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Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
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Conselho Editorial de Linguística, Letras e Artes

Daiane Neumann
Doutoranda em Letras (UFRGS), bolsista / Brasil

Gérson Luis Werlang


Doutor em Letras / UFSM / Brasil

Jacqueline Ahlert
Doutoranda em História Íbero-Americana / PUCRS / Brasil

James Anthony Dettleff Pallete


Master en Fine Arts en Cine (Ohio University) / prof. en Pontificia Universidad Católica del Perú

Miguel Alberto Koleff


Doctor en Letras Modernas (UNC) / prof. en la Universidad Nacional de Córdoba / Argentina

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Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Elisane Regina Cayser
Marlete Sandra Diedrich
Patrícia da Silva Valério
(Organizadoras)

Aline Aver Vanin


Aline Juchem
Aline Wieczikovski Rocha
Carolina Knack
Claudia Stumpf Toldo
Daiane Neumann
Elisa Marchioro Stumpf
Silvana Silva

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© 2014, Livraria e Editora Méritos Ltda.

Rua do Retiro, nº 846


Passo Fundo, RS, CEP 99074-260
Fone/Fax: (54) 3313-7317
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Charles Pimentel da Silva


Editor
Jenifer B. Hahn
Auxiliar de edição

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E56 Ensino de língua e enunciação / organizado por Elisane


Regina Cayser, Marlete Sandra Dietrich, Patrícia da
Silva Valério. - Passo Fundo: Méritos, 2014.
218 p.

1.Ensino da língua 2. Língua portuguesa 3. Semântica


3. Enunciação I. Cayser, Elisane Regina, Org. II. Dietrich,
Marlete Sandra, Org. III. Valério, Patrícia da Silva, Org.
CDU: 801
Catalogação na fonte: bibliotecária Marisa Miguellis CRB10/1241

ISBN: 978-85-8200-031-1

Impresso no Brasil

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Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Apresentação
As teorias da enunciação têm sido objeto de estudo de
inúmeros pesquisadores, especialmente nas duas últimas déca-
das no Brasil, como é possível perceber pelo grande volume de
publicações. Inegável é a contribuição científica desses estudos,
cujo campo é vasto e produtivo. A inter-relação desses estudos
com o ensino, entretanto, é recente, o que justifica o mérito do
fortalecimento dessa interlocução. Assim configura-se essa obra
que pretende traçar algumas reflexões teóricas, outras, talvez,
metodológicas para pensar sobre a relação entre o ensino de
língua e a enunciação.
A obra que apresentamos reúne oito capítulos de pesquisa-
dores cujos estudos envolvem a língua e a linguagem na perspec-
tiva enunciativa. Desse modo, no primeiro, Pensando o ensino de
língua a partir da enunciação, Marlete Diedrich, Patrícia Valério
e Elisane Cayser refletem sobre o ensino de língua, a partir dos
princípios enunciativos propostos por Émile Benveniste. As
autoras apresentam esses princípios, inicialmente percorrendo
alguns textos do autor para, em seguida, a partir desses princípios,
apresentarem a leitura do que de fato consideram ser uma abor-
dagem de ensino de língua na perspectiva enunciativa. Buscam
explicitar como o linguista propõe que se analise a enunciação
para concluir que, quando se assume o ponto de vista enuncia-
tivo no ensino de língua, deixa-se o terreno das regularidades
7
Apresentação
postas em manuais de gramática para se chegar à singularidade
de cada ato enunciativo.
Em Reflexões acerca da semântica do texto, Daiane Neumann
retoma algumas considerações acerca da semântica do texto, a
partir da discussão sobre sentido proposta por Ferdinand de
Saussure, no Curso de linguística geral, Émile Benveniste, em
Problemas de linguística geral I e II, e de Henri Meschonnic, em
Critique du rythme. Para tanto, resgata reflexões sobre o sentido
propostas por Saussure no CLG, principalmente no que con-
cerne ao arbitrário do signo e à teoria do valor, discute sobre o
desenvolvimento dado por Benveniste a esta reflexão, em especial
considerando a questão da subjetividade na linguagem, a noção
de discurso e a relação forma e sentido, para, então, apresentar
algumas questões desenvolvidas por Meschonnic em Critique
du rythme, a partir dos trabalhos dos dois grandes mestres. Ao
final do trabalho, faz um deslocamento dessas discussões apre-
sentadas para pensar sobre o tratamento semântico que pode ser
dado ao texto em sala de aula, atentando, também, para algumas
particularidades que este olhar pode trazer para discutir o objeto
texto de modo a enriquecer a análise e a reflexão do assunto.
Aline Juchem, em Enunciação e ensino: um caso de amor e
de língua, busca refletir sobre o processo de escrita e de reescrita
no contexto de sala de aula. O texto deriva de parte de sua dis-
sertação de mestrado, que teve como motivação as experiências
da autora como docente no Programa de Apoio à Graduação
(PAG) – Projeto de Língua Portuguesa: Leitura e Produção
Textual. Para atingir seu propósito, a autora recorre à Teoria da
Enunciação, de Émile Benveniste, porque nessa teoria se encontra
uma concepção de linguagem essencialmente ligada à (inter)sub-
jetividade, o que significa considerar a escrita e a reescrita como
atos de enunciação. O texto coloca em evidência o trabalho de
ensino-aprendizagem de escrita e reescrita, bem como de leitura
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Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
e análise de textos em sala de aula, levando sempre em conta o
espaço de singularidade do sujeito na língua.
Em A Teoria enunciativa de Émile Benveniste e o estudo do
texto: itinerários investigativos, Carolina Knack retoma parte da
produção teórica de Émile Benveniste, especialmente artigos
reunidos em Problemas de linguística geral I e Problemas de lin-
guística geral II, para buscar compreender o modo como a teoria
enunciativa benvenistiana foi lida pela linguística brasileira. O
artigo resulta de um trabalho maior, a dissertação de mestrado da
autora, no qual ela aprofunda o estudo. Mesmo assim, dá uma
contribuição teórica densa na medida em que transita entre vários
textos, tais como PCN’s e Referenciais Curriculares e mesmo
entre teorias de vários linguistas brasileiros – como Ingedore
Koch, José Luiz Fiorin, Diana Luz Pessoa de Barros, Eni Or-
landi, a fim de identificar o modo como a teoria benvenistiana
foi lida pela linguística brasileira e como se instituiu o diálogo
dessa teoria com a área dos estudos do texto.
Em Linguística da Enunciação e Ensino: categorias analíticas
para a avaliação de relatórios de estágio supervisionado em Língua
Portuguesa, Silvana Silva propõe-se a elaborar categorias ana-
líticas para a avaliação de relatórios de estágio supervisionado
em língua portuguesa. Para tanto, vale-se do aporte teórico da
Linguística da Enunciação (sistematizado em Flores e Teixeira,
2005; Flores et al., 2009) e procura elencar as categorias enun-
ciativas que permitem demonstrar que o aluno se apropria, mais
ou menos plenamente, do seu próprio planejamento durante a
prática docente. A pesquisadora faz, também, a análise de um
excerto da Apresentação de um relatório de estágio supervisionado
em língua portuguesa, orientado por ela no segundo semestre de
2012 na Universidade Federal do Pampa (Unipampa), cidade de
Bagé, RS. Observa que a Apresentação prima por uma progres-
siva ampliação do interlocutor, “tu-alunos” para “vocês-alunos
de EJA”, revelando então uma Apresentação bem-sucedida do
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Apresentação
Projeto de Ensino do Estágio. Chega à conclusão de que uma
das categorias analíticas relevantes para a análise de relatórios
de estágio é a consideração do “tu-aluno” no texto do relatório,
seja em sua “ampliação de participação” seja em sua “diminuição
de participação”.
Claudia Stumpf Toldo e Aline Wieczikovski Rocha, em A
semantização do discurso metafórico: um olhar enunciativo, ancoram
sua pesquisa nos estudos enunciativos de Émile Benveniste, em
especial nos reunidos em Problemas de linguística geral I e II
e publicados entre 1964 e 1970. Partindo de discussões sobre
níveis de análise linguística, forma e sentido, semiótico e semântico,
as autoras apresentam um diálogo teórico do pensamento benve-
nistiano acerca da linguagem que julgam possível para analisar
o fenômeno da metáfora em textos publicitários.
Práticas de letramento, ensino de línguas e multimodalidade na
era digital, de Elisa Stumpf e Aline Vanin, busca tematizar como
o ensino de língua portuguesa (ou mesmo o ensino do português
como língua adicional) pode contribuir para a fazer o aluno se
ver como sujeito nas diversas possibilidades de interação social
que se dão por meio da linguagem escrita. O texto discute sobre
como o mundo digital influencia as práticas de leitura e de es-
crita, procurando mostrar como as diferentes tecnologias podem
ser utilizadas a favor do trabalho pedagógico com a língua em
sala de aula, em uma perspectiva que valoriza a interação como
princípio orientador das práticas de linguagem.
Por fim, em Alguns conceitos-chave da semiótica do texto e sua
funcionalidade no ensino da leitura na escola, as autoras Elisane
Cayser, Marlete Diedrich e Patrícia Valério refletem sobre o
processo de construção do sentido dos textos na sala de aula à
luz da Teoria Semiótica do Texto. Para isso, retomam pressu-
postos teóricos da semiótica greimasiana e procedem à análise
de um texto, a fim de demonstrar a pertinência dessa teoria para
a percepção dos sentidos criados no/pelo texto.
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Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Os textos que integram essa obra não têm a pretensão de
apresentar algo inédito, portanto, se as reflexões propostas pu-
derem dialogar com os leitores, aproximando a Linguística da
Enunciação do ensino da língua materna nas salas de aula de
língua portuguesa, os estudos estarão justificados.

Patrícia da Silva Valério,


Marlete Sandra Diedrich,
Elisane Regina Cayser
(Organizadoras)

Passo Fundo, janeiro de 2014.

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Apresentação
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Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Sumário

Apresentação . . .................................................................................................. 7

I. Pensando o ensino de língua a partir da


enunciação

Elisane Regina Cayser , Marlete Sandra Diedrich,


Patrícia da Silva Valério ..................................................................................... 15

II. Reflexões acerca da semântica do texto


Daiane Neumann...................................................................................................... 31

III. Enunciação e ensino: um caso de amor e


de língua

Aline Juchem............................................................................................................... 53

IV. A teoria enunciativa de Émile Benveniste e


o estudo do texto: itinerários investigativos

Carolina Knack.......................................................................................................... 87

V. Linguística da enunciação e ensino: categorias


analíticas para a avaliação de relatórios de
estágio supervisionado em língua portuguesa

Silvana Silva ................................................................................................................ 121

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Sumário
VI. A semantização do discurso metafórico:
um olhar enunciativo

Aline Wieczikovski Rocha, Claudia Stumpf Toldo ........................... 145

VII. Práticas de letramento, ensino de línguas


e multimodalidade na era digital

Aline Aver Vanin, Elisa Marchioro Stumpf............................................. 171

VIII. Alguns conceitos-chave da semiótica do texto:


funcionalidade no ensino da leitura na escola

Elisane Regina Cayser , Marlete Sandra Diedrich,


Patrícia da Silva Valério....................................................................................... 195

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Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Capítulo
I

Pensando o ensino
de língua a partir da
enunciação
Marlete Sandra Diedrich1
Patrícia da Silva Valério2
Elisane Regina Cayser3

Em nossa caminhada pelo meio acadêmico, conhecemos


muitos autores da área da Linguística. Aproximamo-nos de uns,
afastamo-nos de outros e escolhemos Émile Benveniste para
fundamentar grande parte de nossas aventuras no universo da
pesquisa. Entendemos que Benveniste não se ocupou especifi-
camente do tema ensino de língua, mas vemos em seus artigos
1
Doutoranda em Letras pela UFRGS, mestre em Linguística pela Pontifícia Univer-
sidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), professora de Língua Portuguesa
e Linguística do Curso de Letras da Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail:
marlete@upf.br.
2
Doutoranda em Linguística Aplicada na Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS), mestre em Letras/Estudos Linguísticos pela Universidade de Passo
Fundo (UPF), professora do curso de Letras da UPF. E-mail: patriciav@upf.br.
3
Mestre em Linguística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (2001), professora do Curso de Letras da Universidade de Passo Fundo (UPF).
E-mail: ecayser@upf.br.

15
Marlete S. Diedrich; Patrícia Valério; Elisane R. Cayser | Pensando o ensino de língua...
reunidos em Problemas de Linguística Geral I e Problemas de
Linguística Geral II uma forma especial de conceber a língua
no discurso, o que mobiliza princípios por nós considerados
fundamentais quando pensamos no ensino de língua. Porque,
afinal, acreditamos que a concepção de língua que move todo
aquele que se ocupa do estudo da linguagem é fundamental
para definir o trabalho que ele realizará em situações de ensino.
Assim, neste capítulo, voltamos nossa atenção para os
princípios propostos por Benveniste acerca da língua enquan-
to parte da tríade homem-linguagem-cultura. Apresentamos
esses princípios percorrendo textos do autor capazes de ilumi-
nar a discussão, para, depois, apresentarmos, com base nesses
princípios, nossa leitura do que de fato consideramos ser uma
abordagem de ensino de língua na perspectiva enunciativa.
Trata-se, certamente, de considerações apresentadas por nossa
conta, a partir da nossa compreensão decorrente da leitura da
obra de Benveniste. Reconhecemos, por certo, que o linguista
não se deteve nessa temática e, portanto, tomamos para nós o
risco de não encontrarmos unanimidade na aceitação de nossas
ideias, mesmo entre leitores e estudiosos da obra benvenistiana.
Lancemo-nos, portanto, a essa aventura.

