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Iniciação cristã na Igreja Antiga

Luis Carlos de Lima Pacheco1

Resumo
Os sacramentos de iniciação cristã são o batismo, a crisma e a eucaristia.
Esses sacramentos aparecem, desde cedo, nos testemunhos cristãos e de-
sempenham um papel central no rito e na vivência da fé. Esse estudo recorre
às fontes da vida cristã para beber do sentido original desses sacramentos.
Através da análise dos ritos de iniciação cristã de algumas tradições da
Igreja Antiga, vemos emergir a estrutura teológica dos sacramentos de ini-
ciação cristã. Para isso recorremos aos testemunhos de Tertuliano de Cartago,
às Catequeses Mistagógicas de Cirilo de Jerusalém, e às catequeses
mistagógicas de Ambrósio de Milão. O estudo dos símbolos e gestos
litúrgicos visa a reconhecer como se realiza a relação original entre os sa-
cramentos e a realidade que eles expressam. Os elementos colhidos na pes-
quisa dessas fontes cristãs abrem perspectivas para a catequese e a liturgia
atuais. Faz-se urgente uma catequese mistagógica que ajude o homem do
século XXI a reconhecer, na vivência sacramental, a figura de Cristo como o
sentido último de sua existência.
Palavras-chave: teologia sacramental; batismo; crisma; eucaristia; patrística

Christian initiation in the Ancient Church

Abstract
The sacraments of Christian initiation are Baptism, Confirmation and Eucharist.
These sacraments appear early in Christian witness and play a central role in
ritual and living faith. This study draws on the sources of the Christian life to
drink from the original meaning of these sacraments. Through analysis of the
initiation rites of some Christian traditions of the early Church we see emerging
the theological framework of the sacraments of Christian initiation. We refer to
the testimonies of Tertullian from Carthage, to Mystagogical Catechesis of Cyril
of Jerusalem, and the mystagogical catechesis of Ambrose of Milan. The study
of liturgical symbols and gesture aims to recognize how to realize the original
relationship between the sacraments and the reality that they express. The items
collected in these sources offer prospects for Christian catechesis and liturgy
today. Is urgent a mystagogical catechesis which helps the twenty-first century

1
Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco

Ano 1 • N. 2 • jul./dez. 2010 - 161


man to recognize in the sacramental life the figure of Christ as the ultimate
meaning of his existence.
Key words: sacramental theology; baptism; confirmation; eucharist;
patristic

1 Iniciação cristã na tradição de Tertuliano

Tertuliano de Cartago nos oferece o mais antigo tratado


sobre a iniciação cristã em sua obra De Baptismo, escrita entre os
anos 198-205. É um escrito dogmático-polêmico destinado à for-
mação dos “neófitos” da Igreja de Cartago em resposta à heresia
dos “cainitas”, uma seita gnóstica de seu tempo que tentava valori-
zar personagens do Antigo Testamento como Caim, daí o nome
“cainitas”. Uma mulher que os representava em Cartago se infiltrou
na Igreja e exerceu alguma influência junto aos católicos. Tertuliano
combate essa seita, sobretudo porque rejeita o batismo, ou o uso
da água no batismo. Para Tertuliano, o batismo é a única via de
acesso à salvação. É o seu argumento ao citar Jo 3,5: “Se alguém
não renascer da água e do Espírito Santo, não entrará no reino dos
céus” (De Baptismo 13,3).
Um problema pastoral do século II-III motivou Tertuliano
a redigir esta obra para a formação dos fiéis de Cartago. A obra
que chegou até nós é de grande atualidade. É uma reflexão teológi-
ca que nasce de um apelo pastoral. Possibilita conhecer como a
Igreja do norte da África vivenciou e entendeu os sacramentos de
iniciação cristã na sua origem. O texto de Tertuliano permite-nos
ver como a Igreja de Cartago vivenciava ritualmente a entrada do
“eleito” na comunidade cristã através dos símbolos sacramentais.
Para trazer à luz como se dava a iniciação cristã na tradição
de Tertuliano no confronto com outros textos do autor emerge a se-
guinte estrutura2:
1. catecumenato de uma duração não especificada e uma
preparação imediata para o batismo;

2
A estrutura adotada neste estudo é fornecida por JOHNSON, 1999, p. 61.

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2. oração de santificação invocando o Espírito Santo so-
bre as águas batismais;
3. afirmação de uma renúncia “ao diabo e sua pompa e a
seus anjos”, feita previamente, aparentemente, em algum
ponto dentro da assembléia “sob o controle do bispo”
ou “sua mão” (sub antitistis manu);
4. tríplice interrogatório e profissão de fé na água (com “in-
terrogações mais extensas que as prescritas por Nosso
Senhor no evangelho”) conectado à tríplice submersão
ou imersão;
5. unção pós-batismal com óleo (“crisma”);
6. selo com a cruz;
7. imposição das mãos “pedindo e invocando o Espírito
Santo para uma bênção”;
8. Eucaristia, incluindo a recepção “de um composto de
leite e mel”.

Para o nosso estudo faremos a distinção entre os ritos pré-


batismais (1-3), batismal (4) e pós-batismais (5-8). Esta distinção tem
o fim apenas de auxiliar no estudo, pois, como veremos, a Igreja Anti-
ga concebe todo o conjunto como uma única ação litúrgico-sacramen-
tal. Tertuliano, de início, acentua a simplicidade do rito: “Nada choca
tanto as mentes dos homens quanto o contraste entre a simplicidade
das obras... e a magnificência daquilo que é prometido como efeito”
(De Baptismo 2,1). É nesta perspectiva que veremos como Tertuliano
descreve a iniciação cristã no norte da África ocidental.
Os ritos pré-batismais (1-3) e batismal (4) têm função seme-
lhante à do batismo de João. A preparação imediata para o batismo
(1) “com orações fervorosas, com jejuns, genuflexões, vigílias e a con-
fissão de todos os seus pecados” tem função anamnética, quer recor-
dar o batismo de João (De Baptismo 20,1). Esta preparação imediata
é interpretada teologicamente por Tertuliano com o fim de predispor o
eleito “para o perdão e a santificação que devia seguir em Cristo” com
o batismo “no Espírito e no fogo” (De Baptismo 10,5). Como o batis-
mo de João, a preparação imediata para o batismo tem caráter
penitencial, não definitivo, mas em vista do batismo que se realizará em

