
Evidentemente, não devemos apenas ficar à espera de que se-
jam feitas, por iniciativas alheias, as programações que levem às
melhorias que desejamos. Devemos, sem fazer favor a ninguém,

162 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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buscar as oportunidades, pedi-las, sugeri-las, apoiá-las, na certe-


za de que estamos apenas cumprindo ‘a parte que nos cabe neste
latifúndio’, parte essencial e insubstituível.
Tivemos uma formação histórica que muito fortaleceu em
nós a virtude da conformação, que sacralizou em nós o ato de
‘suportar’, de ‘esperar’, que transferiu para ‘entidades divinas’ as
iniciativas de resolução dos problemas. E tudo isso pode estar na
raiz de nossas omissões, de nossa sempre prorrogada tomada de
decisões, sempre à espera de que ‘outros’ cuidem da resolubilida-
de de nossos problemas.
Rompamos com essa tradição e contribuamos para, de al-
guma forma, incentivar nossos dependentes a buscarem saber
inquietar-se, desassossegar-se e até indignar-se diante da pouca
atenção dada à educação do país.
Procuremos, já nessa direção, ampliar e aprofundar nossos co-
nhecimentos, na esperança de que assim seremos mais eficazes e
mais produtivos no desenvolvimento das pessoas e das sociedades.
O conhecimento das questões textuais — complexas e nem
por isso menos fascinantes — pode abrir outros horizontes, ou-
tros estímulos, para outras descobertas, onde tudo ‘tem sentido’,
e o sucesso ou o insucesso são coletivos.

***
Quero agradecer a todos os professores com quem tenho
interagido, em palestras e minicursos, pela oportunidade de
escutá-los, de ouvir a confissão de suas dificuldades, de seus
anseios e até de seus silêncios; a narrativa das situações em
que se sentem animados, esperançosos, e daquelas outras em
que tudo parece não ter solução, não ter jeito. São essas escutas
que me instigam a continuar ‘falando’, a continuar acreditando
que, em alguma medida, posso motivá-los a descobrirem outros
fundamentos, outras razões para seu trabalho no dia a dia da
sala de aula. Sobretudo quando estão desenvolvendo os temas
da linguagem, da língua, da textualidade, do texto, da gramá-
tica, da competência comunicativa, momentos em que podem

Para aprofundar a conversa 163


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revelar a grande importância da linguagem na construção do


mundo e de cada um de nós.
Para facilitar a busca dos professores, apresento a seguir uma
relação de alguns materiais bibliográficos, onde eles podem, de
alguma forma, ampliar as informações e as implicações pedagó-
gicas dos princípios teóricos apresentados neste livro.
É sempre bom ‘saber’ mais!

164 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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REFERÊNCIAS

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Editorial, 2012.
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SCHMIDT, S. J. Linguística e teoria de texto. São Paulo: Pioneira, 1978.

