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NASCIMENTO DA PSICOSSOMÁTICA

Claude SMADJA (16 de Setembro de 2012)

Em 1976, Michel Fain recebeu o lançamento nas livrarias do primeiro tomo dos
“Movimentos individuais de vida e de morte”, de Pierre Marty, como uma “conquista da
psicanálise”. Depois de aproximadamente trinta anos de observações e trabalhos
psicossomáticos, Pierre Marty construíra, com as ferramentas conceituais da
psicanálise, uma visão de conjunto da economia psicossomática individual e da
economia psíquica integrada a esta. O livro de Marty é inaugurado pelas marcas de uma
filiação profunda com a psicanálise. “Sem Freud, nossa tarefa teria sido impossível”.
Estas palavras do autor, inseridas no início de seu livro, poderiam constituir um exergo
deste mesmo livro, mas a marca original de Marty em sua visão psicossomática resulta
da união entre a psicanálise freudiana e o princípio evolucionista. “Nossa posição, que
se inspira profundamente na psicanálise, mantém ao mesmo tempo a marca do princípio
evolucionista e de duas de suas maiores consequências:
- A hipótese de uma complexidade secundária proveniente das combinações,
através do tempo, de dinamismos elementares,
- O reconhecimento do avanço contra evolutivo das desorganizações”.
Voltarei mais tarde a esses elementos maiores da teoria de Pierre Marty, particularmente
no que diz respeito ao significado que ele atribui ao funcionamento mental na totalidade
da economia psicossomática individual. Mas desde já, e como introdução ao debate
sobre as relações entre a psicossomática e a psicanálise, gostaria de abordar o problema
histórico do dualismo psique-soma. É preciso dizer aqui que a concepção inovadora de
Pierre Marty, logo adotada por colegas e amigos famosos da Société Psychanalytique de
Paris, surgiu a partir da superação do dualismo psique-soma, que constituía até então a
concepção dominante no campo da medicina psicossomática nos Estados Unidos, e era
sustentada por Franz Alexander.
Desde o surgimento da biologia enquanto ciência do ser vivo no decorrer do século
XVIII, e da medicina moderna baseada sobre o conceito anátomo-clínico neste mesmo
século, a visão dos clínicos a respeito dos fatos psicossomáticos sempre foi dualista. A

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maioria das tentativas de unificar os sintomas do corpo e do espírito consistia em
projetar o psíquico sobre o cerebral e, assim, reduzir os sinais da atividade psíquica
(afeto, pensamento, imaginação) a produções da atividade cerebral. As poucas reações
espiritualistas iam de encontro às concepções materialistas da medicina moderna e
defrontavam-se sempre com aporias fundamentais, pois a coisa psicossomática é, em
seu próprio fundamento, extremamente difícil de ser concebida pelo espírito humano.
Trata-se de transformar, no pensamento do observador, uma dualidade de fenômenos
heterogêneos apresentados pelo paciente, pertencentes a campos de funcionamento
diferentes (funcionamento psíquico e funcionamentos somáticos), em uma unicidade de
concepção. Esta operação do pensamento exige que o observador respeite o alto nível
de complexidade pelo qual o fenômeno psicossomático se constitui. Não levar em conta
esta exigência conceitual faz com que se apreenda o objeto de conhecimento de maneira
reduzida e, quanto aos fatos somáticos, faz com que sejam compreendidos segundo um
tipo de pensamento dualista. Para esta abordagem dualista, o problema que se apresenta
ao observador psicossomático consiste em descobrir o traço de união, o elo hipotético
que ligaria no espaço e no tempo fenômenos de ordem psíquica e fenômenos de ordem
somática. É aí que reside a aporia fundamental de toda concepção dualista, pois, pelo
fato de provocar disfunções do corpo, o elo que falta só pode ser de ordem somática. É
neste ponto que se introduz obrigatoriamente a questão da passagem do psíquico para o
somático. Foi para responder a estas questões em vários níveis – clínico, teórico, prático
e epistemológico – que Pierre Marty redigiu um texto extremamente abrangente, tanto
no plano teórico-clínico quanto no plano epistemológico, que situa o fato
psicossomático a partir de outro ponto de vista, de uma nova atitude conceitual.
Em 1952, Marty escreveu “As dificuldades narcísicas do observador diante do problema
psicossomático”. Ainda hoje podemos afirmar que se trata de um texto revolucionário.
Este trabalho transforma radicalmente a concepção do fato psicossomático. Marty parte
da constatação de que a maioria dos observadores da área da psicossomática pensa a
compreensão dos fatos psicossomáticos de seus pacientes de acordo com uma atitude de
espírito dualista. Considerando que este ponto de vista dualista não corresponde à
realidade e à complexidade da coisa psicossomática, ele é levado a situar esta visão
redutora do observador em uma dificuldade inerente a seu funcionamento psíquico, uma

