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HENRI WALLON

A EVOLUÇÃO
PSICOLOGICA
DA CRIANÇA
Um clássico da Psicologia da Criança, e a obra mais conhecida do célebre pedagogo. .'
Estudada numa perspectiva psicogenética, à luz de experiências concretas, a evolu- ,
ção psicológica da criança surge como uma sucessão de etapas claramente caracteri­
zadas. No entanto, de etapa em etapa, a criança é «um único e mesmo ser ao
longo de metamorfoses-. É portanto essencial não a estudar fragmentariamente.'' É
a lição deste livro em que são abordados os grandes problemas da Psicologia da
Criança: o jogo, a motricidade, o desenvolvimento da afectividade, a linguagem’, etc.

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Г-—

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8
В PERSO NS
ABRANGENDO TEMAS QUE
VÃO DA PSICOLOGIA À PSI­
QUIATRIA E À PSICANÁLISE,
DA PEDAGOGIA À PSICOLO­
GIA INFANTIL, PASSANDO PE­
LA PSICOTERAPIA, PSICOSSO-
CIOLOGIA, PSICOMOTRICIDA-
DE, PSICOPEDAGOGIA, PUERI­
CULTURA E SEXOLOGIA, ESTA
COLECÇÃO, SUBDIVIDIDA EM
SÉRIES, VISA ESSENCIALMEN­
TE TRATAR ASPECTOS RELA­
TIVOS À PESSOA HUMANA E
À GLOBALIDADE NÃO SÓ
DOS PROBLEMAS DA SUA
MENTE COMO DO SEU CORPO.
PERSON*
PSICOLOGIA

TITULOS PU BLIC AD O S
1. A U N ID A D E DA PSIC O LO G IA
de D aniel Lagache
2. A EV O L U Ç Ã O PSIC O L Ó G IC A DA C RIA N Ç A
de H enri W allon
3. A T E R A P IA SE X U A L
de P atricia e R ich ard G illan
4. A SA Ü D E M E N T A L DA CRIA N Ç A
de Celestin F rein et
5. PSIC Ó LO G O S E SEUS CO NCEITOS
de V ernon N ordby e Calvin Hall
6. S E X U A L ID A D E E PO D E R
d ir. de A rm an d o V erdiglione
7. A ESCO LA N A SO C IE D A D E
de Suzanne M ollo
8. A PS IC A N A L ISE
de J.-C. Sempé, J.-L . D onnct, Jean Say, G ilbert Lascault
e C atherine Backès
9. A IN T E R P R E T A Ç Ã O DAS AFASIAS
de Sigm und F reud
10. FE IT IC ISM O E L IN G U A G E M
de J.-J. G oux, Philippe Sollers e outros
11. CO M O A M A R U M A CRIA N Ç A
de Janusz K orczak
12. PS IC O L O G IA DA A TR A C Ç A O SEX U A L
de G lenn W ilson e D avid Nías
13. A N A L IS E D E C O N T EÜ D O
de L aurence B ardin
14. O D E S P E R T A R D O ES PIR IT O
de Françoise D olto e A ntoinette Muel
16. O E X A M E PS IC O L Ó G IC O D A C RIA N Ç A
de M ichéle P erro n -B o relli e R oger Perron
16. OS E F E IT O S D A E D U C A Ç A O
de M ichel Lobrot
17. О T E M P O D A A D O LESCÊN CIA
de G uy A vanzlni
18. PS IC O L O G IA SO C IA L
de J-^Ph. Leyens

TÍTULOS A PU B LIC AR
A T IM ID E Z
de P hilip G . Zim bardo
A E S T R U T U R A DA PE R S O N A L ID A D E H U M A N A
de H . J. Eysenck
O D ESEN V O L V IM E N T O DO SER H U M A N O
de Eric R ayner
A P E R S O N A L ID A D E N O R M A L E PA TO LÓ G IC A
de Jean Bergeret
PSIC ÓLO G O S E PS IC O L O G IA
de David Cohen
A EVOLUÇÃO
PSICOLOGICA
DA CRIANÇA
Título original:
L’Evolution Psychologique de VEnfant

© Librairie Armand Colin, 1968

Tradução de Ana Maria Bessa


Capa de Alceu Saldanha Coutinho
Todos os direitos reservados para a Lingua Portuguesa

led içõ es 70 — Av. Duque de Avila, 69 r/c Esq. - Lisboa 1


Tels. 556898/572001

Distribuidor no Brasil:
LIVRARIA MARTINS PONTES
Rua Conselheiro Ramalho, 330 / 340 — São Paulo
HENRI WALLON
A EVOLUÇÃO
PSICOLOGICA
DA CRIANCA
A presente edição reproduz o texto da obra, já clás­
sica, de Henri Wallon, publicada pela primeira vez na
colecção Armand Colin em 19j l . Não se julgou neces­
sário modificar a «bibliografia sumária» estabelecida
então pelo autor: actualizada, esta bibliografia seria
considerável e, por outro lado, talvez não deixe de ter
interesse saber que obras recomendava Henri Wallon
em 191fl.
WALLON, PSICÓLOGO DA INFÂNCIA

por RENE ZA2.ZO

WALLON, psicólogo da infância.


Um nome, uma qualidade, indissoluvelmente unidos.
Uma vida, uma obra, cuja riqueza me perturba e me
desconcerta.
Como transm itir esta riqueza? Como exprimir, no
tempo limitado desta homenagem, o que foi esta obra,
sem esquematizar, sem banalizar — sem correr o risco
de traduzir em frases demasiado unidas, com uma lógica
simples de mais, o que foi em Wallon um eterno esforço
para nos arrancar à preguiça das palavras e dos pen­
samentos habituais?
Não me parece isso possível, pelo menos para mim.
Para aqueles que já conhecem bem esta obra, o meu
discurso será uma recordação, uma alusão. Para os
outros, será, segundo espero, uma introdução a esta
obra, uma incitação a descobrir o próprio Wallon.
Para nós todos, uma homenagem fervorosa, apesar
da minha imperfeição e falta de jeito.
Para apreciar a obra de Henri Wallon, o que ela
tem de original, de inovador, seria necessário poder
situá-la na história da Psicologia e compará-la com as
obras dos seus contemporâneos, outros eminentes psi­
cólogos da infância.

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Um autor como Gesell, nos Estados Unidos, fez dos
comportamentos da criança um inventário muito mais
completo que o que nos deixou Wallon.
Um autor como Piaget, na Suíça, construiu, numa
quinzena de obras, uma teoria da inteligência cuja sis-
tematização não tem nenhuma comparação na obra de
Wallon.
Wallon não é um autor de sistema como Piaget,
Wallon não é um coleccionador de factos como Gesell
foi, aliás de forma magistral.
Wallon é um observador, um clínico, um homem
de intuição, tanto ou mais que um experimentador, mas
também um filósofo no sentido mais profundo e mais
válido do termo — quer dizer, um homem que sabe reflec-
tir nas tomadas de posição do espírito face à realidade —
e que sabe fazer uma crítica, modificar estas tomadas
de posição, para se desprender das ideologias e estreitar
o real, cada vez com mais veracidade e eficácia.
Assim, Wallon surge, mais que nenhum outro, como
um inovador, como um criador da Psicologia, porque
as suas contribuições científicas não são apenas uma
pedra mais, um novo ladrilho para o edifício comum,
na medida em que provocam neste edifício uma reorga­
nização, ou melhor, a abertura de perspectivas insus­
peitas.

Em 1925, quando Wallon começou a publicar as suas


obras, a psicologia da criança encontrava-se numa espé­
cie de impasse. Uma longa tradição pedagógica e psico­
lógica, tradição oriunda de Jean-Jacques Rousseau, le­
vava à teoria das mentalidades heterogéneas. À força
de afirm ar a originalidade irredutível da criança, com
Dewey, Montessori, Claparède e muitos outros, tinha-se
chegado a estabelecer a teoria da existência de um fosso
radical entre a criança e o adulto. Dois mundos à parte.
Duas mentalidades totalmente diferentes, distintas, hete­
rogéneas. De tal modo que um médico-psicólogo, Gilbert
Robin, tinha chegado à seguinte conclusão: «O espírito

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da criança será sempre impenetrável para nós.» Na
mesma época, esta mesma heterogeneidade era, aliás,
afirmada noutros domínios, para opor a mentalidade
do primitivo à do civilizado, para opor a consciência
mórbida do doente mental à consciência do homem são.
No domínio da Psicologia, esta teoria tomava agres­
sivamente o sentido diametralmente oposto à atitude
tradicional, arcaica, que apresentava a criança como
uma imagem reduzida e simplificada do adulto.
Na perspectiva deste problema, a obra de Wallon
representa um esforço para ultrapassar a contradição
das duas teorias em presença: a teoria do homúnculo,
em que a criança é como que uma redução do adulto,
e a teoria das mentalidades distintas.
Não pretendo, evidentemente, afirm ar que Wallon
fosse o único a desenvolver este esforço. Também Piaget
se entregou explícitamente a ele (não sem ter deixado
de contribuir — através da sua primeira obra escrita
em 1925 — para a vulgarização da noção de egocentrismo,
que reforçava a teoria das mentalidades heterogéneas).
Enfim, sem que o problema fosse sempre claramente
formulado, toda uma geração de psicólogos contribuiu
para explicar a passagem da criança ao homem, descre­
vendo minuciosamente as etapas desta passagem.
Mas descrever não basta para explicar.
E a coerência de uma explicação não é suficiente
para assegurar o seu valor.
É claramente evidente que a criança se vai trans­
formando em adulto. Nenhuma teoria o pode evitar ou
contradizer. E fazer intervir não sei que espécie de
metamorfose para explicar esta passagem é uma solução
puramente verbal. Seria necessário analisar em primeiro
lugar as condições e o mecanismo desta metamorfose,
desta conversão total.
Não. Se o crescimento representa para nós um pro­
blema, se à ideia arcaica do homúnculo apenas sabemos
opor a ideia da conversão brutal, é porque não sabemos
compreender a verdadeira duração, a duração criadora

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de novas formas, é porque a nossa lógica habitual é urna
lógica estática, intemporal.
E não ganhamos nada em dizer, seguindo Bergson,
que a duração é a base da realidade. A duração bergso-
niana é ainda uma abstracção. Com ela, não sabemos
nada dos seres que duram, dos seres na sua incarnação,
nas condições reais, materiais, da sua existência.
Um tal problema não se resolve com uma pura dia­
léctica verbal ou com uma simples acumulação de fact.os.
Para a sua solução, exige que aos factos se aplique
uma interrogação, uma reflexão, e que ao contacto dos
factos se efectúe uma reforma ou uma abolição das dis­
tinções ou das categorias intelectuais do passado que
se podem opor à nossa compreensão das coisas. Enfim,
uma reforma da nossa maneira de pensar ao contacto
das coisas e para a sua conquista.

Com lucidez e paciência, com este gosto do risco


sem o qual a Ciência seria estéril — utilizando todos os
recursos da sua formação médica, da sua intuição de
observador, mas também criticando, dissipando as ilu­
sões ideológicas que pervertem a nossa visão das coi­
s a s —, Henri Wallon dedicou-se ao problema da gênese
do espírito:
Seguindo a sua primeira e mais profunda tendência,
diz que «é comparando-a consigo que o adulto pretende
penetrar na alma da criança». E esta pretensão é vã:
deste modo, não descobrirá na criança mais que uma
projecção de si mesmo.
A atitude de J.-J. Rousseau e de todos aqueles que
o seguiram não é igualmente válida. Ela procede de um
espírito de rebelião expresso no século XVIII através
da oposição ingênua entre o indivíduo e a sociedade.
A oposição da criança ao adulto, a oposição do bio­
lógico ao social, são tão falsas no que têm de absoluto
como a oposição do indivíduo à sociedade do que elas
procedem ideológica e historicamente.

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Assim, Wallon vai repensar estas oposições e ultra­
passá-las, procurando ao mesmo tempo as contradições
reais e como podem ser estas contradições um motor
da evolução da criança. O seu método consiste em estu­
dar as condições materiais do desenvolvimento da
criança, condições tanto orgânicas como sociais, e em
ver como se edifica, através destas condições, um novo
plano de realidade que é o psiquismo, a personalidade.
Os comentadores de Wallon não apreenderam, muitas
vezes, mais que um momento deste método. Eles acusam-
-no, então, de organicismo, ou então de sociologismo,
outros elogiam o seu espiritualismo, pela sua afirmação
da existência de um plano psíquico original.
Enfim, alguns comentadores, anexando Wallon para
as suas próprias fileiras, apresentam as suas expli­
cações neurológicas como um erro de juventude que mais
tarde teria renegado.
Há em todas estas pessoas, e muitas vezes com a
maior boa-fé, uma incapacidade para compreender que
a dialéctica walloniana não pressupõe de nenhum modo
uma minimização, até mesmo um aniquilamento das com­
ponentes neurológicas e sociais do desenvolvimento, em
benefício de não sei que confuso psicologismo.
No entanto, Wallon explicou várias vezes as suas
perspectivas, e as suas descobertas ilustram perfeita-
mente o método que seguiu.
Eu sou «pelo organicismo — diz ele —, mas não sob
a forma unilateral e mecanicista do materialismo tra ­
dicional». É que, acrescenta noutro lado, «as necessida­
des do seu organismo e as exigências sociais são os dois
pólos entre os quais se desenvolve a actividade do
homem».
E, numa controvérsia com Piaget, que o acusava,
pelo contrário, de sociologismo, Wallon dá um esclare­
cimento decisivo:
«Na realidade, nunca pude dissociar o biológico do
social, não porque os julgue redutíveis um ao outro,
mas porque eles me parecem no homem tão estreita-

13
mente complementares desde o seu nascimento, que é
impossível encarar a vida psíquica sem ser sob a forma
das suas relações recíprocas.»
Relações recíprocas? Isto significa que desenvolvi­
mento biológico e desenvolvimento social são, na criança,
condição um do outro. As capacidades biológicas são
as condições da vida em sociedade — mas o meio social
é a condição do desenvolvimento destas capacidades.
Nesta perspectiva, Wallon renova profundamente as
teorias científicas da motricidade e da emoção.
Os fisiologistas tinham distinguido dois aspectos na
função motora: o movimento propriamente dito ou acti-
vidade clónica e o estado de tensão variável entre оз
músculos ou tónus.
A originalidade de Wallon consiste em dar à função
motora, e sobretudo à tonicidade, um sentido humano.
O tónus não é apenas um estado de tensão necessário
à execução da contracção muscular, ele é também atitu­
des, posturas.
Ora, as atitudes, as posturas, são modeladas pelo
adulto e são na criança os seus primeiros modos de
expressão. «Incapaz de efectuar seja o que for, o recém-
-nascido é manipulado por outros e é no movimento dos
outros que tomarão forma as suas primeiras atitudes.»
As atitudes, em relação com os seus estados de bem-
-estar, de indisposição, de necessidade, constituem a
infra-estrutura das suas emoções.
E sta é uma descoberta fundamental de Wallon.
Estudada no adulto, a emoção tinha dado origem
a teorias múltiplas e contraditórias.
Recolocada numa perspectiva genética, ela toma en­
tão o seu verdadeiro significado funcional. A emoção
é um facto fisiológico nas suas componentes humorais
e motoras; é um comportamento social nas suas funções
arcaicas de adaptação.
A emoção é uma linguagem antes da linguagem.
Mas mais ainda. A emoção é contraditória nos seus
efeitos. Ela oscila entre um estado de comunhão, de

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confusão com outrem e de oposição a outrem, de discri­
minação. Assim, a emoção esboça o pensamento, a repre­
sentação que lhe é contraditória e não contrária; esboça,
igualmente, a distinção entre o ego e os outros; preludia
as afirmações da personalidade.
Esta «mutação de reacções puramente fisiológicas
em meios de expressão», este enxerto precoce do social
no orgânico, têm na espécie humana uma importância
decisiva, porque estão ligadas às condições de existência
do indivíduo desde o seu nascimento.
Desde o seu nascimento, geneticamente, a criança
é um ser social.
Será, sem dúvida, necessário estudar através de que
dificuldades e, eventualmente, por meio de que crises
se transforma a criança em adulto. Mas a oposição meta­
física criança-adulto foi suprimida. O caminho está
desobstruído. Abriu-se uma nova perspectiva.

Wallon, psicólogo da infância?


Ê verdadeiramente Wallon um psicólogo da criança,
ou não será antes o promotor de uma psicologia geral
considerada numa perspectiva genética?
A questão pode parecer insólita. Colocamo-la, no en­
tanto, pelo facto de cada vez mais se opor a psicologia
da criança à psicologia genética.
Wallon, como é evidente, só se ocupou de crianças,
mas definiu o seu domínio e as suas perspectivas de uma
forma muito ampla. A psicologia da criança — disse —
recebeu muito pouco da psicologia tradicional. Pelo con­
trário, ela modificou os meus pontos de vista e até os
seus princípios. Confrontando a criança e o adulto, ela
ia permitir revelar, de etapa em etapa, o verdadeiro
plano da vida mental. Enfim, o estudo da criança, ao
analisar uma gênese real, ia permitir descobrir o homem.
Wallon definiu-se, pois, a si mesmo, como um psicó­
logo no sentido mais completo do termo.

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Mas precisamente a partir do momento em que a
criança é ligada ao homem, a nossa interrogação deixa
de ter qualquer sentido.
Houve um tempo em que se criavam palavras para
compartimentar as idades da vida como outros tantos
domínios distintos: a paidologia ou ciência da criança,
a nipiologia ou ciência do bebé, a hebelogia ou ciência
do adolescente.
Este tempo desapareceu, apesar das especializações
continuarem a ser necessárias.
Wallon é, ao mesmo tempo, psicogenético e psicó­
logo da infância. Para ele, a psicologia da criança sub­
siste, de facto, na medida em que a criança tem carac­
terísticas próprias e problemas específicos como os da
educação.
É nas últimas linhas da sua obra intitulada A Evo­
lução Psicológica da Criança que Wallon declara:
«Em cada idade, a criança constitui um conjunto
indissociável e original.» É este conjunto, esta unidade,
que o psicólogo da infância deve apreender, através da
sucessão das idades e no dinamismo que conduz a criança
ao estado adulto.
#

Assim, a imagem da infância, tal como se desprende


dos trabalhos e das reflexões de Wallon, não corres­
ponde, evidentemente, à imagem tradicional, mas afas­
ta-se igualmente da imagem moderna ligada ao indivi­
dualismo do Renascimento ou de Jean-Jacques Rousseau.
Wallon recusa uma e outra como sistemas falsos, cons­
truídos com base em ideologias de conformismo ou de
rebelião, mas guarda de cada uma — e numa perspec­
tiva nova — a sua parte de verdade. Verdade, a afir­
mação de que as idades da infância possuem a sua
originalidade, o seu rosto próprio. Verdade, também, a
afirmação de que a infância não tem sentido fora do
objectivo adulto: «A criança tende para o adulto, diz
ele, como um sistema para o seu estado de equilíbrio.»

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No entanto, a concepção de Wallon não é um ecle­
tismo. As verdades parciais, arrancadas aos seus sis­
temas, adquirem um novo sentido.
Se a assimilação da criança ao adulto é falsa, é por­
que o próprio adulto é o resultado de uma progressiva
construção, de uma evolução qualitativa, de uma gênese.
Se a oposição abstracta do indivíduo à sociedade
é igualmente falsa, é porque, desde a sua origem, desde
o seu nascimento, a necessidade social está inscrita den­
tro do próprio indivíduo.
O ser humano, diz ele, é social geneticamente. Está
feito de tal maneira que a sua própria sobrevivência
seria impossível sem os cuidados constantes daqueles
que o rodeiam, e isso durante muitos anos.
Desta psicologia da criança destacam-se alguns gran­
des princípios pedagógicos.
Wallon denunciou nas doutrinas da nova educação
(abrindo uma excepção para Decroly) o erro que con­
siste em fazer simplesmente a contrapartida dos defei­
tos e dos vícios da pedagogia tradicional. E, além disso,
como estes vícios não são os mesmos para todos os
reformadores, resulta daí uma diversidade heteróclita
de sistemas.
Uns disseram: «O ensino é autoritário, provém dema­
siado do mestre. Portanto, apaguemos o mestre.»
Outros pensaram que «o ensino é demasiado intelec­
tual. Suprimamos, pois, o mais possível, o esforço inte­
lectual e façamos passar o ensino pelas mãos, ligando-o
a trabalhos manuais».
Outros ainda, declararam: «O ensino é demasiado
didáctico. Deixemos a criança descobrir o verdade por
si mesma.»
E cada uma destas afirmações, levando ao absoluto
uma verdade parcial, conduziu a um sistema utópico.
As soluções propostas podem ter sido muito felizes nas
suas aplicações de pormenor, mas são insuficientes e
falsas como sistema geral de educação.

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2
A nova educação deve às suas origens de rebelião
contra as disciplinas autoritárias uma desconfiança in­
superável em relação à sociedade. Ela está viciada pelo
desacordo (real ou imaginário) existente entre os direi­
tos da criança e o meio em que ela está destinada a viver
e de que se procura preservá-la.
Mas a nova educação permitiu o levantamento de
problemas; foi uma etapa necessária enquanto se espera
um conhecimento mais científico da criança, do escolar,
da escola. Passamos actualmente do período utópico para
o período científico.
O que hoje sabemos da psicologia da criança per-
mite-nos compreender que não se pode, de forma alguma,
nem apagar o mestre, nem suprimir o esforço puramente
intelectual, nem contar apenas com a espontaneidade do
escolar. As soluções são muito mais complexas, exigindo
uma melhor adaptação da criança à escola, uma melhor
apropriação da escola à criança, sem pressupor nem
operar uma oposição metafísica entre a natureza e o
meio, entre o indivíduo e a sociedade.
É evidente que entre um e outro pode haver contra­
dições e conflitos, mas não se tra ta de uma oposição
absoluta, uma vez que a sociabilidade faz parte da pró­
pria natureza do homem, uma vez que a criança tem
necessidade da intervenção do adulto e das pressões
do meio para afirm ar a sua pessoa, para desenvolver
todas as suas virtualidades.

Wallon já não está entre nós, mas o seu pensamento


e a sua obra continuam mais vivos que nunca.
Qual é o seu legado? Poucas coisas disse eu hoje,
mas de qualquer modo não é possível fazer um inven­
tário definitivo porque se trata de uma herança que
dará novos frutos no futuro.
Ele deixa uma nova concepção de motricidade, de
emotividade, de inteligência, da gênese humana e sobre-

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tudo, em tudo isto, uma maneira original de pensar a
Psicologia e de reformular os seus problemas. Na ver­
dade, o método de que nos dá aplicações magistrais
não é novo. Ê o do materialismo dialéctico, ao qual ele
consagrou numerosos comentários.
Mas ele é o primeiro autor desta força, desta enver­
gadura, que aplicou este método ao domínio da Psico­
logia (se se colocar de lado a obra de Pavlov). Wallon
mostrou-nos, com toda a honestidade científica, como
os princípios do método m arxista deviam ser aplicados.
Não procedeu de forma dedutiva a p a rtir de um dogma,
de uma ideologia. E é por isso mesmo que ele cnou.
E é por isso que o seu pensamento se impõe e se imporá
sempre cada vez mais, mesmo àqueles que não são mar­
xistas. Não são os argumentos de autoridade que valem,
mas os factos devidamente estabelecidos.
Não poderemos esquecer este ponto no respeito que
nos merece o próprio Wallon e a sua obra.
A sua voz calou-se. Nenhum de nós terá jamais
o direito de falar em seu nome. Ele deixou-nos uma
maneira de trabalhar, uma maneira de pensar, num domí­
nio que também é o nosso. Mas do modo como o utili­
zarmos, só nós teremos a inteira responsabilidade. É a
lição que ele nos deu.
E tanto a esta lição como ao exemplo da sua vida
e do seu trabalho nós permaneceremos fiéis.

19
л
PREFACIO

No decurso dos últimos trinta anos, a psicologia da


criança assumiu uma importância e uma influência cres­
centes. Afastando-se de certo modo da Psicologia tradi­
cional, contribuiu sobretudo para modificar os seus pon­
tos de vista, os seus princípios e para a enriquecer com
métodos novos. Com efeito, para atingir «a alma da
criança», teve de abandonar os quadros abstractos em
que a introspecção do adulto e o seu material verbal
tinham dividido as actividades psíquicas do homem.
à análise puramente ideológica dum conteúdo mental
tipo, mas de facto tão contingente e provisório quanto
neutro e impessoal, teve de substituir observações e ex­
periências sobre as deficiências realmente em jogo na
actividade e na vida das crianças. Tanto as suas inves­
tigações podiam ser perturbadas ou falseadas por uma
cartografia do espírito, cujas limitações se fundavam
numa nomenclatura e em conceitos que ignoram as rela­
ções e as mudanças de que surge o acto psíquico, quanto
as diferenças que ela tinha que constatar entre as con­
dutas do adulto e as da criança, entre as condutas nas
diferentes idades da infância, eram suficientes para reve­
lar, de etapa em etapa, o verdadeiro plano da vida
mental.

21
Foram as necessidades da prática que em primeiro
lugar fizeram sentir um desacordo fundamental entre a
realidade e os esquemas utilizados para explicar as ope­
rações psíquicas.
Foram os problemas pedagógicos que incitaram a pro­
curar outros procedimentos para avaliar e utilizar as
forças e as formas do desenvolvimento psíquico na
criança. A simples necessidade de avaliar com algum
rigor a aptidão ou inaptidão das crianças de escola fez
com que Binet e Simon elaborassem a sua escala métrica
de inteligência, que deu ao emprego sistemático dos tes­
tes um impulso de que a psicotécnica é hoje em grande
parte a conseqüência.
Sem ser propriamente psicólogo, um educador filó­
sofo como Dewey, preconizando o acordo entre o mais
livre desenvolvimento de todas as energias em potência
na criança e o meio, abriu o caminho não somente a
múltiplos ensaios práticos de educação como também
a investigações sobre as necessidades de actividade na
criança e sobre a influência que ela sofre dos meios
em que se encontra. Na obra dum Decroly, é difícil
distinguir entre a Pedagogia e a Psicologia: a necessi­
dade de adaptar às possibilidades e aos interesses da
criança o objecto dos seus estudos teve como resultado
fazer constatar diferenças importantes entre as manei­
ras de perceber ou de compreender da criança e do adulto.
Foi à volta do Instituto J.-J. Rousseau em Genebra, onde
o objectivo era dar a cada criança uma educação «sur
mesure», que se agruparam psicólogos como Claparède,
Bovet, Piaget. A mesma preocupação de estrito con­
fronto entre a criança de escola e a criança em geral
encontra-se em Bourjade, de Lion.
A comparação não se limitou à da criança com o
adulto ou consigo mesma. Procurou também no patoló­
gico exemplos de variações concomitantes, donde pudes­
sem deduzir-se relações de causalidade aplicáveis ao
normal. Uma alteração surgida no decorrer do desenvol­
vimento que atinja qualquer um dos seus factores terá

22
conseqüências muito instrutivas, na medida em que po­
derá abolir todo um conjunto de funções, ou fixar o
comportamento num estádio incompleto, ou suscitar
compensações que porão em evidência relações habitual­
mente difíceis de descobrir. Este método de confronto
psicopatológico, muito aceite em França, desde Ribot,
não podia deixar de suscitar importantes trabalhos
no domínio da psicologia infantil. Mas deu também pre­
ciosos resultados noutros países, especialmente na
U. R. S. S., com Gourevitch, Oseretzki e a sua escola.
Por seu lado, a psicologia comparada do homem e dos
animais saiu dae generalidades funcionais para fazer
um paralelismo concreto entre a criança e o animal
mais próximo do homem, o macaco. Diante das mesmas
situações, das mesmas dificuldades, o seu comporta­
mento é semelhante ou difere? Se há semelhança inicial,
em que idade, em que fase do desenvolvimento, sob que
influências e sob que forma se afirmam as diferenças?
Entre as primeiras observações desta natureza, é preciso
citar as de Boutan, entre as mais sistemáticas e as
mais contínuas, as de Kellog e de sua esposa. Sem ter
realizado um confronto explícito, Paul Guillaume repar-
tiu-se entre a psicologia da criança e a do macaco.
Mais vaga, mais contestável também nas suas velei­
dades de assimilação, a comparação da mentalidade in­
fantil e da mentalidade primitiva teve pelo menos o
mérito de chamar a atenção para os efeitos do cresci­
mento gradual das aptidões na criança e os que estão
ligados a um certo nível de civilização, a um certo mate­
rial ideológico, verbal, técnico. Isso não é, aliás, mais
do que um grau extremo das influências que, no desen­
volvimento psíquico duma população ou duma fracção
de população, podem exercer o seu regime de vida, o seu
meio social. Para o período que estamos a considerar,
empreenderam-se também estudos a este respeito, em
particular por psicólogos americanos e soviéticos.
As simples observações descritivas têm evidentemente
um lugar importante na psicologia da criança e princi-

23
pálmente na da primeira idade. Freqüentes interpre­
tações construtivas têm sido feitas. As de W. Stern, por
exemplo, que tentou m ostrar que entre todas as mani­
festações psíquicas há uma espécie de unidade profunda,
uma ligação essencial: a personalidade do indivíduo, sem
a qual seria impossível explicá-las. As de Koffka, que
se esforça por reconhecer as estruturas de que elas são
a manifestação.
Toda a percepção, mas também toda a espécie de
conduta, corresponde a uma «forma» que dá a todos
os pormenores ou elementos o seu lugar, o seu papel,
o seu significado. É o conjunto que é determinante, não
as partes. Ele varia, não só com as circunstâncias e as
situações, mas segundo as predisposições ou virtuali­
dades dinâmicas do próprio sujeito e que dependem dos
circuitos susceptíveis de se abrirem no seu sistema ner­
voso, em estreita continuidade tanto com os seus apa­
relhos sensoriais como com os seus aparelhos motores.
E ntre as diferentes idades da criança e do homem, dife­
rem as possibilidades de estruturas.
Os resultados destes diversos métodos levam a dis­
tinguir os aspectos por vezes opostos que a vida psíquica
apresenta ao longo do seu desenvolvimento. Estes aspec­
tos são etapas cuja ordem de sucessão tem uma impor­
tância primordial, e psicólogos como Gesell intentaram
reunir metodicamente documentos, não só descritivos
como cinematográficos, sobre a diversidade das reacções,
segundo a idade. Este género de observações é de impor­
tância essencial. Porque a sucessão prova a existência
duma filiação, muitas vezes complexa, aliás, em razão
de interferências variadas, entre diferentes espécies de
factores. Factores e filiação correspondem ao próprio
princípio da psicologia infantil, se é verdade que a infân­
cia tem na vida do indivíduo um valor funcional, como
período em que se acaba de realizar nele o tipo de espé­
cie. Ё este ponto de vista psicogenético que é adoptado
nesta obra.

24
PRIMEIRA PARTE

A INFÂNCIA E O SEU ESTUDO


CAPITULO I

A CRIANÇA E O ADULTO

A criança não sabe senão viver a sua infância.


Conhecê-la pertence ao adulto. Mas o que é que vai
prevalecer neste conhecimento: o ponto de vista do
adulto ou o da criança?
Se o homem sempre começou por se colocar a si
mesmo entre os objectos do seu conhecimento, atribuin­
do-lhes uma existência e uma actividade conformes à
imagem que faz da sua própria existência e actividade,
quanto não deve ser forte esta tentação a respeito dum
ser que dele procede e que a ele se deve tornar seme­
lhante — a criança, cujo crescimento vigia e orienta
e a quem muitas vezes lhe parece muito difícil não
atribuir motivos ou sentimentos complementares dos
seus. Quantas ocasiões, quantos pretextos, quantas apa­
rentes justificações para o seu antropomorfismo espon­
tâneo! A sua solicitude é um diálogo em que, por um
esforço de intuitiva simpatia, supre as respostas que não
obtém, em que interpreta os menores indícios, em que
crê poder completar manifestações laminares e inconsis­
tentes, reduzindo-as a um sistema de referências (l),

(1) MUZAFER SHERIF, The Psychology of Bocial Norms,


Nova Iorque, Harpers and Br., 1038*

27
que é feito de quê? — dos interesses que sabe ser os
da criança e a que atribui uma consciencia mais ou
menos obscura, das predestinações cuja promessa gos­
taria de encontrar em si, dos hábitos, das conveniências
mentais ou sociais com que mais ou menos se identi­
ficou, e também de recordações que imagina ter guar­
dado da sua própria infância.
Ora, sabemos que as nossas primeiras recordações
variam com a idade em que são evocadas e que qual­
quer recordação se desenvolve em nós sob a influência
da nossa evolução psíquica, das nossas disposições e das
situações. A menos que esteja solidamente enquadrada
num conjunto de circunstâncias objectivamente determi-
náveis, o que é raram ente o caso quando é de origem
infantil, uma recordação corre o risco de ser mais à
imagem do presente do que do passado. É assim, assi­
milando-a a si, que o adulto pretende penetrar na alma
da criança.
E contudo, entre si e a criança, ele reconhece dife­
renças. Mas redu-las a maior parte das vezes a uma
subtracção: são diferenças de grau ou quantitativas.
Comparando a criança a si próprio, vê-a, relativa ou
totalmente, inapta em relação às acções ou tarefas que
ele próprio pode executar. Sem dúvida, estas inaptidões
podem dar lugar a medidas que, convenientemente reu­
nidas, poderão pôr em evidência proporções e uma con­
figuração psíquica diferentes na criança e no adulto.
Neste caso, tomarão um significado positivo. Mas nem
por isso a criança deixa de ser menos uma simples
redução do adulto.
A subtracção pode, no entanto, operar-se de maneira
mais qualitativa, se as sucessivas diferenças de aptidões
que apresenta a criança forem reunidas em sistemas
e se a cada sistema for atribuído um determinado pe­
ríodo do crescimento. Tratar-se-á, então, de etapas ou
de estádios a cada um dos quais corresponderá um certo
conjunto de aptidões ou de caracteres que a criança deve
adquirir para tornar-se adulto. O adolescente seria assim

28
o adulto a quem faltaria o estádio mais recente do seu
desenvolvimento, e assim por diante, subindo de idade
em idade, até à primeira infância.
Porém, por mais específicos que possam parecer os
efeitos próprios de cada etapa, continua a haver, nesta
hipótese, caracteres que se juntam a outros para reali­
zarem o adulto; e a progressão permanece ainda essen­
cialmente quantitativa.
O egocentrismo do adulto pode, enfim, manifestar-se
através da sua convicção de que toda a evolução mental
tem por termo inelutável as suas próprias maneiras de
sentir e de pensar, as do seu meio e da sua época.
Se, por outro lado, lhe acontece reconhecer que as da
criança são especificamente diferentes das suas, então
não tem outra alternativa senão considerá-las como uma
aberração. Aberração constante, sem dúvida, e por esta
razão tão necessária, tão normal, como o seu próprio
sistema ideológico; aberração cujo mecanismo é neces­
sário procurar demonstrar.
Entretanto, uma questão preliminar se põe: a da
realidade desta aberração. Ê verdade que a mentalidade
da criança e a do adulto são heterónomas? Que a pas­
sagem de uma a outra pressupõe uma conversão total?
Que os princípios aos quais o adulto julga estar ligado
o seu próprio pensamento são uma norma imutável e
inflexível que permite rejeitar o pensamento da criança
como irracional? Que as conclusões intelectuais da
criança não têm nenhuma relação com as do adulto?
E a inteligência do adulto teria podido permanecer
fecunda se tivesse realmente que se desviar das fontes
donde brota a da criança?
Uma outra atitude poderia consistir em observar
a criança no seu desenvolvimento, tomando-a por ponto
de partida, acompanhando-a ao longo das suas suces­
sivas idades e estudando os estádios correspondentes,
sem os submeter à censura prévia das nossas definições
lógicas. Para quem os considera cada um na sua tota­
lidade, a sua sucessão aparece como descontínua; a pas-

29
sagem de um a outro não é uma simples amplificação,
mas uma modificação; actividades preponderantes no
primeiro são reduzidas e por vezes suprimidas aparen­
temente no seguinte. Entre os dois, parece surgir muitas
vezes uma crise de que a conduta da criança pode ser
visivelmente afectada. O crescimento é portanto assi­
nalado por conflitos, como se fosse preciso escolher
entre um antigo e um novo tipo de actividade. O que
se sujeita à lei do outro tem que se transform ar, e perde
em seguida o poder de regular utilmente o comporta­
mento do indivíduo. Mas a maneira como o conflito
se resolve não é absoluta nem necessariamente uniforme
em todos. E em cada um deixa a sua marca.
Destes conflitos, alguns foram resolvidos pela espé­
cie, o que significa que o simples facto do seu cresci­
mento leva o indivíduo a resolvê-los também. Para dar
um exemplo, o sistema motor do homem apresenta uma
estratificação de actividades cujos centros se organizam
à volta do eixo cérebro-espinal pela ordem do seu apa­
recimento ao longo da evolução. Elas entram sucessi­
vamente em jogo durante a primeira infância, aproxi­
madamente na forma em que se vão poder integrar
nos sistemas que as acompanharam e que as modifica­
ram, de tal modo que o seu exercício isolado já não
pode dar senão efeitos parciais e a maior parte das
vezes inúteis. Mais tarde, porém, se acontece que uma
influência patológica as faz escapar ao controlo das
funções que as tinham englobado, então o obstáculo que
elas lhes opõem demonstra a existência do conflito la­
tente que entre as mesmas existia. Ainda no estado
normal, aliás, a integração pode ser mais ou menos
estrita entre os diferentes aparelhos do órgão motor.
Daí a grande diversidade das complexões motoras. Mas
é no domínio das funções psicomotoras e psíquicas que
muitas vezes ela é mais imprecisa, de tal modo que o
conflito nunca está completamente resolvido: assim,
entre a emoção e a actividade intelectual, que corres­
pondem manifestamente a duas categorias distintas de

30
centros nervosos e a duas etapas sucessivas da evolução
mental.
Para outros conflitos, pertence ao próprio indivíduo
resolvê-los. Por vezes o seu objecto é de uma importância
tão fundamental que uma única solução é normal; por
outras, pelo contrário, é mais contingente e a solução
mais facultativa.
Elevando-os a uma espécie de generalidade mítica,
Freud redu-los essencialmente a um conflito entre o ins­
tinto da espécie que em cada um se traduz pelo desejo
sexual ou libido, e as exigências da vida em sociedade.
Recalcamentos de uma parte, subterfúgios de outra, para
iludir a vigilância da censura, farão da vida psíquica
um drama contínuo. Toda a evolução mental da criança
será comandada pelas fixações sucessivas do libido sobre
os objectos ao seu alcance. Ela terá portanto que se liber­
ta r dos primeiros para progredir em direcção a outros.
Escolha que não se faz sem sofrimentos, sem queixas,
nem sem eventuais regressões. Escolha que, aliás, não
é necessário imputar ao instinto sexual e de que se obser­
vam indícios na criança. Apesar da escolha, nada do que
se abandona é destruído, nada mesmo do que é supe­
rado fica sem acção. A cada etapa vencida, a criança
deixa atrás de si possibilidades que não estão mortas.
A realização pela criança do adulto em que deve
tornar-se não segue, pois, um caminho linear, sem bifur­
cações ou desvios. As orientações mestras a que normal­
mente obedece não são menos uma ocasião freqüente
de incertezas e de hesitações. Mas quantas outras oca­
siões mais fortuitas vêm também obrigá-la a escolher
entre o esforço e a renúncia! Elas surgem do meio —
meio das pessoas e meio das coisas. A mãe, os amigos,
os encontros habituais ou insólitos, a escola: outros
tantos contactos, relações e estruturas diversas, insti­
tuições através das quais a criança, quer queira quer
não, deve inserir-se na sociedade. A linguagem entrepõe
entre ela e os seus desejos, entre ela e as pessoas, um
obstáculo ou um instrumento que pode ser tentado ou

31
a evitar, ou a vencer. Os objectos e, em primeiro lugar,
os que lhe estão mais próximos, os objectos fabricados,
a bola, a colher, o bacio, os fatos, a electricidade, a rádio,
as técnicas mais antigas como as mais recentes são para
ela incômodo, problema ou ajuda, repelem-na ou atraem-
-na e modelam a sua actividade.
Ê, no fim de contas, o mundo dos adultos que o meio
lhe impõe e daí resulta, em cada época, uma certa uni­
formidade de formação mental. Mas isso não significa
que o adulto tenha o direito de não reconhecer na
criança senão aquilo que ele próprio lhe inculca. E, em
primeiro lugar, a maneira como a criança assimila esse
mundo pode não ter nenhuma semelhança com a maneira
como o adulto por sua vez o utiliza. Se o adulto ultra­
passa a criança, a criança à sua maneira ultrapassa
o adulto. Ela possui disponibilidades psíquicas que um
outro meio utilizaria de outro modo. Muitas dificuldades
colectivamente vencidas pelos grupos sociais permitiram
já que muitas delas se manifestassem. Com a ajuda da
civilização, não estarão em potência na criança outros
desenvolvimentos da razão e da sensibilidade?

32
CAPITULO II

COMO ESTUDAR A CRIANÇA?