166 Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas


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S�rie Estrat�gias de ensino


1. O ensino do espanhol no Brasil, João Sedycias [org.]
2. Português no ensino médio e formação do professor, Clecio Bunzen & Márcia Mendonça [orgs.]
3. Gêneros catalisadores — letramento e formação do professor, Inês Signorini [org.]
4. A formação do professor de português — que língua vamos ensinar?, Paulo Coimbra Guedes
5. Muito além da gramática — por um ensino de línguas sem pedras no caminho, Irandé Antunes
6. Ensinar o brasileiro — respostas a 50 perguntas de professores de língua materna, Celso Ferrarezi Jr.
7. Semântica para a educação básica, Celso Ferrarezi Jr.
8. O professor pesquisador — introdução à pesquisa qualitativa, Stella Maris Bortoni-Ricardo
9. Letramento em EJA, Maria Cecilia Mollica & Marisa Leal
10. Língua, texto e ensino — outra escola possível, Irandé Antunes
11. Ensino e aprendizagem de língua inglesa — conversas com especialistas, Diógenes Cândido de Lima [org.]
12. Da redação à produção textual — o ensino da escrita, Paulo Coimbra Guedes
13. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social, Roxane Rojo
14. Libras? Que língua é essa?, Audrei Gesser
15. Didática de línguas estrangeiras, Pierre Martinez
16. A palavra e a sentença — estudo introdutório, Ronaldo de Oliveira Batista
17. Coisas que todo professor de português precisa saber, Luciano Amaral Oliveira
18. Gêneros textuais & ensino, Angela Paiva Dionisio, Anna Rachel Machado & Maria Auxiliadora Bezerra [orgs.]
19. As cadeias do texto — construindo sentidos, Cláudia Roncarati
20. Produção textual na universidade, Désirée Motta-Roth & Graciela Rabuske Hendges
21. Análise de textos — fundamentos e práticas, Irandé Antunes
22. Dicionários escolares — políticas, formas & usos, Orlene Lúcia de Sabóia Carvalho & Marcos Bagno [orgs.]
23. Inglês em escolas públicas não funciona? Uma questão, múltiplos olhares, Diógenes Cândido de Lima [org.]
24. Dicionários na teoria e na prática — como e para quem são feitos, Claudia Xatara, Cleci Regina Bevilacqua &
Philippe Humblé
25. Gêneros textuais — reflexões e ensino, Acir Mário Karwoski, Beatriz Gaydeczka & Karim S. Brito
26. Letramentos de reexistência — poesia, grafite, música, dança: hip-hop, Ana Lúcia Silva Souza
27. Pesquisar no labirinto — a tese, um desafio possível, Francisco Perujo Serrano
28. O território das palavras — estudo do léxico em sala de aula, Irandé Antunes
29. Multiletramentos na escola, Roxane Rojo & Eduardo Moura [orgs.]
30. Leitura e mediação pedagógica, Stella Maris Bortoni-Ricardo et alii [org.]
31. Numeramento — aquisição das competências matemáticas, Michel Fayol
32. Letramentos no ensino médio, Ana Lúcia Silva Souza, Ana Paula Corti & Márcia Mendonça
33. Neologia em português, Margarita Correia & Gladis Maria de Barcellos Almeida
34. Língua e literatura: Machado de Assis na sala de aula, Alexandre Huady Torres Guimarães &
Ronaldo de Oliveira Batista
35. O ouvinte e a surdez — sobre ensinar e aprender a libras, Audrei Gesser
36. Ensinar na universidade — conselhos práticos, dicas, métodos pedagógicos, Markus Brauer
37. Os doze trabalhos de Hércules — do oral para o escrito, Stella Maris Bortoni-Ricardo &
Veruska Ribeiro Machado [orgs.]
38. Múltiplas linguagens para o ensino médio, Clecio Bunzen & Márcia Mendonça [orgs.]
39. Leitura de literatura na escola, Maria Amélia Dalvi, Neide Luzia de Rezende & Rita Jover-Faleiros [orgs.]
40. Escol@ conectada — os multiletramentos e as tics, Roxane Rojo [org.]
41. Sete erros aos quatro ventos — a variação linguística no ensino de português, Marcos Bagno
42. Cenas surdas: os surdos terão lugar no coração do mundo?, Renato Dente Luz
43. Aquisição de linguagem, Michèlle Kail
44. Métodos de ensino de inglês — teorias, práticas, ideologias, Luciano Amaral Oliveira
45. Aquisição da escrita, Michel Fayol
46. Pedagogia do silenciamento — a escola brasileira e o ensino de língua materna, Celso Ferrarezi Jr.
47. Por que a escola não ensina gramática assim?, Stella Maris Bortoni-Ricardo et al. [orgs.]
48. Aquisição de segunda língua, Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva
49. Gramática contextualizada — limpando “o pó das ideias simples”, Irandé Antunes
50. Língua, Linguagem, linguística — pondo os pingos nos ii, Marcos Bagno
51. Hipermodernidade, multiletramentos e gêneros discursivos, Roxane Rojo & Jacqueline Barbosa
52. Produzir textos na educação básica — o que saber, como fazer, Celso Ferrarezi Jr. & Robson S. de Carvalho
53. Faça a diferença — ensinar línguas estrangeiras na educação básica, Alex Garcia da Cunha & Laura Miccoli [orgs.]
54. Coaching instrucional — formação continuada e ensino de línguas, Alex Garcia da Cunha
55. Fonologia, fonética e ensino — guia introdutório, Mikaela Roberto
56. De alunos a leitores — o ensino da leitura na educação básica, Celso Ferrarezi Jr. & Robson S. de Carvalho
57. Enunciado de atividades e tarefas escolares — modos de fazer, Denise Lino de Araújo
58. Tiras no ensino, Paulo Ramos
59. O mundo na sala de aula — intertextualidade nos anos finais do ensino fundamental, Maria Silvia Gonçalves
60. Textualidade — noções básicas e implicações pedagógicas, Irandé Antunes
61. Poesia na sala de aula, Hélder Pinheiro
62. Ensinar a ler, aprender a avaliar — Avaliação diagnóstica das habilidades de leitura, Robson S. de Carvalho
63. Oralidade na educação básica — o que saber, como ensinar, Robson Santos de Carvalho & Celso Ferrarezi Jr.
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O
ideal do ensino brasileiro de língua tem sido tornar os alunos
imunes a erros, os quais são sempre mais ou menos os mes-
mos: violações de regras de sintaxe, que incluem concordân-
cia, regência e colocação (de pronomes, sobretudo). Nas listas desses
erros, constam sempre os mesmos casos.
O que essa prática, na maioria das escolas, tem deixado de incluir?
Certamente o empenho em estimular os alunos a serem capazes de
elevar gradualmente o nível de informatividade de seus textos, de di-
zerem coisas que, se não forem ditas, farão falta; capazes de, fugindo
das obviedades, recorrerem a argumentos consistentes, de explora-
rem o lado novo e imprevisível dos fatos e das situações, com o uso de
um vocabulário menos comum e mais conforme às especificidades de
cada situação.
Em geral, todo movimento que tenha a pretensão de romper com pa-
radigmas tradicionais assusta. Parece carregado de riscos. Esperemos
seja diferente com nossa proposta de reconhecer a textualidade como
condição necessária para a existência de qualquer espécie de linguagem
e foco de todo ensino de língua, principalmente na perspectiva de uma
educação linguística.
Textualidade – noções básicas e implicações pedagógicas se dirige prio-
ritariamente a professores da educação básica e a alunos de Letras e de
Pedagogia. Nada impede, porém, que alguém interessado em iniciar-se
nesse mundo do texto e de suas categorias dê uma olhadinha nestas
páginas, a fim de ampliar sua formação linguística.

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