Concepções de língua em Benveniste


Émile Benveniste apresenta, segundo Flores (2012), uma
complexa rede conceitual em sua obra, o que obriga o seu leitor
a traçar relações entre termos e conceitos apresentados em textos
de épocas diferentes da sua trajetória. Procuramos entender,
antes de tudo, que concepção de língua movia o linguista. Para
dar conta desse propósito, convocamos à discussão o texto Es-
trutura da língua e estrutura da sociedade (1970/1989), no qual o
autor afirma que não encontramos jamais linguagem separada
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Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
de sociedade, apesar de essas entidades apresentarem estruturas
diferentes. Nesse processo, a sociedade torna-se significante
na e pela língua. Para tanto, a língua deve se manter capaz de
registrar, de designar e orientar as mudanças que caracterizam
o interpretado, ou seja, a sociedade.
É justamente a faculdade simbolizante que, segundo o
autor, distingue o homem do animal e é a fonte comum do
pensamento, da linguagem e da sociedade. Esse aparato sim-
bólico possibilita a relação entre o homem e o mundo, entre os
homens, estabelecendo-se, dessa forma, por meio da linguagem,
a estrutura social:

a linguagem se realiza sempre dentro de uma língua, de uma


estrutura linguística definida e particular, inseparável de uma
sociedade definida e particular. Língua e sociedade não se con-
cebem uma sem a outra. Uma e outra são dadas. Mas também
uma e outra são aprendidas pelo ser humano, que não lhes possui
o conhecimento inato (Benveniste, 1963/2005, p. 31).

Eis o estatuto do homem na linguagem, o que ocorre sempre


na vida social. É a partir da consciência do meio social que o
homem, desde seu nascimento, integra-se na cultura. Mas, afinal,
o que é cultura, para Benveniste? Esse conceito é apresentado
em outro texto do autor:

Chamo cultura ao meio humano, tudo o que, do outro lado do


cumprimento das funções biológicas, dá à vida e à atividade
humanas forma, sentido e conteúdo. A cultura é inerente à
sociedade dos homens, qualquer que seja o nível de civilização.
Consiste numa multidão de noções e prescrições, e também em
interdições específicas; o que uma cultura proíbe a caracteriza
ao menos tanto quanto aquilo que prescreve (Benveniste,
1963/2005, p. 31, 32).
17
Marlete S. Diedrich; Patrícia Valério; Elisane R. Cayser | Pensando o ensino de língua...
Com essa concepção de cultura como interdição, o autor
a vê como inteiramente simbólica, definida por representações
complexas determinadas por valores como tradição, religião,
leis, política, ética, artes: “tudo isso que o homem, onde quer
que nasça, será impregnado no mais profundo da sua consciên-
cia, e que dirigirá o seu comportamento em todas as formas da
sua atividade” (Benveniste, 1963/2005, p. 32). Assim, entre
o homem, a língua e a cultura há um vínculo, manifesto no
simbolismo articulador entre essas três entidades, uma vez que
a linguagem “manifesta e transmite” a cultura, e “pela língua, o
homem assimila a cultura, a perpetua ou a transforma” (Benve-
niste, 1963/2005, p. 32). Eis o entrelaçamento língua e cultura,
constitutivo da inserção do homem na linguagem.
A língua, assim, na concepção benvenistiana, não pode ser
vista como realidade inata, uma vez que é na cultura que ela é
revelada, construída, aprendida e até mesmo modificada. Também
não pode ser entendida como um instrumento, uma vez que,
em texto de 1958, Da subjetividade na linguagem (1958/2005),
o autor já apresentava sua crítica à comparação da linguagem
com um instrumento, afirmando que tal comparação deve ser
vista com desconfiança, uma vez que a ideia de instrumento
opõe o homem e a natureza. Entretanto, segundo o autor, a
linguagem não foi fabricada pelo homem, à semelhança do que
fez, por exemplo, com instrumentos como arco e flecha. Para
Benveniste, é ingênua a ideia de um período original na história
do homem, em que “um homem descobria outro e, entre eles,
pouco a pouco, se elaboraria a linguagem”. Trata-se, segundo
ele, de pura ficção, pois:

Não atingimos nunca o homem separado da linguagem e não


o vemos nunca inventando-a. Não atingimos jamais o homem
reduzido a si mesmo e procurando conceber a existência do
outro. É um homem falando que encontramos no mundo, um
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Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
homem falando com outro homem, e a linguagem ensina a
própria definição do homem (1958/2005, p. 285).

O homem se define pela linguagem. E essa definição leva-


-nos a pensar na relação homem/língua. Quando nos voltamos
para essa relação, voltamo-nos para as formas da língua, as quais,
segundo Benveniste em A linguagem e a experiência humana
(1965/2005), precisam ser estudadas no exercício da linguagem
e na produção do discurso, a fim de que suas funções possam ser
compreendidas. E, para tanto, retoma a ideia de que, na instância
do discurso, eu evoca tu, numa relação de oposição a ele. Nessa
realização enunciativa, uma experiência humana se instaura de
novo e revela o instrumento linguístico que a funda. Tal realidade
diz respeito à linguagem, posto ser universal.
O autor vê neste fato da linguagem o efeito de singularidade:

A língua provê os falantes de um mesmo sistema de referências


pessoais de que cada um se apropria pelo ato de linguagem e que,
em cada instância de seu emprego, assim que é assumido por seu
enunciador, se torna único e sem igual, não podendo realizar-se
duas vezes da mesma maneira (Benveniste, 1965/2005, p. 69).

Entendemos, a partir desse princípio, que o locutor se


apropria da língua por meio da vivência de diferentes instâncias
de emprego das formas da língua e essas instâncias são decisivas
para a construção da sua linguagem.
É o locutor que mobiliza toda a estrutura da língua em
conformidade com a situação vivida em cada ato enunciativo: “É
sempre ao ato de fala no processo de troca que remete a experiên-
cia humana inscrita na linguagem” (Benveniste, 1965/2005, p.
80). Ato de fala no processo de troca, eis o estatuto da intersub-
jetividade, fundamental para a experiência humana inscrita na
linguagem. Ou seja, a cada ato de fala a linguagem se manifesta
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Marlete S. Diedrich; Patrícia Valério; Elisane R. Cayser | Pensando o ensino de língua...
como uma realidade que carrega vestígios de uma historicidade
enunciativa, a experiência humana inscrita na linguagem, que
define o próprio homem.
A constituição do homem como sujeito nos leva à ideia
de apropriação da língua, o que traz à cena teórica o conceito
de enunciação e nos impele a buscar em O aparelho formal da
enunciação (1970/1989) os fundamentos de que necessitamos
para fechar essa teorização.
Nesse artigo, o autor critica as limitações das descrições
linguísticas pautadas no emprego das formas, distinguindo esse
emprego do emprego da língua e anuncia “uma outra maneira
de ver as mesmas coisas, uma outra maneira de as descrever e
de as interpretar” (Benveniste, 1979/ 1989, p. 81).
Ao fazer essa distinção entre emprego das formas e emprego
da língua, o autor tece críticas ao grande número de modelos
consequentes da descrição do emprego da língua, e o faz a partir
da constatação de que “a diversidade das estruturas linguísticas
não se deixa reduzir a um pequeno número de modelo” (Ben-
veniste, 1979/ 1989, p. 82). E afirma que “Coisa bem diferente
é o emprego da língua” (p. 82), já que esse emprego é “um
mecanismo total e constante que, de uma maneira ou de outra,
afeta a língua inteira” (Benveniste, 1979/ 1989, p. 82). Trata-se
da enunciação: “este colocar em funcionamento a língua por um
ato individual de utilização” (Benveniste, 1979/ 1989, p. 82).
O texto O aparelho formal da enunciação, conforme Ono
(2007), possui uma dimensão fundadora para a linguística atual,
uma vez que se constitui como um dos pontos de referência mais
importantes para a teorização da noção de enunciação. Segundo
a autora, a importância desse texto não se deve simplesmente
ao fato de ser o último texto de Benveniste sobre o assunto,
mas sim devido à explicitação de uma ideia global do fenômeno
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Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
enunciativo como um grande processo passível de ser estudado
sob diversos aspectos.
Assim, encontramos nesse artigo uma definição de enun-
ciação, não a única apresentada pelo autor, capaz de nos auxiliar
em nosso propósito rumo à reflexão acerca do ensino de língua.
Buscamos entender como o linguista propõe que se analise a
enunciação. Encontramos nesse mesmo artigo a proposição de
três aspectos acerca da enunciação. O primeiro deles diz respeito
à realização vocal da língua:

Os sons emitidos e percebidos, quer sejam estudados no quadro


de um idioma particular ou nas suas manifestações gerais, como
processo de aquisição, de difusão, de alteração – são outras tantas
ramificações da fonética –, procedem sempre de atos individuais,
que o linguista surpreende sempre que possível em uma produ-
ção nativa, no interior da fala (Benveniste, 1979/ 1989, p. 82).

Parece-nos aqui que, na citação anterior, o autor se ocupa,


com este aspecto do som em sua realização linguística. Acerca
desse aspecto ainda, Benveniste (1979/1989) revela uma carac-
terística peculiar: “os mesmos sons não são jamais reproduzidos
exatamente” (p. 83), ou seja, mesmo quando se repete a expe-
riência, os sons reproduzidos apresentam nuances diferenciadas
que se encarregam de impor no discurso sentidos diferentes.
Assim, chegamos ao segundo aspecto: a conversão indi-
vidual da língua em discurso, ou seja, como o sentido se forma
em palavras. Segundo Benveniste (1979/1989, p. 83), trata-se
da semantização da língua. Percebemos que esse aspecto está
no centro do estudo enunciativo, uma vez que todos os outros
aspectos elencados servem ao processo de semantização, ou seja,
em enunciação, estamos sempre interrogando como o locutor
faz, ao se apropriar dos mecanismos linguísticos, para construir
sentidos. Esse aspecto, assim, conduz todos os demais, pois,
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Marlete S. Diedrich; Patrícia Valério; Elisane R. Cayser | Pensando o ensino de língua...
afinal, como o sentido se constrói na língua configura o centro
da pesquisa linguística em enunciação.
O autor propõe, ainda, que se estude o terceiro aspecto
da enunciação: o quadro formal de sua realização, ou seja, os
caracteres formais da enunciação a partir da manifestação indi-
vidual que ela atualiza. Ao apresentar esse aspecto, Benveniste
(1979/1989, p. 83) afirma existirem caracteres necessários e
permanentes e outros incidentais e ligados à particularidade do
idioma escolhido. Assim, são levados em consideração o próprio
ato de enunciação, as situações em que ele se realiza e os instru-
mentos de sua realização.
Entre os índices específicos, estão os índices de pessoa:
eu e tu denotando, respectivamente, locutor e alocutário. Esses
índices acabam por manipular muitos outros, cujo centro de sua
existência é o locutor. Entre eles, estão os índices de ostensão,
ou seja, “termos que implicam um gesto que designa o objeto ao
mesmo tempo que é pronunciada a instância do termo” (Ben-
veniste, 1979/ 1989, p. 85). Trata-se de formas linguísticas que
só se revelam no aqui-agora da enunciação. Assim também se
revelam as formas temporais, responsáveis pela manifestação da
temporalidade, “produzida na e pela enunciação” (1979/1989,
p. 85). Acerca dessa questão, o autor se detém e afirma ser o
presente o tempo da enunciação, uma vez que é da instauração
da categoria do presente que nasce a categoria do tempo:

O presente formal não faz senão explicitar o presente inerente à


enunciação, que se renova a cada produção do discurso, e a partir
deste presente contínuo, coextensivo à nossa própria presença,
imprime na consciência o sentimento de uma continuidade que
denominamos “tempo”; continuidade e temporalidade que se en-
gendram no presente incessante da enunciação, que é o presente
do próprio ser e que se delimita, por referência interna, entre o
que vai se tornar presente e o que já não o é mais (Benveniste,
1979/1989, p. 85-86).
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Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Com essa análise, o autor nos leva a pensar que o agora
da enunciação é responsável pela mobilização de categorias
linguísticas marcadoras do tempo no próprio ato de enunciação.
Eis as formas que emanam da enunciação. Acreditamos
que, para Benveniste, os procedimentos acessórios se encontram
em toda a língua, mobilizados de forma singular pelo locutor a
cada ato enunciativo.
Além das formas, Benveniste apresenta as condições neces-
sárias às grandes funções sintáticas, fornecidas pela enunciação
(1979/1989, p. 86). Trata-se, segundo ele, de um “aparelho
de funções”. Esse aparelho está a serviço da relação locutor-
-alocutário, uma vez que o sujeito dele dispõe para influenciar
de alguma forma o comportamento do outro. A interrogação é
uma dessas funções. Benveniste a define como “uma enuncia-
ção construída para suscitar uma resposta” (1979/1989, p. 86).
Em relação a essa função, afirma que “todas as formas lexicais
e sintáticas de interrogação, partículas, pronomes, sequência,
entonação etc.” derivam do seguinte aspecto da enunciação:
processo de comportamento linguístico com dupla entrada, uma
vez que implica sempre o retorno do outro.
Outra função é a intimação, a qual envolve uma ordem, um
apelo e implica “uma relação viva e imediata” com o outro, o que
move categorias linguísticas específicas, características e marca-
doras dessa relação, como é o caso do vocativo, do imperativo.
O autor apresenta também a asserção, a qual, segundo ele,
visa a comunicar uma certeza, e, para isso, há um rodeio sintático
e um jogo entonacional. Como elementos específicos, Benveniste
lembra que a asserção tem o sim e o não, além de tantas outras
formas sugeridas pelo autor que, de um modo mais amplo, dizem
respeito à asserção.
Pensar no quadro figurativo da enunciação, portanto, implica
todo o aparelho da enunciação, envolvendo os índices específicos,
23
Marlete S. Diedrich; Patrícia Valério; Elisane R. Cayser | Pensando o ensino de língua...
os procedimentos acessórios e o aparelho de funções, imbricados
nessa relação intersubjetiva. De posse desses princípios propostos
pelo linguista, voltamo-nos, na sequência, à reflexão acerca do
ensino de língua a partir da perspectiva enunciativa apresentada
por Benveniste.