Enquanto vastos domínios do conhecimento viram


a experimentação suplantar a simples observação, o
papel desta mantém-se preponderante em muitos cam­
pos da Psicologia. Foi da experimentação que nasceram
a Física e a Química. Em Biologia, ela continua a alar­
gar o seu campo de acção e a Fisiología pertence-lhe
quase completamente. Ã imitação da Fisiología, criou-se
também uma psicologia experimental. Mas a psicologia
da infância, ou pelo menos a da primeira infância, de­
pende quase exclusivamente da observação.
Experimentar é realizar certas condições nas quais
se devem produzir certos efeitos, é pelo menos intro­
duzir nas condições uma modificação conhecida e anotar
as modificações correspondentes do efeito. Deste modo
poder-se-á comparar o efeito à sua causa e medi-los um
pelo outro. Aliás não é necessário intervir na produção
do próprio efeito; pode ser suficiente modificar as con­
dições da observação. Assim, os objectos que nós não
atingimos, como os astros, podem dar lugar a verdadei­
ras experiências físico-químicas, utilizando a espectros­
copia ou a fotografia.
Supondo resolvidas as dificuldades técnicas da expe­
rimentação, apenas ficariam fora do seu alcance os objec-

33
3
tos dos quais fosse impossível modificar as condições,
quer de existência quer de observação, sem que por tal
motivo deixassem de existir. Tal seria o caso daqueles
conjuntos em que é o conjunto na sua integridade origi­
nal que constitui o facto a estudar. Poder-se-iam encon­
tra r numerosos exemplos destes em Psicologia ou em
Biologia.
Mas a contrapartida é que o conjunto deve poder ser
efectivamente apreendido solidariamente em todas as
suas partes. Por este facto, a primeira infância é, sem
qualquer dúvida, um objecto de escolha para observação
pura. Até aos 3 ou 4 anos, a criança pode estar mais
facilmente à disposição do próprio observador. Assim,
todas as circunstâncias da sua vida e do seu compor­
tamento serão anotadas. Foi o que se esforçaram por
fazer autores como Preyer, Pérez, Major, W. Stern,
Decroly, Dearborn, Shinn, Scupin, Cramaussel, P. Guil­
laume. Uns, como Preyer, publicaram o conjunto das
suas observações, senão sob a forma de diário contínuo,
pelo menos agrupando-as em rubricas muito gerais.
Outros, como W. Stern, extraíram delas monografias
respeitantes a questões particulares. Alguns parecem
também ter limitado as suas observações aos dados
de certos problemas, acompanhando todavia a existência
total da criança. Estes trabalhos continuam a ser a fonte
mais preciosa para o estudo da primeira idade.
A partir dos 4 anos, faltam completamente estudos
desta natureza. Sendo apenas fragmentárias as obser­
vações recolhidas, trata-se de constituir os conjuntos
onde possam receber o seu significado. Assim se elabo­
raram métodos que procedem da observação pura, mas
que devem ultrapassá-la e que se julgam prolongar a
experimentação, cujo objectivo essencial, como aliás de
todo o conhecimento, é pôr em evidência uma determi­
nada relação. O experimentador reconstrói esta relação
ou .submete-a a variações que permitem isolar do resto
os termos que ela une. Quando está proibida qualquer
acção sobre ela, já não resta senão tentar constatar

34
as suas variações espontâneas ou acidentais. Mas para
as reconhecer é preciso compará-las a uma norma, redu­
zi-las a um sistema determinado de referências. A norma
pode, entre outras coisas, consistir em confrontar os
desvios patológicos com o estado normal. O sistema
de referências pode ser dado por estatísticas resultantes
de comparações desenvolvidas.
De qualquer modo, uma observação não pode ser
identificada como tal, a não ser que se enquadre num
conjunto donde receba o seu sentido e inclusivamente
a sua fórmula. Necessidade tão fundamental que obriga
a voltar à chamada observação pura e a examinar por
que mecanismo e sob que condições ela se pode tornar
um meio de conhecimento.

Para falar com propriedade, não há nenhuma obser­


vação que seja um decalque exacto e completo da reali­
dade. Supondo, aliás, que existissem observações dessa
natureza, o trabalho de observação estaria ainda total­
mente por empreender. Embora, por exemplo, o registo
cinematográfico de uma cena corresponda já a uma esco­
lha frequentemente muito avançada — a escolha da pró­
pria cena, do momento, do ponto de vista, etc. — é
somente sobre o filme — cujo mérito é to rn ar perma­
nente uma continuação de pormenores que ao espectador
mais atento teriam escapado e aos quais pode voltar
à vontade — que vai poder começar o trabalho directo
de observação.
Não há observação sem escolha nem sem uma relação,
implícita ou não. A escolha é comandada pelas relações
que podem existir entre o objecto ou o acontecimento
e a nossa expectativa, isto é, o nosso desejo, a nossa
hipótese ou mesmo os nossos simples hábitos mentais.
As suas razões podem ser conscientes ou intencionais,
mas podem também escapar-nos, porque se confundem,
antes de mais, com o nosso poder de formulação mental.
Só podem ser escolhidas as circunstâncias que são por

35
si mesmas exprimíveis. E para as exprimir precisamos
de reduzi-las a qualquer coisa que nos seja familiar ou
inteligível, à tabela de referências de que nos servimos,
quer de propósito quer sem o saber.
A grande dificuldade da observação pura como ins­
trumento de conhecimento consiste em que usamos urna
tabela de referência, a maior parte das vezes sem o saber­
mos, de tal modo o seu emprego é irracional, instintivo,
indispensável. Quando experimentamos, o próprio dispo­
sitivo da experiência opera a transposição do facto para
o sistema que permitirá interpretá-lo. Se se tra ta de
observação, a fórmula que damos aos factos corresponde
muitas vezes às nossas relações mais subjectivas com
a realidade, às noções práticas que para nós utilizamos
na nossa vida corrente.
Deste modo, é muito difícil observar a criança sem
lhe emprestar alguma coisa dos nossos sentimentos ou
das nossas intenções. Um movimento não é um movi­
mento, mas aquilo que ele parece exprimir-nos. E, a
menos que estejamos muito habituados a agir em con­
trário, é o significado suposto que registamos, deixando
mais ou menos de indicar o próprio gesto.
Todo o esforço de conhecimento e de interpretação
científica consistiu sempre em substituir o que é refe­
rência instintiva ou egocêntrica por uma outra tabela
cujos termos sejam objectivamente definidos. Tem acon­
tecido, aliás muitas vezes, que, tiradas de sistemas de
conhecimento anteriormente constituídos, estas tabelas
se tenham revelado insuficientes para a ordem nova dos
factos em estudo; acontece, assim, em Psicologia, com
referências tiradas da Anatomia, supondo-se toda a ma­
nifestação mental devida à actividade dum certo órgão
ou dum certo elemento de órgão. Importa, portanto,
em primeiro lugar, definir para todo o objecto de obser­
vação qual é a tabela de referência que corresponde
ao objectivo da investigação.

36
Para quem estuda a criança, é incontestavelmente
a cronologia do seu desenvolvimento. Todos os obser­
vadores tiveram o cuidado de anotar, para cada um
dos factos que registam, a idade da criança em meses
e em dias, como se admitissem que a ordem pela qual
aparecem as sucessivas manifestações da sua actividade
tem uma espécie de valor explicativo. E a experiência
tem efectivamente verificado que esse valor é o mesmo
de uma criança para outra. As intervenções que às vezes
se verificam não ultrapassariam, segundo a Sr.a Shirley,
que seguiu minuciosamente o desenvolvimento de vinte
e cinco crianças pequenas, os 12 % õos casos, e sobre­
tudo nunca dizem respeito senão a duas aquisições ime­
diatamente consecutivas. Somente mais tarde se podem
observar, entre actividades fortemente diferenciadas,
casos de precocidade ou de atraso parciais.
A diferença das reacções conforme a idade foi posta
em evidência de maneira surpreendente por Gesell, atra­
vés do cinema. Sendo proposto à criança o mesmo
teste de semana a semana, ou de mês a mês, por exem­
plo, a apresentação do mesmo objecto à mesma distância,
a justaposição dos seus comportamentos sucessivos, mos­
tra as transformações rápidas e muitas vezes radicais
operadas em razão do tempo decorrido. No entanto,
vários observadores constataram nesta acção do tempo,
que implica a própria noção de desenvolvimento ou de
evolução — ligada também ela ao papel que a infância
desempenha na vida —, excepções pelo menos aparentes,
cujo exame deve permitir compreender melhor as con­
dições e o significado dos progressos em vias de reali­
zação. Ora surge uma reacção nova, sem duração e que
só reaparece algumas semanas mais tarde, ora uma
aquisição já antiga parece desaparecer no momento em
que a actividade da criança entra num novo domínio.
Entre o decurso do tempo e o do desenvolvimento psí­
quico manifestar-se-iam, por conseguinte, discordâncias.
Em presença do primeiro caso, certos observadores
como Preyer começaram por interrogar-se se a sua

37
descrição não teria sido logo de início deformada por
uma interpretação que se antecipava ao acontecimento.
Mas a experiência tem mostrado que a antecipação está
muitas vezes nos próprios factos. Toda a reacção, explica
Koffka, é um conjunto cuja unidade pode agrupar partes
ou condições mais ou menos diversas e intercambiáveis.
E stas condições são, em proporção variável, circuns­
tâncias externas e disposições internas. Quanto maior
for o número das circunstâncias externas, maior é o nsco
da sua realização simultânea ser acidental. Pelo con­
trário, quanto mais aumentam as disposições íntimas,
tanto mais a sua contribuição tende a tornar-se um todo
homogéneo, que se vai encontrar à disposição constante
do sujeito. É precisamente neste sentido que seguem os
progressos da organização através das espécies animais.
O seu comportamento, pelo menos na sua forma, depende
sempre mais de determinantes internas, e em proporção,
deixa de ser comandado imediatamente pelas influências
do meio exterior.
Os progressos de organização que correspondem ao
período da infância têm necessariamente por efeito res­
tabelecer as estruturas ancestrais que asseguram ao
indivíduo a plena posse dos meios de acção próprios
da espécie. É, aliás, um processo que prolonga a activi-
dade de cada um: toda a aprendizagem, toda a aqui­
sição de hábitos, tende a reduzir a influência das situa­
ções externas à de simples signos, executando-se o acto
consecutivo como por si mesmo pela entrada em jogo
de estruturas íntimas, que são o efeito da aprendizagem.
A esta explicação seria necessário acrescentar que
a antecipação funcional não é um simples acidente,
mesmo freqüente, mas que ela parece ser a regra. É um
fenómeno constante que reacções novas sofram um longo
eclipse depois de se terem manifestado quer uma quer
mesmo várias vezes durante um curto período. Não
parece portanto suficiente imputar o facto unicamente
ao concurso favorável de circunstâncias externas. Ê mais
verosímil que em muitos casos o primeiro aparecimento

38
dum gesto ou dum acto resulte de factores sobretudo
internos. A diversidade destes é, com efeito, maior do
que muitas vezes supomos. Os mecanismos de execução
são apenas uma parte deles. O que os desencadeia resulta
de disponibilidades ou de orientações energéticas que por
sua vez têm também os seus períodos. Intervém, além
disso, interesses de natureza muito diversa. Por exem­
plo, a novidade da impressão que um gesto executado
pela primeira vez faz experimentar pode ser suficiente
para mobilizar durante algum tempo, com vista à sua
repetição, um somatório de energia que já não se poderá
encontrar quando o atractivo se tornar menor. Essa ener­
gia desaparecerá, portanto, provisoriamente. A falta de
coesão entre os factores íntimos duma reacção explica
a irregularidade que esta apresenta para começar, mesmo
em presença da excitação apropriada. É preciso também
considerar que o limiar duma reacção no seu início é
elevado e que, para se produzir, ela exige uma estimu­
lação mais enérgica ou uma quantidade de energia mais
considerável do que na fase em que o mesmo limiar
se encontra abaixado pela maturação funcional ou pela
aprendizagem.
A perda de uma aquisição já antiga é um facto duma
frequência suficiente para ter sido assinalada por vários
autores. A explicação que disso dão W. Stern e depois
Piaget é quase semelhante. A mesma operação mental
apresenta diferentes níveis entre os quais se faz a pas­
sagem sempre na mesma ordem no decorrer da evolução
psíquica. As condições em que a operação se deve pro­
duzir podem opor-lhe graus de dificuldade muito variá­
veis. Se a dificuldade aumenta, a operação corre o risco
de se fazer a um nível mais baixo. Assim, no mesmo
indivíduo, na mesma idade, a mesma operação é suscep­
tível de se executar a diversos níveis. Um exemplo dado
por W. Stern é a prova que consiste em descrever
uma imagem, quer olhando-a quer depois de a ter
olhado. Na forma das duas descrições, pode observar-se,

39
segundo a idade da criança, uma discordância de um
ou dois graus.
O exemplo de Piaget diz respeito a noções, como
a de causalidade, das quais às vezes a criança sabe
fazer um uso objectivo na prática quotidiana da vida,
enquanto nas suas explicações, isto é, num «plano ver­
bal», regressa a tipos de causalidade muito mais subjec­
tivos, causalidade voluntarista ou afectiva.
A actividade mental não se desenvolve num único
e mesmo plano por uma espécie de crescimento contínuo.
Evolui de sistema para sistema. Sendo diferente a sua
estrutura, segue-se que não há resultado que se possa
transm itir tal e qual de um para outro. Um resultado
que reaparece em ligação ccm um novo modo de activi­
dade já não existe da mesma maneira. O que importa
não é a materialidade de um gesto, mas sim o sistema
ao qual pertence no instante em que se manifesta.
O mesmo fenómeno pode ser na criança que apenas
balbucía o simples efeito dos seus exercícios sensório-
-motores e, mais tarde, a sílaba duma palavra que se
esforça por pronunciar correctamente. Entre os dois
intercala-se um período de aprendizagem. A necessidade
de reaprender o som que se tinha tornado familiar no
período sensório-motor, quando se torna um elemento
da linguagem, faz-se bem sentir a quem quer que expe­
rimente falar uma língua estrangeira, cujos fonemas
não são todos como os que teve ocasião de fixar ao
aprender a sua própria língua materna. A dificuldade
de articulação pode até nunca ser completamente ven­
cida, se a reaprendizagem se fizer numa idade dema­
siado tardia.
Inversamente, sob as aparências da mesma palavra,
o acto mental pode pertencer a dois níveis diferentes
de actividade. É o que explica que certos afásicos sejam
ao mesmo tempo capazes e incapazes de utilizar um
mesmo vocábulo conforme ele pertença a uma excla­
mação afectiva ou deva en trar na enunciação objectiva
de um facto.

40
A linguagem de um adulto normal comporta urna
sobreposição de planos entre os quais não deixa de зе
fazer a passagem sem ele dar por isso. A doença pode
fazer desaparecer alguns deles, e a criança não passa
de um para outro senão sucessivamente.
A linguagem, porém, é apenas um exemplo da lei
que regula a aquisição de todas as nossas actividades.
As mais elementares integram-se, ora modificadas ora
sob o mesmo aspecto, noutras, através das quais aumen­
tam gradualmente os nossos meios objeetivos de relação
com o meio. O observador deve, pois, evitar atribuir
aos gestos da criança o pleno significado que poderiam
ter no adulto. Seja qual for a sua aparente identidade,
não lhe deve reconhecer outro valor senão aquele que
pode ser justificado pelo comportamento actual do su­
jeito. O da criança é, em cada idade, dum tipo que
corresponde aos limites das suas aptidões, e o do adulto
é, por sua vez, em cada momento, rodeado num cortejo
de circunstâncias que permitem determinar a que nível
da vida mental ele se realiza. E star atento a esta diver­
sidade de significados é uma das principais dificuldades,
mas uma condição essencial da observação científica.

Se o método de observação não pode deixar de ter


em conta as variações a encontrar no efeito quando
mudam as condições, o estudo dos casos patológicos
fornece uma ocasião para discernir algumas destas va­
riações que a doença tom a mais aparentes e, em certa
medida, pode suprir a experimentação, quando é impos­
sível recorrer a ela para as pôr artificialmente em
evidência.
As relações entre a Patologia e a experimentação
impuseram-se à atenção dos psicólogos franceses, de
quem durante muito tempo inspiraram a maior parte
dos trabalhos, sob a influência de Claude Bernard, que
definia a Fisiologia como uma «medicina experimental».

41
entendendo por isso que o fisiólogo devia procurar
reproduzir os efeitos da doença através da reprodução,
num organismo são, da sua suposta causa. Um meio
directo de verificar a exactidão das suas hipóteses.
E sta prática admitia, por um lado, que o estado
de saúde e o estado de doença estão submetidos às
mesmas leis biológicas e que nada há a mudar senão
certas condições da experiência, aquelas precisamente
cujo efeito se tra ta de determinar. Por outro, exigia,
por razões de humanidade, que a verificação pudesse
prosseguir-se noutros organismos que não o do homem.
Ribot e os seus alunos adoptaram o postulado, mas
não puderam realizar a transferência da experiência,
visto que a maior parte dos factos a estudar pertence
unicamente à psicologia do homem. Ao contrário de
Cl. Bernard, que operava no experimental, eles operaram
no patológico. Por isso mesmo perdiam a vantagem da
verificação expeditiva que Cl. Bernard tinha procurado,
e voltavam à necessidade de instituir, conforme os encon­
tros da clínica, minuciosas e por vezes incertas compa­
rações entre casos aproximadamente semelhantes.
Este inconveniente não foi talvez para eles tão ¡me­
diatamente evidente como o é para nós. Porque era a
época em que prosperavam as experiências sobre a his­
teria, que efectivamente tiveram um grande lugar nos
trabalhos dos primeiros psicopatologistas. Os efeitos
cada dia mais surpreendentes que lhe eram atribuídos
davam a ilusão de que, provocando-os, se tornava pos­
sível chegar a atingir a sua causa e explorar assim todo
o mecanismo da vida psíquica. Verificação demasiado
fácil das hipóteses mais arbitrárias, dado que eram um
resultado directo ou da sugestão ou da simulação.
Contrariamente à histeria, a doutrina organicista
mantinha uma ilusão, apesar de tudo bastante seme­
lhante. Identificando cada manifestação psíquica com o
jogo de um certo órgão, também ela admitia a possibili­
dade de analisar a vida psíquica, efeito por efeito, função

42
por função. Concepção reconhecida depois como inade­
quada aos factos. As conseqüências duma lesão não se
resolvem numa simples subtracção funcional. Traduzem,! '■^f:oro
— ----------------- - — - — - j <£A '—

sim, uma reacção conforme às possibilidades deixadas | jr


intactas ou libertadas pela lesão. Elas são o comporta- v
mentó compatível com as mudanças da situação interna. i'f'
Do mesmo modo, os progressos da criança não são
uma simples adição de funções. O comportamento de
cada idade é um sistema em que cada uma das activi-
d a d e sjá _possíveis concorre com todas as outras, rece­
bendo do conjunto o seu papel. O interesse da psicopa-
tologia para o estudo da criança consiste em pôr melhor
em evidência os diferentes tipos de comportamento. Por­
que o ritmo duma evolução mental é, na primeira infân­
cia, tão precipitado que acontece serem dificilmente
identificáveis no estado puro, visto as suas manifesta­
ções se sobreporem de um tipo para outro.
Pelo contrário, uma perturbação de crescimento não
somente retarda a evolução como pode também travar-
-lhe o desenvolvimento a um certo nível. Então todas
as reacções vêm alinhar-se num único tipo de compor­
tamento, cujas possibilidades realizam completamente,
por vezes mesmo com uma espécie de perfeição que não
pode ser atingida quando se encontram gradualmente
incorporadas a reacções de um nível mais elevado. Tenho
sempre constatado que uma demasiada virtuosidade par­
cial é de mau prognóstico para o desenvolvimento ulte­
rior da criança: porque é o índice duma função que volta
indefinidamente sobre si mesma, por falta dum sistema
mais complexo de actividade que a venha utilizar para
outros fins e integrá-la ” ■ '• ’ r£1
Ao mesmo tempo que cada fase duma evolução trun­
cada pode, assim encontrar-se despojada de todos os
traços que lhe são estranhos, o contraste entre a coesão
íntima do comportamento e )a sua incoerência prática
toma-se impressionante. Se este comportamento está

(») H. W., L’Enfant turbulent.

43
muitas vezes relacionado com circunstâncias exteriores,
a verdade é que corresponde mal ou de modo algum às
exigências do meio. O seu absurdo vai permitir com­
preender melhor que espécies de progressos seriam indis­
pensáveis para permitir uma vida normal. O regime de
r ' vida é comandado por condições que o meio social pode
transformar. A relação entre essas condições e o desen­
volvimento psíquico é um dos seus factores essenciais.
É portanto necessário comparar as aptidões sucessivas
j ou pessoais da crianca çoni os objectos e os obstáculos
que elas devem ou podem encontrar, e em seguida regis-
, ta r como se faz a adaptação.
I Decroly recomendava que se considerasse, para cada
criança anormal, ç^ual o regime de vida que lhe era ou
! lhe poderia tornar-se acessível. O mesmo problema se
põe para melhor conhecer e melhor dirigir a criança
norrpal.
Um outro meio de comparação, cujo objectivo é quase
semelhante, é o que utilizã a Estatística. Em vez de
se considerar directamente o individuo e as suas condi­
ções de existência, ele é comparado ao grupo dos que
estão nas mesmas condições. A comparação incide, evi­
dentemente, sobre um traço bem determinado. Trata-se
de anotar as variações deste traço no conjunto do grupo
e de classificar cada indivíduo em relação ao grupo
inteiro. Num grupo de indivíduos da mesma idade, a
posição que cada um ocupa entre os outros indicará
se, relativamente ao traço considerado, ele está em
atraso, na média, ou adiantado em relação aos da sua
idade. Mas o princípio do agrupamento pode ser dife-
rente: nacionalidade, meio social, condições de vida mais
ou menosjoarticulares. E assim a comparação do mesmo
traço em grupos diversos e em diferentes tipos de grupos
vai permitir reconhecer que factores influem no seu apa­
recimento, desaparecimento e eventuais variações.
\ O método pode, portanto, dar lugar a ^u^^espé^gs
de comparações: a de cada indivíduo em relação a uma
norma, que é dada pelo conjunto dos resultados obtidos

44
I oV eb*-
f
nas pessoas da mesma. сяtegoria que ele; V d a s condições
relativas a cada categoría com o efeito estudado. Não
sendo já o termo de referência uma observação ou uma
experiência individual, mas uma pluralidade de casos
individuais, é preciso eliminar desta pluralidade o que
ameaça falsear-lhe o justo equilibrio. Esta garantia só
pode ser obtida respeitando as condições que o ^áloulo
das probabilidades permitiu determinar. É por ele que
se rege o estabelecimento das normas e a utilização
das comparações próprias deste método (').
O traço estudado pode ser um efeito natural, como
-o tamanho da criança. Mas acontece também, como
quando se tra ta de uma aptidão, que pode ser necessário
pô-lo em evidência através de uma prova ou teste. A apti­
dão será definida pelo teste, mas unicamente porque
o próprio teste terá sido previamente calculado com base
na aptidão. E a garantia desta exacta correspondência
é dada precisamente pelo cálculo das probabilidades.
A percentagem dos êxitos obtidos com indivíduos de
quem praticamente se conhece que apresentam essa apti­
dão deve ser substancialmente superior à que apresentam
quaisquer outros indivíduos. Se se tra ta de conhecer o
desenvolvimento duma aptidão conforme a idade, a com­
paração far-se-á entre o número de êxitos em duas idades
consecutivas.
O teste é da observação provocada e, nesta quali­
dade, é uma experiência. O que, no entanto, o distingue 1' j
duma experiência propriamente dita é que entre os dois >
há uma divergência de referência e deJécnica^A expe­
riência vale pela sua estrutura, pela exacta relação das
suas partes; o seu resultado depende das condições rea­
lizadas ; as suas referências encontram-se numa situação
definida, que pode ser mais ou menos complexa. O teste,
pelo contrário, é um índice cujo significado se baseia

(■) Ver BOREL e DELTHE 1L, Probabilités, Erreurs (Col.


Armand Oolin, n.° 34); H. WALLON, Principes de psychologie
appliquée, 2.* p arte (Col. Armand Colin).

45
. Ц, l
na sua frequência relativa através de grupos definidos.
Ё nestes que está a estrutura e não no teste. Se ele
tivesse uma, mesmo que fosse composta de elementos
heterogéneos, as comparações de que é instrumento tor-
nar-se-iam ambiguas e as manipulações estatísticas pode­
riam revelar anomalias nos seus resultados. Em princí­
pio, portanto, deve ser o mais depurado possível. As suas
referências encontram-se fora dele: no conjunto dos
casos em que é experimentado.
Certamente o método estatístico e o método expe­
rimental podem mais ou menos interferir a título de
controlo mútuo. Mas as objecções que a um ou a outro
têm sido dirigidas provêm muitas vezes do facto de eles
não terem sido suficientemente distinguidos. Existem
em Psicologia provas que não são testes e cujos resul­
tados são dos mais úteis; são experiências mais ou
menos complexas cuja prova está nelas próprias. Seria
absurdo objectar-lhes que não se podem justificar pela
mesma espécie de garantias dos testes. Inversamente,
não se justifica reprovar os testes pela sua abstracta
simplicidade. y ,

O estudo da criança é essencialroente o estudo das


fases que vão fazer dela um adulto.
Em que medida podem os testes contribuir para isso?
E em que medida não são suficientes? Supondo que
fossem em número suficiente para corresponder a todas
as aptidões, permitiriam fazer o inventário das mesmas
para cada indivíduo e para cada idade, com a indicação
do seu nível respectivo. Reunidos, dariam aquilo a que
se chama «perfil psicológico», gráfico de incontestável
utilidade, mas simples junção de resultados, de que aliás
se duvida que esgotem todas as possibilidades do sujeito.
Não existe portanto nele a verdadeira expressãojle uma
estrutura mental.
-Entre os testes, no entanto, é possível investigar se
há ou não correlação, calculando segundo que frequência
os seus resultados concordam. A não ser que seja causada

46
por uma dependência comum em relação a circunstâncias
estranhas, uma concordância cujo limite ultrapasse as
probabilidades do simples acaso pode ser indicio duma
ligação funcional entre as duas aptidões postas em corre­
lação. Ela corresponderá, portanto, a um elemento de
estrutura. Mas encadear esses elementos, calculando
sucessivamente correlações, não é recompor a estrutura,
e os resultados de conjunto depressa se tom am muito
confusos. A coesão de cada elemento varia, aliás, com
o valor numérico da correlação, e o seu significado
intrínseco permanece indeterminado. O estudo das cor­
r elações -é^-portanto. um método de análise e de verifi­
cação, mas não de reconstrução. //
Enfim, a existência de um conjunto não se confunde
com as afinidades mútuas das suas partes. O que faz
com que concorram para o comportamento de uma deter­
minada idade as diferentes actividades que o constituem
não é necessariamente o facto de se condicionarem entre
si. Д б causas duma evolução ultrapassam o ^nstg.ate
presente. Cada uma das suas etapas não pode, por con­
seguinte, formar um sistema fechado, cujas manifesta­
ções dependeriam todas estritamente umas das outras. ,
Os estádios de que a psicopatologia permite o estudo
são na verdade conjuntos, mesmo que depurados de qual­
quer elemento heterogéneo. Assim é mais fácil definir-
-lhes os traços essenciais. Porém, não são definíveis
senão sob o aspecto estático. Pedaços de uma evolução
truncada depressa deixam de corresponder às necessi­
dades das sucessivas idades que percorre o indivíduo.
Não têm senão uma existência mecânica, efeitos estereo­
tipados e absurdos. O seu significado psicobiológico
desaparece.
Ê essencialmente à sua sucessão cronológica que é
preciso referir as etapas do desenvolvimento. As leis
e os factores de que dependem serão estudados mais
adiante. Mas qual é o seu modo de sucessão? Para
certos autores, a passagem de uma à outra far-se-ia por
transições insensíveis. Cada uma estaria já na prece-

47
dente, conteria já a seguinte. Seria mais um secciona-
mentó cómodo para o psicólogo do que uma realidade
psicológica.
E sta continuidade é, sem dúvida, tudo o que apreende
aquele que se entrega exclusivamente à descrição das
manifestações ou aptidões sucessivas que aparecem no
comportamento da criança. O desenvolvimento de cada
uma pode inscrever-se sob a forma de uma curva contí­
nua, desde as tentativas raras e imperfeitas do início até
ao seu emprego segundo as necessidades e as circuns­
tâncias, passando pelo período em que o efeito é pro­
curado insaciavelmente por si mesmo no decurso duma
agitação lúdica. As novas formas de actividade, cujo
aparecimento o seu próprio acabamento tom a possível,
podem ser consideradas como a sua conseqüência, em
certa medida mecânica e necessária. Ao mesmo tempo,
ela misturou-se com outras actividades sincrónicas ou
não, que conjuntamente formam uma espécie de feltro,
no qual se perdem as distinções de etapas.
Pelo contrário, para quem não separa arbitraria­
mente o comportamento e as condições de existência
próprias de cada época do desenvolvimento, cada fase
constitui, entre as possibilidades da criança e o meio,
um sistema de relações que os faz especificarem-se reçi-
procamente. 0 meio não pode ser o mesmo em t odas
as idades. Ê composto por tudo aquilo que possibilita
os procedimentos de que dispõe a criança para obter
a satisfação das suas necessidades. Mas por isso mesmo
é o conjunto dos estimulantes sobre que se exerce e se
regula a sua actividade. Cada etapa é ao mesmo tempo
um momento da evolução mental e um tipo de com-
portamento. (-, Л

48
CAPÍTULO III

OS FACTORES
DO DESENVOLVIMENTO PSIQUICO

O desenvolvimento psíquico da criança apresenta


oposições como se observam em qualquer processo de
transformação, mas que devido à sua amplitude e à
diversidade das suas condições devem suscitar aqui pro­
blemas importantes. Partindo, com o lactante, de um está­
dio pouco superior ao do parasitismo, tende para um
nível, a respeito do qual o comportamento das outras
espécies animais não passa de um princípio, porque os
motivos que podem surgir das circunstâncias naturais 1
são, no _Ьщпет7Т§Длпег805 por aqueles que procedem
de uma sociedade de formas complexas e instáveis. A in­
fluência que ela é susceptível de exercer pressupõe no
indivíduo um equipamento de aptidões extremamente
diferenciadas, cuja formação depende da espécie. Deste
modo, na criança, òpõem-se e implicam-se mutuamente ¡
f actores de origem biológica e social.
Ao mesmo tempo que em cada etapa se realiza
um equilíbrio estável entre as possibilidades actuáis e as
condições de vida correspondentes, tendem também а
operar-se mudanças cuja causa é estranha a esta exacta
relação funcional. E sta causa é orgânica.
No desenvolvimento do indivíduo, a função desperta
com o crescimento do órgão e o órgão precede-a muitas

49
4
vezes de longe. Desde o nascimento, as células nervosas
são tão numerosas como em qualquer momento futuro
e se algumas delas se destruírem, no decurso da vida,
não serão substituídas. Mas durante quantas semanas,
meses e anos não vão muitas delas continuar adorme­
cidas? Enquanto não estiverem realizadas as condições
orgânicas do seu funcionamento: a mielinização do seu
axónio. Muitos outros órgãos devem igualmente com-
pletar a sua diferenciação estrutural antes de revelarem
I a sua função, cujas primeiras manifestações muitas
vezes não são mais do que uma espécie de exercício
livre sem qualquer outro motivo além do próprio
exercício.
A razão do seu crescimento não está portanto no
presente, mas no tipo da espécie que pertence ao adulto
realizar. E stá ao mesmo tempo no futuro e no passado.
Cada idade da criança é como um estaleiro onde certos
órgãos asseguram a actividade presente, enquanto se
edificam massas importantes que não terão a sua razão
de ser senão em idades ulteriores.
O objectivo assim perseguido não é mais do que
a realização daquilo que o genotipo, ou gérmen do indi­
víduo, tinha em potência. O plano segundo o qual cada
ser se desenvolve depende portanto de disposições que
ele tem desde o momento da sua primeira formação.
( A realização desse plano é necessariamente sucessiva,
jmae pode não ser total e, enfim, as circunstâncias modi-
!ficam-na mais ou menos. Assim, distinguiu-se do geno­
tipo o fenotipo, que consiste nos aspectos em que o indi­
víduo se manifestou ao longo da vida. A história de um
ser é dominada pelo seu genotipo e constituída pelo seu
fenotipo.
Entre os dois existe uma certa margem de variação.
Mas é difícil marcar-lhe a amplitude, visto que só o
fenotipo é directamente acessível à observação. Quanto
ao conteúdo do genotipo, é necessário deduzi-lo a partir
de uma comparação entre progenitores e descendentes,
atribuindo-lhe dos traços comuns aqueles que não podem
ser explicados pela influência do meio ou dos acon­
tecimentos.
A comparação entre grupos de gémeos homozigóticos
e heterozigóticos permitiu que diferentes observadores
atribuíssem ao genotipo as aptidões que são semelhantes
nos primeiros e diferentes nos segundos. Sem dúvida, ! >'
nas condições habituais, a extrema diversidade de vida
que apresentam as nossas sociedades torna a comparação
numa das mais complexas, mas a discriminação entre ,.Л '
o que permanece constante e o que pertence a circuns­
,.,-U
tâncias múltiplas de variação poderia também tornar-se /у.*11
mais nítida.
É preciso, contudo, saber distinguir entre as influên­
cias. Umas são muito circunscritas e fortes, outras têm
uma área muito ampla. Os seus efeitos poderiam, por­
tanto, manifestar-se nos traços duráveis e essenciais
duma raça ou nos de grupos fundamentalmente homo­
géneos, se a comparação não fosse suficientemente exten­
siva no tempo e no espaço, ou se não tirasse proveito
dos casos de variação acidental para fazer um exame
rigorosamente diferencial das suas condições. Noutros
domínios, a transformação das circunstâncias é muito
mais rápida, muito mais variada. Entre gerações ou
entre grupos relativamente próximos, por vezes mesmo
entre indivíduos, as variações podem ser sensíveis. É pre­
ciso ter isso em conta para não concluir, sem justo
motivo, por superioridades ou inferioridades funda­
mentais.
#

O genotipo pode ser considerado como o interme­


diário, um pouco variável aliás conforme as filiações
e os cruzamentos, entre a espécie e p indivíduo. Nele
estaria inscrita a história da espécie, de que a história
do indivíduo não faria senão reproduzir os traços
essenciais.
Tal é pelo menos a teoria daqueles para quem a onto-
génese é uma repetição da filogénese. Nasceu esta teoria
das semelhanças morfológicas que apresentariam as

51
etapas da vida embrionária com as formas animais,
cuja sucessão marca a via seguida pela evolução aas
espécies. Alguns psicólogos julgaram poder aplicá-la
ao desenvolvimento do indivíduo nas suas relações^ com
a evolução das civilizações humanas, explicando assim
as semelhanças que se observariam, nas idades suces­
sivas da criança, entre as formas do seu comportamento
e a seqüência das práticas ou das crenças pelas quais
passaram as sociedades humanas.
Seriam uma reminiscência das idades desaparecidas
alguns jogos guerreiros da criança, por exemplo a sua
invenção ou antes a sua reinvenção do arco e das fle­
chas. E do mesmo modo aquilo a que se chamou a sua
mentalidade mágica, isto é^ a sua crença no poder da
vontade sobre as coisas e os acontecimentos, quer direc­
tamente quer sobretudo por intermédio de simulacros
ou de fórmulas.
A esta revivescência de pensamentos ancestrais deu
Freud grande importância na sua psioapálise. Os jogos
imaginativos, os contos em que se compraz a criança,
os sonhos do adulto, algumas das suas criações estéticas,
seriam um retorno ã forma mítica sob a qual se expri-
miam jts mais antigas civilizações, e que utilizariam
os desejos reprovados pela nossa para se manifestarem,
ainda que disfarçadamente. Situações que pertenciam
às primeirgs idades da humanidade e que a moral dos
povos não deixou de combater poderiam assim sõbre^
viver em cada indivíduo.
No seu terreno de origem, o da embiogénese, a assi­
milação da ontogénese e da filogénese suscitou objecções.
Ela não é, aliás, um argumento necessário para justi­
ficar o transformismo. Por que razão as mudanças que
acompanham a passagem de uma espécie a outra não
atingem igualmente as etapas do crescimento e os carac­
teres do animal adulto? Como não seria a recapitulação
do passado de certo modo escamoteada pela necessidade
bem mais urgente de realizar o novo tipo de organização ?
Pelo menos o problema tem aqui dados precisos: a com-

52
paração de formas entre si e a ordem pela qual se
sucedem.
No plano da psicogénese, pelo contrário, o parale­
lismo ontofilogenético não só se encontra privado de
critérios objectivos como comporta inverosimilhancas vJjscjWW
insuperáveis. Se as etapas da vida mental na criança ptâ* <«* O-
tivessem por protótipo e por condição as etapas da fl i t s * ’ I < -
civilização humana, a relação entre os termos que se
^/correspondem nas duas séries não poderia ser senão
uma estrutura material cuja posição no desenvolvimento
Л * / quer do indivíduo quer da espécie seria estritamente
determinada. ^treJ.ndivídups^ertenc^di§^J>flfeêÍ&^ÍÍSb
п'Л-»**' Де júvili^açãq, o intervalo seria igual ao número
~ de gerações necessárias para que se sucedesse a série
de estruturas intermédias, isto é, um intervalo intrans­
ponível, não só para os próprios mas também para uma
porção mais ou menos larga da sua posteridade. Ora
a experiência tem mostrado que, se o desacordo pode
ser irredutível entre dois adultos já formados, em crian­
ças suficientemente jovens, pelo contrário, o meio em
que elas foram educadas enxerta a civilização corres-
pondente.
Com a diferença das formas embriogénicas, que são
objecto de observação, a existência de estruturas que/
corresponderiam aos sistemas ideológicos é. por outro j
lado, indemonstrável. ou melhor, impossível. Todas a s J
constatações da psicologia contemporânea provam que
o funcionamento da actividade mental tom ar-se-ia incon­
cebível se fosse necessário decompor as suas operações
em elementos em que cada um deles tivesse por sede
e por órgão um elemento ou uma combinação de ele­
mentos orgânicos.
Deste facto, a linguagem fornece um exemplo que
tem sido particularmente estudado. Incontestavelmente,
ela só é possível pela existência de centros especiali­
zados —. e aliás muito amplos, isto é, implicando activi­
dades de nível muito diferente — que fizeram a sua apa­
rição na espécie humana. Mas a linguagem não está de

53
modo algum preformada nestes centros. É do meio que
depende o sistema lingüístico cujo uso a criança adquire.
Este sistema pode, aliás, não ser único, e, quando no
mesmo indivíduo se desenvolvem vários, as suas relações
podem ser psicologicamente muito diferentes: equiva­
lência exacta, ou referência de todos a um de entre eles,
que será então o único a possuir uma ligação imediata
com as intenções e o pensamento. Enfim, fórmulas muito
semelhantes podem servir de expressão a actividades psí­
quicas de nível muito diverso, conforme as circunstân­
cias, as disposições ou as possibilidades mentais do
sujeito e também conforme a idade da criança.
Não há reacção mensal, que seja independente, senão
sempre no presente, pelo menos pelos seus meios e pelo
1seu conteúdo, das circunstâncias exteriores, duma sitqa;
í ção^do meio. Opor-se-ia assim a uma exacta assimilação
do desenvolvimento psíquico com o desenvolvimento em­
brionário que, pelo contrário, se processa secretamente
sob a influência exclusiva de factores orgânicos.
A semelhança que se pode constatar entre certas
atitudes ou operações mentais das crianças e as daque­
las a quem genericamente se deu o nome de primitivos,
parece explicável através de uma semelhança, muito rela­
tiva aliás, de situação. O meio prõvê~ãTnõssa actividade
de instrumentos e de técnicas, que estão tão intimamente
unidas às práticas e às necessidades da nossa vida quo­
tidiana, que muitas vezes nem nos damos conta da sua
existência. Mas a criança não aprende a dispor delas
senão progressivamente. Em cada uma das suas idades
j sucessivas encontra-se, por conseguinte, na situação
daquelas para quem estas técnicas não existiriam ainda,
como é o caso, em graus diversos, dos pretensos pri­
mitivos.
i As írtenos importa n tes destas técnicas nãq pão as
técnicas intelectuais, que investem a criança logo de
i Início e sobretudo por intermédio da linguagem, mas
somente na medida do emprego que dela sabe fazer.
E sta aprendizagem não termina antes dos últimos anos

54
da infancia e pode ser desenvolvida a níveis muito diver­
sos. Mas também entre as linguagens há níveis. Segundo
o estado das civilizações correspondentes, elas são ins­
trumentos intelectuais mais ou menos elaborados. Desta
elaboração, o trabalho dos pensadores dá-nos, aliás, um
exemplo explícito ao longo da historia. Para as palavras i
e para as noções desque depende a nossa compreensão ,
cuotidiana. do_ Mundo, quantos esforços, de definição
'em Descartes, Aristóteles e Platão! De um para outro
parece-nos caminhar para o menos compreensível e, por
vezes com Platão, até ao limite do incompreensível: não
descobre já algumas vistas no longínquo horizonte do
que Lévy-Bruhl chama a mentalidade pré-lógica? Mas
esta elaboração, que é deliberada nos filósofos de outrora
e nos sábios de hoje, opera-se também na consciência
comum e na linguagem usual, sob a pressão dos costu­
mes ou dos objectos que pertencem ao regime de vida
e às técnicas da época.
Entre a criança e o primitivo é nítida a distinção.
Um encontra-se em presença de técnicas que não sabe
ainda utilizar; ao outro faltam essas técnicas. A compa*
ração de um e de outro é sem dúvida útil, não porque
nos faça encontrar na criança um estádio do passado
mas porque nos permite separar, no exercício do pensa- 1
mentó, a parte que pertence aos instrumentos e às téq- 1
nicas da inteligência. Assim evitamos correr o risco
de considerar uma criança de 12 anos mais inteligente
que Platão ou, pelo menos, que um primitivo eminente
no seu clã, e de confundir o nível da lógica com o poder
do pensamento. Deve ainda acrescentar-se que, mesmo
reduzida a estes termos, a aproximação deixajiubsistír
uma imensa distância entre a criança, cujo pensamento,
privado de quadros, está sujeito às pulsões da senaibi-
lidade, e o primitivo, que é conduzido pelo sisjtema rígido
dos seus hábitos mentais e das suas crenças, jj