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dificuldade de ordem narcísica. Para Marty, baseando-se nas teses de Lacan sobre o
estágio do espelho, uma realidade só é admitida narcisicamente pelo observador se ela
for ao mesmo tempo visível, conceitualmente esquematizável, e protegida contra
qualquer influência destruidora. Em outros termos, para que um objeto possa entrar no
campo do possível para um observador, é preciso que obedeça às condições precitadas.
Ora, para Marty, o objeto psicossomático não responde a nenhuma destas condições. Ele
não responde a nenhuma destas condições devido a seu elevado nível de complexidade
e abstração. Também não responde a nenhuma destas condições, por não se definir por
parâmetros espaciais, e sim pelo lugar que ocupa e pelo sentido que tem dentro de uma
rede de relações funcionais. A definição de função de Marty ilustra bem sua concepção
epistemológica do objeto psicossomático. “Em toda e qualquer matéria viva, o que é
isolado artificialmente e que chamamos de ‘função’ não corresponde a uma realidade
totalmente perceptível. Uma função – tudo o que é vivo pode ser adequadamente
expresso em termos de ‘função’ – não existe completamente em si, mas se revela em um
movimento de relação com os movimentos de outras funções. Uma função assume sua
existência através de suas relações com as organizações funcionais que a rodeiam, e
com aquelas que a constituem. Logo, ‘função’ significa ao mesmo tempo um recorte
artificial em um agrupamento funcional, e relações interfuncionais”. Esta definição da
função como objeto-tipo do campo psicossomático, extraída do primeiro tomo dos
“Movimentos individuais de vida e de morte”, responde a aproximadamente vinte e
cinco anos de existência da pertinente definição de objeto complexo que temos no texto
de 1952: “ é justamente no momento preciso do apagamento do objeto, da fusão das
formas e dos níveis em um movimento que junta o fisiológico ao social através do
psíquico que se situa a psicossomática”. Vemos aqui claramente o caráter
profundamente inovador do ponto de vista de Marty sobre os fatos psicossomáticos.
Este transtorno da definição do objeto psicossomático, resultado de uma transformação
radical dos modos de pensar e de ser, fez com que Marty introduzisse uma nova
definição, abrangendo toda a complexidade da coisa psicossomática: “a psicossomática
não está em um hífen. Ela é o estudo da evolução, centrada em um longo “momento”
cujos limites são indefiníveis. Não temos nenhum motivo para pensar que este
“momento” possua um valor mágico qualquer. Sua falta de limite, sua imprecisão, não

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devem constituir um obstáculo para nossos estudos. Devemos saber esperar dentro do
que acreditamos ser o indefinido para melhor nos situarmos, e aceitar o que pensamos
ser a imprecisão para melhor nos aproximarmos da precisão da realidade”.
O ponto de vista unicista sobre os fenômenos psicossomáticos só pode ser sustentado se
estiver associado, de maneira plena e sem resíduos, ao modelo pulsional da psicanálise.
Pois para Freud, as pulsões atravessam, na história e no tempo, a totalidade do campo
psicossomático. Para ele, a linha de divisão não se situa entre as expressões do corpo e
as do psiquismo, mas apenas entre as pulsões antagônicas e segundo seu grau de união
ou de desunião. A partir deste suporte conceitual, a psicossomática psicanalítica está
assentada sobre duas ideias essenciais:
- A continuidade pulsional somato-psíquica e psicossomática
- A comunidade energética entre os campos somático e psíquico.

1) A continuidade pulsional

Pierre Marty construiu seu modelo da estruturação psicossomática individual a partir do


postulado de uma ligação e de uma hierarquização gradual das funções até sua ponta
evolutiva, o funcionamento mental. Para Marty, esta estruturação tem por base os
movimentos de vida individual, ou seja, as pulsões sexuais. Os movimentos contra
evolutivos, geradores de uma desorganização mental e depois somática, representam
para Marty fracassos momentâneos ou duráveis das pulsões de vida em seu dinamismo
construtivo. Então, a força pulsional se inverte e se transforma em movimento de morte
ou pulsão de morte. Nesta introdução, não pretendo desenvolver mais profundamente os
aspectos internos da teoria de Pierre Marty. Para Freud, a continuidade pulsional entre
os domínios somático e psíquico é garantida por um sistema organizador
metapsicológico, que tem propriedades ao mesmo tempo tópicas, dinâmicas e
econômicas.