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Cristo. Tertuliano conhecia bem a importância do batismo de Jesus
por João para a teologia do batismo cristão, mas ele não é o paradigma
crucial para o batismo na sua Igreja. É o que nos mostra a lista dos
melhores dias para a realização do batismo que Tertuliano nos fornece
em De Baptismo 19:

O dia mais solene para o batismo é por excelência o


dia da Páscoa, em que é consumada a paixão do
Senhor, na qual somos batizados [...] Em segundo
lugar, o tempo antes de Pentecostes [...] tempo em
que o Senhor ressuscitado aparece [...] De resto, todo
dia é dia do Senhor. Cada hora, cada tempo pode ser
conveniente para o batismo (ZILLES, 1981).

Enquanto em algumas tradições orientais se privilegiava a festa


da Epifania do Senhor em 6 de janeiro como a melhor ocasião para o
batismo (Cf. JOHNSON, 1999, p. 47-48), no norte da África a oca-
sião privilegiada era a Páscoa. O ocidente cristão conhecia a teologia
do batismo como participação na morte e ressurreição de Jesus que se
encontra em Rm 6. Esta teologia se tornaria comum ao oriente e oci-
dente nos séculos seguintes.
A oração de santificação invocando o Espírito Santo sobre
as águas batismais (2) dá à água “o poder de santificar por si” (De
Baptismo 4,4). A invocação de Deus sobre a água é interpretada por
Tertuliano como a vinda do Espírito que dá à água o poder de purificar
o eleito que será lavado por esta mesma água. Embora em outros
escritos Tertuliano atribua o Espírito Santo ao banho batismal (cf. De
Pudic. 9,9; De Anima 1,4), na obra De baptismo afirma que o banho
tem o efeito de remissão dos pecados: “Isto não significa que recebe-
mos o Espírito Santo na água. Mas, purificados na água, somos pre-
parados, pelo ministério do anjo, para receber o Espírito Santo” (De
Baptismo 6,1). Tertuliano vê a tríplice imersão ou submersão nas águas
batismais (4) como o momento em que os pecados são perdoados
“pela fé consignada no Pai, no Filho e no Espírito Santo” (De Baptismo
6,1) para que o “eleito” possa receber o Espírito Santo. Ele compara
o papel da Igreja na pessoa do Bispo com o papel de João Batista:
“Como João antes foi o precursor do Senhor, preparando seus cami-

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nhos, assim o anjo, que preside o batismo, traça caminhos para a vin-
da do Espírito Santo” (De Baptismo 6,1). Embora possa parecer que
Tertuliano negue o dom do Espírito Santo ao banho batismal, na con-
tra-mão de toda uma tradição patrística, a sua interpretação torna-se
clara se vemos o rito como um todo, como uma única ação litúrgica.
Nesta perspectiva as águas do batismo lavam a carne e purificam o
espírito (cf. De Baptismo 4,5) libertando dos pecados (De Baptismo
7,2) para o recebimento do Espírito Santo “quando emerge do banho
do batismo” (De Baptismo 8,4). Em todo o texto a água tem um im-
portante papel para a teologia da iniciação cristã, toda a exposição de
Tertuliano está associada à água, embora dê grande importância à im-
posição das mãos.
A unção pós-batismal é interpretada por Tertuliano na linha
da unção sacerdotal na tradição do Antigo Testamento: “somos ungi-
dos com a unção benta advinda da disciplina antiga, segundo a qual se
costumava ser ungido com o óleo para o sacerdócio” (De Baptismo
7,1). No NT os cristãos experimentam Jesus como O Ungido por
excelência. Jesus recebe o Espírito Santo e é este mesmo Espírito que
anima a comunidade (Lc 3,21-22; 4,18-21; At 1,8; 2,33; 10,38).
Tertuliano compreende que é a unção o que dá o nome “Cristo”, que
significa ungido, a Jesus. “Cristo” é o termo grego equivalente a “mes-
sias” no hebraico. Por esta mesma unção Tertuliano atribui o nome
“cristão” aos cristãos. Com a unção pós-batismal, que nosso autor
não explicita se é realizada sobre a cabeça ou sobre todo o corpo, o
recém-batizado é incorporado à condição messiânica, é “ungido no
Ungido”3.
Tertuliano associa o recebimento do Espírito Santo à imposi-
ção das mãos (7). Fica mais evidente aqui a distinção teológica entre o
banho batismal e o dom do Espírito Santo. O banho batismal tem a
função de purificação como preparação para o recebimento do Espí-
rito Santo que “voa à terra, isto é, sobre nossa carne quando emerge
do banho do batismo purificada de seus antigos pecados” (De Baptismo

3
Sobre a unção régia, sacerdotal e profética cf. TABORDA, 2001, p. 193-196.

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8,4). Em comparação com as tradições siriacas e egípcias dos séculos
II-III esta distinção teológica da Igreja de Cartago é o que diferencia o
rito e a interpretação entre as Igrejas Antigas orientais e ocidentais (cf.
JOHNSON, 1999, p. 63). Na Igreja da Síria o dom do Espírito
Santo é associado à unção pré-batismal como um grande sinal da as-
similação a Cristo, que se revelou como Rei-Messias através da vinda
do Espírito no evento central de seu batismo no Jordão (WINKLER
apud JOHNSON, 1999, p. 47. Já na Igreja de Cartago os ritos pré-
batismais e batismal são vistos como ritos de purificação em prepara-
ção para o recebimento pós-batismal do Espírito Santo. E a imposi-
ção tem um papel central. Tertuliano entende a imposição das mãos à
luz de Gn 48,14 onde Jacó impõe as mãos “cruzadas” sobre Efraim e
Manassés. Tertuliano vê no gesto das mãos “cruzadas” de Jacó a re-
presentação da cruz de Cristo (Cf. De Baptismo 8,2). A imposição
das mãos, gesto de bênção e de transmissão do Espírito no AT, incor-
pora-se ao batismo cristão como participação no mistério de Cristo
com a graça do Espírito Santo (At 8,17). Na teologia de Tertuliano o
batismo é entendido na sua íntima relação com o mistério da morte e
ressurreição de Cristo. O mistério pascal de Cristo dá sentido único e
definitivo ao batismo: “não podendo nossa morte ser destruída sem a
paixão do Senhor, nem nossa vida restituída sem a sua ressurreição”
(De Baptismo 11,4).
O batismo é o ritual pelo qual são feitos os cristãos. O bati-
zado torna-se cristão ao passar pelo “banho santíssimo da regenera-
ção” (Tt 3,5) e receber o Espírito Santo. O rito culmina quando o
neófito, “pela primeira vez, estende as mãos junto da mãe e com os
irmãos para pedir ao Pai” (De Baptismo 20,5). O neófito agora faz
parte da família cristã e tem o direito à participação na celebração da
comunidade, a eucaristia (8).