55
Ainda que o desenvolvimento psíquico da criança
pressuponha uma espécie de implicação mútua entre fac­
tores internos e externos, é contudo possível distinguir
para cada um a sua parte respectiva. Aos primeiros
é atribuída a ordem rigorosa das suas fases, de que
o crescimento dos órgãos é a condição fundamental.
Na diferenciação que faz nascer do ovo, onde estão
em potência, mas invisíveis, as estruturas do futuro orga­
nismo, corpos de constituição química relativamente sim­
ples parecem desempenhar um papel decisivo de esti­
mulante e de regulador. São as hormonas, secreção das
glândulas endocrinas. Dotadas cada uma duma especifi­
cidade rigorosa, ainda que muitas vezes em relação de
dependência recíproca, têm sob o seu controlo o apare­
cimento e o desenvolvimento de cada espécie de tecidos.
O encadeamento das suas intervenções corresponde, com
a mais exacta precisão, às necessidades de crescimento
e, como ao seu papel morfológico se junta uma acção
igualmente electiva sobre as funções fisiológicas e psí­
quicas, Von Monakow via nelas como que um substracto
material dos instintos.
Na realidade, parecem exercer uma influência con­
siderável sobre as correlações somato-psíquicas. É, por
exemplo, a secreção das glândulas intersticiais incluídas
nos órgãos genitais que está na origem das mudanças
físicas e psíquicas conhecidas sob o nome de puberdade.
À preponderância de umas ou de outras atribuem-se
aquelas diferenças de conformação física e de tempera­
mento psicofisiológico que hoje muitos se aplicam a
classificar em tipos, a fim de sobre eles fundarem o
estudo do carácter e o de diversas perturbações mentais.
Tais estudos poderiam ter um duplo interesse na
criança: em primeiro lugar, identificar durante o seu
desenvolvimento os sinais anunciadores, as particula­
ridades nascentes e talvez, em parte, as causas do tipo
que se realizará mais tarde; e averiguar também se as
etapas do seu crescimento, que acarretam variações

56
consideráveis nas proporções relativas da cabeça, do
tronco, dos membros, das suas partes e dos seus seg­
mentos, não aparentariam sucessivamente a criança a
diferentes biotipos, aos quais corresponderia a diversi­
dade dos seus sucessivos comportamentos.
Entre o crescimento dos membros e a sua actividade
característica existe em todo o caso uma relação. Mas
pode ser de sentido oposto. Uma vezes é positiva, isto é,
aumentam simultamente as dimensões e a habilidade
duma região, por exemplo, da raiz ou da extremidade
de urn membro. E isto deve explicar-se por uma solida­
riedade trófica entre os órgãos periféricos e centrais de
uma mesma função: aparelho articular e músculos por
um lado, centros nervosos por outro. Outras vezes, pelo
contrário, uma imperfeição mais ou menos duradoira
acompanha um aumento rápido das dimensões. Um exem­
plo bem conhecido é a mudança de voz na altura da puber­
dade: os sons tornam-se bitonais e discordantes, porque
os automatismos adquiridos perdem-se momentanea­
mente em virtude das mudanças do órgão.
No primeiro caso, tratava-se duma aptidão bruta,
elementar e como que em potência; no segundo, de ope­
rações complexas, já constituídas em sistema, desorga­
nizadas por uma transformação do seu instrumento.
A oposição destes dois efeitos explica-se pela diferença
do seu nível funcional.
Quando se trata de actividades mais especificamente
psíquicas e sem concomitantes orgânicos visíveis, a rela­
ção dos factores internos e externos deu lugar a maiores
discussões. A explicação espontânea consiste em ordenar
entre si os factos imediatamente perceptíveis e a ordem
da sua sucessão torna-se causalidade. São as reacções
de que já é capaz o lactante, que se julga constituírem
o material donde sairão, por combinações e adaptações
sucessivas, as elaborações ulteriores da vida mental.
Acontece, porém, muitas vezes, que este material é mais
decalcado sobre as necessidades da explicação do que

57
sobre uma exacta observação dos factos. Assim, no
tempo em que o edifício psíquico parecia cada vez mais
redutível a sensações, a questão da diferença, aínda que
correcta, da criança e do adulto nem sequer se punha.
Agora que uma re p re s ^ ta ç ã o jn a is j^ da^yida
mental se tornou corrente, os^ esquemasjnotores substi­
tuíram as sensações, mas são sempre utilizados como
unidades que permaneceriam equivalentes em todas as
etapas da evolução psíquica, quando na realidade inte­
I,
grações progressivas mudam não só a aparência^ externa
e o mepapismo^neurológicp das manifestações motoras,
mas também as sqas çpnexões funcionáis, e a sua.signi-
^ficação pragmática. / ;
<| E sta integração é a condição, mas não pode ser a
¡I conseqüência da evolução psicomotora. Põe-se aqui o pro­
blema das relações enfrç a maturação e a jipfendizqgeiji
funciopai§. Sem dúvida, imputar sistematicamente à ma-
***. *- turação de órgãos correspondentes cada progresso cons-
■ ' * ’ tatado, seria apenas uma forma modificada das y.elhas
I explicações que se contentavam com reconduzir cada
i efeito a_uma entidade decalcada sobre o mesmo. Porém,
cpntestar a priori, como recentemente o fez Piaget no
- i,.u \ seu livro La Naissancç de l’intgligence^çL^^Venla/rdj
t.T*/Í"y, Р aparecimeato de actividades novas na evolução psí-
' Ал. iquica, cuja origem necessária reside no despertar fun­
cional de estruturas orgânicas chegadas à maturidade,
/'•■LTSt' -■leva-о a confundir uma simples descrição, aliás rica,
penetrante e engenhosa, com as condições profundas da
vida mental.
Quem fala de maturação funcional deve incontesta-
velmente demonstrar a sua existência. Foi ao que se
dedicaram já vários autores. Fizeram-se experiências
tanto com animais jovens como com crianças. Os resul­
tados são semelhantes. Entre dois grupos de sujeitos,
fjuns dos quais foram postos em condições de se exer-
citarem e ^outros p r iv a d o s desta, possibilidade, a dife­
rença de resultados desaparece rapidamente, assim que
se atinge g idadg da função e que cessa a diferença

58
O nível funcional atingido pelos
primeiros ao fim de algumas semanas, alcançam-no os
segundos em alguns dias, prova de que a idade faz mais
do^ue^o^exercício. j- ^
Em vez de grupos suficientemente numerosos para
que a diversidade das aptidões individuais tivesse pos­
sibilidades de ser compensada, Gesell pôde comparar
dois gêmeos homozigóticos, isto é, dois seres cuja seme­
lhança é tão completa quanto possível: um foi treinado
a subir uma escada desde a idade de 46 semanas e o
outro apenas quando tinha 53; em duas semanas o se­
gundo alcançou o irmão. Os actos estudados têm sido
sempre, bem entendido, actos naturais, como procurar
alimento, andar, agarrar, falar ,?cuja aquisição é cons­
tante para todo o indivíduo normal que vive nurn meio
norra^l. Para que eles se produzam, são evidentemente
necessários estimulantes e circunstâncias apropriadas,
mas a sua utilização só se torna verdaderam ente eficaz
na altura em que as condições biológicas da função
chegam à maturação,.
Quando a aquisição diz respeito a actividades mais
artificiais, quer dizer, que só em circunstâncias excep­
cionais aparecem ao longo do desenvolvimento, a impor­
tância da aprendizagem torna-se essencial, embora não
sejam menos necessárias condições funcionais adequadas.
É, aliás, uma lei geral que os efeitos, dos quais nem
a forma, nem o grau, nem a cronologia podem ser sen­
sivelmente modificados pelo exercício, são reacções pri­
mitivas, reacções que pertencem ao equipamento psico-
biológico da espécie e cuja condição dominante é a m atu­
ração funcional. Pelo contrário, o que o exercício pode
desenvolver ou diversificar depende de actividades com-
binadas em que se traduzem os dons ipdiyid_uais__.de
adaptação, iniciativa e invenção.
--------------------------------------- ’V
#

Na espécie humana, o adulto dispõe de actividades


que 'lhe permitem subtrair-se às pressões do ambiente

59
i imediato. Às circunstâncias externas pode opor um
J mundo de motivos que descobre em si mesmo, qualquer
que seja a sua origem, e que são como que oj^giqladòr
interno da sua^coriduta. Ё preciso, por conseguinte, supor
à partida um equipamento psicobiológico muito mais
complexo que o que possuem as outras espécies. Pelo
I contrário, a criança permanece durante muito mais
n tempo desarmada face às necessidades mais elementa-
[ res da vida, e as ocasiões de aprendizagem que deve
encontrar no meio externo têm, então, uma importância
[decisiva. Existe, assim, uma relação inversa ent.rp я. .ri­
queza do equipamento e o acabamento das suas partes.
Quanto maior é o número das possibilidades, maior é
a sua indeterminação e maior a margem dos progressos.
Uma função que não tem que procurar a sua fórmula
não sabe igualmente adaptar-se a diversas circunstâncias.
Ç O facto de à nascença um ser não poder subsistir
por si próprio, por falta de uma suficiente maturação
4 dos seus órgãos, é considerado um caso de prematuração.
Nenhum exemplo e mais evidente que o do canguru,
cujo filhote deixa o útero da mãe para se reintegrar no
seu saco marsupial, onde esperará poder, enfim, supor­
ta r os rudes contactos do mundo exterior. A prem atu­
ração é normal em várias espécies de mamíferos. A sua
precocidade parece aumentar ao mesmo tempo que se
eleva o nível evolutivo da espécie. Atinge de longe o seu
-v-grau mais elevado no homem e acompanha-se duma
inversão na ordem dos meios ao seu alcance, a qual
prepara a orientação completamente nova da sua exis­
tência.
Enquanto o jovem animal, a custo por vezes de exem­
plos e de provocações maternas, ajusta directamente as
suas reacções às situações do mundo físico, a criança
permanece meses e anos sem nada poder satisfazer dos
seus desejos senão por intermédio de outrem. O seu único
instrumento vai portanto ser o que a рое~em-rclação
com aqueles que a r odeiam, isto é, as suas próprias reac-
ções que suscitam nos outros comportamentos provei-
tosos, para ela e a^ reaeções dos outros que^anuncia.m
estes cornportam ento^ amentoscontránqs
Desde as primeiras semanas e desde os primeiros dias,
constituem-se encadeamentos^ donde surgirão as bases
das relações interindividuais. funções de expressão
preçedem de longe as de realização. Antecipando a lin-
guagem propriamente dita, são elas que primeiramente
marcam o homem, animal essencialmênteTsocial.
_______________ — • //

61
SEGUNDA PARTE

AS ACTIVIDADES DA CRIANÇA
E A SUA EVOLUÇÃO MENTAL
"!

\
C A P IT U L O IV

O ACTO E «O EFEITO»

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S Oo c / V 'j" / (У пЛ / a. (Lo, 'w '<* Ы» '

Entre os traços psicofisiológicos que marcam cada


etapa do seu desenvolvimento, há o género de actividade
a que se entrega a criança, e que, por sua vez, se torna ^
um factor da sua evolução mental. Por que meios? Eles
são diversos e variam com os sistemas de comportamento
que entram em jogo, com os estimulantes, os interesses,
as funções, as alternativas que se manifestam. Ao tipo
mais geral, mais elementar, corresponde o que pode ser
classificado nas relações entre o acto e o seu efeitg. ,
O que motiva um acto pode ser de espécie ou de
nível variável. O acto mais elementar não teria ainda
motivo psíquico. Não teria outra razão para se produzir
senão o facto de ser a actividade dos órgãos corres­
pondentes. Séria uma daquelas manifestações funcionais
por si mesmas, sobre cuja frequência na primeira idade
insistiu a Sr.a Ch. Bühler. É sem dúvida difícil afirm ar
com todo o rigor que um acto ou mesmo ищ simples
л£л i <Wh 04
movimento não têm concomitância psíquica. Admite-se
igualmente com frequência que o gesto funcional é jiconu
panhado de um certo p razer, o que estaria ligado ao exer­
cício da função. Mas esta noção não é tão simples como
à primeira vista poderá parecer. Não há prazer sem

65
5
uma espécie de consciência, de que seria, portanto, neces-
! sário determinar o grau e a natureza.
No entanto, aptes do gesto perseguido pOTsimegmo,
parecem existir os que pertencem aos efeitos ~3jnamo-
1o¡0'jle C
'■C&>» ^ génic.os do sofrimento ou do^ bem-estar, cuja alternância
do I com o sono constitui o comportamento manifesto do
recém-nascido. Não poderiam, aliás, estar dissociados
t ;4> dos estados afectivos que lhes correspondem, como seria
uma expressão do que a mesma exprime. Estão-lhe liga­
dos por uma espécie de г ^ ^ о ^ Щ з 4 ^ щ е $ | 1^ а e jyM t
fundem-se. a princípio^toüümente compeles. Mas não
parecem ser ainda o que se pode imaginar de funcional­
mente mais primitivo. Uma comparação pode demons­
trá-lo.
Ê costume observarem-se, durante as primeiras sema­
nas, movimentos que pela sua intermitencia e dispersão
esporádica através dos grupos musculares são equipa­
rados às sacudidelas da coréia (*).
Parecem, com efeito, manifestar-se por uma simples
libertação de energia em fragmentos dissociados do apa­
relho motor: sinergias ainda fragmentadas no lactante
e que recaem em pedaços na coréia. As sensações a n e s­
tésicas que lhes podem corresponder surgem e desapare­
cem, dando apenas ao sujeito uma impressão de impo­
tência e de enervamento. Sem ligação nem possibilidade
de ligação entre si, situando-se fora de qualquer inten-
ção, incluindo aquela intenção orgânica que é a atitude
em que se preforma o movimento, nem sequer podem
deixar vestígios porque não há vestígios sem uma, direc-
ção, sem um ponto de partida ou, pelo menos, sem o início
de certas conexões. Se escapam às determinações da
sensibilidade, não é, pois, apenas porque esta é estranha
à sua incitação, mas sim porque não podem inserir nela
nada de preciso ou de definível.

(*) Síndroma caracterizado por uma agitação involuntária


e desordenada. (N. T.)

66
l . . -Л лХ

Sem uma relação exacta entre cada sistema de com *


tracções_musculares e as impressões correspondentes. . V
o movimento não pode entrar na vida psíquica nem com Л•
.tribuir para o seu desenvolvimento. Em que momento se
,1
deve situar esta relação? Os que reconheceram a sua / и Х д
уУ'.иЖьЪ•
necessidade procuram atribuir-lhe um princípio muito
precoce.
É preciso, porém, distinguir dois domínios: o do
próprio corpo e o das suas relações com o mundo exte­
rior. A sensibilidade do próprio corpo é a que Sherring­
ton chamou p r opriocep tiva, por oposição à sensibilidade
exterpcegtiva, que está voltada para o exterior e que
tem por órgãos os sentidos. A cada uma das duas cor­
respondem formas de actividade muscular distintas,
ainda que estreitamente conjugadas.
A sensibilidade proprioceptiva está ligada às reac-
cões de equilíbrio ej às^ atitudes que têm por objecto
a contraccão tónica- dos músculos. Entre o tónus mus­
cular e as sensibilidades correspondentes parece existir
uma espécie de união e reciprocidade imediatas: a loca­
lização, a propagação dos seus efeitos, são estritamente
sobreponíveis, e os espasmos, que são o seu aspecto paro-
xístico, mostram como a contracção muscular e a sen­
sação parecem sustentar-se mutuamente. São como que
estreitamente coaderentes.
Pelo contrário, a impressão exteroceptiva e o movi­
mento que lhe corresponde situam-se nas duas—extre­
midades jiu m. circuito mais ou menos vasto. E n tre o olho
que observa, o objecto je a m ã o ju e o agarra n a ^ fia
nenhuma semelhança 4e.órg|osk Entre a impressão visual
e as contracções musculares existem sistemas complexos
de conexões nervosas. São necessários longos meses para
que a criança deles possa dispor. A maturação orgânica
dos centros (ê> a ajprendizaggm^ vão-se completando de
etapa para etapa. Mas como se opera, em cada uma, a
relação entre a sensibilidade e o movimento?
Sob o nome de rcacção circular, Baldwin procura
m ostrar que esta ligação é fundamental. Não há sensação

67
que não suscite movimentos capazes de a tornarem
mais distinta, nem movimentos cujos efeitos sobre a sen­
sibilidade não suscitem novos movimentos até que seja
realizado o acordo entre a percepção e a situação cor­
respondente.
A percepção 1é tanto actividade como sensação; é
essencialmente adaptação. Todo o edifício da vida mental
se constrói, nos seus diferentes níveis, através da adap-
tação da nossa actividade ao objeçto, e o que dirige a
adaptação são os efeitos da actividade sobre a própria
actividade. -
Os exemplos de actividade circular são constantes
na criança. A todo o instante o efeito produzido por um
dos seus gestos suscita um novo gesto destinado a repro-
duzi-lo e muitas vezes a modificá-lo ao longo de séries
de variações sistemáticas. Assim, a criança aprende a
fazer uso dos seus órgãos sob o controlo de sensações
produzidas, ou modificadas por si mesma e a identificar
melhor cada uma das suas sensações, produzindo-a dife-
, rentemente das anteriores. As emissões vocais com que,
>o" 1 tão abundantemente, pré-anuncia a exacta percepção e
{ a enunciação dos sons, muitas das quais são fonemas
I da linguagem falada à sua volta, mostram bem como
. y- j aprende a realizar todas as relações possíveis entremos
j domínios acústico, e cinestésico, pelo encadeamento mú-
í tuo dos efeitos e dos actos.

i A importância dada à influência do efeito jspbre o


progresso mental é hoje muito grande. É através dela
que Thorndike explica a aprendizagem. Se as tentativas
>_r
hesitantes do princípio dão lugar a um movimento ou
) /■ a uma conduta bem adaptados, é porque se operou uma
V selecçãfl das primeiras tentativas, que eliminou tudo
o jque não era adequado à situação, tudo o que era erro.
O efeito favorável traz consigo a repetição do gesto ú til,
e o insucesso a supressão do gesto nocivo. É assim

68
que o animal colocado num labirinto acaba por evitar
os impasses.
Numa outra experiência de aspecto totalmente dife­
rente, a criança que deve reagir a cada urna das pala­
vras enunciadas diante dela através de um algarismo da
sua escolha retém, de preferência, as associações arbi­
trárias que tiveram uma aprovação do experimentador.
Nas condições normais da vida, são muitos os casos
em que o efeito pode desempenhar o seu papel. Umas
vezes é imprevisível e inopinado, outras esperado e pre­
visto. Acontece muitas vezes que a criança pára, sur­
preendida por um dos seus próprios gestos, de que só
parece aperceber-se depois das suas conseqüências. É a~| n >■«-“r
у .<•' <?'<
mudança ocorrida no seu campo de actividade ou de / 0
percepção que parece fazer-lhe descobrir, e depois repe- j
t ir, o movimento que lhe está na origem. O vivo despertar
da sua curiosidade por tudo o que é novidade leva-a
a este retorno à sua própria actividade. Retorno, aliás,
de tal modo espontâneo que se produz igualmente quando
o efeito é de o n g ^ je s tra n h a . Quantas vezes o próprio
adulto não é tentado a verificar, acentuando uma ati-
tude ou um gesto, se não é ele o autor do ruído ou do
movimento que detecta à sua volta! Tudo o que pertence
a um mesmo momento da nossa consciência parece
participar numa mesma existência indivisa, e é apenas
pelo exercício da nossa actividade que é possível dis­
tinguir o que não depende dela.
Outras vezes, o efeito produzido era esperado. Umas
vezes previsto, outras imprevisível. Provocar um efeito
conhecido é uma das ocupações preferidas do bebé. Mui­
tas vezes até o faz com uma tal monotonia fatigante que
dá a impressão dum prazer ligado não ao efeito p arti­
cular de que ele é autor, mas ao simples facto de ser au-/;
tor de um efeito. Й a função do efeito na sua forma pura.!
Noutros casos, pelo contrário, age para ver o que
vai produzir a sua acção. É então a diversidade dos
efeitos possíveis que parece suscitar o seu interesse.
E sta procura, porém, está dominada pela certeza, de

69
algum modo natural e necessária, de que a sua acção
deve te r um efeito, de que não há acção sem efeito.
Na realidade, a distinção entre o efeito e a acção não
é mais que uma simples abstracção. Em toda a acção
há alguma coisa que é o seu conteúdo, a sua ocasião,
o seu objectivo. Toda a acção se mede pelas mudanças,
quer subjectivas quer objectivas, que provoca ou pro­
cura provocar.
#

O mecanismo psicológico do efeito tem sido muito


discutido. Segundo Thorndike, o acto e o efeito são
termos primitivamente distintos. Se o rato colocado num
labirinto acaba por tomar, sem erro, a direcção exacta,
é porque entre esta direcção e os seus passos se formou
uma conexão cuja origem é a insatisfação sentida nos
impasses e a satisfação duma livre progressão no cami­
nho certo. Para unir os dois termos é portanto neces-
sária
*» a- ___—
intervenção
—— "*• 1I—■dum factor afectivo.
Do mesmo modo, na prova dos números pelos quais
a criança deve reagir às palavras enunciadas diante
dela, é a satisfação de ter acertado que a fará reter
as respostas aprovadas pelo experimentador. Também
aqui se encontram dois termos primitivamente distintos
e uma conexão de origem afectiva. Associacionismo e
utilitarismo ou hedonismo, duas doutrinas tantas vezes
complementares, colaboram também aqui para a ex­
plicação.
Mas as objecções têm sido numerosas, incidindo em
primeiro lugar sobre a noção de conexão. Que significa
ela exactamente? Que fundamento fisiológico ou psico­
lógico se lhe pode dar? Como pode^uma satisfação
ulterior influir na repetição dum acto que a^precedeu?
A crítica mais radical é a que inspirou a psicologia da
Gestalt. Pode-se falar de conexão entre termos que não
têm existência definida, fixa ou distinta? Quais são,
com efeito, esses gestos e essa situação que se procura
unir? Os gestos ou o comportamento dum rato fechado

70
numa gaiola, donde procura sair, são duma extrema diver­
sidade, transformam-se, fazem v a r i a r campóle a estru-
tur^JlajTercepslQ, isto é^jlajútuaçãp, e variam com ela.
Mesmo quando a experiência é construida de maneira
a lim itar os possíveis gestos, a deixar, por exemplo,
a alternativa da escolha apenas entre duas direcções
no labirinto, a semelhança assim realizada entre os
gestos repetidos não é senão aparente.//N a^en tram .
nos^vestígios jins^ dos,jjutros. Não existe vestígio q u e i w '1'',
não faça parte dum xonjunto que se organiza ao mesmo
tpmpn que a acção se desenvolve ejiue, por consequên-
¡cia, não seja diferente de uma fase para outra. Um frag ­
mento do comportamento não tem nenhuma individua­
lidade, não tem significado senão no comportamento
e através do comportamento de que faz parte. Uma
«pertença» comum une os termos entre os quais se tenta)
estabelecer urna conexão extrínseca, depois de terem
sido arbitrariamente dissociados e isolados. Fazem parte
de um conjunto que Ч ет a sua estrutura.
O princípio desta estrutura, desta pertença mútua, v\J?-';
pode ser, segundo Koffka, de natureza muito diversa.
A unidade que daí resulta será, segundo os casos, de uma
exacta conveniência entre os próprios gestos na execução
mais minuciosa, mais rápida, mais económica, de um mo­
vimento, (ou ajle uma perfeita coerência com a situação, II
comj ) , efeitn esperado. Pode também consistir em sim­
ples relações de proximidade no t«npo_jjn_no-espaço.
Isso eqüivaleria a voltar ao velho princípio associado-,,
pista da continuidade. Mas a ligação de qué se trata"
já não se opera como que automaticamente, não tem
a sua razão suficiente no espaço ou no tempo, depen­
dendo antes do poder que tem a unidade para extrair
daí a sua organização. No entanto, talvez o problema
tenha sido posto de maneira demasiado formal e as
soluções possuam algo demasiado estático. O exemplo
da criança pode m ostrar toda uma hierarquia de efeitos
em função dos quais se organiza a acção.

71
: O Os mais primitivos são os efeitos mais subjectivos.
0 gesto pode encontrar na sua própria realização, na
sua cadência, no seu ritmo, na sua facilidade, no pre­
ciosismo dos seus pormenores, o efeito que o estimula
e que o dirige. É essa uma fonte abundante de actividade
para a criança de tenra idade e para certos idiotas.
'O efeito pode também resultar do acordo entre uma
atitude e) o gesto correspondente. Em quantos dos seus
divertimentos espontâneos parece aplicar-se a criança
a dissociar uma do outro, repetindo-a, prolongando-a,
depois deixando fugir o gesto, propositadamente ou como
que de improviso! Parece querer brincar com as suas
relações. Mas os termos que elas unem não são, como
na hipótese associacionista, primitivamentg ¿isj¿ptos; a.
sua unidade é intrínseca, não faz mais do que sobreviver
ao desdobramento a que precedia.
um nível mais elevado, o efeito pode ser de origem
externa, embora incorporando-se ao gesto. Uma peque-
nita de um ano puxa a toalha da mesa, que o pai tem que
apanhar para impedir que caia para o chão. Ã segunda
vez, ele coloca a mão em cima da toalha e segura-a,
depois de a criança ter já puxado um pouco. Esta pára,
admirada, e depois recomeça, mas limita o seu gesto
à ligeira deslocação anterior, e recomeça assim por diver­
sas vezes. O gesto, em vez de continuar a sua maior ampli­
tude, como inicialmente, prossegue, pois, um efeito cuja
causa inicial era uma resistência estranha. Mede-se a si
mesmo e substitui à força anteriormente dispendida a que
é justamente necessária para reencontrar uma limitação
que tinha primeiro causado surpresa. Também aqui não
é extrínseca a unidade entre o acto e o efeito. É uma
modificação do gestQ realmente experimentada que se
torna o regulador e que passa a ser assim o intermediá-
rio entre ele e uma circunstância^ exterior.
(4)0 efeito pode ainda unir dois domínios diferentes
da actividade. Como já muitas vezes tinha acontecido
sem suscitar qualquer espécie de interesse, a mão da
criança passa no seu campo visual. Mas agora ela fixa-a

72
com o olhar, mantém-na imóvel, depois afasta-a, depois
volta a aproximá-la e, durante algum tempo, este torna-
-se o seu exercício preferido. Sem dúvida um gesto for­
tuito foi o seu ponto de partida. Mas não pôde repetir-se
com vista à reprodução do efeito senão no dia em que
se tornou jo s sív e l uma, coordenação entre a actividade
do campo visual^êla dos movimentos voluntários. //
É esta nova unidade interfuncional, evidentemente
ligada à maturação de centros nervosos, que a criança
descobre e que se põe a explorar. Assim, as ligações
que ela reconhece e que estabelece não reúnem elementos1
sem relação entre si. Elas não fazem mais~que utilizar
montagens disponíveis. Mas são igualmente susceptíveis
de se multiplicarem e de se diversificarem mais ou me­
nos, conforme as circunstâncias e a sua utilização.
Do mesmo modo, a aptidão para perceber e para
realizar no espaço ou no tempo não só relações de
contiguidade, como indica Koffka, mas também confi­
gurações, durações, ritmos, encontra-se sem dúvida na
base. de muitjis ajjrendizagens. A do labirinto não se faz
de esquina em esquina, por unidades distintas, mas como
um esboço do conjunto modificado de prova para prova.
É de uma sucessão qualitativa que emergem em seguida)
as unidades, e não de unidades simplesmente justapôs- j
tas que resulta a aprendizagem do trajecto correctoJ
Direcções e distâncias fundem-se numa espécie de todo
dinâmico cujo seguimento guia o animal. Q efeito não
é exterior ao acto. Ele é em cada momento e sim ulta-
nea.mente ó resultado e o regulador.
A união do acto e do efeito pode ainda não ter por
fundo um plano funcional, mas associar circunstâncias
ou objectos cuja união é contingente, arbitrária, e que
depende unicamente da actividade que os combina. É um
caso semelhante que Thorndike quis realizar com a sua
prova palavra-algarismo. Mas também aqui, por mais
■discordantes que pareçam, os dois termos não se ligam
posteriormente. Estão já ligados em potência pela apre­
sentação do enunciado, pelo tema da experiência, pela
expectativa que ela suscita, pela conclusão que implica.
A palavra indutora cava um vazio que o algarismo vem
preencher, mas apenas a título provisorio. Se não for
determinado pela aprovação esperada, não é de su r-
preender que ele desapareça. Ё urrT"único acto continuo,
que se desenvolve entre as duas intervenções inicial e ¡
terminal do experimentador, intervenções complementa­
res uma da outra. A resposta do sujeito é tão solidária
duma como da outra. Sem a segunda, a operação fica
inacabada e não deixa vestígios.
Sem dúvida, a satisfação de ter acertado é, segundo
Thorndike, o que se acrescenta ao duo algarismo-palavra
para o ligar. Tolman, porém, mostrou que em certos
casos um resultado semelhante pode ser obtido por uma
desaprovação, que é também uma espécie de conclusão.
O que é essencial é que o acto tenha completado o seu
ciclo e que a expectativa tenha encontrado o seu objecto.
( Uma impressão desagradável, um sofrimento, pode, ta l
\ como um ..prazer, satisfazê-la e dar-lhe um significado
I importante. Ela pode ser o índice do que procuramos ou
daquilo que queremos evitar. Neste caso, é mesmo muitas
vezes desejada. Integra-se em muitas das nossas acções
como um estimulante, como uma advertência, como
um ingrediente necessário ou habitual, cuja existência
por vezes temos necessidade de verificar a todo o custo.
O sofrim ento é um efeito entre muitos outros, sobre, os
quais se pauta a nossa actividade e que sp.rvem_.para lhe
fixar os resultados.
Desde as impressões que acompanham o exercício
duma função até aos critérios. gue.regulam a realização
duma tarefa, aquilo a que se chamou a TeT~do efeito\
a\argou consider a velment e o domínio^aquelas reacções
circulares que são o princípio dos primeiros exercícios
espontâneos aos quais se entrega a criança de tenra
idade, No campo das experiências possíveis, ela suscita
os seus actos de investigação e de aquisição concretas.
jF á-la prosseguir, de etapa em etapa, um perpétuo tra-
¡'balho de identificação funcional e objectiva.

74
C A P IT U L O V

O JOGO

Diz-se que o jogo é a actividade característica da


criança; e porque muitas vezes põe nele uma aplicação
extrema, alguns autores, como W. Stern, chamaram aos
jogos da criança jogos a sério. O jogo seria, segundo
a Sr.a Ch. Bühler, uma etapa da sua evolução total,
a qual se decomporia também em períodos sucessivos.
Efectivamente, confunde-se facilmente com toda a sua
actividade, enquanto esta se mantém espontânea e não
recebe o seu objecto das disciplinas educativas. Na pri­
meira fase, estão os jogos puramente funcionais, depois
os jogos de ficção, de aquisição e de fabricação.
Os jogos funcionais podem ser movimentos muito
simples, como estender e dobrar os braços ou as pernas,
agitar os dedos, tocar os objectos, imprimir-lhes balan­
ceamentos, produzir ruídos ou sons. É fácil reconhecer
aqui uma actividade à procura, de jd e jtos, aliás ainda
elementares, dominada por aquela 'lei do efeito) que tem,
como vimos, uma importância fundamental para prepa­
ra r a utilização ajustada, cada vez mais apropriada e
mais diversa dos nossos gestos.
Com os jogos de ficção, cujo tipo é brincar com a
boneca, montar um pau como se fosse um cavalo, etc.,
intervém uma actividade cuja interpretação é mais com-

75

^ j plexa, mas que está também mais próxima de certas


"a" definições melhor diferenciadas que têm sjdo propostas
f’ ; : do jogo.
<) ■ Nos jogos de aquisição, a criança é, segundo uma
expressão corrente, toda olhos e toda ouvidos; observa,
escuta, esforça-se por perceber e compreender: coisas
e seres, cenas, imagens, contos, canções, parecem captá-la
totalmente.
Nos jogos de fabricação, diverte-se a reunir, com­
binar, modificar, transform ar objectos, e a criar novos.
Longe de serem eclipsados pelos jogos de fabricação,
a ficção e a aqmsição têm aqui, muitas vezes, o seu
papel.
Porque é que se deu a estas diversas actividades o
nome de jogo? Evidentemente por assimilação do que
o jogo é para o adulto.
Ele é, antes de tudo, lazer e por isso opõe-se à acti-
vidade séria que é o trabalho. Mas este contraste não
pode existir para a criança, que ainda não trabalha e para
quem o jogo constitui toda a actividade. Convém, no
entanto, examinar se a actividade que distrai não tem
alguma semelhança com a da criança.
Ь O jogo não é essencialmente o que não exige esforço,
- por oposição ao labor quotidiano, porque o jogo pode
exigir e fazer libertar quantidades de energia muito mais
consideráveis do que as necessárias para uma tarefa
obrigatória: estão neste caso certas competições despor­
tivas ou mesmo alguns actos realizados isoladamente,
mas livremente. Do mesmo modo, o jogo não utiliza
apenas as forças deixadas sem emprego pelo trabalho.
/’Em particular, nem sempre se tra ta de restabelecer
, o equilíbrio entre aptidões desigualmente nostas à urova:
exercícios motores depois do trabalho intelectual ou no
jtrabalhador intelectual; distracções intelectuais depois
'de um trabalho manual ou no trabalhador manual. Por­
que o hábito das ocupações intelectuais pode, pelo con­
trário, desenvolver o gosto pelas distracções intelectuais,
e a aplicação continuada aos gestos profissionais sus-

76
citar a inclinação pelos desportos. Depois de um trabalho
intelectual, a distracção pode ser um jogo de azar;
depois de um trabalho de esforço físico, uma leitura
nem sempre serve de distracção. Pelo contrário, uma
leitura mais difícil pode eve: eventualmente servir de dis-
tracção em relação a outra, desde que não tenha, como
esta, que se integrar num trabalho, e que seja uma
leitura à margem das tarefas a realizar.
Não há actividades, por mais árduas que sejam, que *
não possam servir de motivo para o jogo. Muitos jogos
têm em vista a dificuldade, mas é preciso que esta seja
considerada em si mesma. Os temas que o jogo se propõe
não devem ter razão fora de si mesmos. Pôde aplicar-se
ao jogo a definição que Kant deu da arte: «uma fina-y
lidade sem fim», u ^ ^ ^ a liz a ç tQ -^ l^ jíã p ^ n d e ^ a j^ a il^ á r
nada jaara^além dejyjnesm a. Desde que uma actividade
ií3•-./(,
se torne utilitária e se subordine como meio a um fim,
perde o atractivo e o carácter do jogo. о
Com esta definição concorda a distinção que Janet
3ANET
fez entre a actividade realista ou prática e a actividade
lúdica ou actividade de jogo. Adaptar a sua conduta às
circunstâncias, de maneira a obter resultados conformes
a uma necessidade, quer exterior quer intencional, pres­
supõe, segundo Janet, a intervenção do eme ele chama
a «função do real», sem a qual não existe uma acção
verdadeiramente completa. Por mais simples que seja, »■<■v
esta acção exige um grau de «tensão psíquica» que não
existe, numa acção mesmo muito mais complexa, mas
inadaptada, e com maior razão numa acção que não tem
outro obiectivo nem outra condição^ senão ela própria.
Há momentos em que tais actos são os únicos que o
sujeito consente. Existem casos de astenia psíquica em
que o doente não pode executar outros. Apresentam uma
forma degradada da actividade, mas também um estado
de repouso no exercício das funções psíquicas, que explica
o caracter recreativo do jogo.
A oposição entre a actividade lúdica e a função do
real pode mostrar em que sentido a actividade da criança

77
se assemelha ao jogo. Pela função do real, os actos inte­
gram-se no conjunto das circunstâncias que ós tornam
eficazes: circunstâncias externas, que lhes permitem
inserir-se no curso das coisas, para o modificar; circuns­
tâncias m entais, que fazem com que eles sirvam para
a consecução dum fim, duma conduta, para a solução
Иdum problema. A distinção é. aliás, apenas provisória.
Porque o lugar, os meios e o termo de toda a realização
l)só podem existir, afinal, no mundo exterior. Mas o cir­
cuito das operações — ou a série das integrações — que
aí conduzem podem ser mais ou menos longos, mais ou
menos desenvolvidos, estando as operações mentais mais
elevadas ligadas à função dos centros nervosos supe­
riores, aos quais são integradas as funções de nível infe­
rior, começando pelas próprias funções vegetativas.
A comparação das espécies na sua série evolutiva,
assim como o desenvolvimento individual do sistema
nervoso em cada espécie, mostram que existe uma suces­
são na formação das estruturas anatómicas que tomam
possíveis as manifestações de actividade, desde as mais
imediatas ou mais elementares até àquelas cujos motivos
pertencem ao domínio da representação concreta ou sim­
bólica e das suas combinações. A ordem pela qual se
completa a estrutura dos centros nervosos eleva à matu­
ração as funções correspondentes, reproduz a do seu
aparecimento na escala das espécies. As mais primitivas
integram-se progressivamente nas mais recentes e per­
dem assim a sua autonomia funcional, isto é, o poder
de se exercerem sem controlo.
Mas o período que se segue à sua maturação e que
precede a dos centros aos quais deverá estar sujeita
a sua actividade é um período de livre exercício. Pro­
visoriamente isoladas, estas funções não correspondem
ao plano de actividade eficaz que é agora o da espécie.
Por isso, as suas manifestações têm algo de inúül^^e^de
p;çatuitq. Parecem não ter qualquer finalidade fora de
si próprias. E é assim que elas podem lembrar os jogos
do adulto.

£ ' wcm) o. ^
лсл/в. /i Ch. J1&L0
<0 0}<РVъР‘ , '1 . J/btwhl '<■
Efectivamente, as etapas seguidas pelo desenvolvi­
mento da criança são m arcadas, uma a uma, pela explo­
são de actividades que, por algum tempo, parecem absor­
vê-la quase totalmente e das quais a criança não se
cansa de tira r todos os efeitos possíveis. Elas assinalam у
a sua evolução funcional e alguns dos seus traços pode-^
riam ser considerados como uma prova para descobrir í (■■■)
ou medir a aptidão correspondente. Alguns jogos aos l
quais a colaboração entre crianças ou a tradição deram
uma forma bem definida, poderiam servir de testes.)
De idade para idade, eles assinalam o aparecimento das
mais diversas funções. Funções sensório-motõrãs^ com
as suas provas de destreza, de precisão, de rapidez,
mas também de classificação intelectual e de reacção
diferenciada como o piqecm-uofe^^ün~gõe~s~ldê Irticulaçad ,
de memória verbal e de enumeração como essas canti­
lenas ou pequenas fórmulas que as criancinhas aprendem
umas com as outras com tanta avidez. Ou ainda [funções
de sociabilidade} nos jogos que opõem equipas, clãs, ban­
dos, nos quãlsT os papéis são distribuídos tendo em vista
a colaboração mais eficaz para a vitória comum sobre
o adversário.
A progressão funcional que marca a sucessão dosj
jogos durante o crescimento da criança é regressão nof
adulto, mas regressão consentida e, em certa medida,j
excepcional. Porque o que existe é a desintegração global
da sua actividade face ao real. Ё entre elas que muitas
vezes o jogo liberta as actividades. O bem-estar que subi­
tamente provoca é o de um período em que nada mais
vai contar para além das incitações, quer íntimas quer
exteriores, relacionadas com o exercício de aptidões habi­
tualmente reprimidas, talhadas segundo as necessidades
da existência, com a conseqüente perda da sua fisio­
nomia, do seu sabor original. Supõe certamente, a res­
peito das tendências e hábitos utilitários, um poder de
adormecimento, em estado de resolução funcional que
não é o mesmo para todos nem em todos os instantes.
Não sabe brincar quem quer, nem quando se quer.

79
É preciso disposição e por vezes uma aprendizagem ou
uma reaprendizagem. Se a companhia das crianças pode
ser tão repousante, é-jo rq u e ela faz voltar o adulto
a actividades desligadas entre si e despreocupadas.

