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O engano 1_ do sujeito suposto saber 13291

NO INSTITUTO FRANCtS DE NÁPOLES, 14 DE DEZEMBRO DE l 967

<>que é o inconsciente? A coisa ainda não foi compreendida. 2


Tendo o esforço dos psicanalistas, durante décadas, sido o de
I ranqüilizar quanto a essa descoberta, a mais revolucionária que
houve para o pensamento, tomando a experiência dela como pri­
vilégio deles - é verdade que suas aquisições continuaram a ser
de apreciação privada-. as coisas acabaram chegando a que eles
I i vessem a recaída a que esse próprio esforço lhes conduzia, por
ser motivado no inconsciente: por terem querido tranqüilizar a si
mesmos, eles conseguiram esquecer a descoberta.
Tiveram ainda menos dificuldade nisso na medida cm que o
inconsciente nunca despista tanto quanto ao ser apanhado em fla­
grante, mas sobretudo por terem deixado de destacar o que Freud,
no entanto, havia denotado: que sua estrutura não caía no âmbito
de nenhuma representação, sendo mais de seu costume só levá-la
cm consideração para se mascarar com ela (Rücksicht auf" Dars­
tellbarkeit).
A política pressuposta por toda provocação de um mercado só
pode ser uma falsificação: caía-se então nisso, inocentemente, na
falta do socorro das '"ciências humanas". Assim é que não se sabia
que era uma falsificação querer tornar tranqi.iilizador o Unheimlich,
dado o pouquíssimo tranqüilizador que é o inconsciente, por sua
natureza.

O termo mépri.1·t', que ocuptt lugar importante no ensino de Lacan, será neste
volume prcfercncialmentc traduzido por "'engano". Apostamos, assim, menos cm
uma multiplicidade de Lermos que o traduziriam adequadamente em diferentes
situações (equivocação, tapcaçfto, enganação, confusão), e mais na capacidade da
própria língua portuguesa cm engendrar a méprist' a partir de um termo comum.
(N.E.)
2 Esse lcxto e os dois seguintes, preparados para conferêm:ias. não foram lidos,
como é esclm·ecido por uma indicação do alllor, reproduzida nas "Referências
bibliográficas" (2000).

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330 Outros Escritos

Admitida a coisa, tudo se presta a servir de modelo para dar


conta do inconsciente: o pattern de comportamento, a tendência
instintiva, ou até o traço filogenético em que se reconhece a remi-
niscência de Platão - a alma aprendeu antes de nascer-, a emer-
gência desenvolvi mentista que falseia o sentido das chamadas fa-
ses pré-genitais (oral. anal) e derrapa ao empurrar a ordem genital
para o sublime ... 1-lú que ouvir a criancice analítica dar-se livre
13301 curso quanto a isso, havendo-se a França distinguido, de maneira
inesperada, por levá-la a um ponto ridículo. Este se corrige ao
sahermos tudo o que nele se pode dissimular: a menos discreta das
coprofilias, vez por outra.
Acrescentemos ü lista a teleologia, por criar uma cisão dos
objetivos de vida nos objetivos de morte. Tudo isso, por não pas-
sar de representação, intuição sempre ingênua e, numa palavra,
registro imaginário, certamente é ar para inflar o inconsciente
para todos. e até cantiga para suscitar a vontade de espiar dentro
dele em alguém. Mas é também tapear Lodos com uma verdade
que reluz ao se nferecer apenas em falsas captações [prises].
Mas, afinal, hão de me dizer, em que se demonstram falsas,
que diabo? Simplesmente pela incompatibilidade cm que a tapea-
ção [trornperie I do inconsciente se denuncia, pela sobrecarga re-
tórica com que Freud o mostra argumentar. Essas representações
se somam, como se diz do caldeirão, e seu malefício é afastado,
1!.!, por não me Ler sido emprestado, 2ll, porque.. quando cu o tive,
ele jú era furado, e :V1, porque ele era perfeitamente novo no mo-
mento de devolvê-lo. E enfo: o que você está me mostrando onde
quiser.
Afinal, não é do discurso do inconsciente que colheremos a
teoria que o explica.
O falo de o apólogo de Freud fazer rir prova que ele toca na
nota certa. Mas não dissipa o obscurantismo que o relega às distra-
ções sem importfmcia.
Foi assim que por três meses, ao deliniitar a lanterna com que
julgava tê-lo de uma vez por todas iluminado, fiz meu público
bocejar ao lhe demonstrar no Witz de Freud (no chiste, como se
traduz) a própria articulação cio inconsciente. Não era verve o que
me faltava, podem acreditar. nem tampouco, atrevo-me a dizê-lo,
talento.
Ali abordei a força da qual resulta que o Witz seja desconhe-
cido no batalhüo cios Institutos de psicanálise, que a "psicanálise
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aplicada" tenha sido o departamento reservado a Ernst Kris, o