2 Iniciação cristã na tradição de Cirilo de Jerusalém

O Bispo Cirilo de Jerusalém (315-387) vive num período


que se distingue do tempo de Tertuliano. Cirilo testemunha a importan-
te virada na história da Igreja iniciada por Constantino no ano 313. De
perseguido o cristianismo passa a ser tolerado, a ser privilegiado, e em

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seguida torna-se a única religião permitida, a religião oficial do Império
Romano. Estas mudanças profundas incidem na pastoral e no rito cris-
tão. Um dos principais problemas pastorais que surgiu nesse período
se refere ao declínio do catecumenato. O catecumenato que durava
em torno de 3 anos passa por transformações que o levará a duração
de alguns meses ou ao curto período da quaresma (Cf. Ibid, p. 89).
Tais mudanças são atribuídas ao aumento do afluxo de pessoas à reli-
gião do Império. O crescimento do batismo de crianças também con-
tribuiu para o declínio do catecumenato. Ao mesmo tempo, devido ao
rigor da penitência a quem voltasse a pecar depois de ser batizado,
surge a prática de deixar para ser batizado no final da vida, prática
adotada pelo próprio Imperador Constantino. Os ritos pré-batismais
e pós-batimais ganham adereços para lhes dar maior dramaticidade e
produzir emoção nos iniciados. Os ritos cristãos são influenciados pe-
los ritos greco-romanos das religiões de mistério, levando a enfatizar
sua áurea mistérica. Em Jerusalém são identificados os lugares sagra-
dos. Lá é construída a Basílica do Santo Sepulcro, o equivalente a um
santuário mistérico, palco onde se inicia a veneração dos objetos sa-
grados e onde aparentemente começa a prática da catequese
mistagógica (Cf. JOHNSON, 1999, p. 93).
Os que serão iluminados (chamados photizomenoi) rece-
bem a Catequese Preliminar (procatechesis) e uma série de Catequeses
Pré-batismais durante a quaresma, enfocando as Escrituras e o signifi-
cado do Credo, que se assemelha ao Credo Niceno-
constantinopolitano4. Na noite da Vigília Pascal recebem o batismo, a
crisma e a eucaristia. Somente depois de terem experimentado os sa-
cramentos é que lhes é ensinado o sentido do que viveram naquela
noite através das Catequeses Mistagógicas. O próprio Cirilo dá as
razões dessa pedagogia:

4
Cirilo de Jerusalém vive no período das controvérsias cristológico-trinitárias que
ocasionaram os concílios de Nicéia e Constantinopla. Ele se encontra entre os padres
conciliares do primeiro Concílio de Constantinopla no ano de 381. O Credo comentado
nas Catequeses Pré-batismais de Cirilo é considerado uma jóia preciosa do tesouro
teológico da Igreja Antiga. Cf. CIRILO DE JERUSALÉM, 1977, p. 7-11.

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Como sei bem que a vista é mais fiel que o ouvido,
esperei a ocasião presente para encontrar-vos, de-
pois desta grande noite, mais preparados para com-
preender o que se vos fala e levar-vos pelas mãos ao
prado luminoso e fragrante deste paraíso
(Catequeses Mistagógicas 1,1).

O nosso estudo se deterá nas Catequeses Mistagógicas por


constituírem o cerne da iniciação aos sacramentos na tradição de Cirilo
de Jerusalém. Um olhar sobre a iniciação cristã na tradição da Igreja
da Síria ocidental nos séculos IV e V, à qual pertence Cirilo de Jerusa-
lém, faz emergir a seguinte estrutura:

1. Concentração da preparação (catechesis) no tempo da


Quaresma dos que serão iluminados;
2. Renúncia (apotaxis) a satanás com a mão estendida e
voltado para o ocidente;
3. Adesão (syntaxis) a Deus Pai, Filho e Espírito Santo,
voltado para o oriente;
4. Unção da cabeça;
5. Despojamento das roupas;
6. Unção de todo o corpo com óleo exorcizado;
7. Interrogatório e tríplice imersão;
8. Unção com o myron (crisma) na face, nos ouvidos, nas
narinas e no peito;
9. Vestimenta das vestes brancas (?);
10. Eucaristia.

A antiguidade cristã nos legou o testemunho de Etéria5, uma


peregrina espanhola que esteve em Jerusalém no final do episcopado
de Cirilo (ca. 381-384). O diário de Etéria nos permite vislumbrar
como se dava a iniciação cristã em Jerusalém (cf. JOHNSON, 1999,

5
Textos retirados da tradução portuguesa de Maria da Glória Novak direto do original
latino. Cf. ETÉRIA. 1971.

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p. 97-99). A obra de Cirilo de Jerusalém apresenta o conteúdo dessa
catequese na Catequese Preliminar e nas dezoito Catequeses Pré-
batismais. É o período da catechesis (1). A duração da catequese
pré-batismal é de sete semanas, três horas por dia. Ao final da sétima
semana os catecúmenos são levados um a um pelos padrinhos e ma-
drinhas até o Bispo e professam o Credo. O Bispo encerra dizendo:

Durante estas sete semanas, fostes instruídos intei-


ramente acerca de toda a Lei das Escrituras e
ouvistes também a respeito da fé; também a respeito
da ressurreição da carne e de todo o significado do
Symbolum. Ouvistes o que, embora catecúmenos,
pudestes ouvir; mas as palavras concernentes a um
mistério mais profundo – o próprio batismo – porque
sois ainda catecúmenos, não podeis ouvi-las; e, para
que não julgueis que algo se faz sem razão, ouvi-las-
eis após o término do ofício na igreja, na Anástasis,
durante os oito dias pascais quando, em nome de
Deus, houverdes sido batizados; porque sois ainda
catecúmenos, não vos podem ser revelados os mis-
térios mais secretos de Deus (Peregrinação de
Etéria 46,5).