O que acabamos de ver sobre as relações que o jogo


mantém com a dinâmica e a gênese da actividade total
dá-nos uma ideia das contradições que se observam nas
suas definições e também na sua realidade.
Enquanto para Janet ele é uma forma de actividade
" f , degradada, Herbert Spencer considerava-o o resultado
duma actividade superabundante, de que as tarefas cor­
rentes não teriam podido esgotar todas as reservas.
Facilmente se objectou que muitas vezes ele sobrevêm
em momentos de cansaço em que se tornaria custosa
qualquer ocupação séria e útil; seria por conseguinte
o jogo uma manifestação de esgotamento, pelo menos
relativo.
No entanto, a actividade «lúdica» que Janet descreve,
na psicastenia, como efeito de uma voltagem demasiado
baixa para produzir um acto que esteja ao nível das
circunstâncias reais, está bem longe de ser assimilável
ao jogo. Em certos aspectos, é mesmo o inverso. Acom­
panhada muitas vezes de angústia, não tem a sua influên­
cia tónica e não merece, de modo algum, como ele, o nome
de distracção.
O jogo é, sem dúvida, uma infracção às disciplinas
ou às tarefas que a todo o homem impõem as neces­
sidades práticas da sua existência, a preocupação da sua
situação, da sua personagem. Mas, bem longe de ser
a negação ou a renúncia dessas necessidades, o jogo
pressupõe-nas. É em relação a elas que é apreciado como
um período de repouso e também como um recobrar de
energias, porque, livre das exigências de tais actividades,
o-jogo é o livre inventário e a manifestação destas ou
daquelas disponibilidades funcionais. Só há jogo se exis­
tir^ a satisfação de subtrair momentaneamente o exer-

80
rício_duma função às imposições ou às limitações qug
normalmente ela. experiment*1 r1p gH-ividarigs de certo
modo mais responsáveis, isto é, que tem um lugar mais
eminente nos comportamentos de ach p its^
f^s^gp/Q ^aojngip^qçi^ A desintegração passageira su-i
põe a integração habitual.
Daqui resultaria que todos aqueles «jogos» das crian­
ças, que são a primeira explosão das funções mais recen­
t emente aparecidas, não poderiam ser chamados jogos,
dado que não existe ainda aquela que poderia integrá-las
em formas superiores de acção. E o que distingue efec­
tivamente o jogo dos mais novos é que, sendo esta toda
a sua actividade, f a l t a d h e ^ ^ No
entanto, esta actividade tende a superar-se a si própria.
Toda a paragem no desenvolvimento, que a fixa nas
mesmas formas, substitui o jogo por estereótipos que
dão ao comportamento do idiota a mesma monotonia
de comportamento do psicasténico, e ao seu humor o
mesmo aspecto de obsessão e de obstinação tristonha.
O jogo da criança normal, pelo contrário, assemelha-
-se a uma exploração jubilosa ou apaixonada, que tende.
a experimentar a função em todas as suas possibilidades.
Parece arrastada, por uma espécie de avidez ou de
atracção, a atingir os limites dessa função, isto é, o ins­
tante em que já não faria mais que repetir-se, a menos
que se integrasse numa forma superior de actividade,
cujo aparecimento ela própria torna possível, alienando
a sua autonomia. Como todo o desenvolvimento pressu­
põe etapas ulteriores, estas desempenham na criança
o mesmo papel que, no adulto, as actividades a respeito
das quais, por uma espécie de retrocesso, o jogo pode
momentaneamente libertar o exercício das funções to r­
nadas escravas pelo seu uso habitual.
Esta manifesta? relação dos jogos com o desenvolvi­
mento das_g,ptidões na criança,-el com a sua hierarqui-
zação funcional no adulto inspirou jjj^a^^te^pias, de sen­
tido contrário, que procuram explicá-los pela evolução,
uma invocando o passado e a outra o futuro.

81
6
Segundo Stanley Hall, eles seriam, de idade para
idade, a revivescência das actividades que ao longo das
civilizações se sucederam na espécie humana. Os ins­
tintos de caça ou de guerra, por exemplo, teriam o seu
lugar exacto no crescimento psíquico da criança, levando
mesmo à reinvenção de técnicas primitivas, como as da
funda ou do tiro ao arco.
E-Porém, a chamada reprodução da filogénese pela
ontogénese, que não deixa de apresentar dificuldades,
aplicada à simples sucessão das formas anatómicas no
embrião, torna-se ainda m uito mais inverosímil se se
tra ta de assimilar às etapas da civilização aquelas que
0 seu desenvolvimento espontâneo faz percorrer aojjsi-
quismo da criança. Porque o traço de união deveria ser
necessariamente biológico. Seria mesmo necessário admi­
tir, com a hergditapigfLade,dos caracteres adquiridos, que
está longe de se encontrar demonstrada,
complexos, em que estariam implicados^ao mesmo tempo
que os gestos, os instrumentos que lhes. correspondem,
Mas, ainda que o organismo fosse capaz de fixar seme­
lhantes combinações, como é que a sua estabilização
biológica não seria um obstáculo à renovação muitas
1vezes rápida das técnicas, sem a qual não haveria histó-
jria humana? 0)
Na realidade, esta hipótese de uma recapitulação au­
tomática por parte da criança das épocas vividas pelos
seus antepassados procede da velha confusão entre o bio­
lógico e o social, que conduz à representação do com­
portamento do indivíduo como a conseqüência imediata
e, de certo modo, mecânica da sua constituição psicofi-
siólógica. Ora. é mevitavelmente o meip que_.imj>Qe à
actividade de um ser os seus meios, os seus objectos,
,, - ■, . os seus temas, e, quando se tra ta do homem, o meio
social sobrepõe-se ao meio natural para o transformar
iuw iJfT'i'M de idade para idade, substituindo-o totalmente. Quanto
mais nova é a criança, isto é, quanto mais necessita de

(’) Ver a 1.* Parte, Сар. П.

82
cuidados, mais estritamente depende dele. Toda a seme­
lhança autêntica entre os seus jogos e as práticas duma
outra época não poderia, portanto, ter por origem senão
uma daquelas tradições, cuja lembrança o adulto pode ter
perdido, mas cuja transmissão entre crianças é tão per­
sistente quanto subtil. ^
Mais frequentemente ainda, segundo parece 0 ), esta
semelhança tem por origem a u xlfL.

conforme as possibilidades e as sugestões que oferecem


às possibilidades motoras, perceptivas, intelectuais, do
sujeito.
Este poder de combinação instrumental determina,
aliás, grandes diferenças entre as espécies animais, aper­
feiçoa-se com a idade da criança, varia com as suas
aptidões individuais. Em igualdade de níveis mentais,
não é para admirar que as mesmas combinações se repi­
tam em presença das mesmas situações e das mesmas
realidades, e que dêem lugar a «estruturas» de certo
modo específicas entre a actividade e o obiecto. por uma
espécie de indução ou de criação recíprocas. Quant os
jogos, que aliás as crianças aprendem umas com as
outras, se explicam pela simples necessidade de invadir
o^jniyidq^çjjtgrqpr, a fim de irem buscar a ele os meios
para os seus próprios meios e assimilarem dele partes
cada vez maiores.
E sta incitação directa e constante do meio sobre
todas as veleidades da criança não poderia deixar de
reduzir os vestígios das acções ancestrais, se elas tives­
sem efectivamente tendência para se reproduzirem por
si próprias. A indispensável economia dos instantes e das
forças faz com que o passado inútil desapareça diante
do presente, tanto mais completamente quanto maior for
a margem dos progressos possíveis na espécie humana.(*)

(*) Ver a 3.“ Parte, Cap. X.

83
Mas explicar-se-á o progresso pela simples acção do
presente, não podendo ser arrastado para o futuro por
uma série de antecipações? Para aquela espécie de pro­
gresso que faz sair o adulto da criança segundo um ciclo
que regula um estrito encadeamento de condições fisio­
lógicas, a hipótese é possível. Assim, os jogos seriam
a prefiguração e a aprendizagem das actividades que
devem impor-se mais tarde. São diferentes, no rapaz
e na rapariga, segundo as características dos papéis que
os esperam. Eles estão, sem dúvida, já dominados pela
diferenciação que se observa ao mesmo tempo na mor­
fología e no comportamento de um e de outro. Sabe-se
que essa diferenciação depende das influências de hor­
monas, que são diferentes segundo o sexo, e já se pude­
ram mesmo observar, em certas épocas que precedem
de longe a maturidade sexual, sinais de actividade das
glândulas genitais. Os pressentimentos funcionais e as
antecipações de instinto em relação à data da sua ver­
dadeira eficiência explicar-se-iam, portanto, sem difi­
culdade. No entanto] as tradições e os costumea podem
também contribuir para opor os jogos dos rapazes aos
das raparigas numa medida que é difícil avaliar. Mesmo
com uma educação perfeitamente semelhante, poderia
ainda subsistir entre eles a diferença das ocupações
cjdomésticas e, sobretudo, o exemplo dos adultos, sobre
1 o qual cada um, segundo o sexo, decalca as suas pre­
visões para o futuro e a sua orientação mental.
Inspirando-se, para interpretar os jogos, nos mesmos
princípios evolucionistas que as teorias da recapitulação
e da antecipação funcional, a teoria de Freud contradi-las
nas suas aplicações. O instinto sexual ou libido, seja qual
for o seu suporte biológico, imporia as suas exigências
desde o nascimento. Porém, antes de se poder fixar no
seu verdadeiro objecto, que está em relação com a matu­
ração das funções genitais e com o acto da reprodução,
as suas fixações obedeceriam à determinação combinada
das sensibilidades características de cada etapa do desen­
volvimento individual, e de influências que remontam ao
mais longínquo passado da espécie. Enquanto os objec­
tives funcionais da sexualidade exigem que a criança
se desligue a pouco e pouco dos objectos provisórios a que
se afeiçoou, os «complexos», nos quais sobrevivem situa­
ções ancestrais, tendem a fazê-la reter as fixações que
se relacionam com eles. O conflito pode tom ar-se tanto
mais grave quanto menos confessado for o complexo pela
consciência e quanto mais censurado e recalcado for, por­
que em oposição escandalosa com a moral. Este recalca-
mento não pode suprimir o libido; ^Ijpjga^p^apepasj i dis-
fai^arxse^ Ao lado das manifestações neuróticas ou psi­
copáticas, e dos sonhos, os jogos são um destes disfarces.
Em vez de serem, como nas teorias precedentes, uma /
expressão da função, os Jog o s s ã o a p te s ^ q m a ^ íp á ^ j^ j
A sua utilidade consistiria em operar, através dessas
satisfações desviadas, uma verdadeira catarse. As situa­
ções que eles oferecem às demonstrações do libido são
de natureza a não assustar ninguém. Substituindo-as ao
seu objecto verdadeiro, eles dão-lhe no entanto a ocasião
de se manifestar e de se exprimir. É evidente que esta
transferência lhe evita as conseqüências reais, mas temí­
veis. Conserva-lhe, todavia, o seu significado, que, apesar
de inconfessado, não deixa de estar ainda mais apto para
suscitar, diversificar e satisfazer as necessidades duma
sensibilidade ávida de se experimentar e de se conhecer.
Opera-se assim a passagem da realidade à sua imagem
por intermédio de figurações mais ou menos tra n s­
parentes.
O maior mérito desta teoria é, sem dúvida, o de
chamar a atenção para o que há de ficção no jogo.
Com a ficção, introduz-se na vida mental o uso de simu­ IK/píclC 1
lacros, que são a transição neçessária.enfre. o indício, \y
ainda ligado à coisa, e o símbolo, sugorte. daA pqras \

combinações intelectuais^ Ajudando a criança a transpor V


este limiar, 0 jogo desempenha um papel importante
|na sua evolução psíquica. /,

85
Se estas diversas teorias não dão uma explicação
satisfatória do jogo, não é por causa das suas contra­
dições. mas das suas premissas contestáveis e das siste-
^ matizações demasiado fragmentárias que provocam.
T/ O jogo resulta do contraste entre uma actividade liber-
tada (e) aquelas em que normalmente ela se integra,
prl j Ё entre oposições que ele evolui, e é superando-as que
I se realiza.
Acção que se liberta das suas sujeições habituais,
o jogo depressa se perderá em repetições monótonas
e fastidiosas se não se impuser regras, por vezes mais
iP
■)£> estritas que as necessidades às quais ele se esquiva.
rA À sua fase puramente negativa deve, pois, suceder uma
pi](л outra, que restaure o que tinha sido abolido, mas dando
um outro conteúdo à actividade, um conteúdo puramente
funcional. Porque são habitualmente dificuldades que as
suas regras suscitam, dificuldades tiradas das próprias
funções às quais o jogo faz apelo. Em vez de quaisquer
obstáculos devidos às circunstâncias, são dificuldades
escolhidas, específicas, que é preciso resolver por si
mesmaa_.e já não sob a pressão dos acontecimentos,
do interesse. No entanto, este carácter gratuito da obe­
diência às regras do jogo está longe de ser absoluto,
definitivo; a sua observância pode ter por efeito a supres­
são do jogo que elas foram feitas para alimentar; por­
que se é verdade que o seu significado procede da acti­
vidade que elas regulam, elas podem também, inversa­
mente, contribuir para lhe retirar o seu carácter de jogo.
É assim que a sua dificuldade, se inspira mais o temor
do insucesso do que o gosto de triunfar, inflige à ideia
de esforço um aspecto de necessidade que repele, que
sufoca, o livre entusiasmo do jogo e o prazer que a ele
está ligado. Podem as regras também dar a impressão
duma necessidade exterior, quando elas são o código
imposto por todos a cada um, nos jogos em comum.
A criança, que distingue ainda mal entre a causalidade
objectiva e a causalidade voluntária, entre as obrigações

86
inevitáveis e as consentidas, faz muitas vezes os possíveis
por se subtrair a elas, fazendo batota. Em boa lógica,
corta assim o jogo pela raiz e nega-o no seu princípio.
Na realidade, tende somente a deslocá-lo, substituindo
um objectivo por outro. Mas, de facto, a sua tentativa
de fru strar a vigilância dos seus companheiros desperta
neles o espírito de contenda, pelo que as regras recebem
imediatamente um carácter oposto ao que o jogo exigiria.
Tomam um rigor absoluto e formalista, um aspecto de
constrangimento, que são o inverso da incitação que as
mesmas deveriam ser para acções plenamente livres no
campo de funções nitidamente qualificadas. O resultado
é convincente: ruptura entre os jogadores, descontenta­
mento recíproco. O jogo transformou-se no seu contrário.
A batota, que é tão freqüente, tão espontânea, sobre­
tudo nas crianças, que não pode deixar de estar ligada
ao jogo por laços essenciais, põe também a questão do
êxito. Também aqui há oposições. O jogo, que natural­
mente pretende ser um esquecimento momentâneo dos
interesses prementes da vida, não tarda contudo em esmo­
recer se não intervier a esperança do êxito. Por esta
razão, segundo Janet, ele seria um tónico, por ocasionar
êxitos fáceis, ao contrário da realidade. Efectivamente,
não é a sua facilidade que parece estar em causa; quanto
mais difícil é o triunfo maior é a sua força tonificante;
e em muitos jogos a dificuldade é intencionalmente au­
mentada para aumentar o entusiasmo. Porém, a vanta­
gem assim procurada é diferente das vantagens reais;
é-lhes mesmo oposta. Ãs suas conseqüências duradoiras
e globais, que consagram superioridades efectivas, mas
por vezes sem títulos suficientemente convincentes, ele
substitui o êxito puro, o efeito imediato do mérito ou da
sorte, de um certo mérito ou de uma certa sorte, o qual
não lhes sobrevive. Ag supremacias habituais, por exem­
plo as da fortuna ou da^autoridade, são provisoriamente
postas em questão pelo j ogo, que ainda a este respeito
se pode considerar libertador.

87
Mas, para ser completo, um triunfo deve fazer-se
experimentar, fazer-se conhecer. Daí os^çeguenos favores
que muitas vezes lhe estão associados. Muitas vezes pura­
mente demonstrativos e simbólicos, podem também con­
sistir num benefício eventual que pode estimular o prazer
do jogo, por ser incerto, excepcional ou um pouco ines­
p erad o . Mas pode também extingui-lo, se é procurado
ijpor si mesmo e entra no domínio dos interesses da vida
llprática.
É para evitar que os resultados ou as manifestações
do jogo se situem, pela sua grande probabilidade ou pela
sua forma demasiado previsível, entre as coisas que per­
tencem ao domínio da vida normal, que desde sempre
o acaso lhe foi associado. As regras do jogo são muitas
vezes a organização do acaso e compensam assim o que
o simples exercício das aptidões poderia ter de demasiado
r egular.__e__.de- demasiado monótono.
O acaso é o antídoto do destino quotidiano e contri­
bui para dele subtrair o jogo. Mistura assim aos praze-
res funcionais um certo sabor de aventura. Porém, se
a sua parte se exagera ou se se mantém isolado, mais
uma vez o jogo é suprimido, não conhecendo o jogador
senão a angústia da espera. Jogar corn as suas emoções,
excluindo qualquer outra actividade física ou intelectual,
é talvez um jogo, mas duma espécie particular e que se
aparenta mais., às toxicomanías do que às alegrias fun­
cionais.
A ficção faz naturalmente parte do jogo, pois ela
ficCA'7 é o que se opõe à crua realidade. Janet mostrou muito
t bem que a crianca não se ilude com os simulacros que
■<pC-Q utiliza. Se, por exemplo, brinca às refeições com pedaços
de papel, sabe muito bem, ao baptizá-los de iguarias, que
continuam a ser pedaços da papel. Diverte-se com a sua
livre fantasia a respeito das coisas e com a credulidade
cúmplice que às vezes encontra no adulto. Porque, fin­
gindo ela própria acreditar, sobrepõe aos outros uma
nova ficção que a diverte. Mas isso não é mais que'uma
fase negativa de que depressa se cansa. Em breve preci-

88
samos de mais verosimilhança ou, pelo menos, de mais
artifício na figuração. Ela obriga-se a realizar uma maior
'•o. r<PV
conformidade entre o obiecto e o equivalents que lhp 'yi'COC/
procura dar. Os seus êxitos satisfazem-na como uma vitó-
6
ria das suas aptidões simbólicas. t£X>

Г Diz-se que a criança não cessa de alternar a ficção


■ca U
Ç[C com a observação. Na realidade, se não as confunde, . i «Xd
como por vezes parece, também não as dissocia. Ora '~tiP-yV) i
CÍX/V^din
№ absorvida por uma ora por outra, nunca se desprende
completamente de uma na presença da outra. Não deixa
7 de as entrelaçar uma na outra. As suas observações não
estão ao abrigo das suas ficções, mas as suas ficções
estão saturadas das suas observações.

A criança repete nos seus jogos as impressões que


acaba de viver. Ela reproduz e imita. Para as mais
novas, a imitação é a regra dos jogos, a única que lhes
é acessível, enquanto não puderem ultrapassar o modelo
concreto, vivo, para atingir a ordem abstracta. Porque
a sua compreensão não_é, a princípio, mais do que uma
assimilação de outrem a si e de si a outrem, na qual
a imitação desempenha precisamente um grande papel.
Instrumento desta fusão, ela apresenta uma ambivalên­
cia que explica certos contrastes de que se alimenta
o jogo. Não é indefinida, mas muito selectiva na criança.
Fixa-se nos seres que têm para si maior prestígio, os que
interessam os seus sentimentos, que provocam uma atrac-
ção donde a sua afeição habitualmente não está ausente.
Mas, ao mesmo tempo, ela transforma-se nestas per­
sonagens. Sempre totalmente ocupada com o que está
a fazer, a criança imagina-se, quer-se no lugar delas.
O sentimento mais ou menos latente da sua usurpação
cedo lhe inspirará sentimentos de hostilidade contra
a pessoa do modelo, que não pode eliminar, cuja supe-
rioríHãdêPcontinua muftas.-Vezea-.a sentir a todo o ins-
tante inevitável p desconcertante, a quem em seguida

89
quer mal pela resistencia às suas necessidades de doráis
nio e de se preferir a si mesma.
Freud foi o primeiro que indicou nitidamente esta
ambivalência, invertendo porém os termos: o ponto de
partida da criança seriam os ciúmes que sente por causa
do pai e levá-la-iam a sublimar a sua manifestação sob
a forma de superego. Contudo, o pai não é o único
objectivo da criança, nem o ciúme sexual o único motivo
que orienta a sua sensibilidade. Pelo menos tão primi­
tiva e muito mais insistente é a sua necessidade de
estender a sua actividade a tudo o que a rodeia, absor­
vendo-o e deixando ela própria absorver-se; em seguida,
o desejo de apoderar-se, de ser a conquistadora e não
a conquistada.
E sta dupla fase dá-nos conta duma alternativa que
se observa nos jogos das crianças e de que subsistem
vestígios no adulto, nos jogos que são considerados proi­
bidos e nos que são permitidos; a proibição que parece
pesar sobre uns traz automaticamente consigo a neces­
sidade da autorização dos outros.
O sentimento de rivalidade que a criança pode sentir
para com as pessoas que imita explica as tendências
antiadultas de que ela dá frequentemente provas nos
seus jogos. Ãs vezes persegue-as) às escondidas, como se
corresse o risco de que elas1denunciassem as substituições
de personalidade de que são, em imaginação, ^ instru­
mento. Sem dúvida, o seu carácter mais ou menos clan­
destino não é muitas vezes mais que um meio de defesa
i contra a censura ou a condescendência dos adultos, que
limitariam a sua livre fantasia ou o crédito que a criança
quer poder atribuir-lhes. O seu mundo privado deve ser
protegido das curiosidades ou das intervenções intem­
pestivas. Porém, ao carácter secreto dos jogos vem mui­
tas vezes juntar-se a agressividade.
.A forma que ela toma pode às vezes fazer lembrar
os mais antigos conflitos entre a criança e o adulto.
Alguns factos muito judiciosamente observados por Su-

90
zarme Isaacs mostram, efectivamente, a freqüente liga­
ção que se observa no comportamento da criança entre
o escatológico e a insubordinação. Quando satisfaz as
suas necessidades, manifesta por vezes um gosto violento
de oposição e, inversamente, a sua oposição vai buscar
os seus meios de expressão ao vocabulário ou mesmo às
realidades escatológicas. São tantas as locuções corren­ rt/
tes, tantas as imagens ou lendas saídas dum folclore
comum a todos os povos, a atestarem esta união, que não taP
há necessidade de insistir mais nela. A sua origem re­
monta sem dúvida à época em que a sensibilidade dos
esfíncteres, sendo uma das que mais vivamente absor­
viam a criança, era, ao mesmo tempo, o campo em que
pela primeira vez se enfrentaram as suas necessidades
e as exigências do meio, muitas vezes acompanhadas de
sanções. Porque a disciplina das suas micções e das suas
defecações foi o primeiro esforço que ela teve que dirigir
contra si própria sob a imposição de outrem. Não é, pois,
para adm irar que as suas posteriores veleidades de rebe­
lião evoquem esta associação inicial, com uma forma
mais ou menos simbólica, e que o humor de oposição
que acompanha certos jogos tenha tendência para a
utilizar.. O -j
Mas à agressividade vem habitualmente juntar-se
uma inquietação de culpabilidade. A sua origem comum
é o desejo que nutre a criança de se substituir aos
adultos; as impressões de que se alimenta são especiais.
Crianças que brincam «ao papá e à mamã» ou «ao
marido e à mulher» procuram evidentemente reproduzir
as acções e os gestos dos pais, mas a sua curiosidade
impele-as a querer sentir os motivos íntimos daquilo que
imitam, e, por falta de conhecimento disso, é à expe­
riência pessoal que vão recorrer. Não há ainda muito
tempo que o objecto preferido das suas explorações era
o próprio corpo, depois o do outro, segundo a transfe- 1
rência do subjectivo para o objectivQL e a procura de f
reciprocidade, que são um processo constante da evo- 1
luçao^5sfquíca da criança. ^

91
Deste modo, sabem proporcionar-se um antegozo da
sensualidade. Não é mesmo excepcional que estas curio­
sidades autossomáticas e heterossomáticas dêem lugar
a práticas sadomasoquistas, que os participantes man­
têm cuidadosamente ocultas, com o pressentimento de
que seriam censuradas. Assim, aprofunda-se a oposição
entre a criança e o adulto e confirma-se a intuição de
que há jogos proibidos. (
Por contraste, uma espécie de exibicionismo assinala
os que parecem permitidos. A criancinha quer ser vista
quando os pratica e não deixa de solicitar a atenção dos
pais e dos mais velhos. Mais tarde, não se entregará
a eles sem antes o anunciar com grandes demonstrações
gesticulatórias ou vocais. E finalmente, sempre que for
possível, quererá distinguir-se com um uniforme, insíg­
nias ou um equipamento de jogador.
Quanto aos adultos, por muito livres que sejam do
seu tempo ou da sua pessoa, há poucos que não se
tenham por vezes surpreendido a esboçar um gesto fur­
tivo para dissimular que estavam a jogar. Para alguns,
o jogo pode criar remorsos. Mas para a maior parte,
sem dúvida, é o sentimento da autorização que acabou
por vencer o da proibição e que aumenta em muito
a alegria de jogar. Permitir-se o jogo, quando parecei
chegada a sua hora, não será reconhecer-se digno duma. ;
trégua que por algum tempo suspende as imposições,! A'
obrigações, necessidades e disciplinas habituais da exis-
tência?

92
C A P IT U L O VI

AS DISCIPLINAS MENTAIS

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Entre os 6 e os 7 anos é possível subtrair a criança


às suas ocupações espontâneas para fazer com que se
entregue a outras. Não há muito tempo podia começar
para ela nessa idade o trabalho produtivo e mesmo o da
fábrica, como é ainda o caso em certos países coloniais.
Agora são as disciplinas da escola que lhe são desti­
nadas. E stas pressupõem, inevitavelmente, um corres­
pondente poder de autodisciplina.
A actividade mais elementar não conhece, com efeito,
outra disciplina senão a das necessidades exteriores;
encontra-se sob o controlo exclusivo das circunstâncias
actuáis. Em caso de desvio entre uma reacção e as
exigências da situação, muda-se a conduta até realizar
um ajustamento satisfatório. É por isso que não há auto­
matismo ou reflexo, por mais fixos que pareçam, que não
tenham sido determinados por excitantes apropriados , r ;.
e que não sejam modificáveis na mesma medida. É arbi-] ,
trário distinguir entre as respostas do organismo e asj
suas condições externas. Mas quanto mais se complica
( a sua estrutura, mais elas se podem diversificar con­
forme as circunstâncias.
Ao mesmo tempo que se acentua a sua diversificação,
o campo de excitação amplifica-se e afina-se. A excitação

93
elementar dá lugar a um conjunto que lhe precisa o
significado. Os indícios complementares e discriminado-
res do significado podem ser impressões actuáis, mas
também os vestígios de impressões e de condutas ante­
riores. O próprio significado pode ser relativo ao mo­
mento presente ou a uma eventualidade mais ou menos
diferida, que implica a previsão. Os objectivos vão poder
assim destacar-se da situação presente. Eles estão, aliás,
bem longe de ir buscar a sua motivação unicamente ao
meio físico. De inspiração social ou ideológica, ela pode
entrar em conflito com a situação material do momento.
Deste modo, as disciplinas da acção sofrem uma
espécie de interiorização e o seu aparelho funcional toma
uma tal complexidade que a sua actividade, ou melhor,
as suas diversas actividades, podem parecer, em muitos
casos, que se exercem independentemente das circuns­
tâncias ou por si mesmas. O jogo, como vimos, corres­
ponde já ao exercício das funções pelas próprias funções.
Quanto à independência em relação às circunstâncias,
ainda não é senão a substituição das necessidades actuais
por necessidades fundadas em antecipações ou conven­
ções. Com efeito, na criança, as funções em via de emer-
gência exercem-se primeiro sem outro objecto além delas
! próprias. Mas chega o momento era que_se _pqdçcãp
subordinar a motivos que lhes serão heterogéneos, e
então anuncia-se a idade do trabalho e o comportamento
apresenta novas características.
É a inércia que a caracteriza na época dos puros
exercícios funcionais. A criança é totalmente absorvida
pelas suas ocupações do momento e não tem sobre elas
nenhum poder de mudança ou de fixação. Daí resultam
dois efeitos contrários, mas que podem ser simultâneos:
a perseverança e a instabilidade. A actividade que se
apoderou da criança prossegue fechada sobre si mesma,
repetindo-se ou esgotando-se nos seus próprios porme-
resr mas sem se estender a outros domínios a não ser
por digressão fortuita ou rotineira. Se se transforma,
é por substituição, ou porque, vazia de interesse pela sua

94
monotonia, deixa o campo livre à que primeiro aparecer,
ou porque uma ligação acidental a faz alienar-se total­
mente numa outra ou, enfim, porque repentinamente cede
diante do atractivo duma circunstância imprevista, duma
estimulação surpreendente ou aliciante. Daí o aspecto
contraditório da criança, alternativamente absorvida por
aquilo que. faz, a ponto de parecer estranha, insensível,
ao ambiente que a rodeia: depois atraída pelos incidentes
mais insignificantes e sem. qualquer recordação.aparente
do momento anterior. Mas, numa avalanche de diversões,
um mesmo tema pode persistir e manifestar-se, quer
pelas suas repetições intermitentes quer misturando-se
àqueles que se seguem, e contaminando-os de maneira
mais ou menos coerente.
Segundo as observações da Sr.'1Ch. Bühler, dos 3 aos
4 anos, a média do número de distracções durante um
mesmo jogo é de 12,4; entre os 5 e os 6, não vai além
de 6,4. Será que o poder de regresso à ocupação inicial
é maior nas crianças mais novas? Bem pelo contrário,
a duração do jogo aumenta nos mais velhos, ao mesmo
tempo que diminui o número das distracções. O que está
em causa, portanto, é o poder de lhes resistir. A persis­
tência do tema através das mais numerosas distracções
não é de ter menos em conta. Denota, contrariamente
a uma potência activa, uma potência de inércia, cujos
efeitos não são contrariado^ — antes pelo contrário — !
pela instabilidade concomitante.
O sentido desta evolução é posto em evidência por
uma outra que está em parte relacionada com ela.
Ao mesmo tempo que aumenta a duração dos jogos,
Ch. Bühler nota que os motivos de interesse ou de pra­
zer aos quais a criança reage têm cada vez menos,
necessidade^de pertencer a circunstâncias jictuai^. E
mesmo este progresso apresenta graus. Léontiev observa
que a criança de 8 a 9 anos só é capaz de perseguir
objectivos mais ou menos afastados se tiver estimulan­
tes sensoriais que assinalem o seu esforço com símbolos
concretos. Entre os 10 e os 13 anos, estes deixam a pouco

95
.

i
C A P IT U L O V III

OS DOMÍNIOS FUNCIONAIS:
ESTÁDIOS E TIPOS

As necessidades da descrição obrigam a tra ta r sepa­


radamente alguns grandes conjuntos funcionais, o que
não deixa de ser um artifício, sobretudo ao princípio,
quando as actividades estão ainda pouco diferenciadas.
Algumas, porém, como o conhecimento, surgem mani­
festamente tarde. Outras, pelo contrário, são aparentes
desde o nascimento. Existe entre elas uma sucessão
de preponderância. Aliás, para a reconhecer, é necessá­
rio saber identificar o estilo próprio de cada uma e não
limitarmo-nos à simples enumeração dos traços que são
simultaneamente observáveis.
O que tom a a coisa mais necessária e também mais
difícil, é que o desenvolvimento da criança é, sobretudo,
nos primeiros tempos, de tal maneira rápido, que as
suas diversas manifestações se sobrepõem umas às ou­
tras, de tal modo que muitas vezes um mesmo período é,
em proporção aliás variável, de estilo compósito. Mas
a individualidade dos sistemas assim justapostos pode
ser confirmada pela Patologia O - Certas interrupções
do ^desenvolvimento psíquico impõem~sí”fòdãs as réac-
ções do sujeito o tipo correspondente de comportamento.
/v•
(’) Ver a 1.* Parte, Сар. П.

139
Elas vêm todas sucessivamente esbarrar no mesmo ponto,
í Daí resulta não apenas a sua uniformidade mas tam-
( bém o facto de poderem atingir uma espécie de perfeição
formal que é habitualmente de mau agoiro. Toda a vir- 0
tuosklade parcial ao longo do crescimento deve fazer
pensar numã^ãctividade que continuaria a exercer-se y
indefinidamente por si mesma, por não ser capaz de se
integrar nos sistemas consecutivos, que uma evolução
;p normal devia fazer surgir. Normalmente, com efeito,
a elaboração de uma, desde^qüe torne possível o apa­
recimento da seguinte, faz com que ela seja captada,
talhada em vista de necessidades que lhe são especifi-
¡camente estranhas; e, consequentemente, os seus,efeitos
(específicos vêem-se muitas vezes limitados e trunçados.
Só poderão então encontrar eventuaímente uma oportu­
nidade para o seu livre desenvolvimento no jogo, ou na
actividade estética, que^estituj*. n o ^ g a ^ ^ ^ t ^ J ^ ^ n ^
ções escravizadas pelo^usp, e pela evolução, o seu exer­
cício ou expressão próprias, (/, C\
Segundo o momento e o nível em que se produz,
I a interrupção do desenvolvimento psíquico pode ser ma­
ciça ou, pelo contrário, pode'não ser incompatível com
uma certa diversidade funcional, mas em que se afirma
ч uma dominante, normalmente característica de uma
idade de crise. No primeiro caso, que é o da idiotia, (.
todas as manifestações de actividade estão uniforme- / ,
mente ligadas ao mesmo estádio. Elas não se sabem 1
adaptar às circunstâncias e aos estím ulosjjpe^ip,ç^te-J
\
jam em estreita relação consigo mesmas. Quando, pelo*j;
contrário, continua a ser possível a diferenciação das '■>
funções, o comportamento ultrapassa os limites do está­
dio, mas pode ser detectado por um determinado tipo
de efeitos. Umas-vezes é marcado pelo excesso persis­
tente de uma função que não pôde ultrapassar o estado
lúdico e que encontra em si mesma as únicas razões
de actividade: é o caso da incontinência e da insanidade
verbais de certos débeis mentais. Outras vezes o efeito
é mais difuso. São todos os actos do indivíduo que

140
apresentam, por exemplo, um carácter infantil, quer
porque a sua motivação parece estar atrasada em relação
aos interesses que conviriam à sua idade, quer porque
a sua textura e a sua fórmula apresentam uma fisiono­
mia que demonstra uma consciência ainda pueril da sua
pessoa.
No entanto, a insuficiência é também muitas vezes
mais discreta e de conseqüências mais intermitentes.
JEla pode ser mesmo susceptível de compensação ou de
sobrecompensação e actuar como estimulante para sus­
citar substituições. Por vezes resultam daqui, efectiva­
mente, verdadeiras superioridades. Mas este desvio, se
pode de certo modo enriquecer a função, pode nãò" che­
gar a suprimir a sua fragilidade interna, subitamente
revelada por golpes de surpresa, por influências depri­
mentes ou pela simples fadiga. Em todo o caso, o equi­
líbrio em que se baseia o comportamento de cada um
pode ser muito diverso. Nada poderia dar a conhecer
melhor a sua estrutura, os seus altos e baixos, que (
a n a c n a n ç a ^ d a s suas componenjewe rela­
ções mútuas^exibidas ao loflg^^q^sm po. De maneira
geral, isto tem como conseqüência um conhecimento de-
I talhado das trocas e adaptações recíprocas de que são
susceptíveis os diferentes domínios funcionais. J
A sua delimitação pode, aliás, não ser feita sem
alguma ambigüidade. Com a afectividade se relacionam,
segundo parece, as manifestações psíquicas mais preco­
ces da criança. Ela está automaticamente ligada às suas
necessidades e automatismos alimentares, que são quase ДГ t -r 'DÍ.I
imediatamente consecutivos ao nascimento. Parece difí­
cil não fazer depender da afectividade, como expressão ■4
de indisposição ou de bem-estar, o primeiro comporta- HUSCUIA
mentq muecular e. vocal d,ojActeD.te-- Ás gesticulações
a que também normalmente se entrega, parecem ser
ao mesmo tempo sinal e fonte de prazer. Ela tem aí
a sua base proprioceptiva. como nas funções viscerais, -i
especialmente as do tubo digestivo я sun Ьяяр int.e- 1 М П - М С С
roceptiva.

141
Sem dúvida outros movimentos, súbitos e intermi­
tentes, que são, pelo menos aparentemente, conseqüência
de uma excitação espontânea, podem também produzir-
-se, mas como que sem querer. Parecen^simples^des-
cargas, à semelhança de ^estru tu ras já constituidas :_ a -
simples incontinência dinâmica dos centros nervosQs_é
suficiente para as explicar. Semelhantes impulsos são
susceptíveis de se produzir a todos os níveis da activi-
dade psicomotora. Sob uma forma mais ou menos disso­
ciada, eles revelam a sua textura fraccionada. A sua
causa evidente é uma^ insuficiência de coordenação
de controlo. Assim sendo, são jndícú> da falta de !
maturação ou de desequilíbrio"do sistema psíquico. Mas
eles são, em si mesmos, simples manifestações motoras \
degradadas. —'
Não é apenas o primeiro comportamento psíquico
da criança que é de tipo afectivo, mas também o da
idiotia no seu mais baixo nível. A agitação corres­
pondente é então feita só de gritos, em que se sucedem
as intonações da cólera, do triunfo, do sofrimento, e ati­
tudes ou gestos cujo significado emocional é evidente.
1 Estes efeitos desencadeiam-se, muitas vezes, com a sim-
ples presença de outrem, mostrando assim a que camada
primitiva e profunda da sensibilidade pertencem as reac-
ções a que se pode dar o nome de imponencia, porque
parecem o reflexo da personagem ^õmTliãdã um leva
dentro de si face a todas as pessoas que o encontra.
Isto é, evidentemente, no comportamento essencial do
sujeito, uma espécie de vigilância diferenciada onde se
alimenta o que há de mais vivo no sentimento da per­
sonalidade. Mas, pelo que toca à própria personalidade,
o seu desenvolvimento pressupõe o remate da evolução
psíquica.
ftf Apesar de se fixar, através destes reflexos de aco­
modação à presença de outrem, na esfera dos instintos
mais fundamentais, a pessoa só chega a formar um todo
constituído por meio do conjunto das outras etapas fun-

142
donáis. Nos casos de involução mental, em que a s /1
funções vão normalmente desaparecendo na ordem in-j
versa da sua aquisição, ela é o que se altera em primeiro
lugar. Lesões que parecem deixar intactas as mais com­
plexas operações perceptivas e até mesmo intelectuais
atingem, no comportamento do sujeito, o que se rela~
ciona com o sentimento que ele possuia da sua dignidade.
A sua sede parece ser essencialmente a região prefron­
tal, que é a mais tardia no desenvolvimento da espécie
e na maturação do indivíduo. É pelo sentimento de per­
sonalidade que são jm ^lg^m adqs aos reflexos dg_aspfeCto
orgánico, que inserem o individuo como tal no seu
ambiente, os valores cujo único suporte consiste em
noções completamente abstractas ou ideais, uma vez que
o seu objecto não pode reportar-se a uma. existência
m aterial, mas apenas a conseqüências eventuais, cujo
nível varia, aliás, com a civilização da época e o grau
de evolução psíquica atingido pelo indivíduo; umas vezes
objectivas e sensíveis, outras mais estritamente íntimas
e morais.
Os domínios funcionais que se estendem entre as
reacções jruramente^a^entivas e as da. pessoa mpral são
I
os que estão voltados para as realidades exteriores:
realidades umas vezes presentes e actuais, outras vezes
ausentes e imaginárias. No primeiro caso, as relações
são constituídas por reacções motoras, mas cujas com­
V
binações podem apresentar diferentes níveis: desde a 1PMGAt
simples ligação circular, que liga um movimento às
sensações exteroceptivas que provoca e estas sensações
(< . r.AÍA.
ao movimento que as provoca, até à capacidade de reco­ CtOCVlA
nhecer, com vista a um resultado bem definido, as
Í2 ) A XjrOf^À
possibilidades espaciais ou mecânicas oferecidas pelo Ti< Or
campo perceptivo, capacidade que foi descrita com o [i*>) (íjrtu
nome de inteligência prática ou inteligência das situa-
j$eç, passando pela simples mas muitas vezes difícil VQ*XI(¿
apropriação das estruturas motoras que são os nossos
automatismos, naturais ou apreendidos, da estrutura
dos objectos. É o domínio do acto motor.

143
No outro caso, não sendo o objecto ou o aconteci­
mento directamente perceptíveis e eficazes, têm que ser
representados de uma maneira ou de urna forma qual­
quer. O efeito sensorial que pode corresponder a esta
representação só é utilizável com a condição j j e receber
um significado que se acrescente, ou antes, que se subs-
v т r riU titua à sua própria aparência.) Detectar e definir estes
significados, classificá-los, dissociá-los, reuni-los, con­
AV frontando as relações lógicas e experimentais, tentar j
reconstruir por seu intermédio a possível estrutura das j
coisas: tal é o domínio do conhecimento, que apresenta
igualmente vários níveis diferentes e de que a evolu­
ção mental da criança demonstra os primeiros estádios
decisivos.
Os domínios funcionais entre os quais se dividirá
o estudo das etapas que a criança percorre serão, por­
tanto, os da afectividade, do acto motor, do conheci­
mento e da pessoa.

ç.