Para a primeira tópica, é o inconsciente que assegura a continuidade pulsional


psicossomática. Em 5 de Junho de 1917, Freud responde a uma carta de Grodeck.
Nesta, ele critica a extensão ilimitada que este autor concede ao id em suas relações

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com as funções somáticas. Pela primeira vez, Freud introduz uma nova propriedade do
inconsciente que escondera até então, particularmente em seu texto da metapsicologia
de 1915 sobre o inconsciente. “Permita que lhe mostre que o conceito de inconsciente
não necessita de nenhuma extensão maior para cobrir vossas experiências sobre as
doenças orgânicas. O senhor menciona uma nota aparentemente insignificante do meu
ensaio sobre o inconsciente: “citaremos em outro contexto outra prerrogativa importante
do inconsciente”. Vou lhe revelar o que está camuflado sob esta nota: a afirmação de
que o ato inconsciente exerce sobre os processos somáticos uma ação plástica intensa,
jamais obtida pelo ato consciente”. Sem sombra de dúvida, para Freud o inconsciente
representava este organizador que garante a continuidade psicossomática, e é nele que
se encontra o lugar conceitual do salto do psíquico para o somático. Mas é óbvio
também que ele tinha algumas ressalvas quanto àquela propriedade fundamental do
inconsciente. Talvez se sentisse preso à regra metodológica que ele havia escrito e
proposto a seus colegas psicanalistas, a de levar a pesquisa psicanalítica até os limites
do psíquico e de nunca ultrapassá-los entrando no campo obscuro do somático. De toda
forma, em sua resposta a Grodeck, Freud expõe depois sua convicção quanto ao lugar
do inconsciente como operador e elo entre o psíquico e o somático, e ao mesmo tempo
deixa em aberto todo o campo dos possíveis na inteligibilidade dos fenômenos
psicossomáticos: «para mim, parece tão arbitrário animar a natureza – sempre e em todo
lugar –, quanto desespiritualizá-la radicalmente. Deixemos-lhe sua variedade infinita
que se erige do inanimado até o organicamente animado, da vida somática até a vida
psíquica. O inconsciente é certamente o verdadeiro intermediário entre o somático e o
psíquico, talvez seja o tão procurado ‘missing link’. Mas, e se finalmente
reconhecermos isto, seria um motivo para nos recusarmos a ver outra coisa?”.
Para a segunda tópica, é o id que assegura a continuidade pulsional entre os dois
campos do psíquico e do somático. Se a primeira teoria das pulsões, que opõe o ego à
sexualidade, afirma sem reserva a origem somática das pulsões parciais da sexualidade,
e se por outro lado ela postula que cada órgão é o lugar do conflito entre as duas
categorias de pulsões, a segunda teoria das pulsões vai estender ainda mais radicalmente
e mais profundamente na intimidade da substância viva o conflito entre as pulsões de
vida e as pulsões de destruição. “Assim poderíamos tentar transferir para a relação das

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células entre si a teoria da libido adquirida em psicanálise e pensar que são as pulsões
de vida – ou pulsões sexuais –, ativas dentro de cada célula, que tomam por objeto as
outras células, neutralizam em parte suas pulsões de morte, isto é, os processos
suscitados por estas, e assim as mantêm vivas, enquanto outras células fazem o mesmo
em relação às primeiras, e outras ainda se sacrificam elas-mesmas no exercício desta
função libidinal (“Além do princípio de prazer – 1920)”. Para Freud, a libido narcísica,
no id ou no ego, “deriva das contribuições por meio das quais as células do soma
aderem umas às outras”. Consequentemente, todas as operações do funcionamento
mental, através do ego e desde o id contêm, em suas formas secundárias e emergentes,
sinais dos níveis somáticos atravessados pelas pulsões. Temos aqui novamente uma
noção essencial dos fundadores de École de Paris de Psicossomática, a das
infraestruturas somáticas do id na origem da espessura das representações.