Na Vigília Pascal ocorrem os ritos pré-batismais (2-6),


batismais (7) e pós-batismais (8-10). Na semana da Páscoa os re-
cém-batizados vão à Anástasis para ouvir sobre os mistérios:

Nesse momento nenhum catecúmeno se aproxima


da Basílica, mas tão somente os neófitos e também
fiéis que desejam ouvir a respeito dos mistérios aí se
encontram: e as portas se fecham para que nenhum
catecúmeno possa entrar. E, examinando o Bispo
todos esses aspectos e expondo-os, tão alto fazem
ouvir os presentes as suas palavras de louvor que, ao
longe, fora da igreja, se lhes ouvem os gritos (Ibid.,
47,2).

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O testemunho da peregrina espanhola nos mostra a intensi-
dade da recepção das Catequeses Mistagógicas pelos neófitos. Cirilo
de Jerusalém nos permite conhecer o conteúdo desses ensinamentos
nas suas cinco Catequeses Mistagógicas. Nelas se desvelam os ritos
da iniciação cristã na Igreja jerosolimitana do século IV e a teologia
que lhes subjaz. Os ritos pré-batismais (2-6) se iniciam no adro, espa-
ço junto ao batistério onde os candidatos eram preparados para o
batismo. O candidato se volta para o ocidente e é exortado a estender
a mão e renunciar a satanás (Catequeses Mistagógicas 1,2-8). Em
seguida volta-se para o oriente e professa a fé trinitária (Catequeses
Mistagógicas 1,9). Estes ritos específicos se desenvolveram como
demonstração da conversão dos candidatos. Os ritos pré-batismais se
seguem como imitação dos eventos salvíficos da Paixão e Morte de
Cristo, são imagem ou ícone. O despojamento das vestes dos candi-
datos (5) é a nudez de Cristo no Calvário: “Despidos, estáveis nus,
imitando também nisso a Cristo nu sobre a cruz” (Catequeses
Mistagógicas 2,2). A unção pré-batismal (6) une o candidato à cruz
de Cristo: “Assim, vos tornastes participantes da oliveira cultivada,
Jesus Cristo” (Catequeses Mistagógicas 2,3). Cirilo reinterpreta a
unção pré-batismal como um rito de exorcismo, purificação e prepa-
ração para combater ao mal: “O óleo exorcizado... afugenta toda pre-
sença das forças adversas... queima e impele os demônios... não só
apaga os vestígios dos pecados, mas ainda põe em fuga as forças
invisíveis do maligno” (Catequeses Mistagógicas 2,3).
A teologia dominante para a interpretação do batismo (7) na
Igreja de Jerusalém é a de Romanos 6:

Fostes conduzidos pela mão à santa piscina do divino


batismo, como Cristo da cruz ao sepulcro que está à
vossa frente. A cada qual foi perguntado se cria no
nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo. E fizestes
a profissão salutar, e fostes imersos três vezes na
água e em seguida emergistes, significando também
com isso, simbolicamente, o sepultamento de três dias
de Cristo (Catequeses Mistagógicas 2,4).

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O batismo não é visto por Cirilo apenas no seu caráter de
purificação para o recebimento pós-batismal do Espírito Santo. É en-
tendido como participação nos sofrimentos de Cristo, o que confere
ao batizado a graça da adoção à filiação divina (Catequeses
Mistagógicas 2,6). Na sua Segunda Catequese Mistagógica Cirilo
deixa entrever com admiração a densidade dessa teologia:

Oh! Fato estranho e paradoxal! Não morremos em


verdade, não fomos sepultados em verdade, não fo-
mos crucificados e ressuscitados em verdade. A imi-
tação é uma imagem; a salvação, uma verdade. Cristo
foi crucificado, sepultado e verdadeiramente ressus-
citou. Todas estas coisas nos foram agraciadas a fim
de que, participando, por imitação, de seus sofrimen-
tos, em verdade logremos a salvação. Oh! Amor sem
medida! Cristo recebeu em suas mãos imaculadas
os pregos e padeceu; a mim, sem sofrimento e sem
pena, concede graciosamente por esta participação
a salvação (Ibid., 2,5).

A unção pós-batismal (8) é o selo da graça do Espírito Santo


em imitação ao batismo de Jesus no Jordão. A introdução da unção
com o myron (óleo do crisma) marca o recebimento do dom do Espí-
rito Santo na unção pós-batismal. Cirilo é a primeira testemunha dessa
unção na tradição siríaca. Nos primeiros séculos da Igreja siríaca o
dom do Espírito Santo era conferido na unção pré-batismal com a
predominância da teologia do “novo nascimento” de João 3. Cirilo
encontra-se assim numa fase de transição e desenvolvimento dos ritos
de iniciação cristã (cf. JOHNSON, 1999, p. 107-108). Nessa fase
as duas teologias, a de Romanos 6 e a do “novo nascimento” em João
3 convivem juntas, estão teologicamente conectadas. A adoção filial
conferida no batismo e selada com a unção pós-batismal é o que per-
mite ao batizado o título de cristão: “Feitos, pois, partícipes de Cristo,
não sem razão, sois chamados cristos” (Catequeses Mistagógicas
3,1); “feitos dignos dessa unção, sois chamados cristãos” (Catequeses
Mistagógicas 3,5). A unção com o myron confere os dons que mo-
vem o cristão no seguimento de Cristo: é libertação, predispõe à escu-

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ta da Palavra, possibilita ser o bom odor de Cristo, dá força para
resistir ao mal (Catequeses Mistagógicas 3,4).
Não há nas Catequeses Mistagógicas de Cirilo a explicitação
do rito da vestimenta das vestes brancas (9). Isto se deve ao fato de
que é um rito comum e por isso não necessita ser citado para os seus
ouvintes. Porém, Cirilo fala do significado espiritual do gesto na sua
relação com a nova realidade vivida pelo recém-batizado:

Tendo despido as velhas vestes e revestido espiritu-


almente a veste branca, é necessário estar sempre
vestido de branco... a fim de dizeres com o bem-
aventurado Isaías: “Com grande alegria me rejubilei
no Senhor, porque me fez revestir a vestimenta da
salvação e me cobriu com a túnica da alegria”
(Catequeses Mistagógicas 4,8).