144
C A P IT U L O IX

A AFECTlVTDADE

0 grito do recém-nascido, grito de aflição, segundo


Lucrèce, perante a vida que se abre diante dele, grito
de angústia, segundo Freud, no momento em que se
separa do organismo materno, não significa outra coisa
para o fisiologista que um espasmo da glote, acompa­
nhado dos primeiros reflexos respiratórios. A sua moti­ г илР Ил cus.
vação psicológica pelo pressentimento ou desgosto é, \ в-
de facto, um tanto mítica. Mas a sua redução a um j
simples facto muscular é também uma abstracção. Ele
faz parte dum todo, de um complexo vital. Ao espasmo
está ligado o grito, mas também um conjunto de con­
dições e de impressões simultâneas que se exprimem
tanto no espasmo como no grito. Neste estádio elemen-
tar, nãq sç pode evidentemente distinguir entre o sinal
e g sua causa.
Digamos, de um modo mais específico, que não é
possível distinguir no espasmo o movimento da sensi­
bilidade, como mgis tarde as sensibilidades dos movi­ r_h J sS lp je
mentos de tipo mais evoluído, de circuito mais extenso ' ' ■’ 7'
e mais diferenciado. O espasmo da íris não se efectúa
sem sofrimento e a única solução é paralisar a íris.
O espasma do intestino provoca cólicas, tão freqüentes
na digestão do bebé, que lhe fazem dar gritos, sem

145
10
dúvida рос extensão fisiológica do espasmo ao aparelho
respiratório, pois só mais tarde surge a diferenciação
do grito como simples meio de expressão^ sem relação
directa com o que exterioriza. A generalização do es­
pasmo a todas as vísceras — esófago, aparelho respi­
ratório, aparelho circulatório — traz consigo a angústia.
Alguns espasmos, como o orgasmo venéreo, podem ser
fonte de prazer. Mas eles roçam muitas vezes o sofri­
mento, pois o prazer é tanto mais agudo quanto mais
próximos estão, sendo muitas vezes a sua estimulação
procurada através de excitações dolorosas. Entre a an­
gústia e a excitação genital pode, aliás, haver confusão
ou uma passagem transitória. O desejo erótico frisa
a angústia; um estado de angústia, mesmo de angústia
melancólica, dissolve-se eventualmente em práticas
eróticas.
O prazer ou o alívio parecem acompanhar os espas­
mos em que se despende uma tensão excessiva em
demasia. É o caso dos soluços, que são um remate
habitual da angústia, e menos excepcional que o espasmo
venéreo. O riso intermitente e estridente pode ser igual­
mente a descarga de uma expectativa ou de um cons­
trangimento prolongado, a evasão de energias, retidas
e acumuladas. O próprio riso normal é uma cascata
de sacudidelas que consome a tensão dos músculos e que
habitualmente os amolece, suprimindo toda a capaci­
dade de esforço. Ao contrário dos soluços, desenvolve-se
muito mais nos músculos estriados do esqueleto que nos
das vísceras, e a sua causa habitual parece ser menos
uma elevação da tensão que um abaixamento do limiar
acima do qual ela se pode conter.
Mas trata-se aqui de espasmos já organizados, que
ultrapassam as simples contracções dolorosas, dos apa­
relhos viscerais ou motores. Em vez de serem elemen­
tares e esporádicos, eles encadeiam-se e são regulados
e até mesmo reguladores das energias que neles se
despendem. A sensibilidade que acompanha cada um deles
transfere-se para o conjunto e, de puramente orgânica

146
в о< “ Лс

ajO^rincígio^jJode ajxm ço е pouco tornar-se mais m orai./'' •


O sofrimento bruto que correspondia aos seus paroxis­
mos é drenaclo, deslocado, diluído, subtilizado e final­
mente integrado em actos psíquicos que transformam
gradualmente a sua tonalidade incômoda em simples
“:1л aguilhões da consciência. E sta evolução pode ocorrer
~l~ r. :;|Х "«па criança ao longo das etapas que assinalam os pro-
■fart ' gressos da sua afectividade.
O espasmo alicerça-se na actividade tônica dos mús- v
culos que precedemos movimentos~prõpnãmente~ditos. oíi
à agitação do bebé inclui bruscos períodos de calma
que lhe fazem passar de uma atitude para outra. Em
cada um destes períodos os músculos parecem disten-
der-se e endurecer-se, em vez de se contrairem ou se
estenderem em gestos susceptíveis de explorar o espaço.
A contracção é maciça, tetaniforme, propaga-se como
uma onda, atingindo especialmente a musculatura verte­
bral e a musculatura próxima, quer dizer, aquela que
servirá sobretudo para a estabilização dos movimentos
e para o equilíbrio do corpo.
Os primeiros reflexos são reflexos tônicos de defesa
ou de atitude. Um contacto, uma beliscadura na pele
provoca uma retracção ou uma distenção atetósica do
membro. Um ruído provoca um estremecimento, seme.-
Ihante a esses bruscos relaxamentos do_tónus que acar­
reta por vezes a sua subTEãUlTbêrTação pelo sono. As '^ ?.-</■<
influências das excitações labirínticas sobre o com por-Г ^ ' ^
tamento do recém-nascido são evidentes. Elas podem
ser suficientes para modificar sistematicamente a posi­
ção relativa da sua cabeça e dos seus membros e expli­
cam o prazer que ele sente em ser embalado.
Ê a uma estimulação labirintica brutal, a uma impres­
são de queda, que estão ligadas as reacções da primeira
ejmoçãp m tid a m e n te ^ o medo.
Também asouírasC cada uma a seu modo, correspon-
dem a variações viscerais e musculares do tónus, proce­
dendo consequentemente da função postural, onde Sher-
rington
....- - reuniu
----- -— tudo o que1.....
■- — é manifestação tônica. Bebendo

147
deste reservatório comum, serão elas totalmente redu-
tíveis entre si? É a tendência de alguns, como Watson,
para explicar a diversidade das emoções pela acção das
circunstâncias, que uniriam o seu núcleo inicial a exci­
-tantes
— " .e a reacções
- variáveis. ААЛ/
Mas a sua especificidade •—
ontogénica e, de facto, incontestável. Sejam quais forem
as suas etapas na história da espécie, elas dependem
todas de antornatismps e^ecífiços que emergem no com­
portamento dos indivíduos com um efeito de maturação
funcional. É assim que, fora de qualquer ocasião propícia,
elas podem dar lugar, no idiota, a uma série de mani­
festações que parecem produzir-se por si mesmas: não
apenas atitudes de agressão, de ameaça ou de medo,
mas também de defesa, de súplica e gestos propiciatorios
em individuos que, no entanto, nunca foram espancados
nem maltratados./.
Às emoções consistem essencialmente em sistemas
de atitudes que correspondem, cada uma, a uma deter­
minada espécie de situação. A titu jle s ^ g itin u ^ corres­
pondente implicam-se mutuamente, constituindo uma ma­
neira global de reagir de tipo arcaico, freqüente na
criança. Opera-se então uma totalização indivisa entre
as disposições psíquicas, oriemíadas todas no mesmo
(sentido, é^os incidentes exteriores. Daqui resulta queTj
muitas vezes, é a emoção que dá o tom ao real. Mas,¡
inversamente, os incidentes exteriores adquirem quasej
seguramente o poder de a desencadear. Ela é, com efeito,
como que uma espécie de prevenção que depende mais
ou menos do temperamento, dos hábitos do indivíduo.
Mas esta prevenção, focando indistintamente à sua volta
todas as circunstâncias de facto actualmente reunidas,
confere a cada uma, mesmo fortuita, o poder de a fazer
ressuscitar mais tarde, como faria o essencial da situação.
Pelo seu sincretismo, pelo seu exclusivismo em rela-
ção a t oda a orientação divergente, pela sua vivacidade
de interesse e de impressão, a emoçãp é espeçiajmente
apta para suscitar reflexos condicionados (l). Sob a sua

(') Ver a 2.* Parte, Cap. VII.

148
influência, ela pode muitas vezes opor-se manifesta-
mente à lógica ou à evidência. Assim se constituerrL.com-
plexos afectivos irreidutíveis à razão. Mas] a emoção
também fornece às reacções uma rapidez e sobretudo
uma totalidade que convém aos estádios da evolução
psíquica e às circunstâncias da vida em que não é pos-
sIveTaT deliberação. / '
As situações com as quais a emoção confunde o indi-
víduo não são apenas incidentes materiais, mas também
relações interindividuais. O ambiente humano infiltra-se i
no meio psíquico e substitui-o em grande parte, sobretudo
na criança. Ora compete precisamente às emoções, pela
sua orientação psicogenética, desenvolver estes laços,
que se antecipam à intenção e ao raciocínio. As conse- *
quentes atitudes, os efeitos sonoros e visuais resultan­
tes, representam para as outras pessoas i ^ /v£sj^pjilq_,
do^ maior mteresse, capaz de mobilizar reacções seme-
lhantes, complementares ou r ecíprocas, quer dizer, em
relação com a situação de que são o .efeito e o índice.
E ntre as atitudes emocionais dos sujeitos que se
encontram num mesmo campo de percepção e de acção,
institui-se muito primitivamente uma espécie de conso­
nância, de acordo ou de oposição. O contacto estabelece-
-se pelo mimetismo ou contraste afectivos. É assim que
se instaura uma primeira forma concreta e pragmática
de compreensão, ou melhor, de participacionismo mútuo.
O contágio das emoções é um facto comprovado varia-
dissimas~vezes. Depende do seu poder expressivo, ^no
qual se basearam as primeiras cooperações de tipo gre­
g á rio /^ que incessantes permutas e, sem dúvida, ritos
colectivos ti ^ p s ^ ^ ã í ã m T ^ m ^ ^ J i a t u r a i s em mímica
mais, ou menos^j^p^çiicioitai. ц
As influências afectivas que rodeiam a criança desde
o berço não podem deixar de exercer uma acção deter­
minante na sua evolução mental. Não porque originem
completamente as suas atitudes e as suas maneiras de
sentir mas, pelo contrário, precisamente porque se diri­
gem, à medida que eles vão despertando, aos automa-

149
tismos que o desenvolvimento espontâneo das estruturas
nervosas mantém em potência e, por seu intermédio,
às reacções íntimas e fundamentais. Assim se mistura
o social com o orgânico.
Um exemplo destas interferências é o sorriso, a res­
peito do qual os observadores da infância deram as mais
variadas opiniões. Atribuindo-lhe imediatamente o seu
pleno significado funcional, Ch. Bühler afirma que o
sorriso tem uma fonte puramente humana e que só se
produz em presença de um rosto. Mas muitas obser­
vações contrariam esta asserção. Ele parece estar, em
primeiro lugar, ligado a estímulos cutâneos próximos
da região muscular em que se produz: cócegas debaixo
do queixo (Dearborn) no l.° e no 2.° dia; na face e no
nariz (Scupin) no 2.° dia; no nariz (Ament) no 3.° dia;
na face (Dearborn) no 5.° dia; pressão na mão e no
braço para brincar (Major) no 28.° dia; contacto do
mamilo com a face (Blanton) no 28.° dia; depois vêm
excitações mais gerais e de tonalidade claramente afec­
tiva: banho quente (Major) no 4.° dia; bem-estar (Dear­
born) no 6 .° dia (Baldwin) no 7.° e 9.° dias; repouso
depois da mamada (Preyer) no 26.° dia; sono depois da
mamada (Moore) na 5.a semana; bem-estar depois do
sono (Shinn) na 5.a semana; bem-estar depois de fricção
com óleo (Shinn) na 8 .a semana.
Um pouco mais tarde, começa a acção dos estimu­
lantes exteroceptivos: chilreio da ama (Valentine) no
10.° dia; luz brilhante (Blanton) no 13.° dia; sombra
azul na luz (Blanton) no 16.° dia; audição de sons agudos
(Darwin) na 6 .a semana. Por fim, surge, sem dúvida
alguma, o factor humano: rosto sorridente (Moore)
no 20.° dia; conversa e mímica (Tiedmann) no 28.° dia;
sorrisos de adultos (Jones, Grégoire) no 2.° mês; ama
que balança a cabeça e que canta (Piaget) no 45.° dia;
olhares amigáveis (Moore) na 5.a semana; visão da
mãe- (Darwin) na 6 .a semana; imitação dos adultos,
situação de jogo (Grégoire), tagarelice da mãe, rosto sor­
ridente, bugiganga prateada (Dearborn) na 7.a semana.

150
Ё bastante nítida a ordem de sucessão destas dife­
rentes especies de excitações. Estão, em primeiro lugar,
as que são um estímulo imediato da tonicidade muscular,
e depois um estado geral de satisfação orgânica que se
exprime por uma reacção local. Em seguida, é a vez
das impressões sensoriais de objecto distante. E, enfim,
a acção a distancia de um rosto ou de uma voz que
exprime e inspira contentamento, um contentamento de
causa exterior e já não íntima. Reacções que realçam
o significado afectivo do sorriso, mas precedidas das
que se limitam a demonstrar a sua possibilidade fisio­
lógica: contractilidade do grupo muscular apropriado,
subordinação deste grupo a impressões exteroceptivas.
É também deste modo, como demonstrou Insabato, que
o riso e depois os soluços podem ser provocados meca­
nicamente pela impressão resultante de uma estimulação
musculo-tendinosa profunda, mas eles são igualmente
a conseqüência e a expressão da afectividade orgânica
e depois de circunstâncias morais.
A indução do sorriso pelo sorriso segue tão de perto
o seu aparecimento, tem uma segurança de tal modo
electiva, que se pode verdadeiramente admitir uma afi-
nidade funcional, devida à própria natureza das mani­
festações emotivas mais que 1i5~slmples ioeo dos acon-
tecimentos e dos refléjeos condicionados. Mas, seja como
for, ele é um exemplo dos processos pelos quais a sensibi­
lidade da criança se estende ao ambiente; eja reproduzes
seus traços e não se sabe distinguir deles. E sta extensão,
que é também uma alienação de si mesmo face às outras
pessoas com quem se assimila, implica uma segunda „ .....
fase inversa, em que o sujeito se tornará senhor de si / '
opondo-se a outrem. Mas, então, começa a evolução da
personalidade. Ã emoção compete novamente unir os-^
indivíduos, através das suas reacções mais orgânicas
e mais íntimas, tgndo esta confusão como conseqüência
^ npnqirõe,4 e QS desdobramentos de que poderão ir
gradualmente surgindo as estruturas da consciência ' ,
---------------------- — (огяс ieNt
151
CO As emoções, que são a exteriorização da afectividade,
I Provocam, assim, transform ações que tendem, por outro
' ( lado, a reduzi-las. Nelas se baseiam as experiências
gregárias, que são uma forma primitiva de comunhão
e de comunidade. As relações que tornam possíveis afi­
nam os seus meios de expressão, e fazem deles instru­
mentos de sociabilidade cada vez mais especializados.
Mas à medida que, ao irem-se tornando mais precisos,
o seu significado os torna mais autónomos, desjjepa-
ram-se da própria emoção. Em vez de serem a sua onda
propagadora, tendem a reprimi-la, a impor-lhe diques
que destroçam a sua potência totalizadora e contagiosa.
A mímica, mal se torna linguagem e convenção, multi­
plica as tonalidades, as simplicidades tácitas, os suben­
tendidos e os enganos, ao contrário do arrebptamento
unânime que é uma emoção autêntica;.
E ntre a emoção e a actividade intelectual existe
a mesma evolução, o mesmo antagonismo. Antes de qual­
quer análise, o significado de uma situação impõe-se
pelas actividades que suscita, pelas disposições e atitu­
des que provoca, No desenvolvimento psíquico, esta intui­
ção prática precede de longe o poder de discriminação
e de comparação. Ela é uma primeira forma de com­
preensão, mas ainda completamente dominada pelo inte­
resse do momento e baseada em casos particulares.
Entre indivíduos, é o acordo ou a reciprocidade das
atitudes que podem em primeiro lugar realizar uma
espécie de contacto e de entendimento mútuo, mas ainda
totalmente absorvidos pelos apetites ou pela impulsi­
vidade do momento presente. Uma imagem que sirva
para efectuar „ища comparação e uma previsão só poderá
nascer destas relações pragmáticas e concretas através
de uma redução gradual da parte das reaçções posturais,
quer dizer, das emoções e da afectividade.
Inversamente, cada vez que prevaleçam de novo ati­
tudes afectivas e a emoção correspondente, a imagem
perderá a sua polivalência, obnubilar-se-á^, desaparecerá.

152
Й о efeito que se observa habitualmente no adulto:
redução da emoção através do controlo ou da simples
tradução intelectual dos seus motivos ou circunstancias;
desordem do raciocinio e das representações objectivas
provocadas pela emoção. Na criança, é lento o progresso
das suas reacções puramente ocasionais, pessoais, emo­
cionais, até_alcançar uma representação mais estável das
coisas; e são contínuos os refluxos.
No próprio domínio da afectividade surgem tra n s­
formações que são o resultado deste conflito. Se foram
possíveis as teorias intelectualistas das emoções, isso
deve-se ao facto da preponderância adquirida pelos moti­
vos e imagens intelectuais sobre o domínio dos senti­
mentos e das paixões. O seu erro foi não terem notado
a redução simultânea do aparelho verdadeiramente emo­
cional, de terem confundido emoção com sentimento ou
paixão, quando afinal daquela para estes se opera uma
transferência funcional que, na criança, depende direc­
tamente da idade. Mas os mais emotivos não se tornam
necessariamente os mais sentimentais ou os mais apai­
xonados, longe disso. Trata-se, com efeito, de tipologias
diferentes, que dependem de um diferente equilíbrio das
actividades psíquicas.
A criança que é solicitada pelo sentimento não tem,
perante as circunstâncias, as reacções instantâneas e
directas da emoção. A sua atitude é de abstenção, e, se
observa, é com um olhar longínquo ou furtivo que recusa
qualquer participação activa nas relações que se enca­
deiam à sua volta. Procurar que participe nessas relações
só a fará pôr rabujenta e de mau humor, pela sua^falj^a
dg^çapacidade e de gosto „ pelos, ^ontacfqg^dej^aMadp_,
r a id o s com ^gjoutras .pessoas. Parece encerrar em si
'mesma o circuito das suas impressões; frequentemente
entretida a chupar o polegar, rumina-as dentro de si.
ГEste período inicial, defensivo e negativo, só se poderá
( modificar goipj5^g§^eciingnto_e o jorogressqjlas repre-
í sentacõéa_jcqentais que fornecerão aos seus devaneios
[_motivos e temas mais ou menos inactuais.

153
Na criança, a paixão pode ser viva e profunda. Mas
com ela surge o poder de tornar a emoção silenciosa.
Ela pressupõe, portanto, para se desenvolver, a capaci­
dade de autocontrolo e não se pode antecipar à) oposição
claramente sentida entre o ego e as outras pessoas, cuja
consciência não se produz antes dos 3 anos. Então a
criança torna-se capaz de amadurecer secretamente fre­
néticos ciúmes, ligações afectivas exclusivas, ambições
mais ou menos vagas mas exigentes. Na idade seguinte,
as relações mais objectivas com o ambiente poderão
atenuá-las. Não deixam de ser, por isso, menos revela­
doras de um temperamento.
Ê indubitável que o sentimento e sobretudo a paixão
serão tanto mais tenazes, perseverantes, absolutos,
quanto mais irradiem uma afectividade ardente, em que
continuam a operar certas reacções, de certo modo vege-
tativas, da emoção. Também não deixam de ser a redução
dãT emoção actualizada por outras influências. São o j
resultado de uma
entre efeitos que p
£> outros que dependem da representação ou conheci­
mento, e da pessoa. (...) /

tí.
V

154
C A P IT U L O X

0 ACTO MOTOR

Entre os meios de que o ser vivo dispõe para actuar


sobre o meio, o movimento deve aos progressos da
sua organização no reino animal e no homem uma tal , ,
eficácia e preponderância que os seus efeitos puderam/
ser considerados pelos behaviouristas como um obiectoj ...
exclusivo da Psicologia. Mas esta própria limitação impõe
que se atribuam ao movimento significados extrem a­
mente diversos. Seria, de Fácto7-ndíciiIo limitar, o slgni- / ^ ^ ^
ficji^o^d^ijingpagem, por exemplo, ao^simgles_jenc0 ieno f
da^fon^slo, não fazendo uma distinção entre os gestos,-*
ainda que exteriormente semelhantes, segundo as situa­
ções que os motivam e o tipo de resultados para que
tendem. Reduzido às contracções musculares que o pro­
duzem ou aos conseqüentes deslocamentos no espaço,
o movimento não é, de facto, mais que uma abstracção ..
fisiológica ou mecamca. O^psicologo naoíoypoderia dis- /
s^ciar dos çimjuntos^que w jr^pQ ndenTgü^acto de que f' '
ele é o instrumento. J
Através do movimento, o acto insere-se no instante
presente. Mas ele pode, pelas suas condições e objec­
tives, pertencer apenas ao meio ambiente concreto: é
o acto motor propriamente dito; ou tender para fins
actualmente irrealizáveis ou pressupor meios que não

155
dependem nem das circunstâncias brutas nem das capa­
cidades motoras do sujeito: de imediatamente eficiente.
o movimento t orna-se então téc nic o o b c ^ c o e refe-
rC-se ao^plano da representação e do conhecimento, f l
E sta passagem só parece produzir-se na espécie
humana. Quando se produz na criança, provoca uma
brusca diferença entre as suas aptidões e as dos ani­
mais mais próximos do homem. O próprio movimente
apresenta uma dupla progressão: uma respeitante à sua
agilidade, frequentemente notável no animal; a outra
relativa ao nível da acção que o utiliza. Entre as duas
séries há, aliás, zonas em que a distinção não é fácil:
por exemplo, a adaptação das estruturas motoras às
estruturas do mundo exterior está ligada ao exercício
de centros nervosos que asseguram a regulação fisio­
lógica do movimento, mas ela tem como segunda con­
dição a imagem do objecto e esta pode pertencer a níveis
mais ou menos elevados da representação perceptiva
ou intelectual.
#

O movimento começa já na vida fetal. Na onto-


gênese, com efeito, as funções começam a esboçar-se
com o desenvolvimento dos tecidos e dos órgãos corres­
pondentes, antes de se poderem justificar pelo uso. É por
altura do quarto mês de gravidez que a mãe começa
a dar-se conta das primeiras deslocações activas da
criança. Em fetos de diferentes idades, mantidos com
vida o mais tempo possível, Minkowsky (de Zurique)
procurou averiguar quais eram as sucessivas etapas da
motilidade pré-natal. Apesar de se alterar imediatamente
mal se extingue a vitalidade, ele pôde reconhecer que
ela é constituída por sistemas mais ou menos extensos
de gestos e de atitudes, mas susceptíveis, perante a
mesma excitação, de intermitencias e de variações. O seu
determinismo é, pois, inconstante, o que sem dúvida
se explica pela falta de acabamento das estruturas ana­
tómicas e funcionais. O circuito em que se propaga o

156
estímulo não possui ainda contornos firmes e deixa-o
facilmente difundír-se noutros, igualmente insuficiente­
mente diferenciados. A reacção, ao mesmo tempo, apesar
de demasiado extensiva, mantém características par­
ciais, por falta de coordenação entre os diferentes domí­
nios ou sistemas do organismo, o qual não é também
mais que um conjunto sem coesão.
A variabilidade resultante está em oposição directa
com a que se poderá observar numa organização mais
complexa e mais completa do sistema nervoso. Aqui, ela
tem qualquer coisa de fortuito ou, pelo menos, reflecte
flutuações muito gerais nas disposições orgânicas. Ela
está, pelo contrário, apropriada para a diversidade das
circunstâncias e das necessidades, quando a integração
mútua dos domínios e dos sistemas funcionais torna
possível um acordo selectivo entre uma excitação, seja
qual for a sua origem, e os apetites mais variados e as
reacções mais poliformes.
No nascimento continuam a existir, em resposta a
determinados estímulos, sistemas definidos de gestos
e de atitudes. São em especial os reflexos cervicais e os
reflexos labirínticos de Magnus e Klijn que são provo­
cados, estes pela excitação vestibular resultante de um
rápido deslocamento do corpo numa determinada direc­
ção do espaço, aqueles pela movimentação das primeiras
vértebras cervicais. Uns e outros consistem em certas
relações de posição entre a cabeça e os membros. Ainda
aqui, como anteriormente no feto, o efeito não segue
sempre a excitação apropriada, mas desta vez por uma
razão inversa. Ele obtém-se com muito maior certeza
se se tra ta r de uma criança prematura ou se houver
uma destruição de certas conexões nervosas em conse­
qüência, por exemplo, de um traumatismo obstétrico.
A causa da sua inconstância será então, pois, a sua
eventual suspensão por centros inibidores, a respeito
dos quais ainda não é completa a sua subordinação,
mesmo num recém-nascido normal. A intermitência de

157

i
uma reacção pode assim depender quer da relativa falta
de acabamento e da persistente indeterminação do cir­
cuito correspondente, quer, pelo contrário, da sua inte­
gração já iniciada num sistema mais evoluído de mo­
vimentos.
As gesticulações espontâneas do recém-nascido são
acompanhadas quer de substituições súbitas e irregula­
res de atitudes, quer de automatismos ou fragmentos
de automatismos, que funcionariam já como mais tai'de
o exigirá a função plenamente realizada. De facto, as
actividades musculares estão ainda mal delimitadas.
A tetanização rápida do músculo pela excitação eléc­
trica fez com que se comparasse a sua contracção à da
fadiga, aproximando-a igualmente da cãibra ou do es­
pasmo. O que significa que há pouco intervalo entre a
agitação clónica e a contracção, sendo ainda muito fácil
a fusão entre estas duas actividades fundamentais do
músculo: encolhimento e tónus, movimento propriamente
dito e postura. Aliás, passar-se-ão semanas e meses antes
que as condições do exercício plenamente eficaz e dife­
renciado de cada uma delas se possam realizar.
Para o músculo, com efeito, converge a acção alter­
nante ou combinada de diversos centros. A sua estrutura
não bastaria para explicar os efeitos contrácteis de que
ele é a sede. Segundo Bottazi, os seus dois elementos
constituintes, as miofibrilas e o sarcoplasina, seriam
instrumento, uns da actividade clónica, os outros do
tónus; assim se explicaria a diferença funcional por uma
diferença de órgãos. Mas o tónus está longe de ser sim­
ples. Registadas pelo oscilógrafo, as correntes de acção
que lhe correspondem têm um ritmo muito variável;
o seu papel no mecanismo motor é diverso; enfim, a Pato­
logia mostra que ele se dissocia em diferentes formas
de contracção, conforme o nível das lesões que isolam
os seus centros reguladores. Assim sendo, ele é sempre
o resultado, modificável segundo os casos e as necessi­
dades, de influxos de múltiplas origens.

158
Na criança, é apenas por etapas sucessivas que esta
complexa função do tónus atinge o seu acabamento
total. Os centros nervosos de que depende não alcan­
çam todos ao mesmo tempo a maturação. O seu equili­
brio funcional varia com a idade. Pode igualmente apre­
sentar diferenças de individuo para indivíduo. Daqui
resultam tipos motores e também tipos psicomotores
diferentes, sendo estreitas as relações existentes entre
as manifestações do tónus e o psiquismo, relações esta­
belecidas por intermédio do equilíbrio, das atitudes e,
consequentemente, das estreitas conexões que existem
no meio cerebral entre os centros da sensibilidade afec­
tiva e os dos diferentes automatismos em que as funções
de postura desempenham um papel considerável. Foi
assim que pude distinguir um tipo extrapiramidal infe­
rior, um tipo médio e um tipo superior.
Não é apenas a natureza mas também a distribuição
periférica do tónus que se modifica ao longo da infância.
Homburger conseguiu descrever um tipo motor infantil
em indivíduos que conservam, para além da idade nor­
mal, certas posturas habituais. Os membros inferiores
do recém-nascido são arqueados e os pés têm tendência
para se colocarem em forma de tesoura. Os antebraços
estão curvados. As palmas das mãos estão viradas para
o queixo e não para o tórax; mais tarde, quando os
antebraços se estendem, viram-se para trás e não para
o eixo do corpo. A extensão dorsal do dedo grande do
pé, normal nos primeiros meses, tem a especial caracte­
rística de ser assimilável a um reflexo descrito por
Babinski como sendo patológico no adulto. Com efeito,
uma lesão que interrompe a continuidade do feixe pira­
midal, por onde são transmitidas à medula as incitações
motoras do córtex cerebral, provoca uma inversão na
posição reflexa que toma o dedo grande quando se toca
na parte exterior do pé: ele levanta-se, em vez de se
curvar para a planta do pé, como seria normal.
Na criança, a distenção dá lugar à flexão por volta
dos 7 ou 8 meses, quando a mielinização do feixe pira-

159
midal, que progride de cima para baixo, lhe permite
conduzir as incitações do córtex até aos centros medu­
lares dos membros inferiores. Isto é um exemplo evi­
dente da transformação que a integração dos centros
nervosos noutros pode provocar nas reacções periféricas
Aliás, a transformação apresenta muitas vezes alterna­
tivas sucessivas: durante algumas horas ou mesmo dois
ou três dias depois do nascimento, a posição que toma
o dedo grande do pé é a flexão; a intervenção das inci­
tações piramidais não faz, assim, mais que restabelecer
a reacção inicial. Deste modo, o mesmo efeito periférico
pode corresponder, conforme o estádio de desenvolvi­
mento em que se produz, a condições diferentes.
O estudo dos movimentos propriamente ditos permite
verificar esta tese. Não há nenhuma razão, por exem­
plo, para ver na pedalagem do recém-nascido o gesto
totalmente organizado do andamento, pois este só apa­
recerá ao fim de longos meses, durante os quais entrarão
sucessivamente em jogo novos centros nervosos, ao
mesmo tempo que se modificará visivelmente a agitação
dos membros inferiores. Aliás, como se poderia isolar
algum dos automatismos elementares, nos quais se de­
compõe o andar, do seu equilíbrio total, em que a sua
fusão é permanente e cuja manutenção pressupõe a mais
estrita integração das actividades musculares nos seus
órgãos reguladores?
O mesmo se poderá dizer quanto às mãos. Quando
elas se crispam no objecto que toca a palma da mão,
não existe ainda preensão mas, quanto muito, um reflexo
de agarrar. O gesto de um pé à procura de um contacto,
de um suporte, quando o outro acabou de poisar, é mais
um gesto para se agarrar que para andar. De um acto
para outro que se lhe segue, transmitem-se certamente
movimentos, mas transformados, na medida em que se
integram noutros sistemas e obedecem a outras neces­
sidades.
É frequentemente possível assistir ao conflito de sis­
temas sucessivos. Agitando-se na banheira, a criança

160
vê a esponja afastar-se; a princípio, não é capaz senão
de repetir os mesmos gestos; depois, consegue orientar
o movimento do braço na direcção da esponja, mas man­
tendo o punho cerrado, e mais uma vez a afasta para
longe de- si. Só a seguir conseguirá estender a mão aberta
e fechá-la na esponja. A redução dos obstáculos que
estes movimentos opõem exige o aparecimento de uma
fórmula nova, que não é a simples adição de elementos
primitivamente distintos.
Os exercícios que precedem o andar oferecem um
exemplo semelhante. É claro que é fácil reconhecer, nas
recuperações de que a criança se vai tornando cada vez
mais capaz, o aparecimento de aptidões indispensáveis
ao andar. Mas elas não são, como já dissemos, os frag ­
mentos antecipadamente constituídos da locomoção bí­
peda e vertical. Pertencem a sistemas actuais de com­
portamento no espaço, ou mesmo de locomoção, que
poderão um dia entrar em oposição com o andar, como
acontece com aquelas crianças que têm que ser impe­
didas de andar de gatas para lhes fazer sentir a neces­
sidade de se porem em pé. Um movimento não se cons­
trói como um edifício de partes edificadas cada uma
segundo um plano; ele deve substituir o seu próprio
plano aos das anteriores actividades.
A tendência comum é para considerar a harmonia
muscular como primitivamente composta de elementos
simples cujas diversas combinações provocariam toda
a série dos movimentos. Mas se há efectivamente cen­
tros cuja excitação permite fazer contrair, por pequenas
parcelas, todo o aparelho muscular, são os centros mais
elevados, os centros do córtex cerebral, quer dizer, os
últimos a desenvolverem-se na série animal, que funcio­
nam em último lugar no indivíduo. Antes deles, entram
em jogo os centres que coordenam conjuntos mais ou
menos extensos de atitudes e de gestos, aquilo a que
se chama, um pouco confusamente, os automatismos
naturais. A circunvolução motora do córtex onde se pro-
jectam distintamente as diferentes regiões do aparelho

161
n
muscular é, sem dúvida alguma, um instrumento que
permite analisar os movimentos. Esta análise exige, no
entanto, uma atenta aprendizagem. Ela é uma operação
secundária e, de certo modo, artificial. Se se produz
uma ruptura patológica entre a circunvolução motora
e os centros subjacentes, o indivíduo encontra-se perante
verdadeiros blocos de contracções musculares que já não
pode limitar nem dirigir.
Também a criança tem a princípio bastante dificul­
dade para coordenar os gestos. Os primeiros que apa­
recem são os mais difusos e os mais maciços. Só muito
mais tarde chega a conseguir dissociá-los em sistemas
mais específicos e mais capazes de se adaptarem à diver­
sidade das coisas e das circunstâncias. Em presença de
uma nova tarefa, ele tem que lutar contra sincinésias,
quer dizer, contra o grupo motor a que pertence o movi­
mento oportuno e que muitas vezes o torna pesado,
impreciso e o paralisa. Dissolver uma sincinésia é, tanto
para o adulto como para a criança, uma questão de
treino, mas que segue e não poderia antecipar a m atu­
ração funcional.
Os primeiros gestos são bilaterais; só ao fim de
várias semanas depois do nascimento se constatam ges­
tos unilaterais (M. B ergeron): o controlo que a criança
pode exercer sobre os seus movimentos, quer dizer,
o poder para os inibir, seleccionar, modificar, ou seja,
uma progressão regional, que demonstra bem a sua
dependência em relação à evolução fisiológica.
Este controlo começa a exercer-se na região superior
do corpo e na parte próxima dos membros; só mais tarde
se manifesta em baixo e nas extremidades distais
(Sr.a Shirley). A acção do feixe piramidal só se pode
efectivamente fazer sentir depois do acabamento da sua
mielinização, que vai do corpo celular para a periferia,
e que é mais curta nos trajéeos curtos e mais longa nos
trãjectos longos. Tournay demonstrou, por outro lado,
que ela é, nos destros, mais precoce de algumas semanas
à direita que à esquerda.

162
Uma outra delimitação dos movimentos, sem a qual
eles não teriam nenhuma precisão, é a que consiste,
sempre que se executam, numa exacta repartição do
próprio movimento e das atitudes correspondentes. Estas
atitudes são de duas espécies. Umas dependem da con-
tracção tónica que acompanha a deslocação do membro
em movimento, que sustém as suas sucessivas posições,
sem a qual ele não teria continuidade nem resistência.
Pode acontecer que, parando bruscamente o movimento,
a atitude correspondente se mantenha por si mesma,
ou que seja a única que subsista, entravando o movi­
mento, como acontece nos estados catatónicos e em cer­
tas manifestações de surpresa. Ela não existe, pelo
contrário, nos movimentos da criança pequena, que são
lançados no espaço e recaem assim que se esgota a p ri­
meira impressão. Inversamente, A. Colin demonstrou
no bebé tendências para a catatonia. As duas funções,
tónica e clónica, não estão ainda integradas uma na
outra.
Uma segunda espécie de atitudes resulta das con­
tracções tónicas que se produzem a propósito de cada
movimento nas partes do corpo que não estão em movi
mentó. Como elas são inexistentes na criança pequena,
ela é arrastada por cada um dos seus gestos. Incapaz
de se imobilizar, têm outros que a seguram para que não
caia. E sta falta de aptidão dura muito tempo. A imobi-
lização das regiões aparentemente inactivas é, na reali­
dade, uma acção extremamente complexa. Toda a parte
do corpo que se desloca tende a deslocar o seu centro
de gravidade. Para evitar a perda de equilíbrio, tem que
se produzir uma resistência, que é precisamente uma
contracção compensadora nas restantes partes e de pre­
ferência no eixo do corpo, ao longo do ráquis, nos
músculos que o sustêm e cuja função preponderante
é tónica: estes são, essencialmente, os músculos do
equilíbrio.
A resistência varia não só com a amplitude e enver­
gadura do gesto mas também com as resistências que

163
ele próprio pode encontrar no espaço. O ajustamento
de uma às outras torna-se evidente quando estas cedem
bruscamente pelo desequilibrio resultante, o que é muito
freqüente na criança por esta ser menos capaz de um
reajustamento rápido.
A dificuldade é ainda maior quando, em vez de se
poder imobilizar, é todo o corpo que está em movimento.
Então as contracções compensadoras de cada deslocação
parcial têm que se combinar com o impulso do conjunto,
de modo a fundirem-se nele harmoniosamente, numa
espécie de equilíbrio fluido e progressivo. É o que se
produz no andar e nas acções que dele derivam: cor­
rida, dança, salto, etc. A menos que haja lima estrita
sinergia entre as compensações tónicas e a sucessão
contínua dos gestos, surgem obstáculos capazes de en­
travar completamente o andar. Assim, na embriaguez,
o peso da perna que se levanta arrasta o corpo para o seu
lado e a alternância deste desequilibrio provoca um
andar em ziguezague. A criança pequena apresenta efei­
tos semelhantes: o seu andar é em ziguezague, porque
é arrastado pelo peso do corpo lançado para a frente.
«Ela corre atrás do seu centro de gravidade.» Por não
saber ainda manter o equilíbrio através das contracções
apropriadas, ela só consegue muitas vezes parar apoian-
do-se num obstáculo. Só consegue evitar cair ou andar
em ziguezague afastando as pernas, de modo a alargar
a sua base de sustentação.
O acordo das reacções posturais e do movimento
traduz-se ainda, nas operações que exigem precisão e
firmeza, pela gradual substituição da atitude pelo gesto.
Se se tra ta de agarrar ou de manipular um pequeno
objecto, as grandes deslocações do corpo e dos membros
vão-se a pouco e pouco reduzindo à simples agitação
dos dedos. Mas' a imobilização das outras partes não é
neutra; a cada instante ela tem que fornecer o suporte
flexível ou rígido, fixo ou plástico, que exige cada etapa
da manipulação. Falta à criança durante muito tempo
esta capacidade. Os seus movimentos ultrapassam o

164
objective), estão sujeitos a oscilações demasiado amplas,
por causa da sua impotência para localizar o gesto,
fixando as partes do corpo que lhe devem dar um ponto
de apoio. A sua mão plana primeiro sobre o objecto,
depois lança-se toda aberta sobre ele e por fim aperta-o
maciçamente.
Todas estas insuficiências de ajustamento entre as
acções clónicas e as tónicas são manifestações de assi-
nergia. Elas pertencem à patologia do cerebelo e, na
criança, ao atraso da sua maturação. Este atraso pode
em certos casos ultrapassar a idade normal e mesmo
prolongar-se por uma duradoira debilidade da função.
Por isso, foi possível descrever um tipo motor assi-
nérgico, que não deixa de te r efeitos psicológicos.
Um movimento, por mais insignificante que seja, não
se distingue da sua projecção no espaço. A sua orien­
tação pertence à sua estrutura. Existe um espaço motor,
que aliás, contrariamente à opinião comum, não é ainda
o espaço representado nem o espaço conceptual, que une
os diferentes níveis funcionais, tomando-os uma reali­
dade imutável, necessária, que se impõe por si mesma
à primeira vista. Não tem cabimento opor o movimento
a um meio em que encontraria secundariamente as suas
determinações locais. Pela sua própria existência, o mo­
vimento implica o meio em que se deve desenvolver.
Não se torna apalpador de um momento para o outro,
pois lhe é necessária experiência. Necessita, indubita­
velmente, de ser guiado, mas só o pode ser depois de
transposto um certo limiar funcional. Tournay demons­
trou que antes de uma data que lhe parece corresponder
à entrada em função do feixe piramidal, a mão da criança
cruza o seu campo visual sem lhe despertar o mais
pequeno interesse. Uma vez realizada a junção entre o
campo visual e o campo motor, o olho segue a mão
e depois guia-a.
Vão igualmente surgindo por etapas sucessivas outros
acordos mais complexos entre o movimento e os seus
objectivos, tal como a sua adaptação à estrutura e ao

165
uso dos objectos, que não é o simples resultado de ten­
tativas fortuitas ou experimentais. Podendo uma lesão
de determinados centros nervosos aboli-la no adulto, ela
exige, evidentemente, na criança a possibilidade de os
utilizar, de os ordenar, e daí a- sua maturação funcional.
O mesmo se diga para a capacidade para fazer surgir
do campo perceptivo-motor as soluções que permitam
desviar o obstáculo ou remediar a insuficiência das forças
naturais através da utilização de um instrumento. Ela
apresenta graus muito diferentes segundo as espécies
animais e, na mesma espécie, de um indivíduo para outro.
A estas actividades correspondem diferentes níveis
de organização funcional. Eles são um facto de evolu­
ção. Por muito necessária que seja, a aprendizagem
por si só não é suficiente. Estas actividades são, aliás,
actos completos, condutas com um objectivo próprio e
a escolha dos meios. A parte das circunstâncias que
suportam e que podem constelar aumenta com a sua
complexidade. O seu estudo pressupõe a das motivações
de que dependem.
#

Os impulsos são os actos de nível mais baixo, em


que as motivações são mínimas. Parecem descargas
motoras actuando por si mesmas. O seu grau de sim­
plicidade ou de complexidade depende dos sistemas que
a evolução natural ou o uso foram tornando habituais.
No adulto, podem ser compostos por operações auto­
máticas que se entrelaçam umas nas outras. Na criança,
não entram ainda em jogo mais que simples ejaculações
motoras e vocais ou reacções que se assemelham aos
gestos espontâneos de agressão, de produção alimentar
ou outra, e de defesa. Em todos os casos, o motivo
é insignificante. Elas são como que o efeito de uma
autoactivação, de uma incontinência, de uma fuga aos
controlos habituais do comportamento. Estes controlos,
ainda débeis e com falta de organização na criança,

166
podem ser desorganizados no adulto por vicissitudes ín­
timas ou fisiológicas. E passa a tempestade, sem deixar
mais motivações para a actividade subsequente que as
inexistentes na anterior.
As primeiras motivações parecem provir de um efeito
sensorial de que a criança parece de repente dar-se conta
e que procura reproduzir. Por exemplo, passando a sua
mão no seu campo visual, chega a altura em que a imo­
biliza diante dos olhos, afasta-a e volta a aproximá-la,
e depois aprende a agitá-la de diferentes modos, ávida
de conhecer os seus aspectos e deslocações. A sensação
só é retida, discriminada, identificada, no momento em
que a criança se torna capaz de a reproduzir através
de gestos apropriados. De contrário, permanece indis­
tinta entre as impressões indistintas, onde se confunde
o que depende da excitação e o que depende da reacção
reflexa. Assim se combinam reacções circulares em que
a sensação suscita o gesto capaz de a fazer durar ou
reproduzir, enquanto o gesto se deve adaptar a ela para
a tornar reconhecível e depois para a diversificar meto­
dicamente. Este ajustamento preciso do gesto ao seu
efeito instaura entre o movimento e as impressões exte­
riores, entre as sensibilidades proprioceptivas e extero-
ceptivas, sistemas de relações que as diferenciam e opõem
na mesma medida em que as combinam em séries minu­
ciosamente unidas.
As conseqüências deste exercício manual são con­
sideráveis. Há, em primeiro lugar, a formação de m ate­
riais sensório-motores que tornarão possível ultrapassar
as actividades brutas dos aparelhos motor e sensorial.
O olho e a mão passarão a estar estreitamente asso­
ciados para a exploração e manejo das coisas ambientes.
Mas o exemplo mais evidente é sem dúvida o das séries
auditivas e vocais que a criancinha passa longos momen­
tos a constituir com os seus gorjeios. O som que produziu
mais ou menos fortuitamente é repetido, afinado, modi­
ficado e acaba por se desenvolver em longas séries de

167
fonemas em que as leis e as alegrias do ouvido se vão
reconhecendo cada vez mais na formação dos sons.
No entanto, a preponderância inicial das incitações
motoras revela-se através das etapas por que passa
o gorjeio. Vão entrando sucessivamente em cena os
sons que podem ser produzidos pelos lábios, cujos movi­
mentos estão já desde o nascimento tão bem regulados
na mamada; os que dão o máximo de impressões mus­
culares às partes móveis da cavidade bucal quando ro­
çam o véu do palato, quer dizer, as guturais (R onjat);
os que são o efeito dos movimentos da língua contra o
palato ou o lambdacismo; depois, das suas pressões
contra as gengivas sob a influência, segundo crê P. Guil­
laume, da irritação causada pelo impulso dental. Ao
mesmo tempo, as vocalizações vão-se tomando cada vez
mais variadas e muitas vezes delicadas, atingindo por
vezes a mais perfeita vocalização das consoantes.
A riqueza deste material fonético corresponderia ao
material de todas as línguas faladas e ultrapassá-lo-ia
indubitavelmente (Grammont, R onjat). A língua ma­
terna da criança só terá, portanto, que ir aí beber
segundo as suas necessidades. Mas antes que a criança
possa agrupar os fonemas em palavras, a fina indivi-
dualização dos sons resultantes destas trocas sensitivo-
-motoras torna-a capaz de discernir as subtis diferenças
a que as palavras devem a sua estrutura e a sua fisio­
nomia, aumentando o seu interesse à medida que se
tom a capaz de lhes dar um significado. Assim, o que
procedia em primeiro lugar do movimento dá os pri­
meiros resultados na percepção.
Uma outra conseqüência da conjugação entre efeitos
sensoriais e movimentos é a união dos diferentes campos
sensoriais. O movimento constitui o seu denominador
comum, podendo as transformações que produz ser per­
ceptíveis simultaneamente em vários campos sensoriais.
Para. que esta simultaneidade seja reconhecida, é certa­
mente necessário' um certo grau de maturação funcional.
Gordon Holmes mostrou, com efeito, que a simultanei-

168
dade desaparece em conseqüência de certas lesões cere­
brais. Na criança, é ao movimento que se devem os
efeitos correlativamente registados nos diferentes sen­
tidos. Ele constitui um novo meio de coordenação no
mundo das impressões, permitindo agrupar as que são
relativas a uma mesma presença, a uma mesma exis­
tência, a um mesmo objecto, seguir o que se desloca
de um campo sensorial para outro, enfim, substituir
a permanência da causa ao polimorfismo e à fugacidade
das impressões.
O progressivo reconhecimento das coisas segundo as
etapas do movimento pode ser ilustrado pela sucessão
dos três espaços nos quais W. Stern inscrevia o desco­
brimento do mundo pela criança. Em primeiro lugar, o
espaço bucal: é à boca que o bebé leva todos os objectos,
não para comer, mas por ser o único local do corpo
em que a concordância exacta dos movimentos e das
sensações, exigida desde o nascimento pela sucção, per­
mite igualmente apreciar um contorno, um volume, uma
resistência, tudo isso ainda evidentemente confuso e con­
fundido com outras qualidades eventuais, tais como a
tem peratura ou o gosto.
Assim que surge o momento em que os seus gestos
já não são pura e simplesmente lançados no espaço e em
que as mãos podem seguir uma direcção, agarrar, coor­
denar-se, a criança entra na posse do espaço próximo.
Mas é só quando é capaz de autolocomoção que o seu
espaço deixa de ser uma simples colecção de meios
ambientes sucessivos. Porque a sua continuidade, a sua
fusão, a sua redução a uma mesma extensão, em que
os objectos estão distribuídos segundo escalonamentos
variáveis, são uma operação irrealizável enquanto ela
não pode, pelos ^seus próprios movimentos, reduzir as
distâncias, transm utar entre elas as diferentes áreas
da sua vida familiar, aventurar-se no desconhecido e
reduzir tudo, enfim, à medida dos seus passos actuais
ou eventuais.