2) A comunidade energética

A noção de comunidade energética se destacou logo no início das primeiras observações


psicossomáticas. Em torno de Marty, os primeiros autores da área da psicossomática
postularam a existência de uma energia comum para as expressões psíquicas e
somáticas. Mas essa energia só é comum em seu fundamento, pulsional; pois o que
estes autores observam, são as transformações qualitativas dessa energia pulsional que
levam a toda a variedade das manifestações clínicas, do psíquico ao somático. São estes
processos de transformação, tanto no sentido evolutivo quanto no regressivo, que
definem a economia psicossomática.
Os autores da investigação psicossomática propuseram uma hipótese econômica que
representa para o clínico um quadro de leitura dos processos psicossomáticos. Essa
hipótese é expressa sob a forma de um princípio: o princípio da equivalência energética.
Trata-se de mostrar, no decorrer de um evento psicossomático qualquer, que a energia
pulsional subjacente às manifestações psicossomáticas se conserva sempre, mas se
transforma em uma variedade de expressões. Mas existe um sentido nesse processo de
transformação energética – o da desqualificação libidinal, à medida que nos afastamos
das expressões psíquicas. « Fomos levados a formular um princípio de equivalência

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energética que imediatamente revelou-se fecundo tanto no nível do diagnóstico, quanto
do prognóstico e da terapêutica. Baseando-nos sobre nossa experiência psicossomática,
pensamos que existe de fato certa equivalência energética entre a atividade relacional
com um objeto externo; a atividade relacional com a representação de um objeto
externo; a atividade mental enquanto tal, intelectual ou fantasmática; e a atividade
funcional somática perturbada. Nesta cadeia analógica, é preciso salientar que a
qualidade da integração da energia vai se degradando aos poucos – sem prejulgar aqui
seu valor agressivo ou libidinal – ao mesmo tempo em que a noção objetal se
enfraquece e se apaga em prol daquela da atividade funcional destorcida. É assim que
podemos ver um distúrbio visceral ou muscular substituir a relação com uma pessoa
próxima significativa». Este princípio de equivalência energética amplia o campo de
escuta do psicanalista de psicossomática para além dos limites estritos do campo de
expressão psíquico. O que é visado aqui é uma escuta dos processos transformacionais
tanto em um sentido evolutivo quanto num sentido regressivo, e em toda a extensão do
campo psicossomático. Este princípio de equivalência energética é um eco do princípio
de inércia formulado no início por Freud (1895) para o fundamento de qualquer
atividade psíquica, e até de toda atividade nervosa. O princípio de constância que
constitui sua transformação nos processos vivos está, como se sabe, indissoluvelmente
ligado à dinâmica das duas espécies de pulsões, as pulsões eróticas e as pulsões de
morte. Tais princípios representam uma variedade de uma lei muito mais abrangente, a
da termodinâmica e de seu primeiro princípio, que afirma que a energia não se cria nem
se destrói; ela se conserva sempre, e em qualquer lugar, mas se converte em uma
variedade de formas qualitativamente diferentes.

Freud fez, na sua época, uma série de observações psicanalíticas que têm um valor
essencial para a pesquisa psicossomática. Todas essas observações são ilustrações do
princípio de uma energética comum entre os campos psíquico e somático. Mas o
modelo teórico que faz com que esse dinamismo psicossomático se torne inteligível é a
teoria da libido e de sua economia própria.
A primeira observação refere-se às neuroses atuais. Em seu texto de 1895 sobre a
neurose de angústia, Freud descreve o mecanismo hipotético que leva à neurose de

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angústia e dá conta ao mesmo tempo das expressões deficitárias no nível psíquico e das
expressões sintomáticas no estado somático: « o que conduz à neurose de angústia são
todos os fatores que impedem a elaboração psíquica da excitação sexual somática. As
manifestações da neurose de angústia surgem quando a excitação sexual somática,
derivada fora do psiquismo, é empregada de maneira subcortical em reações totalmente
inadequadas”. Vemos claramente aqui que o que está ausente na elaboração psíquica, ou
seja, a formação de representações, deve ser relacionado com o que está presente no
funcionamento somático pela existência de sintomas funcionais. Freud mostra que essas
correlações resultam das transfigurações do dinamismo libidinal.