não-médico do trio nova-iorquino, e que o discurso sobre o in-
consciente seja um discurso condenado: com efeito, ele só se sus-
tenta no posto sem esperança de toda metalinguagem.
O fato é que os espertos o são menos que o inconsciente, e é
isso que sugere contrastá-lo com o Deus de Einstein. Sabemos que
esse Deus, para Einstein, não era em absoluto urna maneira de
falar, cabendo antes dizer que ele o constatava [touchait du doigt]
por aquilo que se impunha: que ele era complicado, sem dúvida,
mas não desonesto.
Isso quer dizer que o que Einstein considera na física (e isso é 13311
um fato de sujeito) como constituindo seu parceiro não é um mau
jogador e nem sequer é um jogador, não faz nada para confundi-
lo, nüo dá uma de finório.
Será que basta confiar no contraste do qual ressaltaria, assina-
lemos, quão mais simples é o inconsciente, e sen1 que, por ele
enrolar os espertalhões, devemos colocú-lo acima de nôs no que
julgamos conhecer pelo nome de desonestidade? É aí que convém
ser prudente.
Não basta ele ser astucioso, ou, pelo menos, dar a impressão
de sê-lo. Tirar essa conclusão é coisa rápida para os novatos, todas
as deduções cio que virá depois serão recheadas com essa idéia.
Graças a Deus, no tocante àqueles com quem lidei, eu tinha a meu
dispor a história hegeliana dita da astúcia da razão. para fazê-los
perceber uma diferença na qual talvez tornemos compreensível
por que eles estavam perdidos de saída.
Observemos o caráter cômico - num;a lhes apontei isso,
pois, com as inclinações que vimos neles há pouco, aonde isso
teria levado?-, o caráter cômico da raüo à qual são necessários
esses desvios intermináveis para nos levar. .. a quê? Ao que se
designa como fim da história como saber absoluto.
Relembremos aqui a ridicularização de tal saber que pôde ser
cunhada pelo humor ele um Queneau, por ele se haver formado nos
mesmos bancos que eu em Hegel: ou seja, seu "domingo da
vida", ou o advento do indolente e do patife. mostrando numa
preguiça absoluta o saber apropriado para satisfazer o animal. Ou
simplesmente a sabedoria autenticada pelo riso sardônico de Ko-
jeve, que foi nosso mestre comum a ambos.
Atenhamo-nos a este contraste: a astúcia da razão mostraria
seu jogo no final.
332 Outros Escritos

Isso nos leva a algo por que passamos meio apressadamente.


Se a lei da natureza (o Deus da física) é complicada, como é que
só a atingimos ao jogar a regra do pensamento simples, entenda-
se: quem não reitera sua hipótese de maneira a tornar qualquer
outra supérflua? Será que o que se fez figurar disso, no espírito de
Occam da navalha, não nos permitiria, do pedaço que sabemos,
homenagear o inconsciente com um fio que. afinal, revelou-se um
bocado cortante?
Aí está algo que talvez nos introduza melhor no aspecto do
inconsciente pelo qual ele não se abre tanto que não venha a se
13321 fechar cm seguida. Mais coriáceo, portanto, a uma segunda pulsa-
ção? A coisa fica clara pela advertência com que Freud previu
muito bem o que começamos por destacar - a remoedura de
recalcamento que se produziu na média da clínica-, ao confiar
em seus discípulos para que dessem sua contribuição, por um pen-
dor Lão mais bem-intencionado quanto menos intencional a ceder
ü irresistibilidade do bchaviorismo para pavimentar esse caminho.
Em que a afirmação atual faz discernir o que se formula, pelo
menos para quem lê Freud em nossa escola: que a disciplina beha-
viorista se define pela denegação (Vc:rneimmg) do princípio ele
realidade.
Não será aí que se deve dar lugar ;1 operação da navalha, assi-
nalando que minha polêmica é tão pouco digressiva aqui quanlo
alhures, para demonstrar que é naprópria articulação da psicaná-
lise com o objeto por ela suscitado que o psicanalisla abre seu
sentido por ser seu dejeto prático?
Porque, onde pareço denunciar como traição a carência do
psicanalista, aproximo-me da aporia a partir da qual articulo este
ano o ato psicanalítico.
Ato que fund~ numa estrutura paradoxal, jú que nela o objeto
é ativo e o sujeito, subvertido, e na qual inauguro o método de uma
teoria, pelo falo de que ela não pode, com toda a correção, consi-
derar-se irresponsável pelo que se configura de fatos por meio de
uma prática.
Assim, é no cerne da prática que fez empalidecer o incons-
ciente que tenho agora de buscar seu registro.
Para isso, faz-se preciso o que desenho de um processo atado
por sua própria estrutura. Qualquer crítica que fosse a nostalgia de
um inconsciente em seu desabrochar, ele uma prática em sua intre-
pidez ainda selvagem, seria ela mesma puro idealismo. Simples-
mente, nosso realismo não implica o progresso no movimento que
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se desenha da simples sucessão. Não o implica, em absoluto, por-