169
Estes resultados não são, evidentemente, o produto
automático de actividades ou de combinações sensório-
-motoras. Pelo contrário, estas actividades, entregues
a si mesmas, giram sobre si mesmas, como acontece
com uma certa categoria de idiotas que se encer­
ram definitivamente no ciclo dos mesmos exercícios,
em que aliás podem atingir a mais vã das perfeições.
Estas ocupações estereotipadas não deixam, porém, de
ter uma certa relação com a aquisição dos hábitos.
O gosto pela repetição, o prazer que sente com os actos
ou coisas redescobertas, são manifestos na criança pe­
quena. A eles deve a sua indispensável perseverança de
aprendizagem. Deste modo, durante longos momentos,
a criança é monopolizada por operações puramente lúdi­
cas. Enquanto a matéria e os meios forem os mesmos,
elas não tendem para lhe fazer adquirir mais que uma
virtuosidade puramente formal. Mas o gosto pela inves­
tigação que arrasta toda a criança normal incita-a a
fazer mudanças, ao longo das quais a fórmula se separa
do acto. Myers insistiu na sua importância. Elas repre­
sentam o único progresso que um hábito pode trans­
mitir à actividade geral. Podem, por via de assimilação
ou de confusão — mas de confusão adaptada —, aplicar
o acto aprendido a novos objectos. Podem igualmente
transm itir a sua execução a outros órgãos: mudança
de mão na mesma operação, execução com o pé do que
se fazia com a mão. É, no dizer de Katz, um acentuado
progresso poder realizar com uma só mão o que se fazia
com as duas.
Essencialmente virada para o estabelecimento de rela­
ções entre os movimentos e tudo o que lhe pode corres­
ponder nos diferentes campos sensoriais, para a substi­
tuição das impressões proprioceptivas por efeitos exte-
roceptivos ou, inversamente, das circunstâncias exterio­
res do movimento por esquemas proprioceptivos, como
é oxaso da aprendizagem dos automatismos e a aquisi­
ção dos hábitos, a actividade sensório-motora desenvol­
ve-se indubitavelmente no espaço, que ela contribui para

170
dar a conhecer como uno e homogéneo, mas não possui
ainda mais que objectivos ocasionais. É a outras acti­
vidades que compete estabelecer os objectivos e con-
frontá-los com os seus meios.

A atracção que a criança sente pelas pessoas que a


rodeiam é urna das mais precoces e das mais poderosas.
A dependencia total em relação a elas em que a coloca
a satisfação das suas necessidades cedo a torna sensível
aos mais pequenos indicios das suas disposições a seu
respeito e, reciprocamente, aos resultados obtidos delas
pelas suas próprias manifestações. Daí que exista, no
limiar da sua vida psíquica, uma espécie de consonância
prática com outrem. De irreflectida, esta consonância
poderá tornar-se mais deliberada à medida que os pro­
gressos da sua actividade lhe forem fornecendo os meios
para se diferenciar a si mesma em contraposição com
as outras pessoas. Então a pertença dará lugar à indi-
vidualização e o simples conformismo à imitação. Os
primeiros objectivos, perseguidos por si próprios, que
regulam exteriormente a actividade da criança, são os
modelos que ela imita. E sta é uma fonte inesgotável
de iniciações, que a fazem exceder, muitas vezes, aliás,
de um modo completamente formal, o quadro das ocupa­
ções a que as suas necessidades a podem incitar direc­
tamente.
No animal, até mesmo no macaco, a imitação é rara,
pelo menos como empréstimo oportuno de um novo
processo. Ela não se deve, de facto, confundir com as
reacções semelhantes de animais que apresentam um
comportamento análogo em presença das mesmas cir­
cunstâncias. Reflexos idênticos, as imperativas exigên­
cias de uma situação, as facilidades ou as sugestões de
manipulação que um objecto oferece são suficientes para
explicar o aparecimento simultâneo ou alternado dos
mesmos gestos em dois animais que vivam juntos. No

171
entanto, não é certo que Os gestos de um não exerçam
qualquer influência sobre os do outro. Uma criança
pequena começa por não saber reproduzir os movimentos
ou os sons emitidos diante dela, a não ser que ela própria
os tenha executado espontaneamente. Ё então necessário
que o acto a im itar sobreviva no aparelho motor, para
que a imitação se efectúe. Ela é, no entanto, o seu novo
motivo. Deste modo, podem-se observar dois animais
repetir sucessivamente, e aparentemente satisfeitos, um
gesto a que cada um deles por si só não teria dado
nenhuma importância. O que a ocasião tinha suscitado,
a imitação reitera-о. Este é um começo que não deixa
de ter importância mesmo quando não é ultrapassado.
Ele dá aos gestos espontâneos uma nova motivação;
opera-se assim entre eles uma selecção segundo se encon­
tram ou não em dois seres que se freqüentam habitual­
mente. Por seu intermédio instaura-se nos dois uma
espécie de conformismo mútuo.
A característica própria e a novidade da imitação
é a indução do acto por um modelo exterior. É, pois,
desprovido de sentido atribuir-lhe como origem «a imi­
tação de si mesmo». Certas lesões nervosas tornam
incoercível a repetição pelo sujeito do que ele acaba
de fazer: segundo se trata de gestos ou de palavras,
é a palicinésia ou a palilalia. Ela pode ser igualmente
um fenómeno de simples distracção e às vezes transfor­
mar-se num tique. No estado normal, ela utiliza-se se­
gundo as necessidades. Mas as suas conexões nervosas
não correspondem de modo algum às da imitação. A ten­
dência de um acto para repetir-se apresenta-se ainda sob
a forma de persistência. Freqüente na criança, ela denota
um certo grau de inércia mental e a preponderância da
execução sobre a ideação motora. Encontra-se igual­
mente em oposição com essa modelagem do movimento
que tem por base uma intuição ou uma imagem:
a imitação.
Qualquer reprodução de uma impressão sensorial de
origem exterior não merece, aliás, ser considerada como

172
imitação. Assim, a repetição imediatamente consecutiva,
como um eco do gesto ou do som que se acaba de ver
ou ouvir, está muito mais próxima da simples actividade
circular. O efeito sensorial de um movimento que a incita
a renovar-se depressa se liga tão estreitamente a ele que
o levará a efectuar-se mesmo sem ter sido primeiro pro­
duzido por ele. Passando a iniciativa à sensação, o apa­
relho motor torna-se capaz de repercutir impressões
sonoras ou visuais de qualquer origem, desde que lhe
sejam familiares. Mas nas duas séries motoras e senso-
riais a ligação só se efectúa entre elementos específicos.
Por isso, a ecocinésia e a ecolalia não são repetição, mas
sim termos nos quaiyterm ina uma sucessão de gestos
ou de sons, estando impedida a passagem ao movimento
dos precedentes, enquanto as impressões se renovam,
pela sua sucessão demasiado rápida. Este género de inci­
dentes sensório-motores tem um nível de tal modo baixo
que a sua reactivação no adulto está relacionada com
uma avançada dissolução das actividades mentais. Ela
corresponde aos estados de confusão e por vezes de
distracção, em que se perdeu o poder de organizar con­
juntos e de detectar significados.
Com efeito, não existe imitação enquanto não houver
percepção, quer dizer, subordinação dos elementos sen-
soriais a um conjunto. É à reconstituição do conjunto
que ela se dedica. O que poderia causar um engano,
é o facto dela incluir, entre os seus processos, o da cópia
literal. Mas a reprodução sucessiva de cada traço pres­
supõe uma intuição latente do modelo global, quer dizer,
a sua apercepção e a sua compreensão prévias, sem as
quais ela só dá resultados incoerentes. Por muito mecâ­
nica que seja na aplicação, ela corresponde a um nível
já complexo da imitação. Pressupõe o poder de seguir
uma ordem, uma técnica, e a capacidade sempre pronta
para comparar, quer dizer, para se desdobrar na acção,
operações que só uma etapa já avançada da evolução
psíquica pode tornar possíveis.

173
Nas suas imitações espontâneas, a criança não possui
uma imagem abstracta ou objectiva do modelo. Longe
de saber distinguir-se dele, começa por se lhe unir numa
espécie de intuição mimética. Só imita as pessoas que
exercem sobre ela uma profunda atracção ou as acções
que a cativaram. Na base das suas imitações está o amor,
a admiração e também a rivalidade. Porque o seu desejo
de participação cedo se transform a em desejo de subs­
tituição; na maior parte das vezes, até, coexistem estes
dois desejos, inspirando-lhe para com o modelo um sen­
timento ambivalente de submissão e de revolta, de fi­
deísmo vergonhoso e de denegrimento 0 ).
Inicialmente de raiz afectiva, a imitação encontra
também na participação no modelo o seu primeiro modo
de o perceber assimilando-se a ele. Ela não é a repro­
dução imediata ou liberal dos traços observados. Entre
a observação e a reprodução decorre habitualmente um
período de incubação que se pode contar por horas,
dias ou semanas. As impressões que vão amadurecendo
para originar os movimentos apropriados não são apenas
visuais ou auditivas. Basta observar a criança em pre­
sença de um espectáculo que lhe interessa para reconhe­
cer que ela participa nele por todo o conjunto das suas
atitudes, mesmo quando elas a parecem imobilizar. De
tempos a tempos escapam-se-lhe certos gestos furtivos,
umas vezes gestos de simples expansão, que assinala
toda a aplicação íntima e laboriosa que dá às peripécias
da cena, outras, gestos de intervenção disfarçada, quer
para se antecipar ao que a espera quer para corrigir
as insuficiências ou os erros que lhe parecem compro­
meter a acção a que assiste. Assim, à sua percepção
vem juntar-se uma plasticidade interna que não é ainda
mais que vigilância motora, ou postura, e de que o movi­
mento efectivo não poderá sair sem elaboração.
A passagem directa do movimento para o movimento
não^ será possível a não ser que o movimento imitado

(‘) Ver a 2.* Parte, Cap. IV.

174
já se tenha podido espontaneamente produzir no mesmo
plano de actividade e nas mesmas circunstâncias que
o movimento a imitar, condição que reduziria a bem
poucas coisas o papel da imitação, cuja importância é,
no entanto, capital na criança. A aquisição da linguagem,
por exemplo, não é senão um longo ajustamento imita­
tivo de movimentos e séries de movimentos ao modelo
que, há já muitos, dias, permite à criança compreender
qualquer coisa dos propósitos dos que a rodeiam. Este
modelo pode mesmo atrasar-se em relação às impressões
auditivas do momento. Grammont cita uma pequenita
cujas primeiras palavras apareceram com uma desinência
italiana, apesar de não ouvir falar italiano já há várias
semanas. Com um intervalo muito menos longo entre
a formulação postural e a eclosão do gesto, a cambalhota
do palhaço que, dois ou três dias depois do espectáculo,
a criança procura reproduzir está submetida a um per­
curso semelhante.
No seu trajecto, a imitação está sujeita a sofrer
desvios que mostram que, longe de ser o decalque fácil
de uma imagem sobre um movimento, lhe é necessário
abrir caminho, utilizando-os, através de uma massa de
hábitos motores e de tendências que vão a pouco e pouco
pertencendo àquele fundo de automatismos e de ritmos
pessoais que se denotam na actividade de cada ser e
donde brotam tantos gestos espontâneos na criança.
São eles que servem de intermediário entre a impressão
exterior que acompanham, que procuram captar, e a
repetição explícita do modelo. Eles servem sucessiva­
mente para a sua interiorização e para a sua exteriori­
zação. Depois de ele ter sido reduzido a uma intuição
que o despoja mais ou menos das suas determinações
locais, é em seguida necessário efectuar o esforço inverso.
Onde a imitação tropeça durante muito tempo é na rein-
venção, não sempre dos próprios gestos, mas da sua
justa distribuição no tempo e no espaço; na relação
a manter entre a intuição global do acto e a sucessiva
individualização das partes. Este poder de organização

175
em série implica a atitude para constelar conjuntos per-
ceptivo-motores. A sua necessidade afirma-se tanto mais
quanto mais os objectivos da actividade pertencerem
mais completamente à realidade exterior.

As relações da criança com os objectos não são tão


simples como poderia parecer à primeira vista. A sua
maneira de os manejar inclui graus que não dependem
unicamente da sua falta de habilidade ou de experiência
motora. A Patologia mostra que as diferentes qualidades
de um objecto podem continuar a ser percebidas depois
dele ter deixado de ser reconhecido no seu conjunto
e na sua utilização. O poder perdido pelo adulto deve
a criança adquiri-lo, com a diferença de que ela tem,
ao mesmo tempo, que regular e pôr em funcionamento
os elementos perceptivo-motores que no adulto perderam
simplesmente o seu significado comum.
Os objectos que a rodeiam começam por ser para
a criança uma ocasião de movimentos que não têm muito
a ver com a sua estrutura. Ela atira-os para o chão,
ficando atenta ao seu desaparecimento. Depois de apren­
der a agarrá-los, desloca-os com os braços, como para
exercitar os olhos a encontrá-los em cada nova posição.
Se eles possuem partes que se entrechocam, ela não deixa
de reproduzir o som detectado, agitando-os de novo.
Eles são, em suma, mais um elemento sensório-motor
que entra do exterior na actividade circular. Vem em
seguida o momento em que o efeito que tira dum não
pode ser tirado de todos. Nas suas tentativas para o
obter, ela parece classificar os objectos segundo eles
apresentem ou não a particularidade correspondente.
Uma a que liga uma grande importância, é a relação
entre o que contém e o que é contido. Tendo-a desco­
berto, a criança aplica-se a introduzir em tudo o que é
uma abertura os objectos mais heterogéneos. Não poupa
sequer os seus próprios orifícios corporais ou mesmo os

176
de outras pessoas. A atracção quase universal que exer­
cem os sapatos numa certa idade está em parte relacio­
nada com o seu carácter de buraco.
Por muito fecundo que possa ser este período para
a discriminação e inventário das qualidades próprias
das coisas, ele deixa ainda o objecto de lado. Trata-se
apenas de condutas no sentido que lhe dá Janet. São
condutas elementares que se inventam a si mesmas,
utilizando as mais díspares ocasiões. É daí que provém
a impressão barroca que dão por vezes as associações
e as combinações da criança, aliás, sobre um fundo de
grande monotonia. Só mais tarde surge a exploração
do próprio objecto. Então inverte-se o interesse: por
um aparente paradoxo, ele parece ir do abstracto para
o concreto; na realidade, vai do mais para o menos
subjectivo.
Já não é então a uma mesma e única qualidade que
são reduzidos os objectos; são as qualidades de um único
e mesmo objecto que a criança se esforça por reconhecer
e reunir. Estas investigações ultrapassam a simples enu­
meração. A unidade do objecto, que faz a unidade dos
seus traços sucessivamente detectados, não é uma soma,
mas sún uma estrutura com o seu significado. Descobrir
ejg.»iejar uma estrutura pressupõe a aptidão para com­
preender e utilizar as relações que devem ter como
substracto duradoiro o poder de imaginar cada posição
como fixa enquanto um movimento não a tiver modifi­
cado, e os próprios movimentos como subentendidos por
uma série de posições fixas. É uma intuição de simul-
taneidade que se torna necessária; a sua expressão será
inevitavelmente o espaço, mas em graus variáveis de
sublimação relacionados com cada espécie de operação.
O significado da própria estrutura, significado de uso
ou de forma, só pode ser atingido e definido em opo­
sição ou em relação com outras.
As combinações que podem surgir no espaço sensó-
rio-motor dependem daquilo a que se chamou inteligência
prática ou inteligência das situações, a forma de inteli-

177
12
gência mais imediata e mais concreta. Ela parece pre­
ceder, na escala animal e no desenvolvimento da criança,
a realização mental do objecto, mas os seus progressos
continuam ainda durante muito tempo. Com cerca de
um ano de idade, a criança consegue resolver os mesmos
problemas que o chimpanzé, mas há alguns mais compli­
cados que ela não consegue resolver antes dos 13 ou
14 anos, permanecendo embora, segundo parece, essen­
cialmente no mesmo plano de operações mentais (').
Foram as experiências de Koehler sobre o comporta­
mento dos primatas superiores que fizeram despertar
um novo interesse pelo assunto. Nestes animais biolo­
gicamente muito próximos do homem, ele demonstrou
a existência de uma aptidão, aliás muito desigual con­
forme os indivíduos, mas muito superior à das outras
espécies, para conseguir apoderar-se duma presa cobi­
çada apesar do obstáculo que se opõe à sua preensão
directa. Sendo a sua força ou agilidade surpreendidas
pela resistência duma grade ou pela distância, a maior
parte dos animais renunciam depois de alguns assaltos
furiosos. Nos antropóides, porém, manifestam-se clara­
mente outros comportamentos. Em primeiro lugar, sabem
afastar-se provisoriamente do objecto ou afastá-lo de si
para contornar o obstáculo: é o procedimento do desvio.
Sabem também reduzir, utilizando instrumentos, o afas­
tamento imposto pela distância entre o alcance máximo
que podem atingir os seus gestos e a presa. Estes dois
comportamentos estão frequentemente combinados. O seu
estudo demonstrou que eles não poderiam ser pura e
simplesmente assimilados à representação que o homem
faz dos seus.
Primitivo ou aperfeiçoado, banal ou especializado,
um instrumento define-se pelos usos que lhe são reco­
nhecidos. Ele é moldado para eles. Impõe o seu modo
de emprego a todos os que se querem servir dele. Existe
de forma duradoira e independente. Quem conhece a sua(*)

(*) André Rey, L’Intelligence pratique chez 1’enfant.

178
existência, tem que o ir procurar em caso de necessidade.
É um objecto constituído, um objecto construído segundo
certas técnicas com vista a outras técnicas, o produto
muitas vezes remodelado de experiências tradicionais ou
recentes cujo fruto transmite aos que o utilizam. E sta
forte individualização não pertence ao instrumento do
chimpanzé.
O instrumento não é apenas ocasional; é uma simples
parte de um conjunto provisório onde vai buscar o seu
significado. Se o pau, com a ajuda do qual o chimpanzé
poderá fazer chegar até ele o bocado de laranja ou a
banana, não for descoberto no próprio instante dos seus
esforços, permanecerá inútil e ignorado. Não só escapa
à atenção do animal se não estiver nesse momento no
campo perceptivo que o une à presa, como pode acon­
tecer que, interposto entre ele e ela, permaneça durante
muito tempo estranho às suas tentativas, até que de
repente o utiliza para conseguir o seu objective, como
se o desejo da guloseima criasse um campo de força
onde os gestos e as percepções se ajustam segundo
linhas que se deslocam até realizarem a estrutura favo­
rável. O instrumento só é instrumento na medida em que
é descoberto, e só é descoberto na medida em que é
dinamicamente integrado na acção.
A experiência, indubitavelmente, não se perde. No
momento oportuno, o pau entrará mais depressa noutras
estruturas e, aliás, as mesmas estruturas terão tendência
para se repetir. O próprio pau, tornando-se familiar­
mente manejável, coleccionará, segundo as circunstân­
cias, os mais diversos usos e tomar-se-á uma espécie
de pau mágico, de que o macaco aprenderá a tira r todas
as espécies de efeitos que o divertem. Ele continua, no
entanto, a ser muito indelevelmente individualizado,
mesmo pelo que toca à sua morfología, e, na sua falta,
uma simples correia estendida no chão será utilizada
para os mesmos fins.
Um outro exemplo pode m ostrar a que ponto per­
manece o instrumento fundido na acção: o das caixas

179
de que se serve o chimpanzé para chegar à banana que
está suspendida lá no alto. A noção que tem da sua
estrutura é tão informe que, se for obrigado a sobrepô-
-las, coloca-as da maneira mais irregular e no equilíbrio
mais instável. Pouco importa, desde que ele tenha tido
tempo de tom ar balanço antes delas caírem. E, aliás,
não é debaixo do objecto a agarrar que ele as põe, mas
precisamente à distância que lhe é suficiente para o
atingir com um salto. Assim, a sua existência própria
desaparece, em certa medida, na intuição que o animal
possui das suas forças em ligação com as distâncias
e as direcções do espaço. A este nível de inteligência
prática, as relações de posição, de intervalo e de dimen­
são tomaram-se, de facto, a essência das coisas, mas
são ainda medidas pelas capacidades motoras do animal;
o seu sistema de referência permanece essencialmente
subjectivo.
A utilização do desvio 0) mostra igualmente esta
estreita integração do meio no acto. Guillaume e Meyer-
son compararam a imaginação que ele pressupõe à do
jogador de bilhar, para quem os choques e topadas sofri­
dos pela bola se incorpora ao movimento que recebe
deles. Existe, evidentemente, nos dois casos, uma intuição
totalmente dinâmica do campo operatorio. Mas a subs­
tituição da bola pelo sujeito, mesmo se se admitir a
transfusão do sujeito para a bola, introduz uma apreciá­
vel diferença. As tentativas de desvio são gestos em que
o animal não deixa de estar sempre presente. Elas não
implicam, portanto, em algumas minuciosas acomoda­
ções motoras a que se entrega o jogador no momento
de bater na bola, o mesmo poder de previsão pura, e
depois de extinção absoluta perante os efeitos desta
previsão. Mas os gestos, que começam por afastar o que
se quer agarrar para se vir a agarrar mais tarde, não
são menos a realização de um trajecto que, sem estar

(’) Ver a 2.* Parte, Cap. VI.

180
ainda separado deles, é ao mesmo tempo determinado
por um conjunto mais ou menos complicado de relações
no espaço.
#

Efectivamente, na medida em que o movimento leva


em si o meio, confunde-se igualmente com ele. Se esse
é de facto o domínio do acto motor propriamente dito,
a ele se lhe vem juntar. Já no animal se esboça o que
no jogo se vai desenvolver amplamente na criança:
o simulacro, quer dizer, um acto sem objecto real, ainda
que pareça um acto verdadeiro. Por muito total e seria­
mente que a criança se entregue ao jogo, não deixa, no
entanto, de desconhecer as suas ficções. Muito pelo
contrário, ainda aumenta mais a sua margem. Os brin­
quedos que mais lhe agradem não são os que melhor
se assemelham ao real, mas em que a sua fantasia, a sua
vontade de invenção e de_criação estão proporcionalmente
limitadas; são aqueles cujo significado mais depende da
sua própria actividade.
O simulacro não tem para a criança nada de ilusório,
pois é a descoberta e o exercício duma função. Na ori­
gem, era uma simples antecipação a que fortuitamente
escapou o objecto. Mas se ela se repetir por si mesma,
então o acto seguinte pode coincidir quase exactamente
com o acto original, pois o seu objectivo modificou-se.
Desprovido de eficácia prática, pelo menos no momento
seguinte, ele não é mais que a representação de si
mesmo. Mas é uma representação. Ou antes, ainda idên­
tico aos movimentos que representa, confunde em si
três etapas: o real, a imagem e os sinais por que se
pode exprimir a imagem. Conforme o momento e o grau
de evolução, é uma ou outra destas três funções que
prevalece. A sua coexistência inicial sob as mesmas espé­
cies torna insensíveis, mas mais fáceis, as transmutações
mútuas e cedo também, com a diferenciação funcional,
a diferenciação dos seus efeitos visíveis.
Um simulacro pode ser uma cópia exacta, ou um
esquema abstracto e já convencional. A imagem que

181
actualiza pode ser urna simples revivescência, ou lem­
brança, evocação, invocação do facto nela gravado.
O simulacro transformou-se frequentemente num rito,
quer dizer, numa intenção de suscitar realmente o acon­
tecimento representado. Dependendo ainda, por seu inter­
médio, dos gestos eficazes de que saiu, à imagem e à
ideia facilmente se atribuem um poder directo sobre as
coisas — o que foi baptizado de «poder mágico». Sem
falar nos primitivos nos quais o rito é uma instituição,
a ilusão de eficiência directa que a ideia mantém tem
simplesmente por origem uma delimitação ainda insufi­
ciente como na infância, ou novamente insuficiente como
na emoção, entre os diferentes domínios da consciência.
Os gestos de simbolização, de que o simulacro é o
exemplo mais concreto, podem facilmente contribuir,
na medida em que perdem a sua semelhança imediata
com a acção ou o objecto, para levar a imagem e a ideia
para além das próprias coisas, para um plano mental
em que se possam formular relações menos individuais,
menos subjectivas e cada vez mais gerais. Mas, ao mesmo
tempo, na medida em que são necessários à fixação,
evocação e ordenação das idéias, eles impõem-lhes as
suas próprias condições especiais. O pensamento perde-
-se quando, na miragem das crescentes abstracções, julga
poder desatar todos os laços que o unem ao espaço, o qual
é o único que, por graus, o pode voltar a fazer encontrar
as coisas.
O gesto, aliás, ultrapassa-se a si mesmo para ter­
minar no signo. Um movimento inscreve-se em graffiti
numa parede ou em gatafunhos num papel; este efeito
pode impressionar a criança, que o tenta repetir, ini­
ciando assim uma actividade circular em que o gesto
e o traço se comparam através das suas variações. Mas
o ciclo depressa se desfaz pela necessidade espontânea
ou sugerida de encontrar um significado para os traços.
A sua relação mútua é a primeira ideia que surge sem
nenhuma condição de semelhança. Depois a criança com­
põe o seu desenho segundo um tema, mas com elementos

182
muito mais convencionais que imitativos: é daí que pro­
cede aquilo a que se chamou o seu realismo intelectual,
por oposição ao realismo visual. E sta intuição da figu­
ração gráfica pode ser então utilizada em proveito da
escritura convencional. A tradução dos sons em traços
não criou, mas pressupunha a aptidão e a experiência
gráficas.
Os próprios sons de que se compõe a palavra não
são uma simples sucessão; pertencem a conjuntos que
juntam à sucessão pura a previsão simultânea e mais
ou menos ampla das palavras ou elementos fonéticos
a enunciar, da sua posição recíproca, da sua exacta dis­
tribuição. É esta operação que é defeituosa na afasia
e que opõe graves dificuldades à aprendizagem da pala­
vra pela criança. Foi possível m ostrar a concomitância
com a afasia duma incerteza no poder de distribuir os
objectos no espaço segundo um modelo que, no entanto,
podia ser detectado 0 ). O insucesso destas ordenações
parece ter, nos dois casos, a mesma origem. Ele põe em
causa um dinamismo estreitamente subordinado a rela­
ções de posição, uma intuição dinâmica destas relações.
Pode-se imaginá-lo como a íntima integração recíproca
do movimento e do espaço projectando-se em todos os
planos da vida mental. Assim, o acto motor não se limita
no domínio das coisas mas, através dos meios de expres­
são, suporte indispensável do pensamento, faz com que
este participe nas mesmas condições que ele. Este é um
factor a ter em conta na evolução mental da criança.

(') Ver a 2.* Parte, Cap. VI.

183
г
C A P IT U L O XI

O CONHECIMENTO

Os princípios da fala na criança coincidem com um


acentuado progresso das suas capacidades práticas, o
que se tornou particularmente manifesto ao comparar-se
o seu comportamento com o do macaco. Assim, Boutan
em primeiro lugar e outros depois dele, especialmente
Kellog e a sua esposa, colocaram em presença de situa­
ções idênticas e chegaram mesmo a educar em con­
junto uma criança, antes e depois da idade da fala, e um
jovem macaco. No período inicial, reacções muito aná­
logas. Mas quando lhe surge o uso da palavra, a criança
afasta-se rapidamente do seu companheiro. Se eles forem
colocados, por exemplo, em presença de caixas alinha­
das, em que uma contém uma guloseima, o adestramento
para a encontrar sem falhas começa por dar resultados
semelhantes. Mas se se modifica a ordem das caixas,
o macaco, desconcertado, não faz mais que procurar
ao acaso, enquanto a criança, a partir da idade em que
começa a falar, sabe reconhecer rapidamente o que
deve fazer.
Ё evidente que a linguagem está ainda demasiado
no início para que se possa encarar a hipótese de uma
ordem interior ou de qualquer enumeração mental. Tra­
ta-se antes da aptidão para imaginar nos objectos que

185
se podem avistar, uma deslocação, uma trajectória,
uma direcção invisíveis. Ela não é possível a não ser
que a visão, em vez de ser totalmente absorvida pelos
próprios objectos, os distribua num plano imaginário
de posições estáveis e solidárias. Sem ela, não há ne­
nhuma possibilidade de representar a ordem mais in­
significante, de efectuar uma seqüência. Dela depende
também o poder de ordenar as sucessivas partes do
discurso. A perda dum poder acarreta a perda de outro.
Um afásico não sabe indicar as direcções — alto, baixo,
direita, esquerda, etc. — se tiver os olhos fechados. Com
os olhos abertos o que ele mostra, segundo Sieckmann,
é um objecto, não uma direcção: o tecto ou o céu, a mão
que segura uma navalha de barba, a que não escreve, etc.
Simples condição de base, esta sobreposição ao espaço,
onde estão e se produzem as coisas e os gestos, da intui­
ção que os vê surgir, está, indubitavelmente, longe de
explicar toda a função da linguagem, ou as consideráveis
conseqüências que dela resultaram para a espécie e para
o indivíduo. Sem falar aqui das relações sociais que torna
possíveis e que a modelaram, nem o que cada dialecto
contém e transm ite de história, é a linguagem que fez
mudar-se em conhecimento a mistura estreitamente com­
binada de coisas e de acção em que se resolve a expe­
riência bruta. Ela não é, verdade se diga, a causa do
pensamento, mas é o instrumento e o suporte indispen­
sáveis aos seus progressos. Se há por vezes um atraso
num ou noutro, a sua acção recíproca restabelece rapi­
damente o equilíbrio.
Através da linguagem, o objecto do pensamento deixa
de ser exclusivamente o que, pela sua presença, se impõe
à percepção. Ela fornece à representação das coisas que
já não existem ou que poderiam existir o meio para
serem evocadas, e confrontadas entre si e com o que é
actualmente sentido. Ao mesmo tempo que reintegra
o ausente no presente, permite exprimir, fixar, analisar
o presente. Ela sobrepõe aos momentos de experiência
vivida o mundo dos signos, que são os pontos de refe-

186
rência do pensamento, num meio em que este pode ima­
ginar e seguir livres trajectórias, unir o que estava desu­
nido, separar o que tinha sido simultâneo. Mas esta subs­
tituição da coisa pelo signo não se efectúa sem dificul­
dades, sem conflitos. Ella obriga a resolver na prática
problemas cuja reflexão especulativa só mais tarde se
adquire. Ao individualizar o que estava confundido, ao
eternizar o que era transitório, a representação, que o
signo ajuda a delimitar-se estritamente, provoca a opo­
sição entre o mesmo e o outro, o semelhante e o diverso,
o único e o múltiplo, o permanente e o efêmero, o idên­
tico e o variável, a posição e o movimento, o ser e o devir.
Muitas inconsequências que nos surpreendem na criança
têm origem no choque destas noções contraditórias, por
muito apta que ela esteja para se desviar delas por
omissão, por muito ajudada que seja a contorná-las pelos
hábitos da linguagem e do pensamento que lhe vêm
do adulto.
Mas o passo em frente que a linguagem permite ao
pensamento, e reciprocamente o esforço que ela exige
dele, podem tornar-se manifestos pelo atraso que ele
sofre se ela tende a desaparecer. Goldstein detectou nos
afásicos a impotência para classificar os objectos segundo
características que no entanto eram evidentes, mas que
eram estranhas ao interesse actual do sujeito. Em con­
trapartida, agrupará outros tão heteróclitos quanto pos­
sível, se pertencem de alguma maneira à acção que lhe
ocupa o espírito. Um doente recusa-se a juntar um saca-
-rolhas a uma garrafa cuja rolha não está bem presa,
com o pretexto de que ela já está destapada. Uma outra
junta uma caixa de pó de arroz com um livro, porque
se tra ta de objectos que conta levar de viagem. A exis­
tência das coisas perde a sua independência; elas só
são apreendidas na medida em que se relacionam com
o ego do doente.
Este egocentrismo é também o da linguagem. Normal
enquanto se tra ta das circunstâncias concretas em que
evolui o sujeito, deixa de poder ser compreendida na

187
descrição daquelas que, por muito simples que sejam,
são estranhas à sua própria vida. Ao mesmo tempo torna-
-se impossível a enumeração abstracta de nomes, que,
contudo, as necessidades do momento fazem ainda utili­
zar correctamente.
Também neste aspecto se impõe a comparação com
a criança, em quem se observam semelhantes dispari­
dades no emprego ou na compreensão das palavras
segundo a situação, e que sabe dissociar mal de si
mesma o curso dos acontecimentos ou a realidade das
coisas, agrupar mal os objectos, se não existirem as
relações que a sua própria actividade neles possa intro­
duzir.
■*

Em face destas dificuldades estão as forças — ou


as fraquezas da criança. As suas impressões e reacções
do momento começam por absorvê-las sem reservas.
É indubitável que elas se modificam e se renovam; mas,
mergulhada no sucessivo, ela não é capaz de apreender
a sucessão. Até é pouco correcto dizer que ela vive
um perpétuo «agora», porque não possui nada fixo a
que o opor. É um agora indelimitado, sem focagem, sem
imagem-recordação e sem previsão. Gradual ou súbita,
a transformação sofre-se, não é reconhecida. A criança,
movida pelos seus apetites ou pelas circunstâncias, pode
certamente sentir espectativa ao mesmo tempo que o
desejo; a mudança completa dos seus gestos ao mesmo
tempo que a atracção por um novo objecto. Mas estas
são simples tensões ou simples metamorfoses no jogo
das suas atitudes. Ela não sabe reunir estes diversos
momentos, ainda que com um laço frouxo e fragmen­
tário. J'á fala há vários meses e no entanto ainda lhe
escapa o sentido do antes e do depois. Não se trata
apenas de vocábulos nem mesmo de noções demasiado
difíceis. Ê indubitável que a designação do tempo e a
sua nítida identificação exigem uma integração suces­
siva dos três termos amanhã, hoje, ontem, no mesmo

188
período, e a relatividade deste ajustamento entre pala­
vras e coisas pressupõe um desdobramento dos planos
nos quais se projectam os objectos do pensamento, o que
pertence a uma evolução mental já elevada. Mas é já
muito mais primitivamente que a continuidade, a coe­
rência, as diferenciações necessárias do pensamento estão
limitadas, na criança, pelo seu modo de funcionamento.
Exercendo-se os mecanismos da acção antes dos da
reflexão, quando a criança se quer representar uma
situação, não o conseguirá se não se comprometer pri­
meiro nela, de qualquer modo, pelos seus gestos. O gesto
precede a palavra e depois é acompanhado por ela antes
de a acompanhar, para enfim se reabsorver mais ou
menos nela. A criança mostra, depois conta, antes de
poder explicar. Não imagina nada sem uma encenação.
Não separou ainda de si o espaço que a rodeia. É o
campo necessário, não apenas dos seus movimentos,
mas dos seus relatos. Pelas suas atitudes e momices,
parece fazer um teatro com as peripécias de que se
lembra, e tornar presentes e distribuir os objectos, as
personagens que evoca. Se tem um verdadeiro interlo­
cutor, é ele a quem parece querer despertar, apropriar-se
da sua presença com os seus gestos, com as suas repe­
tidas interjeições. Ao mesmo tempo, nada é evocado sem
ser contado, como se a enunciação de circunstâncias
concretas fosse necessária à evocação. Aliás, acontece
muitas vezes que a influência destas corta o fio à meada
ou faz desviar o relato.
Esta etapa corresponde à persistente preponderância
do aparelho motor sobre o aparelho conceptual. Sem
acção motora ou verbal, falta à ideia o vigor necessário
para se form ar ou para se manter. Os circuitos que lhe
são próprios e que pertencem aos sistemas de associação
permanecem sujeitos ao reforço e à coacção das exte­
riorizações que têm por instrumento o aparelho de pro-
jecção. Daí o nome de «mentalidade projectiva», dado
a este tipo de equilíbrio psicomotor cuja sobrevivência

189
se observa em certos adultos. Ela traduz-se por urna
aderência excessiva do pensamento ao seu objecto, a que
se chama «viscosidade mental». A acção expressiva que
os une, desenvolvendo as suas próprias fórmulas, man-
tém-no prisioneiro, arrasta-o consigo para os seus sis­
temas de hábitos ou de reminiscências, e atrasa ou desvia
o seu curso. Suprime os simples relances que permitem
que a ideia atinja directamente o seu objectivo sem ter
que percorrer todos os relevos intermédios. Impede, pelo
seu realismo motor, a pronta utilização dos signos e
pontos de referência verbais que podem dispensar de
pensar a coisa enunciada. Traduz uma insuficiente dife­
renciação entre os planos pragmático e conceptual da
vida psíquica.
Também é verdade que na criança a interferência
de outras insuficiências confere aos efeitos desta indi-
ferenciação um aspecto menos pesado. O seu aparelho
motor é disputado pela formulação da ideia ainda frágil
e as reacções ainda incontroladas que uma excitação
fortuita lhe arranca. As diversões suspendem a reali­
zação em curso e vêm juntar-se às distracções em que
ela tantas vezes se perde. Combinadas a viscosidade
e a hiperprossexia 0 ), o pensamento apresenta aparên­
cias de mobilidade e de constância. Na realidade, trata-se
de uma simples alternância. O tema cujo recomeço su­
cede ao reflexo de curiosidade é-lhe totalmente estranho.
Entre eles, a descontinuidade é completa. Perseverança
e incontinência perceptivo-motora, parecendo ao mesmo
tempo contrariar os seus efeitos, são igualmente contrá­
rias ao desenvolvimento da ideia. A sua conseqüência
é uma fragmentação, uma simples justaposição dos mo­
mentos intelectuais. Em presença de problemas ligados
ao exercício do pensamento, esta descontinuidade influi
necessariamente na maneira de os resolver.
Enfim, a descontinuidade mental da criança tem uma
outra causa de não menores conseqüências. É a debili-

(‘) Ver a 2.“ Parte, Cap. VI.