O ensino de língua a partir de


princípios enunciativos
O que apresentamos até aqui representa o resultado da
leitura que fazemos de artigos de Émile Benveniste e que nos
permite traçar relação de interdependência entre os elementos
homem-linguagem-cultura. É nessa relação que encontramos
os fundamentos capazes de iluminar a temática ensino de língua.
Por essa razão, na sequência deste artigo, ocupamo-nos em
definir nossas concepções de língua a partir dos fundamentos
apresentados, para sistematizarmos, de forma ainda primária,
uma abordagem capaz de sugerir um ensino de língua pautado
em princípios enunciativos, o que, acreditamos, ainda falta às
nossas escolas da educação básica. Por certo, motivadas pela
busca em preencher essa falta é que nos ocupamos da temática
aqui apresentada.
De posse dos fundamentos benvenistianos apresentados
na sessão anterior, somos levadas a pensar no ensino de língua a
partir de uma determinada concepção de língua, a qual comporta
aspectos culturais. Ousamos dizer que a língua é marcada por
vestígios de uma cultura da qual o homem faz parte e é capaz de
estar interminantemente em relação de reciprocidade com essa
cultura, uma vez que é na língua que essa cultura se revela e é
no seio dessa mesma cultura que a língua se constitui. Tal relação
implica pensar a língua no meio social, uma vez que o homem se
constitui como ser social por meio da linguagem. Sendo assim,
24
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
entendemos, com Benveniste, que língua e sociedade não se con-
cebem uma sem a outra. Essa relação obrigatória nos leva a refletir
acerca de um ensino de língua que possibilite a compreensão da
língua na vida social, o que nos leva a centrar nosso olhar para
a língua e sua função social, uma vez que, segundo Benveniste,
encontramos sempre um homem falando com outro homem.
Logo, quando ensinamos língua, na verdade, ensinamos como o
homem se apropria dessa língua para exercer sua função social.
Por essa razão, voltamo-nos para a língua no discurso, para
a enunciação, uma vez que a função social da língua só se con-
firma nessa condição, quando passa da virtualidade do sistema
linguístico para as escolhas realizadas pelo falante em situação de
discurso, tornando-se particular a cada ato enunciativo.
Assim, seguindo os princípios propostos por Benveniste
no texto O aparelho formal da enunciação, no qual aborda espe-
cificamente a apropriação da língua pelo sujeito que se enuncia,
apoiamo-nos na ideia do autor de que as descrições linguísticas
pautadas no emprego das formas são muito limitadas, uma vez
que não dão conta do emprego da língua. A partir desse princípio,
vemos a possibilidade de relacionar “emprego das formas” em
Benveniste com as estruturas gramaticais que compõem muitas
aulas de língua portuguesa. Em outro extremo, encontraríamos,
assim, o “emprego da língua”, na visão do linguista, “uma
outra maneira de ver as mesmas coisas, uma outra maneira de
as descrever e de as interpretar” (Benveniste, 1970/1989, p.
81). Certamente, somos guiados aqui pela concepção de língua
apresentada em outros textos do autor, já citados, a qual envolve
o aspecto cultural e convoca a enunciação como “um mecanis-
mo total e constante que, de uma maneira ou de outra, afeta a
língua inteira” (Benveniste, 1970/1989, p. 82), uma vez que
é definida como: “este colocar em funcionamento a língua por
um ato individual de utilização” (Benveniste, 1970/1989, p.
82). Destacamos nessa definição a ideia de ação, proposta pelo
25
Marlete S. Diedrich; Patrícia Valério; Elisane R. Cayser | Pensando o ensino de língua...
verbo colocar e confirmada em seguida pelo linguista quando
afirma: “é o ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto
do enunciado, que é nosso objeto” (Benveniste, 1970/1989, p.
82). Entendemos, com essa afirmação, que a língua só se revela
como resultado da enunciação, definida por Benveniste como
“ato”, o que nos leva a entender os locutores como protagonistas
de sua comunicação.
Logo, pensar o ensino de língua nos leva a pensar na língua
em discurso, na língua como enunciação, na língua como ato de
enunciação. Não basta, pois, descrever estruturas linguísticas, mas
o funcionamento dessas estruturas em determinadas situações
enunciativas. Trata-se, certamente, de um processo bem mais
complexo que a mera exposição e classificação de estruturas lin-
guísticas. Essa complexidade, aos nossos olhos, está relacionada
aos aspectos propostos por Benveniste para se estudar a enun-
ciação. O linguista afirma que há outros, mas focaliza três deles:
a realização vocal da língua, a semantização e o aparelho formal.
Acerca do primeiro deles, o autor afirma:

Os sons emitidos e percebidos, quer sejam estudados no quadro


de um idioma particular ou nas suas manifestações gerais, como
processo de aquisição, de difusão, de alteração – são outras tantas
ramificações da fonética – procedem sempre de atos individuais,
que o linguista surpreende sempre que possível em uma produ-
ção nativa, no interior da fala (Benveniste, 1970/1989, p. 82).

Entendemos que o aspecto vocal dá conta do som em sua


realização linguística. Logo, o ensino de língua numa perspec-
tiva enunciativa convoca à análise as especificidades dessa reali-
zação. Ainda, se “os mesmos sons não são jamais reproduzidos
exatamente” (Benveniste, 1970/1989, p. 83), somos levados
a focalizar, em nossas aulas de língua, de que forma o aspecto
vocal constrói diferenças no uso linguístico. Essas diferenças
26
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
estão relacionadas ao segundo aspecto: a conversão individual da
língua em discurso, ou seja, como o sentido se forma em palavras.
Segundo Benveniste (1970/1989, p. 83), trata-se da seman-
tização da língua. Percebemos que esse aspecto está no centro
do estudo enunciativo, uma vez que todos os outros aspectos
elencados servem ao processo de semantização, ou seja, em enun-
ciação, estamos sempre interrogando como o locutor faz, ao se
apropriar dos mecanismos linguísticos, para construir sentidos.
Certamente, esse aspecto assume a posição de condutor de todos
os demais, pois, afinal, quando ensinamos língua, na perspectiva
aqui proposta, entendemos que analisamos como o sentido se
constrói na língua e que fatores da enunciação influenciam essa
construção.
O autor propõe ainda que se estude o terceiro aspecto
da enunciação: o quadro formal de sua realização, ou seja, os
caracteres formais da enunciação a partir da manifestação indi-
vidual que ela atualiza. Ao apresentar esse aspecto, Benveniste
(1970/1989, p. 83) afirma existirem caracteres necessários e
permanentes e outros incidentais e ligados à particularidade do
idioma escolhido. Assim, são levados em consideração o próprio
ato de enunciação, as situações em que ele se realiza e os instru-
mentos de sua realização.
Acreditamos que um ensino de língua pautado na enunciação
verá o quadro formal proposto por Benveniste como fundamental
na abordagem da língua, uma vez que esse quadro é a própria
língua mobilizada pelo falante em função da intersubjetividade
vivida a cada ato enunciativo: o falante se apropria desse quadro
formal e constrói sentidos, únicos em função da singularidade da
situação vivida. Dar conta desse quadro formal, compreendendo
que há índices específicos relacionados à enunciação, como é
o caso da categoria de pessoa, de tempo e espaço, e que, além
desses, toda a língua está a serviço de procedimentos acessórios
27
Marlete S. Diedrich; Patrícia Valério; Elisane R. Cayser | Pensando o ensino de língua...
mobilizados no ato de enunciação, é tarefa de quem se propõe
a ensinar língua.

Considerações finais
Não apresentamos aqui nenhuma análise linguística como
exemplificação do ponto de vista teórico por nós assumido, no
entanto, pensamos ser possível tomarmos estruturas linguísticas
tradicionalmente focalizadas no ensino de língua com o intuito
da mera classificação e vislumbrarmos o seu potencial semântico
mobilizado pelo falante em situações enunciativas. Limitamo-
-nos aqui a listar algumas delas, como é o caso do aumentativo
e diminutivo, classes gramaticais, entre tantas outras. Claro está,
para nós, que, ao assumirmos o ponto de vista enunciativo no
ensino de língua, deixamos o terreno das regularidades postas em
manuais de gramática e ousamos pela singularidade de cada ato
enunciativo. Como Flores (et al., 2008, p. 33), acreditamos que
“estudar a linguagem do prisma de uma Teoria da Enunciação
é estudá-la do ponto de vista semântico”. A leitura que fazemos
de Benveniste coloca, portanto, em primeiro plano, o sentido,
mobilizado a cada ato enunciativo.

Referências bibliográficas
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_____ . Categorias de pensamento e categorias de língua. In: _____
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Marlete S. Diedrich; Patrícia Valério; Elisane R. Cayser | Pensando o ensino de língua...
30
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Capítulo
II

Reflexões acerca da
semântica do texto
Daiane Neumann4

A linguagem é “nosso elemento como a água é o elemento dos


peixes” (Merleau-Ponty). Não é, portanto, um “exterior”, um
elemento que possamos nos contentar em observar. Ela é constituti-
va de nossa realidade. É dela que necessitamos para levar a cabo
nossa busca pelo sentido5.

Há, desde meados da década de 60, do século XX, grande


preocupação dentro dos estudos da linguagem acerca do trabalho
com o texto e/ou discurso. Os estudos relacionados à Linguística
da enunciação, Linguística textual, Análise do discurso, Análise
da conversação deram atenção a questões que envolvem a or-
ganização e a construção do texto6, sob perspectivas diferentes.
4
Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, na linha Teorias do texto e do discurso. Bolsista CAPES/REUNI.
E-mail: daiane_neumann@hotmail.com
5
Jean-Claude Coquet. A busca do sentido: a linguagem em questão. Tradução de
Dilson Ferreira Cruz – São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. p. 01.
6
Neste trabalho, considerarei tanto a palavra texto quanto discurso como o trabalho
com a linguagem em uso, como a maior unidade de análise, não farei distinção entre

31
Daiane Neumann | Reflexões acerca da semântica do texto
Essa diversidade de reflexões levou a diferentes formas
de abordagem, análise e estudo do texto. Cada uma dessas
abordagens buscou chamar a atenção para fenômenos diversos
que estão relacionados à organização e construção desse objeto.
Busco, neste capítulo, apresentar algumas discussões, reflexões e
considerações acerca da semântica do texto, a partir da discussão
sobre sentido proposta por Ferdinand de Saussure, no Curso de
linguística geral7, Émile Benveniste, em Problemas de linguística
geral I e II8, e de Henri Meschonnic, em Critique du rythme.
Para isso, retomarei algumas reflexões sobre o sentido, pro-
postas por Saussure no CLG, principalmente no que concerne
ao arbitrário do signo e à teoria do valor. Em seguida, discutirei
sobre o desenvolvimento dado por Benveniste a esta reflexão, em
especial considerando a questão da subjetividade na linguagem,
da noção de discurso e da relação forma e sentido, para, então,
apresentar algumas questões desenvolvidas por Meschonnic
em Critique du rythme, a partir dos trabalhos dos dois grandes
mestres.
Ao final do trabalho, farei um deslocamento dessas dis-
cussões apresentadas para pensar sobre o tratamento semântico
que pode ser dado ao texto em sala de aula. Atentarei também
para algumas particularidades que este olhar pode trazer para
discutir o objeto texto e que visam a enriquecer a análise e reflexão
acerca do mesmo.

A teoria do valor no CLG


A escolha de trazer a discussão proposta por Ferdinand
de Saussure do CLG sobre o sentido para a reflexão acerca do
os dois vocábulos.
7
Deste momento em diante, utilizarei a sigla CLG, para fazer referência à obra.
8
Deste momento em diante, utilizarei a sigla PLG I ou II, para fazer referência à obra.

32
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
texto pode causar estranhamento em um primeiro momento,
visto que historicamente a linguística, apresentada pelo mestre
genebrino, foi considerada uma ciência piloto para o movimento
que ficou conhecido como estruturalista. Segundo esse olhar, tal
obra não seria relevante para pensar questões que envolvam o
sentido e o texto.
Contudo, tomarei aqui o CLG sob perspectiva diferente, não
mais como a obra que fornece as bases para o estruturalismo, mas
como aquela que torna possível a Émile Benveniste sua reflexão
sobre o sentido, a subjetividade na linguagem e o discurso, e, mais
tarde, a Henri Meschonnic o desenvolvimento do que chamou
de uma “antropologia histórica da linguagem”.
A discussão sobre o sentido no CLG está vinculada princi-
palmente à reflexão sobre a arbitrariedade do signo e o sistema
de valores. Na primeira parte, capítulo I, ao discutir sobre a
arbitrariedade do signo linguístico, o CLG propõe que a unidade
linguística seria uma “coisa dupla” (2004, p. 79), constituída
pela união de dois termos, significante e significado, ou seja,
pela união de uma imagem acústica e um conceito.
Essa união entre os dois termos se daria de forma arbitrária,
pois segundo o CLG, “a ideia de ‘mar’ não está ligada por rela-
ção alguma interior à sequência de sons m-a-r que lhe serve de
significante; poderia ser representada bem por outra sequência,
não importa qual” (ibid., p. 81-82).
No entanto, nesta mesma discussão proposta, ainda na pági-
na 82, tem-se na continuação desta citação: “como prova, temos
as diferenças entre as línguas e a própria existência de línguas
diferentes: o significado da palavra francesa boeuf (“boi”) tem
por significante b-ö-f de um lado da fronteira franco-germânica,
e o-k-s (Ochs) do outro”. Ora, em tal reflexão não se pode mais
dizer que a discussão sobre a arbitrariedade do signo linguísti-
co esteja restrita à relação entre significante e significado, mas
33
Daiane Neumann | Reflexões acerca da semântica do texto
também está ligada à relação entre língua e realidade, problema
cujo debate é antigo na filosofia.
Tal discussão aponta para a existência de uma dupla arbi-
trariedade na língua. A arbitrariedade existente entre um signi-
ficante e um significado e a arbitrariedade da língua em relação
ao mundo. Nesse sentido, o CLG se insere em uma discussão
sobre o sentido que é cara aos estudos da filosofia da linguagem,
a relação entre língua e realidade.
Enquanto a filosofia considera a língua um reflexo da reali-
dade e estuda o sentido a partir das condições de verdade, para
o Saussure do CLG a língua não é uma nomenclatura. Dessa
forma, as coisas do mundo não viriam previamente discretiza-
das e à língua não caberia colar-lhes rótulos designativos. No
CLG, então, o sentido é construído pelo homem através do uso
da língua.
Se a relação entre língua e realidade é arbitrária, os sentidos
na língua não podem mais ser percebidos como um reflexo da
realidade. Os sentidos na língua emanariam então das relações
entre as próprias unidades linguísticas que integram um sistema
de valores, o que nos leva à segunda discussão, a que me propus
aqui para pensar o sentido no CLG, o valor linguístico.
No capítulo IV, denominado O valor linguístico, o CLG
propõe que os valores no sistema linguístico são “inteiramente
relativos” (ibid., p. 132), por isso, o vínculo entre a ideia e o som
é radicalmente arbitrário. Ou seja, deve-se partir da totalidade so-
lidária para obter, por análise, os elementos que o sistema encerra.
Pensar que o que determina o valor do signo seria simplesmente
a união de certo som com certo conceito seria isolá-lo do sistema
do qual faz parte, seria acreditar que é possível começar pelos
termos e construir o sistema fazendo a soma deles.
Os valores do sistema são puramente diferenciais, são defini-
dos não positivamente por seu conteúdo, mas negativamente por
34
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
suas relações com outros termos do sistema, “sua característica
mais exata é ser o que os outros não são” (ibid., p. 136). A língua
não comportaria, portanto, nem ideias nem sons preexistentes
ao sistema linguístico, mas somente diferenças conceituais e
fônicas resultantes desse sistema. Por isso, o valor de um termo
pode modificar-se, sem que lhe toque, quer no sentido quer nos
sons, unicamente pelo fato de um termo vizinho ter sofrido uma
modificação.
Pensando o sistema linguístico como um sistema de valores,
pode-se afirmar que “os caracteres da unidade se confundem com
a própria unidade” (ibid., p. 140). Dessa forma, o que distingue
um signo é tudo o que o constitui. A diferença faz a característica,
o valor e a unidade. Discussão essa que faz com que, ao final da
reflexão sobre o valor linguístico, o CLG estabeleça que “a língua
é uma forma e não uma substância” (ibid., p. 141).
A reflexão proposta por Ferdinand de Saussure sobre o sen-
tido no CLG desloca a discussão do sentido proposta pela filosofia
da relação entre língua e realidade para a relação da construção
dos sentidos dentro do sistema semiológico da língua. Os senti-
dos se constroem na e pela língua, pela relação estabelecida nos
diferentes sistemas de valores entre as unidades que os compõem.
Tal discussão proposta no CLG, por Ferdinand de Saussure,
é deslocada por Émile Benveniste para pensar o sistema linguís-
tico da enunciação. A partir dela, Benveniste propõe à reflexão
sobre o sentido que se considere a subjetividade na linguagem
e o discurso.