Em 1920, em “Além do princípio do prazer”, Freud faz uma observação a respeito da


neurose traumática. Ele mostra como uma neurose traumática perde sua sintomatologia
mental assim que se associa a lesões corporais. Este enigma é resolvido, para Freud, se
forem consideradas as variações da economia libidinal: «o fato de que uma grosseira
lesão simultânea causada pelo trauma diminua as chances de surgimento de uma
neurose deixa de ser compreensível se pensarmos em duas circunstâncias sublinhadas
pela pesquisa psicanalítica. Primeiro, que o abalo mecânico deve ser reconhecido como
sendo uma das fontes da excitação sexual, e depois, que um estado de doença dolorosa e
febril exerce – enquanto durar – uma grande influência sobre a repartição da libido. A
violência mecânica do trauma libertaria o quantum de excitação sexual que tem efeito
traumático, por causa da falta de preparação pela angústia; a lesão corporal simultânea,
quanto a ela, ligaria o excesso de excitação recorrendo a um superinvestimento
narcísico do órgão que está sofrendo. Também é fato conhecido, apesar de não ter sido
suficientemente explorado para a teoria da libido, que perturbações na repartição da
libido tão graves quanto as de uma melancolia podem ser temporariamente anuladas por
uma afecção orgânica intercorrente, e que até mesmo o estado de uma demência precoce
totalmente desenvolvida é capaz, nas mesmas condições, de retroceder por algum
tempo”.

Em 1924, em “O problema econômico do masoquismo”, Freud se surpreende ao


constatar que em certas neuroses graves a sintomatologia mental desaparece quando

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ocorrem eventos traumáticos, dentre os quais o aparecimento de uma doença grave; sua
interpretação é baseada sobre a economia do masoquismo e sobre a variedade de formas
de expressão: “contra toda teoria e toda expectativa, uma neurose que desafiou todos os
esforços terapêuticos pode desaparecer quando a pessoa sofre as consequências de um
casamento mal sucedido, perde seus bens ou tem uma doença orgânica séria. Neste
caso, uma forma de sofrimento foi substituída por outra, e vemos que se tratava apenas
de poder manter uma determinada quantidade de sofrimento”.

Em 1932, no texto de sua conferência sobre “A angústia e a vida pulsional”, Freud lá


faz uma observação cujo alcance psicossomático foi amplamente confirmado com o
passar dos anos e o trabalho dos analistas da área da psicossomática: a desmantelamento
da mistura pulsional e a dissociação das pulsões eróticas das pulsões de morte podem
levar a graves transtornos das funções somáticas. A autodestruição, liberada quando há
dissociação das pulsões, é – como Freud pressentira – o agente pelo qual as funções
somáticas podem se desorganizar.
A criação de uma nova escola de pensamento psicossomático, iniciada com as intuições
de Pierre Marty no final dos anos quarenta, só se estabeleceu e se desenvolveu a partir
de uma observação psicanalítica fundamental no caso dos pacientes somáticos, que logo
adquiriu uma função organizadora sobre todo o pensamento dos fundadores da École de
Paris de Psychosomatique: trata-se da constatação de uma falta no funcionamento do
inconsciente. Não foi fácil reconhecer esta falta pois o primeiro pensamento dos autores
psicossomatistas, diante de tal falta, foi considerar que havia ali um sentido escondido
que não se revelava ao observador psicanalista. Foi preciso aceitar a ideia de que esta
falta era uma nova realidade psíquica, e que, além disso, ela estava indissoluvelmente
ligada ao evento psicossomático. Se retomarmos as observações de Freud já
mencionadas, podemos ordenar essas observações psicossomáticas em função das
formas sob as quais esta falta aparece no funcionamento psíquico; a neurose atual é para
Freud a ilustração de um funcionamento mental carente, que apresenta pouquíssimas –
ou até mesmo nenhuma – capacidade associativa e representa uma contraindicação para
a psicanálise. As observações de neurose traumática associada a uma lesão corporal, ou
de estado neurótico associado a um evento traumático, sobretudo somático, revelam

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uma falta mais dinâmica, já que se trata de uma falta que resulta de um apagamento de
expressões psíquicas. Quanto às alterações somáticas consecutivas a uma dissociação
pulsional, elas demonstram a extensão da desconstrução psíquica sob o efeito do
desmantelamento das pulsões.

Na realidade, o conceito de falta que consta no início de todas as elaborações teóricas


em psicossomática deve hoje ser interpretado à luz de outro conceito cardinal da
psicanálise contemporânea – o de negativo. A meu ver, a psicossomática é uma das vias
régias de acesso para a compreensão do negativo e da negatividade no campo da
psicanálise. Pretendo desenvolver este ponto de vista nas próximas sessões preparatórias
para o colóquio de St. Malo de 2013.

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