190
dade da acomodação ao objecto que põe em jogo o apa­
relho motor, perceptivo ou intelectual. A acomodação
é vacilante durante muito tempo. Oscila mais ou menos
à volta do objectivo, a sua focagem é fugaz e as suas
variações seguem mal as do objectivo. Como um gatito
a quem a bola desapareceu num local inacessível, pára
de repente indeciso, também a criança mais viva e ale­
gre tem os seus momentos de desocupação súbita. No
momento em que lhe escapa o objecto do seu pensa­
mento, passa pelo seu rosto um certo ar de estupidez.
E o facto é que lhe acontece muitas vezes deixá-lo fugir
e também confundi-lo com outros. Daí resulta uma ima­
gem vacilante das coisas, que torna difícil identificar
cada uma delas e fácil misturá-las entre si. A ideia das
suas possíveis metamorfoses, longe de ser diminuída pelo
contacto da realidade, encontra antes nela o seu funda­
mento. Assim, as fantasmagorías em que a criança acre­
dita não nos deverão já surpreender tanto.

O pensamento da criança foi classificado de sincré­


tico. De facto, não se podem atribuir os mesmos quali­
ficativos às suas operações e às do pensamento adulto.
Este denomina, enumera e decompõe o objecto, o acon­
tecimento, a situação, nas suas partes ou nas suas cir­
cunstâncias. Tem que utilizar termos que tenham um
significado definido e estável, deve controlar a adaptação
exacta à realidade presente, e depois encontrar o todo
partindo dos elementos, sendo esta reversibilidade dos
resultados a única garantia da sua precisão. O pensa­
mento adulto actúa, pois, por análise e por síntese.
Antes de ser capaz de proceder do mesmo modo, o pen­
samento da criança tem que vencer difíceis oposições.
Entre a linguagem e o objecto, a adaptação está
longe de ser imediata. As primeiras frases são optativas
ou imperativas, feitas duma única palavra e, na maior
parte das vezes, da mesma sílaba repetida. O seu sentido

191
pode variar segundo as situações. Elas são, pois, essen­
cialmente elípticas e polivalentes. São as circunstâncias
que têm que as definir e não o inverso. Apesar da sua
estrutura se começar a desenvolver, a intenção perma­
nece ainda voluntarista e expressiva. Traduzem mais
o entusiasmo ou o estado afectivo do sujeito que a natu­
reza ou o aspecto do objecto. Quando surge a idade
em que o «saber verbal» (Goldstein) se desenvolve rapi­
damente, ё ainda, ao princípio, sob a forma de conjuntos
mnemónicos, mais ou menos decorados por si mesmos,
ou que pelo menos não têm com a realidade mais que
algumas relações incertas e globais. São frequentemente
necessárias muitas e lentas tentativas para que a criança
consiga penetrar o seu sentido, reconhecer as suas partes
e ajustar cada uma ao seu significado próprio. Entre
elas, como entre os conjuntos de que são destacadas,
os laços permanecem durante muito tempo mais fortes
que a sua referência exacta aos objectos. A tradução
verbal do seu pensamento engana muitas vezes a criança,
substituindo-se à sua experiência directa das coisas.
Quando mais tarde surgem os conhecimentos escolares,
ainda não terminou o conflito entre as palavras e as
coisas. E, para compreender algumas das contradições
em que as perguntas do adulto a podem induzir, é preciso
saber constatar que prodigiosos esforços de redução
lhe são necessários entre estas três fontes do conheci­
mento: a experiência imediata, o vocabulário e a tradição
magistral.
Mas a representação, que desliza inevitavelmente
entre a palavra e a coisa como o seu vestígio e evocador
comum, começa igualmente por opôr as suas próprias
exigências às da experiência bruta. Ela é delimitação
e estabilização. Ao instalar-se no espírito da criança,
tende a tornar-lhe inconcebível a sua intuição dinâmica
das situações. Quando antes tudo era fusão do desejo
e do objecto, dos automatismos e do instrumento, do
espaço e dos gestos (2), agora ela distingue, divide, imo-

(') Ver a 3.* Parte, Cap. X.

192
biliza. Ainda estreitamente ligada às suas origens con­
cretas e verbais, tem deficiências de funcionamento e não
sabe variar com a diversidade das relações. Torna inin­
teligível para a criança o que ela sente continuamente:
a mudança. Em presença das coisas e dos acontecimentos
que se sucedem, ela seria como os eleáticos, para quem
a imagem de cada posição sucessivamente ocupada enco­
bre o movimento,, ou como os obcecados, que a represen­
tação de um objecto ou de uma circunstância temida torna
insensíveis às relações de distância, de rapidez e mesmo
de simples exterioridade (a caravana fúnebre de um des­
conhecido parece-lhes atingir a sua própria pessoa), mas
que julgam ao mesmo tempo que o risco pode ser afas­
tado por uma representação em forma de simulacro
ou de esconjuro.
O sincretismo produz efeitos muito semelhantes.
É uma espécie de compromisso, a diversos níveis, entre
a representação que se procura e a complexidade evolu­
tiva da experiência. Para o definir, será melhor compara­
do com as distinções essenciais em que se baseia o pen­
samento do adulto.
Face à análise-síntese, o adulto exprime as relações
que a criança é capaz de estabelecer entre as partes
e o todo. A confusão é ainda mais ou menos completa.
A percepção das coisas ou das situações continua a ser
global, isto é, o pormenor permanece indistinto. No
entanto, a atenção da criança parece-nos muitas vezes
incidir sobre o pormenor das coisas. Chega inclusiva­
mente a detectar pormenores muito específicos, subtis
ou fortuitos que a nós nos tinham escapado. No entanto,
não é como pormenores dum conjunto que ela os
apreende, e é precisamente por isso que lhes é tão sen­
sível. Subordinados ao conjunto, imediatamente perderia
o interesse por eles, quer porque deixaria de atingir o seu
significado próprio quer porque os consideraria dema­
siado acessórios.
A percepção da criança é, portanto, mais singular
que global; dirige-se a unidades sucessivas e mutuamente

193
13
independentes, ou que não têm entre si outros laços
para além da sua própria enumeração. A ordem pela
qual a criança as detecta pode, aliás, deixar mais que
um traço bruto na sua apercepção ou na sua memória.
Pode organizar-se numa estrutura mais ou menos amorfa,
substituindo a das coisas.
Entre as unidades perceptivas da criança há, no
entanto, a diferença de que umas são para nós real­
mente conjuntos e as outras, pelo contrário, parecem-
-nos simples pormenores indecomponíveis. Várias expe­
riências indiferentemente combinadas levaram alguns
psicólogos a dizer que a visão da criança atinge de facto
o todo, mas indecomposto, e outros a afirm ar que ela
isola do todo, que por si mesmo lhe é inacessível, um
traço elementar. Bourjade demonstrou muito engenho­
samente que, no primeiro caso, as formas apresentadas
tinham já uma coesão assinalável e que, no segundo,
prevalecia a descontinuidade ou a heterogeneidade.
O poder organizador da percepção infantil tem, de
facto, diversos graus. Pode variar em extensão e em
resistência, diminuindo as duas à medida que a forma
atingida se baseia numa estrutura, menos coerente ou
mais complicada, dos dados exteriores da percepção.
A não-resistência do agrupamento é o que durante muito
tempo contribui para impedir a análise, porque a coesão
do conjunto é indispensável durante todo o tempo em
que opera.
Mas o que pode complicar os efeitos do sincretismo
é o facto de não ser uma simples insuficiência; ele é,
a seu modo, uma actividade completa em presença das
coisas. Utiliza os procedimentos mais gerais da expe­
riência habitual, como a antecipação. Já nos animais
se pôde constatar que, levados a reconhecer figuras,
podem reagir apenas a uma das suas partes, como se
fossem capazes de completar cada uma. Isto não é mais
que a verificação de um facto constante nos comporta­
mentos mesmo elementares, e que se encontra na per­
cepção. Mas a parte que provoca a mesma reacção ou

194
a mesma resposta que provocaria o todo, não quer
necessariamente dizer que ela implique ou evoque a estru­
tura do todo. Um pormenor acidental daria o mesmo
resultado que um traço essencial, se tivesse a mesma
constância. É o que acontece com motivos menos sim­
ples' e menos despidos, como uma figura geométrica.
A coisa torna-se evidente quando, em vez duma
imagem ou dum objecto, o motivo é uma situação com­
pleta e concreta. Então o aspecto fortuito não só se intro­
duz mais facilmente como não tem necessidade de se
repetir para ser fixado, desde que o interesse suscitado
seja suficiente. Deste modo, vemo-lo muitas vezes mis­
turar-se ou substituir o essencial na conduta, nos relatos,
nas explicações da criança. As impressões que as cir­
cunstâncias, quer externas quer íntimas, uniram, ba­
seiam-se numa espécie de equilíbrio mútuo, de tal modo
que qualquer uma delas pode significar ou evocar todo
o conjunto. No adulto, certas recordações dão origem
a algo semelhante: as que guardam a coloração única
dum momento ou dum acontecimento, e que aliás remon­
tam habitualmente à sua infância. Devem-na muitas
vezes a traços puramente acessórios, mas que calharam
ser os condensadores dum estado ou duma etapa afec­
tiva. Essa memória opõe-se à memória classificadora e
racional. Na criança, os quadros classificatórios não exis­
tem ainda. Daí a particularidade assinalável e como que
irredutível das suas impressões e recordações.
Para tais efeitos contribui a falta duma distinção
que é talvez mais fundamental que a das partes e do
todo: os aspectos subjectivo e objectivo misturam-se
ainda, dando lugar ao que Lévy-Bruhl chamou partici­
pação. A criança começa por não saber isolar-se do
espectáculo que a cativa ou do objecto que deseja. Deste
modo, a sua vida vai-se fragmentando com as diversas
situações nas quais se vai confundindo, mas, inversa­
mente, elas estão de tal modo imbuídas da sua subs­
tância afectiva, que com frequência se lhe assemelham
muito mais aos acontecimentos. Em presença de circuns-

195
tâncias definidas, constata-se normalmente que a criança
lhes insere alterações, nos seus relatos e na sua sensi­
bilidade, que as podem opor, como uma mentira, à ver­
dade. Se a coisa em si não tem nenhuma importância,
é simplesmente encarada como um divertimento da sua
fantasia. Nos dois casos, há a mesma intromissão, em
diversos graus, do sujeito no objecto.
A confusão dos aspectos subjectivo e objectivo trans­
fere-se, naturalmente, para o que traduz as suas rela­
ções: a representação e as palavras que a exprimem.
E sta é o reflexo, no seu plano, das suas acções recíprocas.
Por ela, o objecto temido torna-se maléfico, mesmo sem
contacto físico; e o desejo considera-se eficaz, mesmo
sem intervenção material. O simulacro pode-lhe dar uma
aparência de realidade alegórica; mas é suficiente uma
simples fórmula verbal, ou mesmo a simples intenção:
a criança acredita firmemente nas conseqüências vinga­
tivas das suas invectivas; mas limita-se apenas a desejar
intensamente o castigo do adversário, com a ilusão de
que daí resultará alguma coisa. Ё o que foi chamado
«crença mágica». Ela não tem, porém, nada de mágico
na criança, no sentido de que não tem nada de rito
e que é completamente espontânea. É o simples efeito
da indiferenciação que persiste entre os planos mentais
e motores da acção, entre o ego e o mundo exterior.
Por isso não se tra ta nem de uma questão de egocen­
trismo nem de exocentrismo, mas de um estádio ante­
cedente.
Esta indiferenciação inicial entre o ego e o outro
provoca também uma insuficiente distinção entre os
outros. Quando a criança pequena chama «papá» a todo
o homem que vê, seria igualmente prematuro dizer que
os identifica com o seu pai ou que os inclui numa
categoria designada pelo nome de uma única pessoa, por
ignorar o nome colectivo. Ela sofre a reacção de con­
junto, motivada por alguns dos seus traços, em que as
partes se confundem com o todo e são, consequentemente,
susceptíveis de provocar a confusão mútua de conjuntos,

196
de outro modo diferentes. É só quando se torna capaz
de distinguir as suas próprias reacções dos seus motivos
exteriores, que os motivos, individualizando-se, lhe per­
mitem distingui-los uns dos outros, quer dizer, distin­
guir a sua estrutura própria sobre o fundo da sua
natureza comum.
O individual e o geral, de que os filósofos se dedi­
caram a discutir a prioridade relativa, são na realidade
simultâneos, porque solidários, e o sincretismo faz com
que sejam precedidos por um outro termo que não pode
ser nem um nem outro, porque o sujeito que actúa com­
preende ou pensa não poder deixar de misturar a sua
presença com motivos da realidade, proibindo-lhes assim
opor as suas identidades e ao mesmo tempo classificar
cada uma em quadros definidos, estáveis e impessoais.

Distinguir entre os indivíduos, pressupõe o poder


de opor o idêntico ao semelhante e de o unir ao disse-
melhante. Uma simples semelhança não deve provocar
a assimilação de dois seres; mas o mesmo ser pode
variar nalgumas das suas características, e cada uma
delas pode variar dentro de certos limites. Sabe-se como
a menor modificação no penteado ou nos fatos das
pessoas que lidam habitualmente com ela pode ser causa
de terror para a criança pequena. Não reconhecimento
e reconhecimento simultâneos produzem um desequilíbrio
psíquico que provoca o medo, como normalmente acon­
tece no desequilíbrio psíquico 0 ). O conhecimento pre­
coce que o bebé tem da mãe não é uma verdadeira
identificação, mas sim a sua resposta ao conjunto das
situações que muitos e apertados laços entrançaram
entre ele e ela.

(’) Ver L’Enfant turbulent, 1.* Parte, Cap. I.

197
A invariância que a criança exige nos objectos que
lhe são familiares tem evidentemente por limite o seu
poder, em alguns domínios muito obtuso, de discernir
as diferenças. Do mesmo modo, a assimilação que faz
de objectos um pouco diferentes pode provocar a ilusão
errada de que ela é capaz de apreciar no seu justo valor
uma simples diversidade de tonalidades. Na realidade,
a relação da coisa com as suas qualidades é extrema­
mente estrita e unilateral. Ela torna a sua identidade
extremamente frágil, sendo susceptível de se dissociar
em tantos seres quantos aspectos sucessivos possui, e de
ser assimilada a tantos seres diferentes quantas seme­
lhanças parciais possua com eles, podendo um simples
ponto de contacto provocar a coincidência do todo.
A impotência da criança para distinguir entre a coisa
e os seus aspectos simultâneos ou passageiros resulta
da sua impotência para imaginar os aspectos sob a forma
de qualidades independentes, ou melhor, de categorias
qualitativas.
Ainda aqui o estudo da afasia pode pôr em relevo
casos de regressão susceptíveis de esclarecer os prin­
cípios do desenvolvimento intelectual na criança. A estrita
aderência da qualidade à coisa permitia a um doente
dizer que o morango é vermelho, enquanto perante amos­
tras de lã vermelha não as sabia designar como tal
(Goldstein). Dir-se-á que se trata de simples associação
automática duma qualidade ao nome da coisa, com
a concomitante impotência de evocação verbal em pre­
sença de objectos a descrever. Mas se a evocação verbal
era impossível, é precisamente porque a cor significada
não era indistintamente a cor de todos os objectos ver­
melhos actualmente conhecidos ou eventualmente a
conhecer; ela era apenas a cor deste ou daquele objecto
específico. A menos que lhe estivesse já como que subs­
tancialmente unida, não podia ser evocada a seu respeito.
Muito pelo contrário, não se limitava apenas a este ou
àquele objecto, mas também a esta ou àquela tonalidade.
Todos os objectos de tonalidade ligeiramente diferente

198
eram rejeitados como não vermelhos. Diminuição da
apercepção e do reconhecimento das cores? De forma
nenhuma, porque em vez de juntar dois vermelhos, acon­
tecia que o doente aproximava duas cores de tom funda­
mental completamente diferente, mas entre as quais
havia uma certa harmonia de brilho, de delicadeza de
efeito estético. As semelhanças ou conformidades quali­
tativas eram bem apreendidas, muitas vezes até com uma
grande subtileza, mas cada uma por si e sem correspon­
der a um princípio idêntico de classificação. As relações,
as estruturas de cores, eram detectadas quando a ocasião
o provocava concretamente, mas as qualidades da cor
não podiam tornar-se cada uma um ponto de referência
para o agrupamento e ordenação dos objectos em que
se encontrava. Nenhuma era capaz de impor a sua direc­
ção nem de imprimir à escolha uma orientação deter­
minada e momentaneamente exclusiva de qualquer outra.
Elias estavam diminuídas do seu poder categorial.
Também na criança as qualidades das coisas come­
çam por se combinar com cada uma de per si, não
podendo assim classificá-las através de uma comparação
sistemática. Elas não passaram ainda para o plano fun­
cional das categorias. Essa é uma etapa mais ou menos
tardia conforme a origem mais abstracta ou mais con­
creta dos princípios classificatórios. Enquanto não a
atinge, a criança sente insuperáveis dificuldades em pre­
sença de problemas que parecem simples. O teste que
Burt fez com três pequenitas, umas das quais tinha
os cabelos mais escuros que a segunda mas mais claros
que a terceira, perguntando-lhes: «Qual é a mais es­
cura?», não pode ser resolvido com facilidade e certeza
enquanto a criança não souber projectar as cores enun­
ciadas sobre o fundo da cor-categoria, quer dizer, de
uma cor que se tenha tornado independente de todos os
objectos particulares e possa servir para os classificar.
Do mesmo modo, o absurdo da frase em que a criança
se inclui entre os três irmãos que pretende ter não pode
ser denunciada ou explicada se a qualidade de irmão

199
permanecer ligada ao individuo, em vez de ser urna
categoria desligada de cada um e em especial do sujeito,
de tal modo que a sua qualificação absoluta seja subs­
tituida por relações mútuas entre um e outro.

A esta relatividade qualitativa, sem a qual o objecto


dispersa a sua identidade por todos os aspectos ou rela­
ções que o podem afectar, parece opor-se uma necessi­
dade inversa mas de objectivo semelhante: a de atribuir
qualidades fixas, imutáveis, específicas. A cada um a sua
cor, a sua forma, as suas dimensões: é assim que ele
permanece igual a si mesmo e se contrapõe a todos
os outros. Esta identificação qualitativa não é um dado
primitivo da percepção. Obtém-se através dos contactos
diversos e fortuitos da sensibilidade com as coisas.
Depende de uma evolução muito mais precoce que a das
categorias. É-lhe, aliás, necessário articular-se em se­
guida com elas.
Para a representar na sua simplicidade, na sua rigidez
inicial, podem-se ir de novo buscar exemplos e teste­
munhos à Patologia. Em certos estados de depressão
e de obcessão, os doentes afirmam ter sentido uma esta­
bilização, uma singular esquematização das suas impres­
sões. Elas confundiam-se todas com uma espécie de
imagem-limite donde eram eliminados o acidente e a
tonalidade. O céu era absolutamente azul como o céu de
Itália dos postais, a terra castanha, a floresta verde,
as casas brancas. A forma das flores era de uma regula­
ridade esplêndida. E assim acontecia com todos os objec-
tos vistos ou imaginados.
Se falta à criança a linguagem e os meios de com­
paração para confirmar estas descrições, pelo menos
não é, segundo parece, sem razão que W. Stern preconiza
que_se lhe ensine as cores ligando cada uma ao objecto
de que ela seria a marca distintiva e como que essencial:
o azul do céu, o verde da árvore, etc. Procedimento peda-

200
gógico talvez contestável; mas Stern teve, sem dúvida,
esta ideia influenciado pelo que ele próprio chamou
«convergência» a propósito da linguagem, quer dizer,
das modificações que surgem inconscientemente nas ma­
neiras do adulto para se assemelharem às da criança
e lhe serem mais acessíveis. De resto, muitos exemplos
e experiências mostram que na percepção da criança
o incompleto, o intermédio, o acidental, são reduzidos
ao acabado, ao extremo, ao tipo. O C, círculo interrom­
pido, é visto como um O. Só gradualmente, com a idade,
as pequenas diferenças se tornam perceptíveis. O meca­
nismo desta diversificação é, segundo Koffka, o mesmo
que o da normalização que fixa as qualidades especí­
ficas de cada objecto: é a existência duma estrutura
perceptiva, mas que mais ou menos se diferencia.
Pelo que toca às cores, é uma constatação comum
que elas variam com a iluminação, que não são as
mesmas ao meio-dia, de manhã e à noite, por não ser
a mesma a composição da luz. E, no entanto, a tona­
lidade própria de cada objecto parece ser a mesma.
Trata-se não duma interpretação ou duma correcção
secundária, mas dum facto bastante mais primitivo.
Koffka compara-o com a experiência realizada por
Koehler com galinhas que ele punha a debicar numa
área metade branca e metade cinzenta: os grãos da
parte cinzenta, que foram colados ao solo, depressa obri­
garam o animal a só apanhar os da parte branca. Sobre­
vêm depois um tal obscurecimento que a metade branca
da superfície reflecte ainda menos luz que anteriormente
a metade cinzenta, mas é sempre nela que a galinha
busca o seu alimento. O que desencadeia a reacção não
é, pois, uma questão de grau, mas sim uma relação
de luminosidade. Este facto já era conhecido há muito
tempo no domínio da percepção com o nome de albedo.
As experiências de Koehler contribuíram para demons­
trar que ele já se observa em comportamentos relati­
vamente elementares.

201
0 sistema de relações que mantêm em cada objecto
a sua cor própria é produto duma estrutura. Não há
impressões isoladas. Tudo o que é apercebido, é-o sob
a forma dum conjunto ou duma estrutura. É do conjunto
que cada elemento recebe o seu significado. Mas, dentro
dum mesmo mundo de impressões, tornam-se possíveis
e mesmo compatíveis várias espécies de estruturas hete­
rogéneas. As do objecto comportam a fixação mútua
das qualidades que lhe são próprias. Contudo, estas
qualidades e o próprio objecto podem também entrar
noutros conjuntos, cuja estrutura faz com que sirvam
para outros efeitos. A estrutura usual e utilitária para
o adulto é a estrutura por objectos. O esforço do artista
ou do inventor consiste muitas vezes em resolvê-la nou­
tras, em que tende a dissolver-se o aspecto convencional
e tradicional do objecto. As estruturas acessíveis à
criança são diferentes, em diversos graus, das fórmulas
adoptadas pelo adulto.
A progressiva diferenciação que a criança fai fazendo
das cores é também, segundo Koffka, uma questão de
estrutura. Quando uma cor é reconhecida ou, pelo me­
nos, quando é capaz de suscitar reacções unicamente
relacionadas com ela, é porque se começa a destacar
do fundo, ainda indistinto mas consistente, das outras.
É o contraste que as tom a eficazes. As cores claras
são as primeiras a ser distinguidas, por oposição às
escuras, que aliás depressa são também reconhecidas.
As cores quentes começam por ser separadas em bloco
das cores frias; são, por exemplo, todas denominadas
«vermelho», com a diferença do claro e do escuro, que
são chamados branco e negro (Hilde Stern).
A ordem que os autores dão da sucessiva compreen­
são das cores explica-se por estruturas que apresentam
primeiro um forte contraste, sendo depois mais subtis.
Inversamente, as confusões correspondem a cores cujo
contraste ou concordância se baseiam em diferenças me­
nos acentuadas: azul e verde, verde e branco, amarelo
e branco, violeta e azul. Em virtude das relações exis-

202
tentes entre as condições físicas da luz e as fisiológicas
dos sentidos, a progressão da visão colorida é sensivel­
mente a mesma em todas as crianças observadas. No
entanto, os dados fornecidos por Shinn e por Stern não
são idênticos: num caso, a criança vivia na Califórnia,
região de vegetação exuberante; no outro, tratava-se
duma criança educada entre os blocos de cimento duma
cidade. O meio ambiente poderia, portanto, influenciar
a ordem que regula o discernimento das cores, segundo
a diversidade das estruturas habituais a que ele dá
origem.
Especialmente essencial para o conhecimento do
objecto é a sua forma. A sua imagem na retina é extre­
mamente diversa, dado que se modifica com cada des-
locação angular do olhar e do objecto. O resultado destas
diferentes impressões é, no entanto, uma forma única
e estável. A memória, segundo K. Buehler, explicaria
a sua constância. Koffka contesta-o. A percepção duma
forma não é uma simples soma de impressões, à maneira
das imagens compósitas de Galton. Ela é imediata. Cada
imagem do objecto é um sistema determinado de rela­
ções entre o conjunto e os seus elementos, produzindo
como tal e não como o resultado de sucessivos aperfei­
çoamentos. Mas entre as diversas imagens estabelece-se
uma concorrência. A imagem predominante é a que
possui uma estrutura óptica mais simples. E é deste
modo que prevalece o aspecto ortoscópico.
Será, no entanto, legítimo isolar as impressões visuais
de todas as que estão igualmente em relação com a forma
dos objectos? Não mostram, pelo contrário, as obser­
vações de Koehler sobre os chimpanzés que, na estrutura
dos seus comportamentos em presença da presa dese­
jada, intervém a totalidade da situação, quer dizer, ao
lado dos pontos de referências ópticos, a intuição que
o animal tem dos movimentos de que é capaz, assim
como a dos seus limites e dos instrumentos que os
devem suprir?
Do objecto como tal resulta também uma situação
que implica toda uma série de condutas que se tornam

203
indiferenciadas da sua imagem visual. A selecção de que
esta seria o resultado pressupõe como selector o conjunto
das necessidades e meios que estão ligados ao objecto
e que se confundem com a sua utilização e manipulação,
quer dizer, com funções e significados em que entram
especialmente factores tácteis e motores. Mas não se
se trata, indubitavelmente, dum aglomerado de distintas
impressões. A percepção é de facto imediata, simples
e primitiva, mas é-o no instante em que se produz.
As elaborações anteriores podem ser integradas na sua
presente estrutura sem comprometer a sua unidade. Ela
é assim o resultado, em proporção variável conforme
os casos, da maturação funcional e da experiência.
Se a imagem ortoscópica das coisas, simples aspecto
numa infinidade doutros, pode ser considerada a imagem
verdadeira, isso não se deverá à deficiente manipulação
desses aspectos, que ignora as leis, as ilusões da pers­
pectiva? Se a percepção é relativa ao objecto, se não é
um fenómeno simplesmente sensorial e mesmo unissen-
sorial, não exige a unidade da sua estrutura que haja
concordância entre os seus factores visuais e os outros?
Mas a maior simplicidade óptica dos aspectos ortoscó-
picos é em si mesma uma noção muito relativa. Parece
que não se impõe aos chimpanzés que não sabem colocar
imediatamente uma em cima da outra as duas caixas
que lhes devem servir de trampolim. Ela implica a in­
tuição da vertical, a que é talvez apenas correlativa da
horizontal e a da esquadria. Não tem a criança que as
aprender? Ela não as parece descobrir como um dado
bruto das coisas; cada uma das suas mais pequenas
deslocações modifica a orientação das suas partes. Não
há, pois, uma direcção mais freqüente, privilegiada ou
tipo. Pelo contrário, o equilíbrio é um problema que
surge num certo período do seu desenvolvimento: o
equilíbrio das coisas, mas também o seu próprio equi­
líbrio. Dedica-se então com igual paixão a empilhar ver­
ticalmente objectos de maneira que não caiam, e a ten­
ta r experiências mais ou menos acrobáticas, que a põem

204
em risco de cair. Talvez a noção da vertical como eixo
estável das coisas esteja em relação com o período em
que o homem se põe direito, cuja aprendizagem lhe
custa tantos esforços. Na estrutura ortostática que re­
gula não só a sua percepção mas também a sua edifi­
cação, integrar-se-ia, em última análise, o seu equilíbrio
subjectivo, que é a condição última e indispensável da
sua acção sobre elas 0).
A consciência de grandeza vem, enfim, juntar-se às
de forma e de cor para conservar a identidade a um
objecto de percepção. O tamanho de um homem parece o
mesmo a um metro e a quatro, apesar da correspondente
imagem na retina ser reduzida a um quarto. No entanto,
a uma grande distância ele parece muito mais pequeno.
Uma aldeia numa montanha dá inevitavelmente a im­
pressão dum brinquedo. Aparentemente, a rectificação só
se opera, pois, num certo sistema de pontos de referência
que devem delimitar uma zona habitual e previsível da
acção. Stern fala de associação entre impressões tácteis
e visuais. Seria ainda necessário acrescentar-lhes as im­
pressões motoras e locomotoras. A rectificação da gran­
deza segundo a distância tem um interesse de tal modo
urgente no campo da acção imediata, que não pode ser
um privilégio do homem. Como não podia deixar de ser,
o macaco é capaz de o fazer, e sem dúvida muitos ou­
tros animais: Koehler habitua um chimpanzé a tomar
o seu alimento numa caixa maior que outra situada no
mesmo plano, e depois coloca-a mais para trás, de tal
modo que a sua grandeza na retina se torna mais pe­
quena: o macaco não se equivoca.
No entanto, não é exactamente o mesmo problema
estabelecer uma correlação prática entre duas variáveis,
tais como a distância, a dimensão, o volume ou o peso,
e formar uma imagem em que esta relação seja formu­
lada de maneira estável e objectiva. Koffka calcula que
não é antes dos 7 anos que é de facto obtida a invaria-
bilidade da imagem, seja qual for a distância. Mais que

(’) Ver a 3.” Parte, Cap. II.

205
um efeito de aprendizagem, ele vê nisso um fenómeno
de maturação. K. Buehler, pelo contrário, insiste na
necessidade de exercício para tornar independentes uma
da outra a grandeza da retina e a grandeza aparente
dos objectos. Como prova da dificuldade de combinar as
suas diferentes grandezas de retina do mesmo objecto,
ele lembra o gosto que a criança tem pelos gigantes e
anões das histórias: este seria um modo de exercício-
-jogo para aplicação aos seres da sua verdadeira dimen­
são, partindo dos extremos. Mas, assim, ele confunde
evidentemente duas realidades de nível diferente, a ima­
gem da retina e a imagem mental.
A imagem da retina não tem uma existência psicoló­
gica própria e a imagem mental não é o seu simples de­
calque. O falso problema da imagem invertida da retina,
que mentalmente seria vista direita, não se repete nas
dimensões sucessivamente diferentes do mesmo objecto
na retina. Cada uma delas, como tal, não é um objecto
de percepção. Há que atingir aquilo que é e não simples
impressões subjectivas e ainda menos um processo pura­
mente fisiológico da percepção. Assim como ela se an­
tecipa muitas vezes a certas impressões, ainda invisíveis
mas essenciais, também realiza impressões integradas,
da mesma espécie mas imutáveis. A criança começou
muito cedo a ver os objectos aproximarem-se e afasta­
rem-se dela: à medida que o seu olhar se ia tornando
capaz de se acomodar à deslocação, o objecto começava
a ser para ela o mesmo objecto e, fosse qual fosse a
súbita variabilidade das suas dimensões na retina, ele
conservava um único e mesmo tamanho. Mas segundo
o quê o mede ela?
A sua escala não parece coincidir com a do adulto.
É um facto banal que, ao encontrarmos de repente os
objectos ou os locais da nossa infância, nos admiramos
da sua pequenez. A criança dá portanto maiores dimen­
sões, às coisas: isso não está evidentemente em relação
com as suas imagens da retina, sensivelmente as mes­
mas que as do adulto, mas com o campo total da sua

206
actividade: com a envergadura dos seus movimentos e
a desproporção em relação a eles dos objectos feitos
para uso do adulto, com a influência que daí resulta
para a imagem dinâmica e corporal que ela tem de si
mesma. Este é o padrão subjectivo e prático que ela
aplica às coisas. A diversidade objectiva de tamanho
entre as diferentes imagens da mesma coisa não a per­
turba de maneira nenhuma. Reconhece muito precoce-
mente as pessoas nas fotografias. O que lhe interessa
é a realidade, seja qual for o seu aspecto. Mas do padrão,
ela ainda não sabe tirar a escala completa, porque seria
preciso fazê-lo passar para o plano das categorias, ou
seja, extrair dele uma ordem independente de cada rea­
lidade particular e sobretudo da realidade subjectiva que
lhe serve de origem.
A criança não deixa portanto de se comparar pes­
soalmente com cada coisa. Interessa-se pelo muito
grande, e muito mais ainda pelo muito pequeno, que
pode dominar e sobre o qual pode exercer o seu poder.
Faz girar durante muito tempo entre os deditos as
migalhas e partículas e desmembra os insectos que con­
segue agarrar. As dimensões das coisas começam por
se dispor separadamente à sua volta, não sem que a
pouco e pouco as vá tentando aproximar. O gosto que
sente pelos gigantes e pelos anões resulta ainda essen­
cialmente da relação que estabelece consigo mesma; eles
formam com ela uma espécie de estrutura por contraste.
E contudo, a oposição que estabelece (o Pulgarzinho e o
Ogre) inicia já uma série cujos vazios procurará preen­
cher. No dia em que as realidades actuais, as intuições
concretas, não forem já necessárias a todo o momento
para as preencher e pensar, a dimensão, de simples es­
trutura, terá passado a categoria.
A passagem duma à outra, ou melhor, as suas alter­
nâncias e combinações, são evidente^ na aprendizagem
e no uso da numeração. Os seus princípios, dos três aos
cinco anos, são extremamente lentos. Vão surgindo vá­
rios esboços, primeiro sem nenhuma relação. A criança

207
parece querer enumerar os objectos que tem na sua
frente, repetindo para cada um sucessivamente uma
palavra como inda (ainda), a que contrapõe uma pala­
vra como emboa (embora), para aqueles de que constata
a ausência. Parece agir, portanto, segundo o princípio da
adição e da subtracção. Não lhe faltarão mais que os
nomes necessários para registar a progressão dos resul­
tados? Mas o facto é que ela utiliza durante muito tempo
de qualquer maneira os nomes dos números que aprende
a enunciar. O emprego correcto de «dois» e depois de
«três» precede de longe os seguintes. Quanto mais tarde
souber recitar a sua seqüência regular aplicando-a a uma
série de objectos, o último termo enunciado só valerá
para o objecto correspondente e não para a soma inteira:
ela ignora a passagem do número ordinal ao cardinal.
Enfim, o número que designa uma soma aplicar-se-á
apenas a ela e não a uma soma semelhante de objectos
semelhantes. A criança sabe que tem cinco dedos e
conta-os, mas ignora quantos tem a mão do avô. Assim,
o número é ainda uma qualidade especialmente ligada a
um objecto ou a um grupo de objectos: é a fase precate-
gorial do número; e os termos que o designam são du­
rante muito tempo utilizados ao acaso, porque, como
é evidente, eles não são fixados por nenhuma intuição
correspondente de grupo, sendo os únicos grupos que
são reconhecidos muito antes dos outros aqueles que
têm uma estrutura mais elementar: dois, e depois três.
Com efeito, as tentativas de enumeração não fazem,
a princípio, mais que seguir a percepção intuitiva e glo­
bal das quantidades. Binet foi o primeiro a ter a ideia
de procurar em que quantidade máxima de objectos e
em que desigualdade mínima é a criança capaz de re­
conhecer, nas suas diferentes idades, qual dos dois mon­
tões é o maior ou o mais pequeno. Decroly levou a cabo
experiências análogas, mas pedindo à criança para tor-
nar^semelhantes dois grupos que tinham uma diferença
duma ou duas unidades. O único processo que ela utiliza
durante muito tempo é retirar ao grupo maior sem

208
nunca acrescentar nada ao mais pequeno; não que este
gesto seja menos fácil que o outro, mas sem dúvida
porque, antes dele se tom ar familiar e de se executar
por si mesmo, exige a intuição de alguma coisa que não foi
ainda realizada, enquanto o outro é a simples diminui­
ção, tão habitual na criança, de uma determinada coisa.
Assim sendo, as intuições concretas e particulares são
a primeira condição indispensável das operações mais
simples. E a experiência demonstrou que convinha trei­
nar a criança para comparar, fraccionar, recompor quan­
tidades reais, fazendo-lhe adquirir uma intuição directa
dos grupos e estruturas sucessivamente obtidos, a fim
de melhor poder aprender o significado e o uso dos
números. Só mais tarde os saberá utilizar bem, de uma
maneira de certo modo indefinida e abstracta: de uma
maneira categorial.

A identificação dos objectos e a sua classificação


segundo as diferentes rubricas qualitativas, incluindo a
da quantidade, não são as únicas exigências do conhe­
cimento. Encerrar em unidades ou definições estáticas
o conteúdo da experiência é, sem dúvida, uma necessi­
dade no plano da representação. Mas o contacto real
com as coisas e a necessidade de actuar sobre elas, ou
simplesmente de actuar, obriga a sair desse círculo. Não
è exacta a afirmação de que a criança se mantém num
perpétuo presente. Ê antes o «agora» que a monopoliza,
quer dizer, uma gradual tomada de posse dos instantes
que medem a sua percepção e a sua acção. Ela possui
o sentimento simultâneo do actual e do transitório. Mas
o transitório deverá igualmente passar para o plano da
representação, ou seja, receber uma fórmula estabili­
zada que tenha em conta a mudança e o porvir, que dê
um equilíbrio ao movimento: é a esta necessidade sub­
jectiva e a esta necessidade da acção objectiva que cor­
responde a noção de causalidade. A criança só gradual­
mente a consegue atingir.

209
14
As primeiras ligações entre conteúdos mentais da
criança são do tipo trwnsducção, seguindo a expressão
de Stern. Não se tra ta de uma simples sucessão, mas sim
de uma passagem. O laço consiste no sentimento subjec­
tivo de pensar ou de imaginar isto depois daquilo. É um
novo caso de confusão sincrética entre o sujeito e o
objecto. A consciência de si mesmo que acompanha a
actividade introduz, entre os momentos imediatamente
contíguos, uma espécie de dependência mútua. Não sendo
ainda clara a distinção entre o acto em si e as coisas,
estas são, ainda que objectivamente diferentes, como
que assimiladas entre si.
A seu respeito, a transducção tende a traduzir-se por
metamorfismo. Tal como nos contos, a mesma coisa pode
ser sucessivamente várias outras, continuando, no en­
tanto, a ser a mesma. Isto é, sem dúvida, algo maravi­
lhoso para as próprias crianças, mas que exige uma
certa credulidade, cuja fonte é a obrigação que sentem
de confudir mudança com transformação. A conciliação
do mesmo e do diferente toma necessariamente uma
forma radical, quando o objecto e as suas qualidades
formam um conjunto indissociável e singular, em que
cada cambiante não é o simples grau duma escala quali­
tativa, mas parece ser um dado de facto da coisa, da
qual faz parte como uma realidade substancial. Enquanto
for impossível a análise categoria! do objecto, ele só se
pode contrapor a todos os outros. Julgá-los modificá-
veis, é mais ou menos a mesma coisa que julgá-los trans-
mutáveis de um para outro.
Para o imaginar, a criança encontra menos obstá­
culos, dado que no próprio exercício do seu pensamento
existe, ao mesmo tempo, mais discontinuidade e mais
repetições (s). As faltas de acomodação mental obri-
gam-na a recuperar o objecto, cuja realidade é assim,
de certo modo, intermitente. No intervalo, reflexos de
curiosidade e diversões afectivas podem ter alterado o
campo conceptual, e o objecto já não encontrará nele

(’) Ver a 3.* Parte, Cap. V.