O sentido em Émile Benveniste


Ao deslocar a discussão sobre o sistema de valores arbitrá-
rios da língua para pensar o sistema linguístico da enunciação,
Benveniste insere, na reflexão sobre o sentido, a subjetividade
35
Daiane Neumann | Reflexões acerca da semântica do texto
na linguagem. O linguista, dessa forma, opõe-se à dicotomia
entre natureza e cultura e afirma que “a linguagem está na na-
tureza do homem que não a fabricou” (2005, p. 285). Assim,
de acordo com o autor, não atingimos nunca o homem separado
da linguagem e não o vemos nunca a inventando, não atingimos
jamais o homem reduzido a si mesmo e procurando conceber a
existência do outro, “é um homem falando que encontramos no
mundo, um homem falando com outro homem, e a linguagem
ensina a própria definição do homem” (ibid., p. 285).
Para Benveniste, “é na linguagem e pela linguagem que o
homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem funda-
menta na realidade, na sua realidade que é a do ser, o conceito
de ‘ego’” (ibid., p. 286). O fundamento da subjetividade para o
linguista sírio se determina pelo estatuto linguístico da “pessoa”,
“é ‘ego’ quem9 diz ego” (ibid., p. 286).
No entanto, para o linguista, é impossível que se empregue
o eu senão dirigindo-se a um tu, a condição de diálogo seria,
portanto, constitutiva da pessoa, pois implica reciprocidade. A
polaridade das pessoas seria para a linguagem a condição fun-
damental. Dessa forma, caem as antinomias entre o indivíduo e
a sociedade. Segundo esta concepção, a sociedade não pode ser
concebida como preexistente ao indivíduo, da qual este só se teria
destacado à medida que adquirisse a consciência de si mesmo.
Em uma realidade dialética, língua e sociedade se definem de
forma mútua, aí está o fundamento linguístico da subjetividade.
Seguindo a discussão de Saussure, que concebe a língua não
mais como reflexo da realidade, mas sim como criadora da reali-
dade, Benveniste pensa a língua como aquela que é responsável
pela constituição do homem e da sociedade. Para o linguista sírio,
é na e pela linguagem que o homem e a sociedade constroem-
9
Na tradução em português consta “que” e não “quem”, no entanto, no original em francês,
Benveniste utiliza o pronome qui, cuja tradução mais apropriada para o português neste
caso seria quem.

36
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
-se; nesse sentido, o homem e a sociedade não podem mais ser
observados fora da linguagem, como realidades preexistentes.
Dessa forma, os sentidos construídos na língua não dependem de
uma realidade extralinguística e não são determinados por uma
realidade preexistente a uma determinada enunciação.
A partir dessa discussão proposta por Benveniste, perce-
bemos que a noção de referência também adquire um outro
estatuto. A noção tão cara aos estudos da filosofia da linguagem,
pois é responsável por estabelecer a relação língua/realidade, em
Benveniste, passa a remeter à instância de discurso, ou seja, a
realidade a que esta noção remete é a do discurso. A instância do
discurso seria, portanto, constitutiva de todas as coordenadas que
definem o sujeito, como, por exemplo, as categorias de pessoa,
tempo e espaço, que são amplamente discutidas no PLG I e II,
pelo linguista.
Para Émile Benveniste, a construção dos sentidos na língua
acontece em uma enunciação particular, singular e evanescente,
que envolve uma relação intersubjetiva, em um determinado
tempo e em um determinado espaço, que, assim como o eu e o
tu, são construídos por uma determinada situação de discurso.
De acordo com o linguista, “o homem não dispõe de nenhum
outro meio de viver o ‘agora’ e de torná-lo atual senão realizando-
-o pela inserção do discurso no mundo” (2006, p. 85). Esses
sentidos no discurso são construídos, ainda, por uma relação
que se estabelece entre forma e sentido na língua.
Em A forma e o sentido na linguagem, o linguista sírio se opõe
à dicotomia entre forma e sentido, defendendo que devemos
tomá-la no funcionamento da língua, integrando-a e esclarecendo-
-a, pois através desta postura somos colocados no centro do
problema mais importante da linguagem, que é o da significação.
Para o linguista, “antes de qualquer coisa, a linguagem significa,
tal é seu caráter primordial, sua vocação original que transcende
e explica todas as funções que ela assegura no meio humano”,
37
Daiane Neumann | Reflexões acerca da semântica do texto
“bem antes de servir para comunicar, a linguagem serve para
viver” (2006, p. 222).
Esta não concordância de Benveniste em relação à oposição
entre forma e sentido, bem aceita no geral pelos denominados
estruturalistas, revela uma volta às bases do pensamento saus-
suriano, pois, no CLG, significante e significado compõem uma
unidade “bilateral por natureza” (ibid., p. 225), que é o signo
linguístico, ou seja, no CLG, forma e sentido não podem ser
dissociados.
No entanto, ao inserir a reflexão sobre a subjetividade na
linguagem, o linguista acaba por inserir a discussão sobre o
discurso, retomando dessa forma a proposta de Saussure sobre
o sistema de valores arbitrários, que foi denominado por Benve-
niste, “domínio semiótico”, e abre um novo domínio de estudo,
denominado “semântico”.
O domínio semiótico não se ocupa da relação do signo com
as coisas denotadas, nem da relação entre a língua e o mundo. O
signo teria sempre e somente um valor genérico e conceptual nesse
domínio, além de não se admitir significado individual e particular
ou ocasional. Excluindo-se tudo o que é individual, as relações
são binárias, os signos se dispõem em relações paradigmáticas.
Já no domínio semântico, entra-se no domínio da língua em
emprego e em ação. A língua é vista em sua função mediadora
entre “o homem e o homem, entre o homem e o mundo, entre
o espírito e as coisas, transmitindo a informação, comunicando a
experiência, impondo a adesão, suscitando a resposta, implorando,
constrangendo” (ibid., p. 229). Nesse domínio, a mensagem não
se reduziria a uma sucessão de unidades que devem ser iden-
tificadas separadamente, pois não é uma adição de signos que
produz o sentido, mas é o sentido – intenté – que se realiza e se
divide em signos particulares.
38
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Na base, haveria o sistema semiótico de organização dos
signos, e, sobre este fundamento semiótico, a língua-discurso
construiria uma semântica própria, significação intencionada,
produzida pela sintagmatização das palavras em que cada pa-
lavra não reteria senão uma pequena parte do valor que teria
enquanto signo.
Para Benveniste, portanto, o sentido também se constrói em
uma relação entre forma e sentido que acontece entre o domínio
semiótico e semântico. Cada enunciação, cada produção de dis-
curso se constitui e se constrói em uma relação única, singular
e irrepetível entre o domínio semiótico e semântico da língua.
Pensar a construção de sentido a partir dessa perspectiva é ob-
servar como se dá essa relação entre os dois domínios da língua
em uma enunciação particular.
Assim, a organização de sentido se dá em uma relação úni-
ca, particular, entre o domínio semiótico e semântico da língua
“ligada a um certo presente, portanto a um conjunto cada vez
único de circunstâncias, que a língua enuncia numa morfologia
específica” (ibid. p. 230). A frase10 é, para Benveniste, cada vez
um acontecimento diferente; ela não existe senão no instante em
que é proferida e se apaga neste instante, “é um acontecimento
que desaparece”.
Ao final do texto Semiologia da língua, publicado no PL-
GII, Benveniste afirma que é necessário ultrapassar a noção
saussuriana do signo como princípio único, do qual dependeria
simultaneamente a estrutura e o funcionamento da língua.
Tal ultrapassagem poderia ser feita por duas vias, a da análise
intralinguística, através da abertura de uma nova dimensão de
significância, aquela do discurso, que denominou semântica,
cuja discussão pode-se encontrar na obra de tal estudioso, e a
da análise translinguística dos textos e das obras, pela elaboração
10
É interessante observar que, em Benveniste, em algumas ocorrências, o termo frase
tem sentido de discurso. Essa é uma dessas situações.

39
Daiane Neumann | Reflexões acerca da semântica do texto
de uma metassemântica que se constituiria pela semântica da
enunciação.
É sob essa segunda via proposta por Émile Benveniste que
Henri Meschonnic propõe o desenvolvimento do projeto por ele
denominado de uma antropologia histórica da linguagem, na obra
Critique du rythme. A proposta de semântica apresentada em tal
obra é o que discutirei a seguir.

A significância em Henri Meschonnic


Em Critique du rythme, Meschonnic discute sobre o ritmo
no discurso. Para fazê-lo, opõe-se à noção tradicional que per-
passa os estudos linguísticos e literários que, em geral, confunde
ritmo e metro e, não raro, toma um termo pelo outro. É o que
o autor comprova ao fazer um histórico dos estudos do ritmo,
bem como ao mostrar como os dicionários e enciclopédias ainda
tratam o vocábulo.
Meschonnic ainda opõe-se à pura transposição que há da
concepção de ritmo na música para o ritmo na linguagem a uma
concepção que toma o ritmo como responsável por uma musi-
calidade e que o restringe ao poema. E diz também que, para
pensar o ritmo na linguagem, é preciso que se pense o ritmo no
discurso e o tome como uma característica da linguagem como
um todo, e não somente da linguagem poética.
Para o desenvolvimento de tal trabalho, o autor encontra
amparo no artigo de Émile Benveniste, O “ritmo” em sua ex-
pressão linguística, que busca fazer uma reconstrução da palavra
ritmo e mostra que, antes de Platão, esta significava organização
do movimento, organização formal. De acordo com Meschonnic,
no texto Crise de signe, Platão transformou a noção de ritmo, ou
seja, é o filósofo quem inventa a noção corrente de ritmo.
40
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Dessa forma, Meschonnic percebe que Benveniste, através
de sua crítica da etimologia da palavra ritmo, tornou possível
uma relação nova entre o sentido e o sujeito, que é elaborada
também para pensar a discussão sobre o sistema da enunciação.
O teórico da linguagem, então, para propor uma outra
noção de ritmo, para pensar o ritmo no discurso, ampara-se no
trabalho de Émile Benveniste, tanto da reconstrução semântica
da palavra ritmo, quanto da discussão sobre a subjetividade na
linguagem e do semântico sem semiótico. Fornecem, ainda, as
bases para o desenvolvimento de seu trabalho Ferdinand de
Saussure e Wilhelm von Humboldt.
A discussão que Meschonnic promove em Critique du
rythme, na continuidade de Émile Benveniste e Ferdinand de
Saussure, também traz à tona a questão do sentido na linguagem.
Deve-se a isso o fato de ter trazido tal estudioso para essa reflexão
que aqui proponho sobre a semântica do texto.
De acordo com Henri Meschonnic (2009), ao pensar o
ritmo na e pela linguagem, a linguagem no e pelo ritmo, não se
visa a uma síntese conceitual do ritmo, a uma categoria abstra-
ta, universal, a uma forma a priori, mas a uma organização do
sentido de sujeitos históricos. Ou seja, o que está em jogo para
o teórico da linguagem não é mais pensar no ritmo como uma
forma que preexista ao discurso e que, portanto, determine sua
organização, mas sim tomá-lo como uma organização de sentidos
que emergem do discurso, que construído pelo sujeito do discurso
se historiciza no e pelo discurso.
Para o teórico da linguagem, tanto a forma quanto a exte-
rioridade são paradigmas que se opõem ao sentido, pois tais
paradigmas não o pensam como aquele que é construído na e
pela linguagem e colocam o ritmo fora do sentido. Dessa forma,
o sentido, referido à língua, às unidades, faria obstáculo a histo-
41
Daiane Neumann | Reflexões acerca da semântica do texto
ricidades, que só poderiam construir-se no valor, que se constitui
na relação com o todo.
Ao propor sua crítica do ritmo, Meschonnic discute sobre
poesia. No entanto, esta escolha do teórico se dá devido ao fato
de esta ser uma atividade da linguagem, um modo de significar
que expõe mais que todos os outros o jogo da linguagem, de
sua historicidade. Dessa forma, quando discute sobre o poema,
Meschonnic está também pensando sobre características, espe-
cificidades que se estendem, em menor ou maior grau, a toda
a linguagem.
A crítica do ritmo então não busca comentar um verso ou
um poema, cujo efeito ou valor poderia ser esgotado, mas busca
pensar como eles significam e qual a situação deste como. Ou seja,
o texto, a obra são, nesta perspectiva, tomados como uma unidade,
as relações que são estabelecidas e como elas são estabelecidas é
que podem nos auxiliar a pensar sobre os sentidos e os valores
que são construídos em uma situação particular.
Dessa forma, a poesia não faria referência a uma experiência,
ela seria responsável por criá-la, na medida em que o poema mina
a oposição da fala e da ação, pois a linguagem faz alguma coisa
ao mesmo tempo em que diz. No entanto, a linguagem não faz
necessariamente o que dizem as palavras.
De acordo com Meschonnic (ibid.), se o ritmo é a organi-
zação do discurso, e o discurso não é separável do seu sentido,
o ritmo é inseparável do sentido desse discurso. O ritmo seria
então a organização dos sentidos no discurso, o que nos leva,
em consequência, a observar o ritmo não mais como um nível
distinto, justaposto. O sentido, assim, dar-se-ia pela articulação
de todos os elementos do discurso, inclusive pelos elementos
suprassegmentais da entonação.
O discurso é, na teoria do ritmo, não o emprego dos sig-
nos, mas a atividade dos sujeitos na e contra uma história, uma
42
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
cultura, uma língua, isto é, os discursos dessa língua. Logo, em
Meschonnic (ibid.), somente há sentido no e pelos sujeitos, já
que o sentido estaria no discurso, e não na língua.
Se o sentido é uma atividade do sujeito, se o ritmo é uma
organização do sentido no discurso, o ritmo seria uma organização
ou configuração do sujeito no seu discurso. Uma teoria do ritmo
no discurso é, portanto, uma teoria do sujeito na linguagem. O
sujeito aqui seria comparável à origem da linguagem. Logo, o
sentido, o sujeito e o ritmo estão sempre relacionados.
O ritmo seria o sentido da imprevisibilidade, pois “o artista
não cria segundo os critérios de beleza, mas segundo uma neces-
sidade interior”11. A subjetividade de um texto, então, resulta da
transformação do que é o sentido ou o valor na língua em valores
somente no discurso. O ritmo é, portanto, sistema, que só pode
ser construído em uma história, visto que nenhuma consciência
e nenhuma intenção podem fazer com que o discurso seja um
sistema.
O poema é, em Meschonnic (ibid.), um saber sobre o futu-
ro, na medida em que inscreve as determinações de um sujeito;
dessa forma, não se pode escrever o que se quer, nem o que se
deseja. O ritmo é uma atualização do sujeito em sua temporali-
dade. Esse ritmo não transgride as convenções do discurso, ele
as transforma, é o sujeito, na medida em que não é nem forma,
nem conteúdo, mas sua própria realização, sua atualização.
O ritmo não é nem cópia do sentido, nem simbolização, é
o representante não semiótico do sujeito que é anterior ao dis-
curso. Tal anterioridade do ritmo é no discurso a prioridade de
um elemento do discurso sobre um outro, que são as palavras,
seus sentidos. No entanto, se há uma anterioridade do ritmo, ela
precede o sentido das palavras, mas não as palavras elas mesmas.
11
Arnold Schoenberg, Traité d’harmonie, cité dans L’Année 1913, éd cite, t. 3 p. 228 apud
Meschonnic 2009, p. 85. Tradução minha. No original, lê-se: “L’artiste ne crée pas selon les
critères du beau, mais selon une necessité intérieure”.