A quarta Catequese Mistagógica se dedica à eucaristia (10).


Acentua o caráter mistérico do pão e do vinho: “dos quais tendo sido
julgados dignos, vos tornastes concorpóreos e consangüíneos com
Cristo” (Catequeses Mistagógicas 4,1). A participação na eucaristia
completa a iniciação cristã com a participação na natureza divina: “As-
sim nos tornamos portadores de Cristo (cristóforos) [...] como diz o
bem-aventurado Pedro, ‘tornamo-nos partícipes da natureza divina’”
(Catequeses Mistagógicas 4,2). O coroamento da iniciação cristã
nas Catequeses Mistagógicas de Cirilo de Jerusalém se dá na Cele-
bração Eucarística (Catequeses Mistagógicas 5). Depois de experi-
mentar a graça da incorporação a Cristo através da participação na
sua morte e ressurreição no batismo-crisma-eucaristia, o neófito é dig-
no de participar da Celebração Eucarística e de conhecer “tamanhos
mistérios”.

3 Iniciação cristã na tradição de Ambrósio

Ambrósio (339-397) encontra-se no mesmo contexto histó-


rico e cultural da virada constantiniana delineado anteriormente. No
ano 374 Ambrósio é eleito bispo de Milão, uma das mais importantes
metrópoles do Império, localizada no norte da Itália. Ambrósio de Milão

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nos apresenta duas catequeses mistagógicas datadas entre os anos
380 a 390: De Sacramentis e De Mysteriis. Ambrósio é considerado
um testemunho credenciado dos ritos de iniciação da Igreja romana de
seu tempo. É um grande conhecedor e propagador desses ritos e re-
flete um último estágio do desenvolvimento dos ritos de iniciação cristã
da Igreja de Roma (cf. Ibid., p. 140). Os escritos de Ambrósio dei-
xam entrever que a Igreja de Milão de sua época segue os costumes
da Igreja de Roma quanto aos ritos de iniciação cristã, embora
Ambrósio tenha a liberdade de introduzir novidades.
Para delinearmos a estrutura da iniciação cristã na tradição
ambrosiana confrontamos os escritos de Ambrósio com a estrutura da
iniciação cristã em Roma apresentada por Maxwell E. Johnson (1999,
p. 133) e vimos emergir a seguinte estrutura:
1. Inscrição no catecumenato de um período não especifi-
cado e eleição para o batismo, com a preparação final
dos eleitos ou competentes durante os quarenta dias
da Quaresma, onde são realizados três “escrutínios”;
2. Mistérios de abertura com o rito do Éfeta;
3. Unção pré-batismal;
4. Renúncia ao diabo e a suas obras voltando-se para o
Oriente;
5. Exorcismo e oração do Bispo sobre a água invocando
a Trindade;
6. Tríplice profissão de fé e tríplice imersão;
7. Unção no alto da cabeça com o crisma, associado com
o sacerdócio de Cristo;
8. Leitura do Evangelho de João 13 e pedilavium;
9. Vestimenta das vestes brancas;
10. Selo espiritual (consignação) e citação de uma oração
associados com os dons do Espírito Santo;
11. Participação na eucaristia.

A carência de evidências sobre todo o processo catecumenal


nos escritos de Ambrósio dificulta estabelecermos a duração do
catecumenato na Igreja de Milão. Sabemos que no catecumenato re-
alizam-se ritos como a imposição do sal abençoado, seguido de um

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período de instrução, durante o qual se realizam com freqüência ritos
de exorcismo e insuflação. Já a preparação final dos eleitos, chamados
competentes, se dá durante os quarenta dias da Quaresma. Ambrósio
faz uma referência a essa preparação final:

Demos, dia por dia, instruções sobre a moral por oca-


sião da leitura da história dos Profetas ou das máxi-
mas dos Provérbios. Nossa finalidade era formar-
vos e preparar-vos para que vos dispusésseis a en-
trar pela senda de nossos antepassados, seguindo-
lhes o caminho e obedecendo aos desígnios de Deus
(Os Mistérios 1).

São realizados três “escrutínios” que correspondem ao ter-


ceiro, quarto e quinto domingos da Quaresma. Recitam-se diversas
orações sobre os competentes seguidas da bênção, após da qual eles
se retiram. A traditio symboli tem lugar no Domingo de Ramos e a
oração do Pai Nosso é entregue somente depois de completada a
iniciação cristã.
Os ritos pré-batismais (2-4) se iniciam com os mistérios da
abertura (2). O Bispo toca os ouvidos e narinas dos competentes em
referência à cura do surdo-mudo no Evangelho (Mc 7,31-37).
Ambrósio interpreta o rito como sinal da abertura dos sentidos para o
recebimento da graça do batismo:

No Evangelho, Nosso Senhor Jesus Cristo [...] exclamou


então: Effetha!, palavra hebraica que significa: ‘Abre-te!’ Foi por isso
que o Bispo tocou teus ouvidos, para que eles se abrissem à palavra e
à alocução do Bispo. [...] Por que as narinas? Para perceberes o fino
odor da bondade eterna [...] e ainda para que haja em ti total irradia-
ção perfumada da fé e devoção (Os Sacramentos 1,2-3).
Ao longo de suas catequeses mistagógicas Ambrósio insiste
muito nos sentidos da audição (cf. Os Sacramentos 1,2; 3,4.11; 5,1.12;
Os Mistérios 3) e visão (cf. Os Sacramentos 1,4.6.9.10.15; 2,16.24;
3,11.12.15; 4,18; Os Mistérios 6.8.15.44). Em Os Sacramentos 1,10
Ambrósio justifica a sua insistência na atenção aos sentidos fundamen-
tando-se em São Paulo: “Viste o que pudeste ver com os olhos do