que o toma por uma das mais grosseiras fantasias daquilo que
merece, a cada momento, ser classificado como ideologia, aqui
como efeito de mercado, tal como suposto pelo valor de troca. É
preciso que o movimento do universo do discurso seja apresenta-
do ao menos como o crescimento, com juros compostos, da renda
de um investimento.
Só que, quando não existe idéia de progresso, como apreciar
a regressão, a regressão do pensamento, naturalmente? Observe-
mos inclusive como essa referência ao pensamento é clu vi dosa
enquanto não é definida, mas ocorre também que não podemos 13331
defini-la enquanto não houvermos respondido à pergunta sobre o
que é o inconsciente. Pois o inconsciente, a primeira coisa a dizer
sobre ele - o que significa o seu" o que é", o quod est, o w n wn,
na medida em que ele é o sujeito de tudo o que lhe pode ser atri-
buído - é aquilo que Freud disse a seu respeito inicialmente, com
efeito: são pensamentos.
Aliás, o termo "regressflo do pensamento" tem aqui, apesar
de tudo, a van1agem de incluir a pulsação indicada por nossas
preliminares, ou seja, o movimento de recuo predador cuja sucção
como que esvazia as representações ele sua implicação de conhe-
cimento, e isto seja pela própria confissão dos autores que se va-
lem desse esvaziamento (behaviorista ou mitologizante, na me-
lhor das hipóteses), seja por eles só sustentarem sua bolha ao re-
cheá-la com a "parafina" de um positivismo ainda menos oportu-
no aqui do que alhures (migração da libido, pretenso desenvolvi-
mento afetivo).
É do próprio movimento do inconsciente que provém a redução
do inconsciente à inconsciência, na qual o momento da redução se
furta por não poder medir-se pelo movimento como sua causa.
Nenhuma pretensão de conhecimento seria aceitável aqui,
visto que nem sequer sabemos se o inconsciente tem um ser pró-
prio, e que foi por não ser possível dizer "é isso" que ele foi
chamado pelo nome de isso (Es em alemão, ou seja, isso, no sen-
tido como se diz "isso não tem cabimento", ou .. isso vai acabar
mal''.) Na verdade, o inconsciente "não é isso", ou então, "é isso,
mas na pressa"·1. Nunca no capricho.

3 No orig. à la go1111ne, utili1.ando-sc do lermo gommc. ·'borrad1a", do qual fará


uso a seguir Lacan. (N.E.)
3.14 Outro,· hscritos

"Eu sou um trapaceiro de vida", diz um garoto de quatro


anos, enroscando-se no colo de sua genitorn, diante do pai que
acaba de responder "Você é bonito" à sua pergunta: "Por que
você está me olhando?" E o pai não reconhece nisso (apesar de o
menino, no intervalo. o haver tapeado com a idéia de ter perdido o
gosto por si mesmo desde o dia em que falou) o impasse que ele
mesmo tenta pôr no Outro, ao se fazer de morto. Cabe ao pai que
me contou isso ouvir-me aqui, ou não.
l~ impossível encontrar o inconsciente sem usar toda a borra-
cha, jú que. é sua função apagar o sujeito. Daí os aforismos de
Lacan: ··oinconsciente é estruturado como uma linguagem", ou
então "O inconsciente é o discurso do Outro".
Isso lembra· 1 que o inconsciente ni1o é p;·;·der a memória: é não
f3341 lembrar do que se sabe. Pois convém dizer, de acordo com o uso
do não-purista. "cu me lembro isso" ,5 ou seja: eu me lembro a ser
(da representaçüo) a partir disso. De quê? De um significante,
Não me lembro mais disso. Isso quer dizer: não me reencon-
tro nisso. Isso não me instiga a nenhuma representação pela qual
se prove que habitei aí.
Essa reprcsentaçüo é aquilo a que se chama lembrança [so11-
venir] .6 A lembrança. o deslizar por baixo, é de duas fontes que até
hoje têm sido confundidas:

4 Aqui e no trecho que se segue Laca11 emprega o vcrho rappe/er. jogando com
suas várias acepções de reevocar. chamar. invocar. chamar de volta. trazer de novo
ü memória (ou 11 consciência). resgatar. lembrar. rL:memorar. fazer pensar em,
reconvocar. mobilizar etc. Nas próximas ocorrências desse verbo, ele usa a cons-
trução .1·e raf'peler dl' e. na seguinte. s 'en fllfJJJ<'l<'r. condenadas por muitos gramá-
ticos e construídas por analogia com se so111•e11ir de (lembrar-sede. recordar), para
dar corpo a isso que~ objl!lo da lembrança. (N.1'.)
5 "Disso". diz o sujeito, "cu não me lembro". Ou seja: ao chamado de um
significante ao qual cabcria ·· me representar para oulro significante'º. cu não
respondo ··prese111e··. cm razão de que, pelo efeito desse chamado. não represento
mais nada para mim. Sou um quarlo escuro que fui iluminado: não h.í mais jeito de
se pilllar nele, por seu buraco de alfinete. a imagem do que acontece lá fora.
O inconsciclllc não é subliminar, tênue claridade. É a luz que não dá lugar à
sombra. nem deixa insinuar-se seu contorno. Ele representa minha representação
ali onde ela falta, onde sou apenas um:1 falta do sujeito.
Donde., cm Freud, o termo: representante da representação.
6 É divertido assinalar aqui que lembrar-se de jse souvenir de( vem do rccordar-
se de [se rappeler de'(, reprovado pelos puristas. e que: é atestado a partir du século
XIV.
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1) a inserção do vivente 7 na realidade que é o que disso ele


111iagina e que pode ser avaliada por sua maneira de reagir nela:
2) o laço do sujeito com um discurso de onde ele pode ser
I L·primido, isto é, não saber que esse discurso o implica.

O imponente quadro da chamada amnésia ele identidade deve-


ria ser instrutivo aqui.
Convém implicar que o uso do nome próprio, por ser social,
11üo deixa transparecer que é essa a sua origem. Por conseguinte,
hem podemos chamar de amnésia a espécie de eclipse que fica
suspensa em sua perda: só faz distinguir-se melhor o enigma pelo
rato de que o sujeito não perde aí nenhum benefício do aprendido.
Tudo o que é inconsciente joga apenas com efeitos de lingua-
gem. Trata-se de algo que se diz sem que o sujeito se represente
nisso nem que nisso diga - nem tampouco saiba o que diz.
A dificuldade não é essa. A ordem de indeterminação consti-
tuída pela relação do sujeito com um saber que o ultrapassa resul-
ta, podemos dizer. de nossa prática, que a implica, tão logo seja
interpretativa.
Mas que possa haver um dizer que se diz sem que a gente 8
saiba [sans qu 'on sache] quem o diz, é a isso que o pensamento se 13351
furta: é uma resistência {)n-tirn. (Brinco com a palavra on em
francês, da qual, não sem motivo, faço um esteio do ser, um ov, um
ente, e não a imagem da ornnitude: em suma, o sujeito suposto
saber.)
Se a gente [cm], a omnitude, terminou por se habituar ~t inter-
pretação, isso foi ainda mais fácil na medida em que há muito
tempo ela é ali feita, pela religião.
É por isso mesmo que uma certa obscenidade universitária,
que se denomina hermenêutica, encontra seu creme na psicaná-
lise.
Em nome do pattern e do filos anteriormente evocado, do
padrão-amor que é a pedra filosofal do fiduciário intersubjetivo, e
sem que ninguém jamais se tenha detido no mistério dessa Trimia-

7 É preciso ressaltar. apesar da prnximiclade literal entre os lcrrnos, que vivc1111


rcmete a algo menos definido e corporificado que seu equivalente em português.
(N E)
8 Foi preciso privilegiar a tradução do indefinido on francês por ··gente", cm
lugar do impessoal" se", para dar-lhe a materialidade que lhe confere Lacan. (N.E.)

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