43
Daiane Neumann | Reflexões acerca da semântica do texto
Os ritmos seriam as partes mais arcaicas na linguagem, eles
são no discurso um modo linguístico pré-individual, inconsciente
como todo o funcionamento da linguagem. Eles são um elemento
da história individual. Se o ritmo é a organização do sentido, o
sentido de um sujeito, de um inconsciente no discurso, não tem
dupla articulação, escapa ao signo, suas figuras não são nem
próprias, nem figuradas.
De acordo com Meschonnic (ibid.), na separação entre
língua e discurso, apresentada por Benveniste na sua clássica
distinção entre o mundo semiótico e semântico, quando se dá
primazia ao estudo do discurso, permite-se a interação da língua e
do discurso. Tal interação não seria possível se a primazia fosse da
língua. O ritmo como sentido do sujeito seria uma historicização
do ritmo, o que implicaria o primado do discurso.
O ritmo na linguagem é a organização das marcas pelas
quais os significantes, linguísticos e extralinguísticos12, produzem
uma semântica específica, distinta do sentido lexical, a qual é
denominada por Meschonnic significância, ou seja, os valores
próprios a um discurso e a um só. Tais marcas podem se situar
em todos os níveis da linguagem, acentuais, prosódicos, lexicais,
sintáticos, que juntos constituem um paradigma e um sintagma
que neutralizam precisamente a noção de nível.
Contra a redução corrente do sentido ao léxico, Meschonnic
apresenta a significância que está ligada ao todo do discurso, que
está em cada consoante, em cada vogal. Dessa forma, se o sentido
é a atividade do sujeito da enunciação, o ritmo é a organização
do sujeito como discurso no e pelo seu discurso.
A métrica, de acordo com Meschonnic, seria a predição
absoluta, o ritmo é imprevisível, é novo, é a representação mesma
da história na linguagem, como a vida. O metro é descontínuo,
mensurável, binário ou ternário, enquanto o ritmo é contínuo-
12
Aqui o extralinguístico está ligado a gestos, postura corporal, não a uma realidade
sócio-histórica.

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Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
-descontínuo, é uma passagem do sujeito na linguagem, a pas-
sagem do sentido, da significância, do fazer sentido, em cada
elemento do discurso, até cada consoante, cada vogal.
A significância é, na esteira do autor, infinita, como a teoria.
O primado do ritmo contribuiria para situar o sentido na não-
-totalidade, na não-verdade, na não-unidade. Este seria o seu
efeito crítico.

O tratamento semântico do texto


O percurso teórico que apresentei neste capítulo traz à
tona uma discussão que envolve a construção dos sentidos na
linguagem. Tal percurso obviamente representa um ponto de vista
diante dos estudos semânticos, mas que me parece ser bastante
profícuo para pensar em uma semântica do texto, em uma forma
de abordar tal objeto.
A discussão apresentada por Ferdinand de Saussure sobre
a arbitrariedade do signo, tanto no que concerne à sua organi-
zação interna, quanto à sua relação com a realidade, leva-nos
a um rompimento com uma tradição filosófica e com alguns
estudos que envolvem o texto e o discurso. Ora, ao considerar
a língua como aquela que constitui a realidade, somos levados e
observar os textos, os discursos, como aqueles que constituem a
realidade e não como reflexo e/ou consequência dessa realidade. A
realidade extralinguística não pode, dessa forma, ser considerada
dada ou preexistente, visto que seria do texto que emergiriam os
sentidos responsáveis pela construção da realidade, que é sempre
aquela do discurso. Dessa forma, a noção de verdade acaba por
ser relativizada, na medida em que teríamos, de acordo com tal
perspectiva, somente acesso à realidade através da mediação do
discurso.
45
Daiane Neumann | Reflexões acerca da semântica do texto
A consequência de tal postura é admitir que a língua constrói
um sistema semiológico. Em Saussure, os valores, os sentidos são
determinados dentro do sistema da língua, através das relações
de oposição que se estabelecem neste sistema. Em Benveniste,
além da determinação dos valores no sistema linguístico, tem-se
a reflexão sobre a constituição dos valores no domínio semântico,
ou seja, no domínio do discurso. Por fim, em Meschonnic, os
valores, os sentidos dos elementos que compõem os textos se
constroem através das relações, paradigmáticas e sintagmáticas,
que se estabelecem em uma obra particular.
Benveniste discute, ainda, sobre a subjetividade na lingua-
gem, a constituição do discurso e as relações entre forma e sen-
tido. Para ele, a constituição dos sentidos é determinada pelas
relações intersubjetivas, entre o eu e o tu. Como essa relação de
interação é sempre única, singular, evanescente, a construção dos
sentidos é também sempre única, singular e evanescente, isto é,
os sentidos construídos por um texto são irrepetíveis.
Na discussão proposta pelo linguista, percebe-se, ainda,
esta negação que já está em Saussure de que a língua poderia ser
determinada por uma realidade extralinguística. Para Benveniste,
não há oposição entre o eu e o tu, entre língua e sociedade, os
discursos, os textos, constroem-se na dialética entre um e outro.
De acordo com esta concepção de linguagem, a realidade extra-
linguística não determina os sentidos do texto, mas se constrói
na medida em que o texto é construído.
As referências, portanto, trazidas pelos textos, discursos, só
podem ser observadas como aquelas que remetem à realidade
do discurso, ou seja, o próprio texto construiria assim a sua
referência. Os sujeitos da enunciação, assim como o tempo e o
espaço, são construídos no e pelo discurso. É por isso também
que os sentidos são únicos, singulares e evanescentes, pois a cada
enunciação, constroem-se sujeitos, tempos e espaços diferentes,
que não podem ser repetidos. As relações de sentido estabelecidas,
46
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
mesmo que o enunciado linguístico seja o mesmo, são sempre
diferentes.
Além disso, cada texto, cada situação particular de enuncia-
ção construiria, em Benveniste, uma relação entre forma e sentido
única, irrepetível. Cabe ao analista observar a cada texto como
se constroem as relações de sentido ali estabelecidas. O analista
deve observar como se estabelecem as relações entre forma e
sentido específicas de uma determinada enunciação, quem são os
sujeitos que se constroem e como se organiza este tempo e este
espaço em uma determinada situação de discurso.
Em Émile Benveniste, é importante ressaltar aqui, estas re-
lações entre forma e sentido, a construção dos sujeitos, do tempo
e do espaço não estão ligadas somente às marcas da enunciação
no enunciado. Para o linguista sírio, a construção dos sentidos
no discurso está ligada ao todo da enunciação, às relações que se
estabelecem entre todos os elementos do discurso, que sempre
são singulares, únicas e irrepetíveis.
A análise que pode se depreender da obra benvenistiana
não é, portanto, uma análise nem da forma nem do conteúdo do
texto, mas uma análise das relações entre forma e sentido que
se estabelecem singularmente em uma determinada enunciação.
Fazer uma análise benvenistiana é responder à questão de como
o texto faz para dizer o que diz, como ele se organiza, articula-se
para produzir sentidos.
Como a análise que envolve o sentido, dentro da reflexão
aqui proposta, considera o texto inacabado, en train de se faire,
a realidade extralinguística, quem são os autores no mundo dos
textos produzidos, a realidade sócio-histórica em que vivem, não
determina os sentidos construídos pelo texto, pois essa realidade
extralinguística, esses autores não são concebidos como dados,
acabados, mas sim em constante construção e constituição que
se dão na e pela linguagem.
47
Daiane Neumann | Reflexões acerca da semântica do texto
Meschonnic faz uma leitura muito atenta da obra de Benve-
niste e, propondo-se um continuador, discute algumas questões
envolvendo o sentido em Critique du rythme que também podem
ser muito profícuas para pensar a análise de textos, do ponto de
vista semântico.
O teórico da linguagem, na continuação de Saussure e
Benveniste, propõe que, na famosa divisão estabelecida por este
último entre o mundo semiótico e o mundo semântico, olhe-se
para os textos e as obras do ponto de vista do semântico, do
primado do discurso. Somente dessa forma, para Meschonnic,
é que se pode perceber a interação entre língua e discurso.
A consequência dessa postura é considerar que a subjetivi-
dade de um texto resulta da transformação do que é sentido ou
valor na língua em valores somente no discurso. O texto então
constituiria um sistema de valores do qual emanariam os sen-
tidos. Esse sistema só poderia ser constituído em uma história,
já que nenhuma consciência ou intenção poderiam transformar
o discurso em sistema. Ou seja, não há intenção ou consciência
prévia do sujeito da linguagem, a intenção e a consciência se
constroem, assim como os sujeitos, no e pelo discurso.
Para Meschonnic, assim como para Benveniste, as relações
de sentidos que emergem do discurso se dariam pela articulação
de todos os elementos que compõem este discurso; no entanto,
o primeiro inclui, nesses elementos responsáveis pela construção
do sentido, os elementos suprassegmentais da entonação.
Ainda na continuidade de Benveniste, Meschonnic afirma
que a sua crítica do ritmo não buscaria comentar um verso ou
um poema, nem mesmo esgotá-lo, mas sim pensar como eles
significam. O texto, a obra são tomados como uma unidade, em
que é preciso pensar sobre as relações estabelecidas e a forma
como são estabelecidas, naquele texto ou obra particular.
48
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Assim como em Saussure e Benveniste, em Meschonnic, a
linguagem não se refere a uma realidade, mas ela a cria, o dis-
curso é visto então como uma atividade dos sujeitos na e contra
uma história, uma cultura, uma língua, ou seja, são os sujeitos,
através de sua construção na e pela linguagem, os responsáveis
pela constituição da história, da cultura, da língua.
Essa semântica específica que é constituída em uma obra
particular, em um texto particular é denominada por Meschonnic
significância. Pensar a significância de um texto é pensar os valo-
res constituídos pelo discurso em todos os níveis da linguagem,
acentuais, prosódicos, lexicais, sintáticos, que constituem um
paradigma e um sintagma.
A significância de um texto, para Meschonnic, é, dessa
forma, infinita. Assim como os sentidos do texto não podem ser
determinados pelos elementos extralinguísticos – os autores do
mundo, a realidade sócio-histórica – nem reduzidos a análises
de sua forma e de seu conteúdo, os sentidos produzidos dentro
de uma determinada obra particular, de um determinado texto
particular, em um determinado sistema de discurso, que possui
relações únicas, são observados do ponto de vista da não-totali-
dade, da não-verdade, da não-unidade. Os sentidos não podem
ser vistos como fechados, acabados.