210
as mesmas condições de estrutura que antes, de tal
modo que pode ser alternadamente considerado como
o mesmo e como outro. Aos regressos do objecto se so-
mam, enfim, regressos de actos já ultrapassados mas
que sobrevivem no aparelho psicomotor e que combinam
as respostas requeridas pelo novo objecto com a res­
posta a objectos anteriores. E sta assimilação subjectiva,
sobrepondo-se às mudanças bruscas, pode explicar as
ilusões a que a criança tem que fazer face e as soluções
extremas que ela tem que aceitar para a resolução do
problema do mesmo e do outro.
O seu espírito está longe de estar inactivo neste entre­
laçado dos seus pensamentos. Piaget deu um belo exem­
plo de transducção nas suas experiências com provérbios
e frases de igual número, que a criança tinha que agru­
par dois a dois segundo a semelhança de sentido. Cons­
tatou que ela junta qualquer provérbio a qualquer frase,
e não se sente nada embaraçada para justificar a apro­
ximação mais incoerente. Passando de um para o outro,
o seu pensamento descobre ou forja analogias que seriam
impossíveis sem o eclipse intermitente, alternante ou
parcial dos dois objectos comparados e sem a assimila­
ção mútua das suas partes, através de esquemas intelec­
tuais que são mais de origem subjectiva que suscitados
pelos traços da realidade proposta. As operações do pen­
samento substituem mais ou menos o seu objecto.
O pensamento da criança poderia ser considerado
como do tipo narrativo, mas com sérias reservas. Ela
conta mais do que explica. Não conhece outras relações
entre as coisas ou os acontecimentos para além da sua
sucessão na imagem que deles faz ou no relato que expli­
cita. As suas palavras de ligação preferidas são «e de­
pois», «vezes» (donde certamente saiu o «era uma vez»
das histórias), «quando», «então». Mas as circunstân­
cias só se unem umas às outras segundo a ocasião for­
tuita, o desejo ou a inspiração do momento, os esquemas
habituais ou recentes. O seu resultado não forma uma
verdadeira unidade de realidade ou de sentido. Falta-lhe

211
aquela proporção entre as partes que confere aos relatos
e às obras, mesmo às mais carregadas de imprevisto,
unia forma mais impressionante ou mais convincente:
entre o acontecimento em que decorrem e as premissas
de todas as espécies que o provocam, é necessário como
que uma equivalência, mesmo inesperada e surpreen­
dente, Esta equação para que tende todo o esforço para
compreender as coisas ou para as explicar, é das mais
difíceis para a criança, e é especialmente por isso que
ela maneja de uma forma tão imperfeita a noção de
causalidade.
A causalidade está, contudo, imánente a todos os
seus desejos, a todas as suas acções; guia todas as suas
experiências; enquadra todas as situações em que ela se
move. Exprime-se na sua vontade de poder; impõe-se-
-lhe em todos os obstáculos que ela encontra. Mas começa
por ser tão particular em cada caso, de tal modo difusa
entre todos os termos do acto — o sujeito, o seu ob-
jectivo, os seus m eios— que é impossível individua­
lizá-la, localizando-a nalgum lado, distinguindo-a dos
seus efeitos, prolongando-a para lá do actual. Ela não
se pode dar a conhecer, a menos duma primeira dis­
sociação entre o ego e o que se lhe contrapõe como
estranho: o outro e o exterior. As questões de causa­
lidade: «porquê?», só surgem várias semanas depois das
questões de local e de simpatia, que são quase simul­
tâneas. Com efeito, a distinção local entre ela e outrem
é indispensável para que a participação se possa trans­
form ar em simples simpatia. E sem que haja uma ultra-
passagem do momento presente, não há anterioridade
nem sobrevivência imagináveis da causa para os seus
efeitos.
A primeira causalidade que se desenha na criança
está nas suas relações com as outras pessoas. A prin­
cípio, não obtém nada a não ser pela intervenção da­
queles que a rodeiam, que é a fonte de acções tão di­
versas que não é sem surpresa que dai resultam os
hábitos mais simples, mas também uma espectativa vi-

212
gilante e pronta para qualquer novidade. Parecia que
o animismo, por onde começa a criança, se explicaria
pela anterioridade desta causalidade humana sobre to­
das as outras, cujos traços transferiria para todas as
outras causas reconhecidas. Mas ela não a poderia de­
tectar antes de ser capaz de se aperceber a si mesma
como distinta das existências que a rodeiam e como um
ser que existe para além de todas as suas impressões
momentâneas. E sta causalidade é complementar do sen­
timento que a criança tem de si mesma como sujeito.
Este desdobramento começará a produzir-se no seu con­
tacto com as coisas inanimadas. A primeira fórmula
da causalidade é um duo no qual a acção e a impressão,
primeiro confundidas, se polarizam. Mas as relações en­
tre os dois pólos são a princípio incertas ou ambiva­
lentes. A criança que acaba de esbarrar com um pé de
uma mesa, bate-lhe com rancor, como se fosse o pé da
mesa que tivesse esbarrado com ela.
Em vez de levar a cabo uma enumeração mais ou
menos completa dos tipos de causalidade observáveis
na criança, mais vale, sem dúvida alguma, ver de que
princípios eles procedem. Ela corresponde a uma dupla
necessidade, a da acção útil ou necessária, e a de ligar
o idêntico ao variável. No ponto de partida, encontra-se,
de um lado, o sincretismo, em que o subjectivo, na sua
forma activa e passiva, se mistura com o objectivo; do
outro, a transducção e o seu corolário: o metamorfismo.
Trata-se de procurar observar, por aí, a imanência da
causa para o efeito e o transitivismo que explica a pas­
sagem de um para o outro. As soluções dadas a este pro­
blema dependerão de um material de analogias que a
criança possui da sua experiência habitual, mas sobre­
tudo das dissociações que será capaz de operar nos
dados brutos da experiência, para reduzir cada factor
da realidade à série de que faz parte e para constituir
assim séries específicas de causas e efeitos. O progresso
da causalidade na criança está, assim, ligado ao desen­
volvimento da função categorial.

213
As formas mais primitivas da causalidade serão aque­
las em que são mínimas as distinções categoriais: o
voluntarismo, em que os desejos do sujeito parecem
pretender invadir o domínio do real a ponto de o substi­
tuir; aquilo a que se chamou o magismo, em que os
meios de exprimir a realidade se confundem ainda com
ela e parecem, pelas suas modificações, poder modi-
ficá-la; a simples afirmação de identidade que faz do
objecto a sua própria causa: «a Lua existe porque é a
Lua», ou que explica a sua existência pela de objectos
semelhantes actuais ou passados; o finalismo que, na
maior parte dos casos, é mais uma afirmação de iden­
tidade ou de conveniência recíproca que a verdadeira
expressão de uma relação de fins e meios ou de inten­
ções. Em oposição a estas, o metamorfismo, ou aceitação
das sucessões mais heterogéneas como sendo os aspectos
de uma única e mesma coisa.
A um nível mais elevado, encontram-se os casos em
que a parte é invocada como a causa do todo, a quali­
dade como a do objecto, uma circunstância muitas vezes
fortuita como a de uma determinada existência, uma
coisa como a de uma outra coisa, mas com uma motiva­
ção mais ou menos-precisa: «a Lua são os fumos quando
está frio» (Piaget). Surge então o artificialismo, que é
a aplibação simples dos processos empregues pelo homem
à explicação dos factos naturais, mas que exige um po­
der mais ou menos desenvolvido de discernimento entre
os meios e o resultado. Por fim, a criança chega a expri­
mir a causalidade mecânica, que já maneja na prática,
mas que não se pode intelectualmente conceber sem uma
despersonalização completa do conhecimento e sem o
poder de distinguir os objectos, de analisar as suas
estruturas e as suas relações. Um progresso ulterior
levá-lo-á à noção de lei; mas esta é uma tarefa da ado­
lescência: o facto absorve-se então na sua fórmula como
no poder capaz de o fazer reproduzir-se, ou de o verifi­
car, um número indefinido de vezes.

214
C A P IT U L O X II

A PESSOA

Ao longo do desenvolvimento da criança, a sua pes­


soa vai-se também formando, e as transformações, fre­
quentemente desconhecidas que sofre têm, pelo con­
trário, uma importância e um ritmo acentuados. Entre
as etapas anteriores e as que se lhe seguem, a que sem­
pre reteve a atenção geral é a que corresponde à crise
da puberdade, onde termina a infância, porque ela é
precisamente uma crise de consciência e de reflexão.
Mas é nos primeiros vislumbres da vida psíquica, no seu
período afectivo, que se encontra a origem da evolução
da pessoa. Ё também verdade que ela já estava profun­
damente influenciada pelas reacções subjacentes ou an­
teriores da vida neurovegetativa: o equilíbrio visceral
das primeiras semanas ou dos primeiros meses pode já
orientar as bases profundas do futuro comportamento.
Quanto aos primeiros contactos entre o sujeito e o am­
biente, eles são de ordem afectiva: são as emoções.
O contacto emotivo, quando se estabelece, é na reali­
dade uma espécie de contágio mimético (l), cuja pri­
meira conseqüência é não a simpatia mas a participa­

te Ver a 3.» Parte, Cap. IX.

215
ção. O sujeito está totalmente imerso na sua emoçá.o;
ele é unido, confundido por ela com as situações que
lhe correspondem, quer dizer, com o ambiente humano
de que provêm, na maior parte das vezes, as situações
emocionais. Alienando-se nelas, ele é incapaz de se aper­
ceber a si mesmo como distinto de cada uma delas e
das outras pessoas. Já não se trata de saber, segundo a
antiga psicologia introspectiva, como é que do conheci­
mento de si mesmo o indivíduo pode passar ao conheci­
mento de um outro indivíduo, mas, ao contrário, como
é que ele eliminará reacções que o fazem misturar-se
com o meio, com o que não é ele próprio, com o que é
estranho à sua pessoa. A criança tem que operar as ne­
cessárias diferenciações na sua experiência real, e não
esforçar-se por lhe fornecer um duplo puramente hipo­
tético. Um grande período da sua actividade mostra-a,
de facto, ocupada, com as pessoas do seu meio ambiente
que se prestam a isso, em jogos de reciprocidade ou
de alternância, em que ela se inclui sucessivamente nos
dois pólos, activo e passivo, de uma mesma situação.
Nada melhor para a levar a distinguir entre a acção
conjungada do seu companheiro e a sua própria acção.
Não se trata ainda, porém, de mais que duas peças,
ajustadas entre si, de um mesmo conjunto.
Apesar do andar e da palavra lhe fornecerem, no
seu terceiro ano de idade, mil ocasiões para diversificar
as suas relações com o meio que a rodeia, a sua pessoa
permanece encaixada nas circunstâncias habituais da
sua vida, sem conseguir apreender-se fora delas. É indu-
bitável que ela vai e vem pelo meio dos objectos, e des­
loca-se, desloca-os, recebe-os, dá-os, pega neles, perde-os,
encontra-os, parte-os e aprende assim a sua indefinida
mutabilidade em relação à sua pessoa, que é sempre a
mesma. As palavras que se intercambiam dirigem-se a
ela, falam dela, dirigem-se a outras pessoas, e o senti­
mento constante da sua própria presença contrasta com
a variabilidade dos interlocutores. No entanto, ela per­
manece como que ligada a determinado objecto familiar,

216
a determinada situação ou ao ponto de vista daquele
que fala. O seu berço não pode servir para o seu irmão-
zinho, porque é o seu berço, para toda a eternidade, ou,
pelo menos, é a ela que compete emprestá-lo. Mas, ao
ingressar na escola, a pequenita dá, como se fosse o
seu, o nome da sua irmã mais velha, que tinha entrado
antes dela, do mesmo modo que o rapazito de Stern,
tendo perdido com o nascimento duma irmãzinha o seu
lugar de mais jovem na família, se tomava a si mesmo
pela sua irmã mais velha.
Reciprocamente, aliás, as pessoas estranhas não po­
dem ser separadas dos seus locais ou dos seus actos
habituais. Ao seu pai que vai ter com ela ao campo, uma
pequenita contrapõe-lhe o «seu papá de Viena», sem
conseguir realizar, de início, a assimilação; ou então ela
pergunta à mãe que está a cantar uma canção várias
vezes ouvida a outra pessoa: «És tu então a tia Elsa?»
Por outro lado, a criança entretém-se consigo mesma,
diz-se «obrigado», repete a si mesma todas as ordens
das outras pessoas, censura-se ou, pelo contrário, faz
recair sobre uma mais nova, sobre a sua boneca, as
censuras que recebeu, cumprimenta-se, desempenha su­
cessivamente as diferentes personagens dum diálogo que
mantém consigo mesma. Substitui-se ao seu irmãozinho
que joga e, para o divertir, tira-lhe o seu brinquedo e
agita-о, indignando-se ao ver o seu descontentamento.
Este confusionismo cessa bruscamente por altura dos
três anos, e a pessoa entra num período em que a sua
necessidade de afirmar, de conquistar a sua autonomia,
lhe vai causar, em primeiro lugar, uma série de confli­
tos. Ê, para começar, uma oposição muitas vezes total­
mente negativa que a faz defrontar-se com as outras
pessoas sem outro motivo que o de sentir a sua própria
independência, a sua própria existência. O único lucro da
vitória é a própria vitória: vencida por uma vontade mais
forte ou pela necessidade, a criança sente uma dolorosa
diminuição do seu ser; vencedora, uma exaltação que
também pode te r os seus inconvenientes. E sta crise é-lhe,

217
porém, necessária: demasiado apagada, pode significar
uma mole complacência, um obtuso sentimento de res­
ponsabilidade; demasiado reprimida, pode causar uma
indiferença desanimada ou o gosto por vinganças dis­
simuladas; demasiado livre, uma jactancia que lhe retira
qualquer utilidade, esbatendo a existência das outras
pessoas em lugar de a fazer ressaltar, o que pode ser
origem de ulteriores conflitos, donde a criança se arrisca
a sair bastante mais humilhada.
Ao mesmo tempo, desaparecem os diálogos consigo
mesma. Parece que a criança já não sabe falar senão
em seu próprio nome, que a consideração agora obriga­
tória de outrem torna o seu próprio ponto de vista ex­
clusivo e irreversível. O mesmo se passa pelo que toca
à posse de objectos. Eles já não são necessariamente
daquele que os detém nesse momento; até mesmo uma
utilização duradoira não os liga indefectivelmente à pes­
soa. Agora, o que conta são apenas as relações entre
as pessoas. A criança percebe que, se deu o seu brin­
quedo, tem que renunciar a ele definitivamente, do
mesmo modo que o presente recebido constitui para
ela um direito incontestável. Sente-se frustrada, não na
sua fruição das coisas, mas na sua pessoa, se o seu bem
é dado a outra sem o seu consentimento. Põe-se a si
mesma o problema da apropriação e chega a concluir
muitas vezes que a força faz a lei: se domina, pode
tomar.
A constante comparação que efectúa entre si e as
outras pessoas torna muito exigente a discriminação
dos que a rodeiam, As relações de valor que imagina
entre elas e ela própria predominam sobre a lógica mais
evidente das situações. Se morde na sua irmãzinha, es­
ta rá disposta a pedir perdão ao pai, à mãe, à gover­
nanta, à cozinheira, mas de modo algum à criança mor­
dida (E. Koehler). A um companheiro de que tem ciú­
mes, 'recusa-se, pálida e furiosa, a emprestar o seu
brinquedo, mas confia-o com entusiasmo à sua gover­
nanta. Em contrapartida, Stern notou que ela pode dar

218
provas de autêntico altruismo, não só partilhando com
outras os seus divertimentos mas também sofrendo, em
benefício de outra, um dissabor ou uma privação.
Este desdobramento do objectivo colocado noutra
pessoa, do desgosto guardado para si, coincide com o
poder que a criança adquire de reagir, em oposição com
a situação presente, a situações de que conserva uma
recordação ou que prevê. Ela começa a saber distinguir
entre os seus devaneios e a realidade, e será uma fonte
de prazer misturá-los de novo nos seus jogos (2). Ao
mesmo tempo, começa a ser capaz de duplicidade,
torna-se manhosa, dando ares de perseguir uma acção
contrária aos seus fins reais. Finge oferecer os seus
brinquedos para melhor se apossar dos brinquedos dos
outros. Este momento é decisivo na sua evolução. Toma
consciência daquilo que deve parecer e da sua vida se­
creta.
Esta idade foi caracterizada pelos psicólogos de dife­
rentes escolas como sendo a de um profundo trabalho
afectivo e moral. O período de 3 a 5 anos é, segundo
Freud, aquele em que o libido tem a sua maior activi-
dade, em que se elaboram os complexos que poderão
perpetuar, por transferência, através das situações sem­
pre novas da existência, as atitudes morais, as inconfes­
sáveis fixações afectivas da infância. Ê o período em
que se podem desenvolver paixões tanto mais carregadas
de angústia quanto mais dissimuladas forem: ciúmes de
um irmãozinho ou dos pais. O ciúme pressupõe, segura­
mente, ainda uma certa semiconfusão entre si e as
outras pessoas (3). Para se sentir ciúme, é preciso que
a imagem de outrem nos arraste atrás de si, como se
devêssemos realmente participar nas mesmas situações.
Mas a intensidade do dano sentido depende igualmente
das vantagens que a pessoa pretende atribuir-se e do
vivo sentimento que tem de si mesma.

(*) Ver a 2.* Parte, Cap. V.


(’) Ver Les origines du caractère chez Venfant.

219
Ora, acontece precisamente que à fase negativa de
oposição que surge por altura dos três anos sucede urna
de personalismo mais positivo, que também se apresenta
em dois tempos contrastados. O primeiro é assinalado
pelo que Homburger denominou «idade de graça». De
facto, aos quatro anos de idade, produz-se uma tran s­
formação nos movimentos da criança. Até aí eram se­
melhantes aos gestos patudos de um cãozito jovem, que
para alcançar um objectivo parece cair a cada passo.
Mas, de repente, uma espécie de ligação íntima parece
levá-los à sua mais perfeita execução. Parecem perse­
guir-se por si mesmos e, de facto, a criança parece pres­
tar-lhes muitas vezes mais atenção que ao seu motivo,
à sua ocasião, ao seu pretexto exterior. Ela própria se
substitui como objecto ao objecto. A sua pessoa, que
antes era um escudo em relação às outras pessoas,
ocupa-a agora, acima de todas as coisas, preocupando-a
a sua própria realização estética. Este fervor por si
mesma é, aliás, normalmente acompanhado de conflitos,
inquietações e decepções. A criança não se pode agradar
a si mesma se não tiver a sensação de que agrada aos
outros, não se admira se não se julgar admirada. A apro­
vação de que tem necessidade é a sobrevivência da par­
ticipação que antes a ligava às outras pessoas. Mas,
uma vez enfraquecida, esta participação deixa um vazio
de incerteza. Na medida em que se observa, sente-se
observada; mas, precisamente na mesma medida, sabe
que os dois juízos podem diferir. A idade da graça é
também a da timidez. O gesto arabesco pode ser igual­
mente o gesto recalcado, envergonhado e falhado.
Este duelo entre a necessidade e a apreensão de se
afirmar, de se mostrar, leva a um segundo tempo mais
positivo que o primeiro, a um novo afrontamento entre
o ego e outrem, a uma nova forma de participação e de
oposição. Ao conteúdo, demasiado pessoal e endiabrado
para mão deixar de lhe inspirar uma certa inquietação
— os simples gestos extraídos das suas aptidões na­
turais —, irá substituir outro conteúdo cuja fonte pro-

220
curará nas suas testemunhas, de quem teme a severi­
dade. Para o gosto de imitar, que marca este período,
contribui toda a evolução mental do momento: o medo
ao isolamento que causam à criança os seus próprios
reflexos de oposição e de exibição; a sua curiosidade e
o seu desejo dos seres que rejeita para os confins de
si própria, depois de te r estado misturada com eles a tra ­
vés das suas próprias reacções; um desejo íntimo, irre­
sistível, de apego às outras pessoas. Como no Banquete
de Platão, o amor nasce da divisão e as partes desunidas
procuram-se umas às outras. Com toda a sua sensibili­
dade postural, a criança guia-se pelas pessoas que a
rodeiam, que a traem e a quem procura imitar. Mas
nesta época de eretismo pessoal ela não pode deixar de
se preferir a si mesma e de as detestar na medida em
que a ultrapassam. A imitação é tanto um desejo de se
substituir como uma admiração amante. Mais tarde,
poderá haver o predomínio de uma ou de outra.
Dos três aos seis anos o apego às pessoas é inextin-
guível necessidade da pessoa da criança. Se for privada
disso, será vítima quer de atrofias psíquicas, de que o
seu gosto de viver e a sua vontade guardarão a tara,
quer de angústias, que a encaminharão para paixões
tristes ou perversas. Nesta idade, o guru hindu Nata-
rajan diz que a sua educação deve ser prenhe de sim­
patia, devendo o desmame começar a efectuar-se entre
os cinco e os seis anos para estar terminado aos sete.
Este é o momento em que, no nosso país, a criança
passa do jardim de infância para a escola primária. Esta
mudança corresponde a uma importante etapa da sua
vida psíquica.
O período que vai dos sete aos doze ou catorze
anos parece servir com muito menos intensidade para o
desenvolvimento da pessoa, virando-se a acção e a curio­
sidade da criança para o mundo exterior, onde prosse­
gue a sua aprendizagem de pequeno prático. No entanto,
apesar de ser menos evidente, não deixa de prosseguir
a sua evolução a caminho de uma autonomia crescente.

221
Aquela cujas necessidades de apego pessoal insistem em
prevalecer de um modo demasiado exclusivo, começa a
ser vivamente censurada pelos membros do grupo de que
doravante faz parte. É a idade em que se troça daqueles
que a escola parece desorientar porque a sua necessidade
da família é demasiado aparente ou que procuram obter
uma atenção pessoal do mestre.
Face aos adultos, o grupo das crianças parece, desde
então, querer constituir uma sociedade igualitária, em
que sem dúvida se produzirão diferenciações individuais,
mas que não serão exclusivas e absolutas como é uma
predilecção de um ser por outro. A hierarquização nas
crianças torna-se bastante variável. O primeiro em orto­
grafia pode ser o último em corrida. As relações mútuas
divergem segundo o momento, as tarefas ou o meio.
O grupo fracciona-se em subgrupos que intercambiam
os seus membros conforme a ocasião: nas aulas, no
jogo, nos diferentes jogos, os camaradas a que a mesma
criança se junta podem não ser os mesmos. Deixou de­
finitivamente de estar sob um único signo, que lhe dava
um lugar imutável numa constelação sempre igual. Pelo
contrário, muda agora incessantemente de uma catego­
ria para outra. E esta já não é uma simples actuação
de facto como anteriormente; é uma noção que se inte­
gra na sua consciência pessoal. Conhece-se a si mesma
como o objecto simultâneo de diversas possibilidades.
A sua pessoa está agora na fase categoria! A própria
diversidade dos enquadramentos em que se pode inserir,
nos quais se pode imaginar, fornece-lhe uma maior coe­
são. Qualquer modificação nas suas qualidades ou nas
suas relações não a obriga a renunciar-se inteiramente,
como fazem aquelas crianças que se atribuem o nome
de uma outra quando alguma coisa muda na sua si­
tuação.
Durante vários anos, a pessoa da criança vai-se as­
sim familiarizando com as mais diversas combinações,
como o seu conhecimento das coisas com os seus em­
pregos e as suas propriedades. A sua adaptação ao meio

222


parece ter-ee aproximado da do adulto, quando surge
o impulso pubertário que rompe o equilibrio de urna
forma mais ou menos súbita e violenta. A crise resul­
tante pode ser comparada à dos três anos e dos anos
que se lhe seguem. Mas ela é-lhe mais simétrica que
semelhante. Começa igualmente por uma oposição, mas
que visa menos as pessoas que, através delas, os hábitos
de vida de tal modo costumeiros, as relações de tal
modo inveteradas que até aí a criança nem sequer pare­
cia dar pela sua existência. O regresso da atenção à sua
própria pessoa causa também no adolescente as mesmas
alternâncias de graça e de embaraço, de maneirismo e
de falta de habilidade. Mas enquanto a criança tendia,
por fim, para a imitação do adulto, o jovem parece de­
sejar distinguir-se dele a todo o custo (crise de origi­
nalidade de Debesse): não se trata de conformismo,
mas de reforma e de transformação. A necessidade de
apego pessoal é intensa, mas aspira menos a uma pro­
tecção que ao domínio, à substituição que à posse.
O segredo impõe-se de novo à consciência, mas já não
é estritamente solitário, pois deseja ser partilhado, ex­
primir-se por meio de sinais ao mesmo tempo evidentes
e enigmáticos para o cúmplice. Não procura disfarçar
um desejo íntimo; projecta-se nas coisas, na natureza, no
destino, sob a forma de um mistério a esclarecer. O seu
objecto já não é estritamente concreto e pessoal, mas
metafísico e universal.
A pessoa parece então ultrapassar-se a si mesma.
Procura um significado, uma justificação, para as diver­
sas relações de sociedade que outrora tinha aceite e
onde se parecia ter apagado. Confronta valores e ava­
lia-se a si própria em relação a eles. Com este novo pro­
gresso termina a preparação para a vida que era a in­
fância.

223
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■л Í

j
CO NCLUSÃO

AS SUCESSIVAS IDADES DA INFÂNCIA

A idade da criança é o número de dias, de meses,


de anos, que a separam do seu nascimento. Têm as
«idades da infância» um significado diferente? Segundo
vários autores, existe uma continuidade no desenvolvi­
mento psíquico a partir de certos dados elementares:
sensações ou esquemas motores, por exemplo. Se as
circunstâncias e a experiência ajudarem, eles ordenam-se
e combinam-se em sistemas que abrem um campo cada
vez mais vasto à actividade do indivíduo. A complexidade
dos sistemas fixa a sua ordem de sucessão. O seu ritmo
de desenvolvimento é praticamente o mesmo em todos os
indivíduos, porque na mesma espécie eles assemelham-se
mais do que diferem e as condições fundamentais do
meio são idênticas. Há, portanto, uma coincidência exacta
entre o nível de evolução e a idade da criança. A suces­
são das idades é a sucessão dos progressos. Cada mo­
mento da infância é um momento da adição que pros­
segue de dia para dia. As idades da criança e as da
infância são uma e a mesma coisa.
Para outros autores, os sistemas da vida psíquica não
são infra-estruturas que se sobreponham simplesmente
uns aos outros pela combinação de elementos gradual­
mente mais organizados, mas no entanto comum a to-

225
15
{

das. Há momentos da evolução psíquica em que são


tais as condições, que urna nova ordem de factos se
torna possível. Essa ordem não faz desaparecer as an­
teriores formas de vida ou de actividade, pois delas pro­
cede, mas com ela surge um modo diferente de de­
terminação que regula e dirige as determinações mais
elementares dos anteriores sistemas: as integrações pro­
gressivas que se observam entre funções nervosas são
um exemplo disso. Estas mutações exigem, para se pro­
duzir, períodos de estados latentes; tornam o cresci­
mento descontínuo, dividem-no em etapas ou em idades
que já não correspondem, em cada instante, à adição
dos dias, dos meses e dos anos. Uma sucessão mais ou
menos longa de idades cronológicas pode enquadrar-se
na duração de uma mesma idade funcional. Aqui já não
há similitude entre as idades da criança e as da infância.
Estas revoluções de idade para idade não são impro­
visadas por cada indivíduo. São a própria razão da in­
fância, que tende para a edificação do adulto como
exemplar da espécie. Estão inscritas, no seu momento
oportuno, no desenvolvimento que conduz a esse objec-
tivo. Й indubitável que as incitações do meio são indis­
pensáveis para que elas se manifestem, e quanto mais
se eleva o nível da função mais determinada é por ele:
quantas actividades técnicas ou intelectuais são a re­
produção da linguagem, que para cada um é a do seu
meio ambiente! Mas a variabilidade do conteúdo con­
forme o ambiente atesta ainda mais a identidade da
função, que não existiria sem um conjunto de condições
de que o organismo é o suporte. É ele que a deve fazer
amadurecer para que o meio a desperte. Assim, o mo­
mento das grandes mutações psiquicas é assinalado, na
criança, pelo desenvolvimento das etapas biológicas.
No entanto, a sobreposição dos progressos segundo
os níveis da função parece, a alguns, fazer apagar a
distinção dos períodos. É bem verdade, com efeito, que
uma dificuldade não é simultaneamente resolvida para
todos os planos da actividade mental; a solução encon-

226
;
trada só a pouco e pouco os vai alcançando e, quando
atinge as actividades mais abstractas ou mais comple­
xas, acontece que uma outra mais evoluída já a substi­
tuiu ao nível das simples ou das concretas. Identificar
idade e progresso não seria colocar-se na necessidade
de fazer convergir para o mesmo instante várias idades
diferentes? Sendo diversos os períodos simultaneamente
atingidos, já não haveria portanto um limiar correspon­
dente às idades sucessivas. No entanto, os planos de
, actividade subsistem e, seja qual for a confusão dos
progressos e das formas segundo os níveis funcionais,
subsistem conjuntos cada um com a sua marca distinta
e a sua orientação específica, e que são uma etapa ori­
ginal no desenvolvimento da criança.

As primeiras semanas da vida são totalmente mono­


polizadas pela alternância da necessidade alimentar e
do sono. No entanto, nos dias que se seguem ao nas­
cimento, tem-se observado uma turgescência dos órgãos
genitais que, no sexo feminino, pode chegar a perdas
sanguíneas: devida evidentemente à influência de hormo­
nas, o seu mecanismo e o seu significado são ainda mal
conhecidos. É o acto de nutrição que conjuga e orienta
os primeiros movimentos ordenados da criança. Mas este
campo ainda muito estreito é largamente ultrapassado
pelas gesticulações a que se entrega quando está des­
pida ou no banho. A sua anotação minuciosa permite
descobrir uma dupla corrente: por um lado, desapareci­
mento de certas reacções espontâneas ou provocadas que
são como que absorvidas ou inibidas por actividades me­
nos automáticas; por outro, emergência de novos ges­
tos, que correspondem frequentemente a uma dissocia­
ção de acções musculares globais e que têm tendência
para se ligar uns aos outros por fragmentos susceptí­
veis de uma certa continuidade. A partir do terceiro
mês, estes progressos do movimento tornam-se a prin­
cipal ocupação do lactante.

227
As suas manifestações afectivas limitavam-se, a prin­
cípio, ao vagido da fome ou da cólica e ao relaxamento
da digestão ou do sono. A sua diferenciação é, a prin­
cípio, muito lenta. Mas, aos seis meses, o aparelho de
que a criança dispõe para traduzir as suas emoções é
suficientemente variado para fazer uma vasta superfí­
cie de osmose com o meio humano. Esta é uma etapa
capital do seu psiquismo. Aos seus gestos está ligada
uma certa eficácia pelo que desperta nas outras pessoas;
aos gestos destas, previsões. Mas esta reciprocidade é,
a princípio, uma completa amálgama; é uma participa­
ção total, em que mais tarde deverá delimitar a sua
pessoa, profundamente fecundada por esta primeira ab­
sorção nos outros. Sincronismo a assinalar: é também
aos seis meses que parece surgir o interesse da criança
pelas cores.
No último terço do primeiro ano começam a siste­
matizar-se os exercícios sensório-motores. Através deles,
os movimentos ligam-se aos efeitos perceptivos resul­
tantes. Impressões proprioceptivas e sensoriais aprendem
a corresponder-se em todas as suas tonalidades. Enca­
deando as suas variações em séries prolongadas, elas
procedem à sua mútua exploração. A voz afina a orelha
e a orelha molda a voz; os sons que o seu concurso
permitiu discernir e identificar são em seguida reconhe­
cidos quando são de origem exterior. A mão que a
criança desloca para a seguir com o olhar, em toda a
fantasia dos seus arabescos, distribui as primeiras si­
nalizações do campo visual. Assim detectados graças à
sensibilidade proprioceptiva, os campos perceptivos po­
dem então fundir-se e, ao mesmo tempo eliminar, ou
melhor, relegar para o anonimato a sua iniciadora, que
se tinha igualmente adiantado à sensibilidade interocep-
tiva ou visceral. De um para o outro, o mesmo objecto
toma-se identificável, e o seu conjunto ganha suficiente
realidade para que a criança possa procurar nele o ob­
jecto desaparecido ou simplesmente revelado por um
indício unissensorial.

228
Mas o andar e depois a linguagem, que se desenvol­
vem ao longo do segundo ano, vêm ainda alterar o equi­
líbrio do comportamento. Os objectos que a criança pode
ir buscar e transportar, que sabe que têm um nome, des­
tacam-se do fundo em que estão inseridos e são mani­
pulados por si mesmos. Ela agarra-os, empurra-os, ar­
rasta-os, desloca-os, quer com a mão quer dentro de um
veículo, e empilha-os, umas vezes indistintamente e ou­
tras por categorias, e enche ou esvazia caixas e sacos.
Mas, num outro plano, a independência que dá à criança
o poder de ir e vir por si mesma, a maior diversidade
de relações com o que a rodeia que a palavra lhe for­
nece, torna possível uma afirmação mais vincada da sua
pessoa. Aos três anos começa a crise de oposição e de­
pois a de imitação, que durará até aos cinco.
Na época em que se pretende manifestar como dis­
tinta das outras pessoas, a criança mostra-se gradual­
mente mais capaz de distinguir os objectos e de os selec­
cionar segundo a cor, forma, dimensões, qualidades tác­
teis e cheiro 0 ). Depois vem a idade dos quatro anos,
em que as suas atitudes e maneiras a mostram atenta
ao que elas podem ser e parecer. Começa também nessa
altura a corar por uma incongruidade ou falta de jeito
e, inversamente, essas inadaptações são para a criança
um motivo de troça ou de divertimento. As caretas, os
gracejos grotescos, divertem-na. Ela gosta de rir e de se
ver rir. O seu nome, o seu apelido, a sua idade, o seu
domicílio, constroem-lhe uma imagem da sua pequena
personagem, de que aliás se faz como que testemunha
dos seus próprios pensamentos. Já capaz de observar,
dispersa-se menos e prossegue a ocupação encetada com
mais tranqüilidade e perseverança. Revê-se nas suas
obras e apega-se àquilo que faz. Nasce a emulação e

(') Ver a este respeito os artigos da Sr." PIQUEMAL e


das Sr.** PONTENEAU e TRUILLET, em Organisation et fonc-
tionnement des écoles materneUes, A. Colin, pp 37-51.

229
com ela uma primeira necessidade de camaradagem. No
entanto, os grupos que se formam são ainda do tipo
gregário, em que cada um toma espontaneamente o lugar
de seguidor ou de chefe. Mas a criança já não se limita
a te r um maior discernimento dos objectos e das suas
qualidades, pois a sua percepção torna-se mais abstracta,
começando a distinguir os desenhos, as linhas, as direc­
ções, as posições, os signos gráficos. Seja como for, a
observação propriamente dita das coisas, em que o por­
menor exige um perpétuo retorno ao conjunto, e o múl­
tiplo e o diverso ao único e ao permanente, ultrapassa
ainda as suas capacidades.
Depòis dos cinco anos, anuncia-se já a idade escolar,
em que o interesse se vai transferir do eu para as coi­
sas. A passagem será, porém, lenta e difícil. Até aos
seis anos e mesmo depois, a criança permanece absor­
vida nas suas atitudes e nas suas ocupações presentes,
a sua actividade apresenta características exclusivistas,
sendo incapaz duma evolução rápida entre os objectos
ou as tarefas. Para arrancar os seus pequenos alunos
às suas ocupações e propor-lhes um novo tema de aten­
ção, uma professora imaginou um gesto de interrupção,
que eles deviam executar automaticamente mal ela desse
o sinal. A criança que aprende a ler perde de repente
os hábitos anteriormente adquiridos de manipulações
práticas e de investigações concretas: uma orientação
nova pode, pois, suspender completamente a antiga.
A escola, ao contrário, exige uma mobilização diri­
gida das actividades intelectuais para matérias sucessiva
e arbitrariamente diversas: ela chegou inclusivamente a
abusar muitas vezes da permissividade (2). As tarefas
impostas devem desligar mais ou menos a criança dos
seus interesses espontâneos; e, na maior parte das vezes,
não obtêm mais que um esforço constrangido, uma aten­
ção artificial ou mesmo uma verdadeira sonolência inte­
lectual. São, em muitos casos, exercícios de utilidade a

(!) É este problema que o método «do centro de interesse»


(Decroly) pretende remediar.

230
longo prazo e que não é de modo algum patente para o
executante. Por isso, pensou-se que era necessário apoiar
a sua actividade por meio de estimulantes acessórios;
este é o objectivo das recompensas e das punições, cuja
fórmula essencial é ainda, para muitos, «o torrão de
açúcar ou o cacete», quer dizer, um simples procedi­
mento de adestramento de animais.
No outro extremo encontram-se os que pretendem
fazer basear as actividades obrigatórias da criança no
seu sentimento de responsabilidade. Uns atrasam, os ou­
tros antecipam. O animal adestrado responde com um
gesto a um determinado sinal, segundo as associações
que lhe foram inculcadas; ele não executa uma tarefa,
em que se persegue um objectivo e existe um ajusta­
mento de meios e regras a observar e um determinado
alcance do esforço, que por isso mesmo tem que ser
apoiado. Mas, sucessivamente absorvida em cada uma
das suas tarefas, a criança também não parece ser capaz
de fazer suportar o seu peso à imagem que ela tinha
do que devia dar a si mesma: obrigá-la prematuramente
a isso significa, na prática, ditar os traços dessa ima­
gem, impor-lhe uma dependência artificial, mal com­
preendida, que está longe de favorecer a evolução da
sua autonomia.
O período de sete a doze ou catorze anos é aquele
em que a objectividade substitui o sincretismo. As coi­
sas e a pessoa vão a pouco e pouco deixando de ser os
fragmentos de absoluto que se impunham sucessivamente
à intuição. A rede das categorias reflecte as mais diver­
sas classificações e relações. Mas o animador é a própria
actividade da criança, que entra na sua fase categorial:
ela atribui-se então as tarefas pelas quais é capaz de se
distribuir, a fim de extrair delas os efeitos de que cada
uma é susceptível. É-lhe agora indispensável interessar-se
pela tarefa, o que deixa bem para trás o simples ades­
tramento. Esse interesse pode ser suficiente e ultrapassa
de longe a preocupação de comprometer sempre a sua
própria personagem na sua conduta.

231
O gosto que a criança toma pelas coisas pode-se ava­
liar pelo desejo e pelo poder que tem de as manejar,
de as modificar, de as transform ar. Destruir ou cons­
truir são as tarefas que ela se atribui a si própria inces­
santemente. Assim, explora os pormenores das coisas,
as suas relações, as suas diversas origens. É também
em função de determinadas tarefas que escolhe os seus
camaradas. As suas preferências variam conforme os
jogos ou os trabalhos. Tem, certamente, companheiros
habituais, mas os seus encontros reduzem-se aos seus
empreendimentos comuns. Eles estão unidos como cola­
boradores ou cúmplices das mesmas tarefas, dos mes­
mos projectos. A emulação na realização de um trabalho
é o meio que possuem para se avaliarem uns aos outros.
O campo das suas rivalidades é o das suas ocupações.
Daí resulta uma diversidade de relações que variam de
pessoa para pessoa, onde cada um vai buscar a noção
da sua própria diversidade segundo as circunstâncias e,
ao mesmo tempo, a noção da sua unidade através da
diversidade das situações.
Quando a amizade e as rivalidades deixam de se
basear na comunidade ou no antagonismo das tarefas
empreendidas ou a empreender; quando esses sentimen­
tos se procuram justificar por afinidades ou repulsas
morais; quando eles parecem interessar mais à intimi­
dade do ser que as colaborações ou os conflitos efectivos,
isso é um indício de que a infância está já a ser minada
pela puberdade. Também aqui a nova idade se vai reflec­
t s em todos os domínios da vida psíquica. Surge um
\ mesmo sentimento de desacordo e de inquietação nos
da acção, da pessoa, do conhecimento; em cada um exis­
tem mistérios a desvendar, e surge uma mesma neces­
sidade de posse, de certo modo essencial, pois a posse
actual não basta para satisfazer e procura para si pers­
pectivas indefinidas.
De etapa em etapa, a psicogénese da criança mostra,
através da complexidade dos factores e das funções,
através da diversidade e da oposição das crises que a

232
assinalam, uma espécie de unidade solidária, tanto em
cada uma como entre todas elas. É contra a natureza
tra ta r a criança fragmentariamente. Em cada idade,
ela constitui um conjunto indissociável e original. Na
sucessão das suas idades, ela é um único e mesmo ser
ao longo de metamorfoses. Feita de contrastes e de con­
flitos, a sua unidade não deixa por isso de ser susceptível
de desenvolvimentos e de novidade.

233
!

С
BIBLIOGRAFIA SUMARIA

BOURJADE, Lintelligence et la pensée de Venfant, Paris, Alcan,


1937.
CLAPARÈDE, Psychologie de Venfant et pédayogie expérimentale,
Genebra, Kundig, 1926.
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Flammarion, 1924.
DEBESSE, La crise d’originalité juvénile, Paris, Alcan, 1936.
DECROLY (O.), Études de psychogenèse, Bruxelas, Lamertin,
1932.
DECROLY (O.) e BUYSE, La pratique des tests mentaux (com
atlas), Paris, Alcan, 1928.
GUILLAUME (P.), Lim itation chez Venfant, Paris, Alcan, 1925.
— La formation des habitudes, Paris, Alcan, 1936.
LUQUET, Le dessin enfantil, Paris, Alcan, 1927.
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Niestlé, 1937.

235
I

PIÊRON (H.), Le développement mental et ^intelligence, Paris,


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— Principes de psychologie appliquée, Paris, Livraria Armand
Colin, 2.“ ed., 1938.
— La vie mentale, Tomo VIII da Enciclopedia Francesa, 1938.

с,
236
ÍNDICE

WALLON, PSICOLOGO DA IN F A N C IA .............................. 9


(p o r R E N É ZAZZO)

P R E F A C I O .................................................................................... 21

PRIMEIRA PARTE
A INFÂNCIA E O SEU ESTUDO
C A PIT U L O I
A CRIANÇA E O A D U L T O ....................................................... 27
C A PIT U L O II
COMO ESTUDAR A C R IA N Ç A ? ............................................. 33
C A P IT U L O I I I
OS FACTORES DO DESENVOLVIMENTO PSIQUICO . . 49

SEGUNDA PARTE
AS ACTIVIDADES DA CRIANÇA
E A SUA EVOLUÇÃO MENTAL
C A PIT U L O IV
O ACTO E «O EFEITO» . . . 65
C A P IT U L O V
^ O J O G O ................................................................................... 75
C A PIT U L O VI
AS DISCIPLINAS MENTAIS . .
C A PIT U L O V II
AS ALTERNANCIAS FUNCIONAIS

TERCEIRA PARTE
OS n í v e i s f u n c io n a is
c a p it u l o V III
OS DOMINIOS FUNCIONAIS: ESTADIOS E TIPOS
C A PIT U L O IX
A AFECTIVIDAD!-: ......................................................
C A PIT U L O X
O ACTO MOTOR ...............................................................
C A PIT U L O XI
O C O N H E C IM E N T O ......................................................
C A PIT U L O X II
A PESSOA .........................................................................
CONCLUSÃO
AS SUCESSIVAS IDADES DA INFÂNCIA . . . .

BIBLIOGRAFIA SUMARIA
Execução gráfica
da
T I P O G R A F IA LOUSANENSE
Lousã Junho/1981

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