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corpo e os olhares humanos. Não viste, porém, o que se produziu,
apenas o que aparece. As coisas que não se vêem são muito maiores
que as que se vêem, ‘porque as que se vêem são temporais, as que
não se vêem, porém, eternas’” (2cor 4,18). Por isso Ambrósio inicia a
obra Os Sacramentos colocando em evidência a necessidade da fé.
Somente com a fé podemos “ver” e assim, tornarmo-nos “homens de
fé”. A fé é anterior ao batismo. Deus nos oferece a sua graça e conta
com a adesão pessoal. O batismo é então sinal ao mesmo tempo da fé
e da salvação oferecida por Deus à humanidade. Ambrósio conclui:
“Recebestes o batismo, tendes fé” (Os Sacramentos 1,1).
Destaca-se nesses escritos de Ambrósio a plasticidade com
que trata o rito: “Chegamos à fonte. Entraste. Foste ungido” (Os Sa-
cramentos 1,4). Com essas poucas palavras o mistagogo recria todo
o clima vivido no dia anterior. O seu auditório, composto exclusiva-
mente de neófitos, reaproxima-se da fonte e pode saborear no seu
imaginário os sinais e gestos que vivenciaram no batismo. Ao longo
das catequeses Ambrósio insiste no ritmo das ações no rito (cf. Os
Sacramentos 1,4.9.10; 2,14.16.24; 3,4.11; 4,5.7.8; 5,5.12.13; Os
Mistérios 4.28.29.31.43). Ele continua: “Considera a quem viste, pensa
no que disseste e recorda com exatidão o que aconteceu. Um levita te
acolheu; acolheu-te um presbítero. Foste ungido como atleta de Cris-
to” (Os Sacramentos 1,4). Trata-se da unção pré-batismal (3). A ima-
gem evoca a unção do corpo todo como no oriente (cf. CIRILO DE
JERUSALÉM, Catequeses Mistagógicas 2,3). O eleito é ungido para
a luta contra o mal presente no mundo.
Em seguida há a renúncia ao diabo e às suas obras (4).
Ambrósio fala do rito da renúncia no qual o eleito se volta para o
Oriente, que é o Cristo (cf. Os Mistérios 7). A fórmula se refere à
renúncia ao diabo e às suas obras, ao mundo e a seus prazeres (cf. Os
Sacramentos 1,5). Ambrósio recomenda o empenho a manter a pro-
messa como quando se assinam promissórias. A promessa é feita di-
ante dos anjos, ou seja, do levita, dos ministros de Cristo que servem
no altar. Por isso é preciso prudência para guardar a caução, a pro-
messa, cuja “letra assinada não é guardada na terra, mas no céu”.
Nos ritos batismais (5-7) da tradição ambrosiana há traços
da antiga interpretação do batismo como “novo nascimento” e tam-

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bém da interpretação que se tornara predominante nos séculos IV e V,
do batismo como participação no mistério da morte e ressurreição de
Cristo. Ao expor o rito do exorcismo e oração do Bispo sobre a água
(5) Ambrósio fala da relação entre o ato e a eficácia do sacramento:
“Tu viste a água. Ora, nem toda a água cura. Tem poder de curar a que
possuir a graça de Cristo. Uma coisa é o elemento; outra, a santificação.
Uma coisa é o ato; outra a eficácia. O ato é da água. A eficácia, do
Espírito Santo” (Os Sacramentos 1,15). A água do batismo tem eficá-
cia porque é santificada pela Trindade. O Bispo diz a oração e invoca
o nome do Pai, a presença do Filho e do Espírito Santo (cf. Os Sacra-
mentos 2,14). Ambrósio recorda o evento do batismo de Jesus para
falar da presença santificadora da Trindade: “desceu Cristo para a água
e o Espírito Santo baixou como pomba. Também o Pai, por sua vez,
falou do céu. Estás, aí, em presença da Trindade” (Os Sacramentos
1,19). Em Os Mistérios 14 se refere à consagração da água pelo mis-
tério da Cruz do Senhor: “o Bispo deita nesta fonte o anúncio da Cruz
do Senhor e a água se torna potável para a graça”. Podemos ver aqui
conjugadas as teologias da “regeneração” fundamentada em João 3,5
e da participação na morte e ressurreição de Cristo fundamentada em
Romanos 6. Neste sentido Ambrósio desenvolve toda uma doutrina
da Graça que perpassa toda a história da salvação cujo fim é a reden-
ção do ser humano através da incorporação à morte e ressurreição de
Jesus nos sacramentos de iniciação cristã (cf. Os Sacramentos 2,16-
19). Ambrósio conclui assim: “a fonte é como que uma sepultura”.
O Batismo (6) tem a forma do tríplice interrogatório e profis-
são de fé com a tríplice imersão. A fórmula ambrosiana salienta a in-
corporação à morte e ressurreição de Cristo ao fazer menção à Cruz:
“Novamente perguntaram-te: Crês em Nosso Senhor Jesus Cristo e
em sua cruz?” (Os Sacramentos 2,20). Ambrósio cita explicitamente
Romanos 6,3: “Exclama, por isso, o Apóstolo, como acabais de ouvir
na leitura: ‘Quem quer que seja batizado é batizado na morte de
Jesus’” (Os Sacramentos 2,23). A imersão é participação na morte e
sepultura de Cristo: “És, portanto, crucificado. Prendes-te ao Cristo”
(Os Sacramentos 2,23). Emergir da água do batismo é participar da
ressurreição de Cristo: “quem está sepultado com Cristo, com Ele res-
surge” (Os Sacramentos 2,20).