Considerações finais
Busquei, neste capítulo, apresentar uma proposta de aborda-
gem semântica do texto, a partir da discussão sobre sentido das
obras de Ferdinand de Saussure, no CLG, de Émile Benveniste,
em PLGI e PLGII, e de Henri Meschonnic, em Critique du
rythme, e da concepção de discurso em Benveniste.
O debate aqui apresentado é profícuo para pensar sobre o
tratamento do texto em sala de aula, na medida em que privilegia
49
Daiane Neumann | Reflexões acerca da semântica do texto
a discussão sobre a construção do sentido que se dá no e pelo
discurso e, dessa forma, permite ao analista observar como os
sujeitos, as sociedades, as diferentes culturas se constituem na e
pela linguagem. A abordagem aqui proposta atenta ainda para o
não fechamento dos sentidos, para o olhar que observa o texto, os
sujeitos que aí se constituem do ponto de vista da não-totalidade,
da não-verdade.
O tratamento dado à análise de textos, de acordo com essa
abordagem, também procura não fechar as possibilidades de
sentidos construídos pelos textos, na medida em que não os
concebe como determinados por elementos extralinguísticos. Na
perspectiva aqui apresentada, os sentidos, os sujeitos, a sociedade
não são observados como acabados, como dados, mas em cons-
tante construção, em constante devir. Tal construção acontece em
relação dialética entre o eu e o tu, na e pela linguagem. Por isso,
os sentidos não podem ser fechados, determinados por elementos
dados que seriam tomados como estando fora da linguagem.
Ademais, o tratamento dado ao texto, na perspectiva aqui
apresentada, por considerar uma obra, um texto como único,
singular, irrepetível, procura analisar os sentidos aí construídos
como uma relação única entre os elementos textuais, pertencentes
a diferentes níveis de análise da linguagem, que estão ligados a
sujeitos da enunciação, construídos naquele texto em particular,
em um determinado tempo e espaço. Não se estabelecem, dessa
forma, categorias prévias de análise textual, que possam fechar ou
determinar os sentidos que emergem daquele mundo de sentidos,
que é construído por um texto, uma obra.

Referências bibliográficas
BENVENISTE, Émile. Da subjetividade na linguagem. In: Problemas
de linguística geral I. Campinas: Pontes, 2005.

50
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
_____ . O “ritmo” em sua expressão linguística. In: _____ . Problemas
de linguística geral I. Campinas, SP: Pontes, 2005.
_____ . A forma e o sentido na linguagem. In: Problemas de linguística
geral II. Campinas: Pontes, 2006.
_____ . Semiologia da língua. In: Problemas de linguística geral II.
Campinas: Pontes, 2006.
_____ . O aparelho formal da enunciação. In: Problemas de linguística
geral II. Campinas: Pontes, 2006.
MESCHONNIC, H. Critique du rythme: antropologie historique du
language. Lonrai, França: Verdier, 2009.
_____ . Crise de signe. In: Dans le bois de la langue. Paris: Laurence
Teper, 2008. (e)
SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 2004.

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Daiane Neumann | Reflexões acerca da semântica do texto
52
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Capítulo
III

Enunciação e ensino:
um caso de amor e de língua13

Aline Juchem14

Façamos do nosso ponto de partida o objeto de estudo


próprio destas páginas: o processo de escrita e reescrita de um
texto no contexto de sala de aula. Tomemos como exemplo, à
guisa de orientação, a fala inicial de um aluno, mencionada no
primeiro dia de aula15: “Quando eu escrevo uma redação, não consigo
13
Este capítulo é um recorte do primeiro capítulo da dissertação de mestrado intitulada
Por uma concepção enunciativa da escrita e re-escrita de textos em sala de aula:
os horizontes de um hífen, defendida no Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 2012, sob orientação da
Profa. Dra. Carmem Luci da Costa Silva.
14
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras, área de Estudos da Lingua-
gem, especialidade Teorias do Texto e do Discurso, pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (UFRGS); professora/bolsista CAPES; do Programa de Apoio à
Graduação (PAG) – Projeto de Língua Portuguesa: Leitura e Produção Textual, sob
coordenação da Profa. Dra. Carmem Luci da Costa Silva. E-mail: alinejuchem81@
gmail.com.
15
Esta fala é oriunda do primeiro dia de aula do Programa de Apoio à Graduação
(PAG) – Projeto Língua Portuguesa: Leitura e Produção de Textos, promovido pela
UFRGS, que consiste em oferecer aos alunos de graduação, através da forma de
oficinas de leitura e produção de textos, a busca de qualificação do desempenho no
uso da língua portuguesa, principalmente escrita. Essa fala foi transversal à reflexão
desenvolvida em Juchem (2012) e foi retomada em trabalhos atuais, como, por
exemplo, em Silva (2013) e Silva; Knack; Juchem (2013).

53
Aline Juchem | Enunciação e ensino: um caso de amor e de língua
me enxergar nela, mas quando eu escrevo no MSN, até meus amigos
sabem que sou eu quem está escrevendo”.
A importância da recuperação dessa fala está justamente no
que ela coloca em evidência. O que está em jogo quando o aluno
diz que quando escreve uma “redação” não consegue se enxergar
nela? O que está implicado nesse “não consegue” e em “se en-
xergar”? Qual a concepção construída a respeito do processo de
escrita de uma “redação”? E qual é o ponto de deslocamento que
permite que no MSN o aluno se reconheça e seja reconhecido
pelo seu interlocutor? As perguntas continuariam, mas deixemos,
por ora, as questões que mais nos convocam neste momento.
Respondê-las nos leva a remontar à trajetória docente no que
concerne à escrita e à reescrita de textos em sala de aula, cuja
problematização nos convoca, como professores-pesquisadores,
a repensar nossas concepções linguísticas e, a partir delas, a
articulação promovida entre a teoria e a prática.

De amor: da trajetória docente ao


objeto teórico
Sabemos que ainda hoje a escrita na sala de aula se escreve
em poucas linhas. Isso quer dizer que, apesar da tentativa de
algumas alternativas pedagógicas de redefinir o espaço de escrita
na escola, ainda se escreve muito pouco e sem finalidade comuni-
cativa. Essa afirmação reside na constatação das atividades desen-
volvidas pelos professores tanto de língua portuguesa quanto das
demais disciplinas (pois ensinar a escrever não é tarefa exclusiva
do professor de português) que, muitas vezes, utilizam-se do texto
do aluno apenas como exercício de alfabetização, memorização,
reprodução ou mero cumprimento da exigência curricular quanto
à quantidade mínima de produção textual.
54
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Todos esses aspectos colocam em voga a instituição da
linguagem escrita. Como sabemos, a história cultural da escrita e
a visão padronizada e uniforme que ainda se tem dela repercutem
na prática em sala de aula, a qual é, naturalmente, o resultado
daquilo que entendemos ou, em contrapartida, daquilo que
deixamos de entender por língua. Todo o tratamento dado às
questões linguísticas é consequência das linhas teóricas às quais
emprestamos credibilidade16.
Daí entendemos porque “quando escrevo uma redação não
consigo me enxergar nela”, pois a visão construída do gênero
redação é a visão instituída e alargada pela prática escolar, ob-
servada especialmente nas aulas de língua portuguesa – já que
nosso foco reside na concepção e, por conseguinte, no ensino
de escrita e reescrita de textos. A escolha do termo redação pelo
aluno denuncia duas considerações: uma, de que a redação as-
sume a representação do gênero escolar comum17; outra, e em
relação à precedente, de que a redação assume o estereótipo de
uma expressão dura e artificial que, quando solicitada, o aluno
“não consegue” saber sobre o quê, como, por quê, para quê nem para
quem escrever.
A certificação decorrente da trajetória como professora em
diferentes escolas de diferentes municípios, no contato com os
demais professores, é de que, salvo algumas exceções, a proposta
de escrita em sala de aula fica à deriva, e, quando lembrada, serve
para preencher um tempo livre, exaurida de qualquer estímulo
ou fascínio. A proposta de reescrita, secundária, contenta-se
em ser uma tarefa de casa como puro exercício de substituição
aleatória, no sentido de corrigir as palavras que escreveram o
16
A esse respeito, Endruweit (2009) apresenta uma importante discussão acerca da
presença da escrita na escola e as teorias linguísticas que subjazem à concepção de
escrita presente em sala de aula.
17
Geraldi (1984; 1993), com suas discussões sobre o texto na sala de aula, é pioneiro
no debate acerca das diferenças implicadas nos usos dos termos redação e produção
textual. O segundo termo, que passa a ser largamente adotado no Brasil, compromete-
-se com a ideia de processo de um trabalho continuado de escrita e reescrita.

55
Aline Juchem | Enunciação e ensino: um caso de amor e de língua
texto e não de dialogar com os sentidos atribuídos pela escolha
dessas palavras. Por esse prisma, escrita e reescrita tornam-se
um processo inópio e solitário.
Com relação à reescrita como mero exercício de correção da
primeira escrita, merece atenção o estudo de Conceição de Jesus
(1995). Ao refletir a reescrita na sala de aula de ensino funda-
mental, a autora verifica que os casos de reescrita que examina
em sua pesquisa comungam com o ideário de transparência em
que se visualiza a superfície linguística a fim de ajustá-la a um
modelo de texto. Nesse caso, a autora argumenta que há um
apagamento das cenas enunciativas, por meio do qual todo o
conteúdo próprio da dinâmica enunciativa presente na sala de
aula, sobretudo o expresso oralmente, é desprestigiado. Jesus
(1995) chama justamente de “higienização do texto” do aluno
esse trabalho em que a reescrita transforma-se em uma operação
de limpeza, no qual o objetivo consistiria em limpar as “trans-
gressões” às regras de ortografia, à concordância e à pontuação,
sem dar a devida importância às relações de sentido emergentes
na interlocução.
No mesmo sentido, o relato de Ana Guimarães (2011) a
propósito do estudo levantado por Neves (2002) confirma essa
realidade, ao constatar que os professores, ao dividirem em
compartimentos atividades como redação, leitura e gramática,
desprezam quase totalmente a atividade de reflexão e operação
sobre a linguagem. Na mesma linha, afirmam Teixeira e Ferreira
(2008, p. 64): “A escola opera pela dissociação entre as formas da
língua e seu emprego, eximindo-se de enfrentar a complexidade
inerente aos atos de linguagem”.
No entanto, surpreende ainda hoje o desencontro entre a
escola e a sua proposta de escrita e de reescrita de textos como
um processo, uma vez que os Parâmetros Curriculares Nacionais
(doravante, PCNs), aos quais todos os professores têm acesso –
ou deveriam ter –, propõem, num esforço político-pedagógico,
56
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
um deslocamento entre a tradicional aula de português, cuja visão
opera somente sobre o ensino de regras gramaticais, e a prática
de ensino como um processo discursivo, que busca, através da
discussão acerca da linguagem, a abordagem do ensino-apren-
dizagem vinculada ao uso da língua. Tal premissa encontra-se
presente nos PCNs:

Tomando-se a linguagem como atividade discursiva, o texto


como unidade de ensino e a noção de gramática como relativa ao
conhecimento que o falante tem de sua linguagem, as atividades
curriculares em Língua Portuguesa correspondem, principal-
mente, a atividades discursivas: uma prática constante de escuta
de textos orais e leitura de textos escritos e de produção de textos
orais e escritos, que devem permitir, por meio da análise e reflexão
sobre os múltiplos aspectos envolvidos, a expansão e a construção
de instrumentos que permitam ao aluno, progressivamente,
ampliar sua competência discursiva (PCNs, p. 27).

De acordo com os PCNs, o texto constitui-se como a uni-


dade básica de ensino; não como pretexto para o ensino de língua
materna (localização de informações, extração de fragmentos,
estudo de regras gramaticais etc.), mas como a constituição de um
processo que leva em conta o uso da língua pelo aluno em dado
contexto de interlocução no qual se inscreve e do qual resulta a
sua relação com a escrita em sala de aula.
Nessa perspectiva, corroboram os Parâmetros Curriculares
Nacionais do Ensino Médio (doravante, PCNEM), quando pro-
põem como cerne de trabalho da área de “Linguagens, Código
e suas Tecnologias”, na qual está incluída a língua portuguesa,
“trabalhar as linguagens não apenas como formas de expres-
são e comunicação, mas como constituidoras de significados,
conhecimentos e valores” (PCNEM, p. 25). Nessa proposta,
os PCNEM entendem a “língua materna como geradora de
significação para a realidade, de uma organização de mundo e
57
Aline Juchem | Enunciação e ensino: um caso de amor e de língua
da própria identidade” e ainda como o uso de recursos expres-
sivos das linguagens relacionando textos com seus contextos,
mediante a condição de interlocução” (PCNEM, p. 26). No
âmbito interno da área, a convergência de tais competências
gerais dá-se no eixo da representação e comunicação, o qual
pressupõe conceitos estruturantes, tais como linguagem, texto e
interlocução, entre outros.
Por linguagem, os PCNEM compreendem “todo sistema
que se utiliza de signos e que serve como meio de comunicação”,
sendo “a língua falada e a língua escrita o objeto prioritário
de estudo” (p. 40). Esse conceito é, segundo os parâmetros, a
“espinha dorsal da área”, uma vez que sustenta direta ou indi-
retamente todos os demais. Em concomitância com a concepção
de linguagem, os PCNEM entendem o texto como a unidade
básica da linguagem verbal,

compreendido como a fala e o discurso que se produz, e a função


comunicativa, o principal eixo de sua atualização e a razão do
ato linguístico. O aluno deve ser considerado como produtor de
textos, aquele que pode ser entendido pelos textos que produz e
que o constituem como ser humano. O texto só existe na socie-
dade e é produto de uma história social e cultural, único em cada
contexto, porque marca o diálogo entre os interlocutores que o
produzem e entre os outros textos que o compõem. O homem visto
como um texto que constrói textos (PCNEM, p. 43, grifo meu).

Sendo assim, o conceito presente de texto perpassa todos


os demais conceitos estruturantes com os quais divide a área e
dialoga com todas as disciplinas, de todas as áreas, pois de sua
existência como unidade mínima de comunicação depende a
dinâmica da interlocução – termo este que contempla “as rela-
ções que se estabelecem entre o eu e o outro, no momento da
realização do discurso ou texto” (ibid., p. 44). O sentido de um
58
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
texto e a significação de cada um de seus componentes dependem,
portanto, da relação entre os interlocutores, visto que “essa parece
ser a condição mesma do sentido do discurso, obrigando-nos
a considerar não apenas a relação entre os interlocutores, mas
também a desses sujeitos com seu meio social” (ibid., p. 44).
Sob a consideração da reflexão apresentada por essas dire-
trizes, não resta dúvida do papel fundamental do professor como
responsável pelo conhecimento e pela proposta do ensino-apren-
dizagem em sala de aula como um processo contínuo, presente
e dinâmico. Em complementaridade, a proposta dos Referenciais
Curriculares do Estado do Rio Grande do Sul (doravante, RCs) na
viabilização da reflexão sobre a linguagem na prática em sala de
aula reitera o papel do professor como um mediador na interação
entre aluno e texto nos atos de leitura e de escrita, dois eixos
centrais do trabalho escolar. Nessa direção, os RCs trazem, em
síntese, uma proposta pedagógica que leva em conta a

Aprendizagem como processo (e não como produto): as práticas


de ensino de­vem partir de uma visão de aprendizagem como
uso-reflexão-uso, com oportunidades cíclicas para a retomada e
o aprofundamen­to dos conteúdos. Isso quer dizer que é pre­ciso
haver sempre novas oportunidades para ler, escrever, solucionar
problemas, contras­tar, reler, reescrever, melhorar a produção,
individual ou coletivamente. Nesse processo, a construção do conhe-
cimento se dá funda­mentalmente com o outro e para o enfrenta­mento
de desafios de novos usos das lingua­gens (RCs, p. 47, grifo meu).

Portanto, o desdobramento dessas diretrizes – PCNs, PC-


NEM e RCs –, que estão em relação de complementaridade e
de atualização, oferecem, desde a sua implementação, um aporte
didático-pedagógico a partir do qual o professor possa encontrar
subsídios teóricos e práticos para o seu trabalho em sala de aula,
ainda que não anunciem uma metodologia específica, uma vez que
59
Aline Juchem | Enunciação e ensino: um caso de amor e de língua
seu objetivo não está em dar uma receita, visto a particularidade
do contexto de cada instituição de ensino, mas sim em sugerir
e criar condições para o encaminhamento metodológico como
uma consequência da postura teórica assumida pelo professor
e pela escola com relação à realidade de ensino. Podemos dizer
que essas diretrizes funcionam não como pontos de chegada do
ensino, mas como pontos de partida para a prática pedagógica,
e por isso apresentam-se em constante reformulação.
No entanto, embora tenhamos como suporte os PCNs, os
PCNEM e os RCs, que amparam e encaminham o trabalho
docente em sala de aula com relação à proposta de produção
textual, através das concepções de linguagem, texto e interlocução
como conceitos estruturantes vinculados à língua em emprego,
constatamos que ainda há, na mão contrária, práticas que se
afastam da abordagem do texto como um processo para o seu
tratamento como forma, ou seja, como um objeto de pretexto para
uma análise de fragmentos descontextualizados e destituídos da
singularidade que o todo de cada texto implica.
Por essa constatação, enfim, de a escrita e a reescrita recebe-
rem, em certos cenários de ensino de texto, ainda estatuto apenas
de forma, desvinculada do sentido atribuído pelo locutor-autor
no uso da língua, que se deu a inquietação e a insatisfação com
o tratamento da produção textual apresentado pela escola, ou
seja, com o tratamento que contraria as reais condições com que
usamos a língua, escapando à própria natureza do indivíduo que
só toma a língua se tem algo a dizer, a quem dizer e a partir de
um lugar para dizer, e justamente por isso dirá a língua ao seu
modo, em sua singularidade. Levando em conta essa inquietação
referente ao desencontro constatado entre teoria(s) e prática(s),
por onde seguir? Que outros caminhos teórico-metodológicos
nos apontam alternativas para o professor se relacionar com o
que é oferecido pela(s) teoria(s)? Como deslocar tais propostas
teórico-metodológicas para a sua prática?
60
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Direcionando seu trabalho para o contexto universitário,
Guedes (2009) nos apresenta um modo de abordagem da
produção textual em sala de aula por meio de uma proposta
metodológica que visa justamente a resgatar a condição essencial
até então deixada de lado no ensino para colocá-la no centro da
convergência entre teoria e prática: a discursividade18. Como
instrui o autor,

o exercício do texto está vinculado a atitudes diante da vida e do


outro, atitudes que foram constituídas também pelo exercício
da linguagem [...] O professor que manda escrever o texto será
apenas a imagem que o aluno construiu do professor que manda
escrever o texto até que o professor se concretize como o leitor
do texto que foi escrito, e só a qualidade dessa leitura poderá
alterar a qualidade da relação que o aluno produtor de texto vai
estabelecer com o professor leitor de seu texto. A discussão sobre a
prática da escrita só pode se dar nas instâncias concretas dessa prática
– os textos escritos –, pois só eles compõem todos representativos
de tais atitudes, só eles expressam como seu autor constituiu sua
relação com a linguagem (Guedes, 2009, p. 37, grifo meu).

Segundo o autor, para a desconstrução da atitude ancestral


diante da língua escrita consolidada e “colonizada” pela história
escolar, é preciso que a prática de escrita passe da “produção de
redações” para a “produção de discursos”, i. e., que seja reconhecida
não apenas como instrumento de organização do pensamento
nem como meio de comunicação, mas como forma de ação. Essa
postura implica o diálogo com o texto, tal como a metodologia de
18
Como professor, Guedes parte das mesmas inquietações para propor sua nova abor-
dagem da produção de textos em sala de aula. Para o autor, faltava ao aluno outros
leitores além do professor. O propósito estava em levar o aluno a “escrever como
a literatura brasileira”, no sentido de responder a duas questões básicas: “Quem
somos nós? E em que língua vamos nos dizer quem somos nós?”. A inauguração e
a repercussão de seu trabalho (1978; 1994; 2002) resultam em pressupostos para a
metodologia de ensino das disciplinas de leitura e produção textual dos cursos de
Letras e de Comunicação Social da UFRGS.

61
Aline Juchem | Enunciação e ensino: um caso de amor e de língua
Guedes propõe: após a escrita, o texto é lido pelo aluno em sala de
aula para que o professor e os colegas comentem, complementem,
indaguem, atribuam, enfim, vivenciem os sentidos construídos
pelo seu dizer. A leitura do texto em aula não é uma prática apenas
de ordem metodológica, mas visa a resgatar a discursividade,
pois a voz do outro – professor e colegas – devolvida ao texto
implica querer “escutá-lo”, “lê-lo”, numa relação solidária, tal
como é toda ação praticada com a linguagem.
A discursividade, para Guedes, significa a “colocação em
funcionamento de recursos expressivos de uma língua com certa
finalidade, atividade que se dá sempre numa instância concreta
entre um locutor e um alocutário” (ibid., p. 58). O exercício do
discurso a partir dessa concepção está relacionado, basicamente,
a quatro “qualidades discursivas”: unidade temática, objetividade,
concretude e questionamento, cujo princípio transversal é a inter-
locução.
A unidade temática pressupõe algo que o locutor-autor te-
nha interesse em dizer, a partir do que o instiga e do lugar que
ocupa na relação com o seu interlocutor-leitor. O locutor-autor
busca as formas da língua para construir os sentidos do texto
na direção daquilo a que se pretende ao escrever, oferecendo ao
leitor um rumo que o oriente a atribuir sentido a cada uma das
palavras, estabelecendo relações entre elas. Tal busca de unidade
se dá sempre em vista do outro. A objetividade exige o distan-
ciamento necessário para que o locutor-autor se coloque diante
do seu interlocutor-leitor e, no lugar dele, procure saber de que
maneira dirá o que tem a dizer. A concretude, por sua vez, garante
a objetividade, pois fornece elementos ao interlocutor-leitor para
que comprove os sentidos atribuídos pelos recursos expressivos
com que o locutor-autor constituiu o texto. Pelo próprio nome,
essa qualidade indica que o texto – e tudo o que o implica –
deve se tornar concreto aos olhos do interlocutor-leitor, para que
62
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
ele “o enxergue”. Já o questionamento busca a convocação do
interlocutor-leitor para envolvê-lo na leitura do texto.
Dessa maneira, a busca das “qualidades discursivas” para o
resgate da discursividade se dá na individualidade do texto que
está sendo constituído, como nos apresenta Guedes (2009, p. 61)
a exemplo de Claude Simon: “jamais se escreve (ou descreve) algo
que tenha acontecido antes do trabalho de escrever; escreve-se
aquilo que se produz (e isso em todos os sentidos da palavra)
durante esse trabalho”. Implica-se, por isso, que todo o trabalho
de escrita subentende a interlocução e, por ela, a qualidade textual.
Assim, “a discursividade não se instaura a não ser no interior
da textualidade”, visto que a busca da qualidade textual incide
sobre a qualidade discursiva.
A escrita, mesmo que não requeira a presença simultânea
do interlocutor-leitor, é sempre um exercício que considera a
dimensão interlocutiva da linguagem. Sem o outro, do outro
lado da linha, não há linguagem, pois se todo ato de escrita é
um ato de linguagem, a relação entre locutor e alocutário (autor
e leitor) e a posição que cada um ocupa nessa relação estarão
marcadas através das formas da língua. Isso requer que o pro-
fessor se constitua como o interlocutor efetivo do texto de seu
aluno, dando-lhe o espaço concreto e necessário de constituição
de sua singularidade.
O objetivo dessa abordagem de produção textual pelo mo-
vimento interlocutivo se resume nas palavras de Guedes (2009),
a exemplo de Geraldi (1991):

E com isso se pretende inverter a flecha da forma de entrada do


texto na sala de aula: ele não responde ao previamente fixado,
mas é consequência de um movimento que articula produção, leitura,
retorno à produção [...] revistas a partir das novas categorias que
o diálogo, entre professor, aluno e texto, fornece (Guedes, 2009,
p. 79, grifo meu).
63
Aline Juchem | Enunciação e ensino: um caso de amor e de língua
Acreditamos que é dentro desse movimento, de articulação
entre produção, leitura e retorno à produção que a linha de
trabalho do Programa de Apoio à Graduação (PAG) – Projeto
Língua Portuguesa: Leitura e Produção de Textos se insere,
cuja proposta teórico-metodológica visa resgatar, a exemplo do
trabalho de Guedes, a interlocução como a condição essencial
para a proposta de ensino com relação à escrita e à reescrita de
textos em sala de aula. Se pensarmos a situação global de sala de
aula do projeto com respeito à metodologia de ensino, podemos
defini-la assim como as palavras pontuais do autor:

A sala de aula é um espaço de interlocução em que os papéis


estão assimetricamente definidos, onde a fala do professor con-
diciona a fala de qualquer professor e a reação que o aluno vai
ter a ela. Não se pode, por isso, escamotear, sem prejuízo, para a
relação pedagógica, a diferença específica entre professor e aluno.
Por mais que se consiga diluir a interlocução, nela incluindo os
colegas de aula, chamados a dar palpites a respeito do texto que
ouviram, o professor é o interlocutor preferencial. Para o mal, nas
falsas condições de produção de escrita que vêm caracterizando
nossa escola, onde a reprodução de alguns poucos modelos ofi-
cialescos e consagrados, com variações transparentes, torna-se,
paradoxalmente, o conteúdo de uma correspondência privada
entre aluno e professor; para o bem, se a palavra decisiva que
o aluno legitimamente espera do professor concretizar-se num
exemplo, num ponto de referência ou para a adesão, ou para o
repúdio, ou para a resposta que o aluno for capaz de dar; para o
diálogo, enfim (Guedes, 2009, p. 77, grifos meus).

Sendo o PAG – Língua Portuguesa uma proposta de ensino


para os alunos que desejam desenvolver seu uso de língua por
meio da leitura e da produção de textos, o projeto configura-se,
em primeira instância, como a busca pelo aprimoramento no uso
da escrita a partir da mediação do professor, somente através da
64
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
qual se pode pensar em um reconhecimento do espaço singular
ocupado por cada aluno em sua produção textual. Com relação à
metodologia do projeto, podemos dizer que há uma especificida-
de que particulariza a prática de escrita e reescrita de textos em
sala de aula, isso por dois movimentos: o primeiro caracteriza-se
como a proposta de escrita, a qual parte de temas vinculados ao
contexto de produção do texto, ou seja, à universidade, como
é o caso do tema da primeira proposta de escrita para o aluno:
Minha presença na universidade. Tal proposta vai ao encontro da
primeira aula do projeto, encaminhada após a apresentação oral
dos alunos, justamente a partir da observação do entusiasmo e
da expectativa deles quanto à sua entrada na universidade. O
segundo movimento, por sua vez, caracteriza-se pela interlocução
que marca o percurso entre a escrita e a reescrita: após a proposta
do tema de escrita, encaminhada geralmente no final da aula, o
aluno escreverá o texto em contexto externo à sala de aula para a
leitura oral no próximo encontro. Nesse dia, professor e colegas
propõem-se como interlocutores, escutando/lendo o texto do aluno
para, depois, fazerem observações, apontamentos, comentários
sobre as impressões do texto lido. Nesse sentido, a leitura oral
da primeira escrita em sala de aula propõe o diálogo com seus
interlocutores-leitores (professor e colegas), a partir do qual serão
encaminhadas as observações sobre o texto que resultarão em
uma nova escrita – a reescrita – a ser entregue na próxima aula19.
Percebemos, de forma geral, que o projeto pressupõe a
interlocução como o ponto de apoio do ensino-aprendizagem,
e, como tal, a interlocução, própria ao exercício da linguagem,
promove a relação viva entre locutor e interlocutor, aluno e pro-
19
Esse trabalho teórico-metodológico de escrita do PAG – Língua Portuguesa como
processo resgata a metodologia adotada nas aulas de Leitura e Produção de Textos
do Instituto de Letras da UFRGS, que se instaurou a partir da tese de Guedes (1994) e
das produções dela decorrentes. Além dessa metodologia que privilegia o texto como
processo, foram incorporadas ao trabalho questões linguísticas acerca do tratamento
do texto produzidas no Brasil no âmbito de distintas teorias com a prioridade para
as que enfatizam a dimensão interlocutiva da linguagem.