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Os ritos batismais terminam com a unção sobre a cabeça (7).
Essa unção com o crisma pertence aos ritos batismais por estar asso-
ciada á ressurreição. Ambrósio interpreta a sua eficácia como regene-
ração porque é uma unção feita sobre a cabeça, onde reside o sentido
do homem sábio. Se fundamenta na citação nos Atos Apóstolos do
Salmo 2: “És meu filho, hoje te gerei” (At 13,33) interpretada como a
voz do Pai que se fez ouvir quando o Filho ressuscitou da morte. O
mesmo acontece no batismo (cf. Os Sacramentos 3,2). No escrito
sobre os mistérios Ambrósio associa essa unção no alto da cabeça
com o sacerdócio de Cristo. O batizado é ungido para incorporar-se
ao sacerdócio régio de Cristo (cf. Os Mistérios 29-30).
Aos ritos pós-batismais (8-11) Ambrósio insere o rito do Lava-
pés, o Pedilavium (8). Como vimos, os escritos de Ambrósio deixam
entrever que a Igreja de Milão segue os costumes da Igreja de Roma
quanto aos ritos de iniciação cristã. Porém, Milão realiza o rito do
Lava-pés, que Ambrósio justifica com base no próprio apóstolo Pedro:
“Seguimos ao próprio apóstolo Pedro. É a seu favor que aderimos.
[...] ele que foi bispo da Igreja romana” (Os Sacramentos 3,6). O rito
do Lava-pés é interpretado por Ambrósio com um duplo sentido te-
ológico. Ele contribui para a regeneração e é sinal de humildade. O
batismo extingue os pecados pessoais, o Lava-pés tira os pecados
por herança: “Pedro estava puro, mas tinha que lavar os pés; pois
havia nele o pecado que vem da sucessão do primeiro homem, na hora
em que a serpente o suplantou e o induziu ao erro. É por isso que se
lavam os pés” (Os Mistérios 32). Ao mesmo tempo o rito é sinal de fé
e humildade. Após a recusa de Pedro em deixar lavar os seus pés, o
Mestre o advertiu. Pedro então, demonstrando fé, quis lavar não só os
pés, mas também as mãos e a cabeça (cf. Jo 13,9). Em Os Mistérios
33 Ambrósio diz: “tal mistério se realiza pelo mistério da humildade.
Pois disse Jesus: ‘Se eu vos lavei os pés, eu que sou o Senhor e Mes-
tre, quanto mais então vós deveis lavar-vos uns aos outros’ (Jo 13,14)”.
“Recebeste em seguida vestes brancas, como sinal de que
havias despido o invólucro dos pecados, para te revestires dos trajes
puros da inocência” (Os Mistérios 34). Assim Ambrósio se refere ao
rito da Vestimenta das vestes brancas (9), que está ligado às profecias
das Escrituras e à Ressurreição de Cristo (cf. Sl 50,9; Ex 12,22; Is

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1,18; Mt 17,2). O mistagogo faz um longo discurso em Os Mistérios
35-41 utilizando-se de textos da Escritura, especialmente do Cântico
dos Cânticos, para falar da brancura das vestes após o banho da rege-
neração como sinal de incorporação à Cristo e à Igreja.
É preciso ainda o Selo Espiritual, a consignação (10).
Ambrósio interpreta que se dá aqui o aperfeiçoamento após a descida
à fonte. “Dá-se ela na hora em que é infundido o Espírito Santo, ao ser
invocado pelo Bispo o espírito de sabedoria e inteligência, o espírito
de conselho e de força, o espírito do conhecimento e da piedade, o
espírito do santo temor” (Os Sacramentos 3,8-9). Não existe aqui,
nem em Os Mistérios 41-42, alusão a uma unção que acompanhasse
o dom do Espírito. Os estudiosos entendem o rito como uma simples
consignação (Cf. AMBRÓSIO DE MILÃO, 1972, p. 43, nota 88.)
A participação na eucarisita (11) é onde culminam os ritos de
iniciação cristã:

Tu foste. Tu te lavaste. Chegaste ao altar. Começas-


te a ver o que antes não havias visto, quer dizer: pela
fonte do Salvador e pela pregação da Paixão do Se-
nhor, se te abriram os olhos. Tu, que anteriormente
parecias cego de coração, te puseste a ver a luz dos
sacramentos (Os Sacramentos 3,15).

Baseado em Jo 9,6-7 Ambrósio considera o batismo como


iluminação. Os neófitos, renovados pelas águas do batismo chegam
agora admirados ao altar: “Tu te aproximaste do altar. Voltaste tua
atenção para os sacramentos depositados sobre o altar e te encheste
de admiração diante desta mesma criatura (Os Sacramentos 4,8).
Ambrósio dedica grande parte de seus escritos para mostrar aos neófitos
o quanto o mistério cristão preexiste figurativamente no Antigo Testa-
mento (cf. Os Sacramentos 4,11; Os Mistérios 44); O maná do de-
serto é figura da Eucaristia (cf. Os Sacramentos 4,9.24; Os Mistérios
47-49); O sacerdócio de Melquisedeque é figura do sacerdócio de
Cristo (cf. Os Sacramentos 4,10.12; 5,1; Os Mistérios 45-46); Cris-
to é o autor dos sacramentos (cf. Os Sacramentos 4,13) por sua pa-
lavra criadora (cf. Os Sacramentos 4,14-15.18-19. 21-23; 5,3; Os
Mistérios 50.54), pelo vinho que é o Sangue de Cristo (cf. Os Sacra-

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mentos 4,20; 5,2.5-17), pelo memorial deixado pelo Senhor (cf. Os
Sacramentos 4,26.28) no qual reapresentamo-nos à paixão, morte,
ressurreição e ascensão de Cristo (cf. Os Sacramentos 4,27), pela
água misturada ao vinho que é a água do lado de Cristo aberto pela
lança prefigurada na água que saiu da rocha no deserto para saciar o
Povo de Deus (cf. Os Sacramentos 5,3).
O final do capítulo 5 e o capítulo 6 de Os Sacramentos são
dedicados ao ensino da oração: “Levanta, pois, os olhos ao Pai que te
gerou pelo batismo, ao Pai que te resgatou pelo Filho e dize: ‘Pai Nos-
so’” (Os Sacramentos 5,19). O mistagogo instrui os neófitos sobre a
oração do Pai Nosso, petição por petição, e dá instruções práticas
para uma vida de oração.

4 Estrutura teológica dos sacramentos de iniciação cristã na Igre-


ja Antiga

O estudo dos sacramentos de iniciação cristã nas catequeses


de Tertuliano, Cirilo de Jerusalém e Ambrósio de Milão nos ajuda a
perceber qual é o cerne da estrutura teológica desses sacramentos na
Igreja. O primeiro dado que emerge da leitura atenta destas obras é a
unidade teológica batismo-crisma-eucaristia. Os Padres da Igreja an-
tiga vêem os sacramentos de iniciação cristã como uma única ação
litúrgico-sacramental. Na Igreja antiga esses ritos culminam em uma
única ocasião, preferencialmente na vigília pascal, onde o eleito é bati-
zado, crismado e participa pela primeira vez da eucaristia.
Para o nosso estudo fizemos a distinção entre os ritos pré-
batismais, batismais e pós-batismais. Para Tertuliano os ritos pré-
batismais e batismais preparam o eleito purificando-o para o recebi-
mento pós-batismal do Espírito Santo. Já para Cirilo de Jerusalém e
Ambrósio de Milão os ritos pré-batismais e batismais não são vistos
apenas no seu caráter de purificação, mas como participação nos so-
frimentos de Cristo, o que confere ao batizado a graça da adoção à
filiação divina (Cf. Catequerses Mistagógicas 2,6; Os Sacramentos
2,16-23). Os ritos pós-batismais selam essa adoção filial conferida no
batismo. O neófito recebe o título de cristão e é movido ao seguimento
de Cristo pela força do Espírito Santo (cf. Catequeses Mistagógicas

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3,1-5). A participação na eucaristia é onde culmina a iniciação cristã.
O neófito, ao participar da mesa do pão e do vinho, torna-se
concorpóreo e consangüíneo com Cristo. É agora cristóforo, porta-
dor do Cristo (Cf. Catequeses Mistagógicas 4,2).
A teologia predominante nos sacramentos de iniciação cristã
na Igreja antiga é a teologia da participação nos mistérios da paixão,
morte e ressurreição de Cristo, teologia de Romanos 6. Essa teologia
está teologicamente conectada à teologia de João 3, do novo nasci-
mento. Cirilo de Jerusalém é testemunha da transição que se deu na
Igreja da Síria da teologia de João 3 para a teologia predominante de
Romanos 6 (Cf. JOHNSON, 1999, p. 107-108). Usando a distinção
feita por Pe. Taborda (Cf. 1990) podemos dizer que os sacramentos
de iniciação cristã reapresentam o eleito a um único fato valorizado
através de várias expressões significativas. Ao ser batizado o eleito é
reapresentado ao evento fundador que é a morte e ressurreição de
Jesus. Passar pelas águas da fonte batismal é morrer e ressuscitar com
Jesus (Cf. De Baptismo 11,4; Catequeses Mistagógicas 2,5; Os
Sacramentos 2,20; 4,26-28) Os ritos de iniciação cristã são expres-
sões significativas do único fato valorizado que é a adoção filial do
eleito que se torna Cristo no Cristo.
O estudo dos sacramentos de iniciação cristã na Igreja antiga
suscita a seguinte questão: A condensação destes ritos numa única ação
litúrgico-sacramental contribui ou dificulta a assimilação do mistério
celebrado por parte dos neófitos? A pedagogia dos Padres da Igreja
antiga ilumina esta questão. Valoriza-se muito mais a experiência vivida
pelo neófito no rito sacramental que o significado conceitual do sacra-
mento. O eleito primeiro vivencia a experiência sacramental para de-
pois ser instruído sobre o mistério que ele já vivenciou. O neófito não
é instruído sobre conceitos hipotéticos, mas sobre uma experiência
concreta vivida por ele na noite pascal. Não ouve elucubrações sobre
Deus ou sobre a fé, mas é levado aos mesmos sentimentos vividos na
noite batismal onde fora imerso em fortes símbolos. Primeiro é tocado,
afeccionado em todos os seus sentidos, depois busca o significado.
Essa densidade sacramental é provocada pela riqueza de sím-
bolos e gestos litúrgicos dos sacramentos de iniciação cristã. A riqueza
dos símbolos e gestos se dá pela importância do fato valorizado na

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vida do eleito e na vida da Igreja. A série de ritos pré-batismais,
batismais e pós-batismais contribuem para uma experiência forte do
mistério celebrado. O caráter mistérico da Igreja antiga também coo-
pera para a densidade dos ritos de iniciação cristã. Somente depois de
passar pelas águas do batismo o neófito pode contemplar “tamanhos
mistérios”. Isto cria toda uma atmosfera de expectativa pelo novo e os
ritos remetem a essa expectativa por se tratar de uma nova realidade a
ser vivida. A pedagogia das catequeses mistagógicas da Igreja antiga é
para nós, sobretudo hoje, na cultura eletrônica audiovisual, onde o
apelo dos sentidos é explorado ao máximo, uma grande oportunidade
para a catequese.

Referências

AMBRÓSIO DE MILÃO, Santo. Os sacramentos e os mistérios.


Petrópolis: Vozes, 1972.

CIRILO DE JERUSALÉM, Santo. Catequeses mistagógicas.


Petrópolis: Vozes, 1877.

ETÉRIA. Peregrinação de Etéria: liturgia e catequese em Jerusa-


lém no Século IV. Petrópolis: Vozes, 1971.

JOHNSON, Maxuell E. The rites os christian initicatin: their


evolution and interpretation. Collegeville Minesota: The Liturgical
Press, 1999.

TABORDA, Francisco. Nas fonts da vida cristã: uma teologia do


batismo-crisma. São Paulo: Loyola, 2001.

______. Sacramentos, práxis e festa: para uma teologia latino-


americana dos sacramentos. Petrópolis: Vozes, 1990.

ZILLES, Urbano. O sacramento do batismo segundo Tertuliano.


Petrópolis: Vozes, 1981.

Ano 1 • N. 2 • jul./dez. 2010 - 181

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