65
Aline Juchem | Enunciação e ensino: um caso de amor e de língua
fessor, como protagonistas principais e necessários no resgate da
leitura e da escrita. Quando o professor medeia o espaço de sala
de aula através de atividades como seminários, discussões, trocas,
práticas de leitura e de escrita, ele se coloca para o aluno como
um interlocutor efetivo e participativo do processo de ensino-
aprendizagem e, dessa forma, contrariando a história da escrita
escolar, “concretiza-se num exemplo, num ponto de referência ou
para a adesão, ou para o repúdio, ou para a resposta que o aluno
for capaz de dar; para o diálogo, enfim” (Guedes, 2009, p. 77).
Se lembrarmos da fala inicial do aluno sobre a impossibi-
lidade de se enxergar na redação escolar, imediatamente relacio-
namos à falta de o locutor-autor não experimentar sua própria
presença no texto, quando esta depende da presença do outro,
do interlocutor-leitor. O processo interlocutivo entre escrita e
reescrita se apresenta, então, como o movimento necessário para
o locutor-autor constituir o outro a quem fala e através dele se
constituir e se marcar através do ato de escrita.
A fala do aluno nos encaminha a pensar isso, pois se “Quando
eu escrevo uma redação, não consigo me enxergar nela, mas quando
eu escrevo no MSN até meus amigos sabem que sou eu quem está
escrevendo”, há, antes de mais nada, uma necessidade requerida
pelo locutor: a de relação de sentidos, construída no e pelo dis-
curso com o outro. Convocar essa fala novamente só reafirma a
necessidade de uma nova relação entre o ensino-aprendizagem
e a escrita, bem como a necessidade de suspensão da aparente
evidência dessa fala para propô-la como uma formulação de
mistério20.
No tocante à importância da Linguística ao lado de outras
disciplinas cujo objeto inclui uma prática – pedagógica ou clínica
–, o estudo de Lemos (2005) encontra aqui um lugar especial.
20
Lemos (2005) propõe o mistério como a condição necessária para a suspensão das
transparências e certezas por parte das ciências, pois é justamente aquilo que perturba
e que falta a respostas, o mistério, que é a origem de toda indagação científica.

66
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Instigada pelo papel do alfabetizador (professor) no processo de
aquisição da escrita pelo alfabetizando (aluno), a autora coloca
duas questões fundamentais:

como algo se torna outro ou passa a se apresentar como outro à


percepção e à interpretação, transformando assim o sujeito em
alguém que “lê”, que vê o que não estava lá [...] e de que modo
se opera essa transformação de/em alguém que passa a ver o que
não via e é assim capturado pela escrita enquanto funcionamento
simbólico? (Lemos, 2005, p. 18-19).

As questões e os termos da autora especialmente nos provo-


cam. De fato, o que mais está em jogo quando o aluno diz não se
enxergar na escrita em se tratando de uma redação? Nesse caso,
o não se enxergar não seria extensivo a não enxergar um outro?
E, como instiga a autora, “que mediação é então necessária para
que se dê essa transformação que produz, ao mesmo tempo, um
sujeito – outro modo de ver – e um objeto – o que se dá a ver
para esse sujeito e que através do qual ele se vê vendo?” (Lemos,
2005, p. 20, grifos da autora).
Para Lemos, essa questão não parte tão somente de uma
interação sujeito-e-objeto, mas da linguagem, visto que a cada
“ato/acontecimento” de leitura e de escrita, a relação é refeita
nesse funcionamento. Mais do que isso, essa relação se dá pela
oralidade estabelecida na relação entre professor e aluno e que
aqui “não se trata de uma oralidade que desvenda o texto escrito
nem que é por ele representada, mas de uma prática discursiva
oral que, de algum modo, o significa, isto é, que o torna significante
para um sujeito” (Lemos, 2005, p. 19, grifo meu). Isso quer
dizer que a situação discursiva em que estão implicados aluno
e professor (locutor-autor e interlocutor-leitor), incluindo a po-
sição que cada um ocupa nela, não é representada pela escrita,
67
Aline Juchem | Enunciação e ensino: um caso de amor e de língua
e sim está inscrita nela, por ela é evocada e, sobretudo, provoca
determinados efeitos.
Considerando nosso percurso, vemos pela proposta de
ensino do PAG a “flecha inverter a forma de entrada do texto
na sala de aula” pelos movimentos de interlocução. Mas, ainda,
o que é essa interlocução fundamentada em uma teoria linguís-
tica? A resposta a essa pergunta está antes em considerar o que
mais está subentendido nessa interlocução, levando em conta as
questões suscitadas pelo nosso trabalho docente: a relação do
locutor-autor com seu interlocutor-leitor, mediada pela língua;
a relação do locutor-autor com a escrita e a reescrita, resultado
da relação anterior; a busca de formas linguísticas na tentativa
de ajustar o sentido ao discurso e ao outro; as marcas pelas quais
chegamos aos possíveis sentidos construídos e ressignificados
nessas relações, entre outras.
Desse modo, justificamos a continuidade da busca por
respostas. Foram-nos apontados caminhos significativos no
modo de pensar a prática de produção textual em sala de aula,
particularmente a partir do trabalho de Guedes (1994/2009),
cuja experiência docente nos é um indicativo metodológico para o
tratamento do texto como um processo de interlocução. Na busca
de uma complementaridade, procuramos uma teoria linguística
cujos fundamentos permitam explicar e ancorar os aspectos ob-
servados acerca da relação que o locutor-autor estabelece com
a língua e com o outro nos processos de escrita e reescrita de
textos.
Assim, a exemplo de Lemos (2005), se tomarmos a Lin-
guística como o lugar onde o que não se sabe sobre a linguagem
produz questões e o que o que se sabe se transforma em um saber
interrogar, consideramos as questões que a linguagem suscita
não como questões a serem resolvidas pela linguística, mas como
questões que se apresentam como tal para a linguística. Mas
sendo a linguística um campo heterogêneo, é preciso delimitar
68
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
entre as teorias aquela que constitua e comporte o objeto em
questão. Para a autora, “a diferença não se faz ver apenas no
corpo de conhecimentos sobre a linguagem que cada teoria exibe,
mas nas questões que cada teoria permite formular a partir desses
conhecimentos” (Lemos, 2005, p. 15, grifo da autora).
Nesse sentido que encaminhamos nossa delimitação teórica:
no que ela produz de questões, no que ela ensina a interrogar e
no que ela permite responder.

De língua: do objeto à delimitação


teórica
Sob a consideração do trabalho docente como o resultado
das concepções linguísticas construídas social-histórica-e-cultu-
ralmente no Brasil, e, por conseguinte, sob a consideração da
relação do aluno com a escrita e a reescrita como efeito da media-
ção e do tratamento do professor dado a esse objeto, devemos
nos colocar algumas perguntas: Quais são as nossas concepções
linguísticas de escrita e de reescrita e a que linha(s) teórica(s)
nos vinculamos? Ou melhor, abastecemo-nos ou abstemo-nos da
diversidade das teorias linguísticas existentes? Definida(s) a(s)
teoria(s), qual a metodologia a que corresponde(m)? E, ainda,
que concepção linguística pode subsidiar o que entendemos por
escrita e reescrita na prática em sala de aula?
O imperativo dessas questões não significa que tenhamos
que eleger uma teoria exclusiva para o trabalho docente – se
o conhecimento da diversidade teórica é fundamental para o
preparo do professor e, logicamente, para a sua prática –, pois
assim estaríamos invalidando o diálogo dos diversos saberes
muitas vezes necessário para explicar um fato linguístico. Em
contrapartida, a conduta metodológica exige a escolha de uma
concepção orientadora para qualquer trabalho pedagógico.
69
Aline Juchem | Enunciação e ensino: um caso de amor e de língua
Do ponto de vista linguístico, os estudos recorrentes sobre
escrita e reescrita no ensino fundamental são voltados à alfa-
betização e às séries iniciais, cujos temas incidem geralmente
sobre a aquisição de língua materna, a relação oralidade/escrita,
o processo de ensino-aprendizagem da leitura/escrita ao letra-
mento e aos gêneros textuais, segundo os estudos recorrentes
de Abaurre (2002), Abaurre, Fiad e Mayrink-Sabinson (1992;
1997), Abaurre, Fiad, Mayrink-Sabinson e Geraldi (1995), Fiad
(1997) e Rojo (1998; 2001), entre outros. Os diferentes autores
destacam que, no processo inicial, a prática docente de tratamento
da reescrita, particularmente, recebe um estatuto de correção, pelo
qual o aluno iniciante na língua escrita deve observar os erros de
grafia, concordância, estrutura, substituindo-os para a higieni-
zação do texto, a fim de receber uma avaliação satisfatória. No
entanto, as pesquisas dos autores buscam valorizar e identificar
a atividade daquele que escreve em suas produções, mesmo que
suas reflexões se ancorem em distintos quadros teóricos.
No ensino médio, a constatação não é tão diferente na prá-
tica. O levantamento bibliográfico mostra a multiplicidade de
orientações teóricas voltadas para o texto em geral, com ênfase
nos elementos implicados na análise textual, conforme atestam
Mello (2012) e Knack (2012).
Considerando o ensino superior, Fiad (1997) levanta im-
portantes questões relacionadas ao nosso objeto de estudo: a
escrita de alunos universitários. A hipótese inicial da autora, após
examinar vários textos de alunos universitários, é a de que, em
uma etapa avançada de escolaridade, as escritas caminham para
uma homogeneidade21. A autora se pergunta: “Após onze anos
de escolaridade, como escrevem as pessoas que ingressam em
um curso superior? O que a leitura de um conjunto de textos
21
A esse propósito, testemunha também Endruweit (2006, p. 103): “A regularização
da escrita efetuada pela escola também surte efeitos no sujeito, expressa na deter-
minação em imitar modelos consagrados. As várias tentativas de escrever um texto
vão pouco a pouco elidindo as diferenças e tornando todos os textos semelhantes”.

70
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
escritos por essas pessoas nos permite perceber sobre eles pró-
prios, sobre suas histórias de vida, sobre suas histórias de escrita?”
(Fiad, 1997, p. 196). Notamos que essas inquietações dialogam
diretamente com o questionamento inicial do aluno do PAG.
E a autora continua:

Uma primeira leitura nos fornece as primeiras pistas: parecem


corretos, sem erros de ortografia, concordância, pontuação etc.
Já nessa primeira leitura, chegam a passar despercebidas as
diferenças entre um e outro texto. Suspeitamos que eles mais
se assemelham do que se diferenciam. Iniciamos uma segunda
leitura, agora já buscando especificamente as diferenças, as indi-
vidualidades [...] Partimos em busca dos estilos individuais, das
histórias individuais, das experiências únicas que se transformam
em escritas únicas (Fiad, 1997, p. 196).

Nossa proposta de estudo também busca resgatar os indí-


cios daquele que escreve/reescreve seus textos para marcar sua
singularidade no uso que faz da língua. Também acreditamos,
conforme a autora, em uma escrita singular. No entanto, dese-
jamos respaldar nossas crenças em uma teoria linguística que
considere cada uso da língua como único, porque juntamente
com os aspectos gerais ligados ao fenômeno estudado (escrita/
reescrita) há elementos particulares que fazem emergir aquele
que escreve/reescreve em seu processo de produção.
Em um estudo sobre a reescrita, Suassuna (2011, p. 120)
aponta a falta teórica para explicar aquilo que chama de “inte-
ração” (termo comumente identificado no levantamento biblio-
gráfico): “pesquisas a respeito das formas de correção/avaliação
de redações indicam que parece haver alguma relação entre o
procedimento do professor e a qualificação da escrita do aluno”
(grifo meu). A relativização dessa afirmação nos revela a ausência
de uma teoria que permita explicar essa “alguma relação” e, entre
71
Aline Juchem | Enunciação e ensino: um caso de amor e de língua
outras coisas, mostra-nos, nas pesquisas já apontadas, uma disper-
são de conceitos como interação, interlocução e relação dialógica
como se fossem equivalentes, ainda que não haja a consideração
das posições implicadas em todo ato de comunicação linguística.
Por esse levantamento, percebemos sumariamente que os
estudos sobre o objeto escrita e reescrita de textos na sua relação
partem de abordagens da Sociolinguística, Pragmática, Análise do
discurso, Linguística textual, do Cognitivistismo, Interacionismo
etc., no entanto, nenhuma vinculada às teorias enunciativas, salvo
Endruweit (2006). Ressaltamos, ao fazermos tal afirmação, que a
falta constatada é relativa à abordagem da escrita e da reescrita na
observação dos aspectos relacionados ao processo de comunicação
intersubjetiva implicadas na reescrita, já que esta se constitui em
relação à escrita22, e, sobretudo, a partir da observação de que a
reescrita, à luz da enunciação, é sempre um retorno ao dizer, no
entanto renovado pela relação singular que o locutor estabelece
com a língua e com o outro.
Fique claro que não pretendemos aqui fazer uma compara-
ção entre as teorias do texto e do discurso, posto que cada teoria
abriga um aparato teórico-metodológico que não mereceria tão
poucas linhas. Tampouco a ordem de menção estabelece alguma
hierarquia, pois reconhecemos a relevância de cada uma no que
22
O trabalho intitulado Enunciação e ensino de língua materna: intersubjetividade,
referência e sentido no processo de escrita narrativa escolar, de Leão Luz (2009),
apresentado como trabalho final de graduação, em 2009, ao tratar as observações do
professor na escrita do aluno para encaminhar à reescrita, já constitui um início de
reflexão acerca da intersubjetividade enunciativa implicada entre os atos de escrita
e reescrita. Na mesma linha, encontramos ainda os trabalhos O bilhete orientador:
um gênero discursivo em favor da avaliação de textos na aula de línguas, de
Mangabeira; Costa; Simões (2011), A intersubjetividade na escrita e na reescrita de
textos escolares, de Cayser (2012). Em nosso caso, procuramos por nosso estudo
delimitar teórica e metodologicamente o momento da reflexão sobre o ato de escrita
na direção de uma (re)definição de reescrita pela teoria enunciativa benvenistiana,
reflexão presente em Juchem (2012). Lembramos que este artigo constitui-se como
um recorte de tal reflexão, portanto, traça somente algumas linhas gerais acerca do
tema, aqui vinculado especificamente ao lugar da escrita e da reescrita no âmbito
do ensino.

72
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
tem a mostrar sobre a linguagem e sobre os estudos acerca da
produção de textos no Brasil.
O propósito deste trabalho é justamente apontar uma
falta, para mostrar nossa busca de preenchimento, trazendo a
contribuição da Teoria da Enunciação para pensar especial-
mente o processo de escrita e reescrita de textos, questão que
desenvolvemos anteriormente em Juchem (2012). Recorremos
particularmente à teoria de Émile Benveniste porque nela se
encontra uma concepção de linguagem essencialmente ligada
à (inter)subjetividade, o que significa considerar a escrita e a
reescrita atos de enunciação, isso porque “a concepção de sentido
com que trabalha a Linguística da Enunciação tem uma dupla
dimensão: a do sentido dado pela estrutura da língua, reiterável,
e a do sentido dado pela enunciação, sempre mutável e adaptável,
porque o sujeito está aí implicado”, segundo Teixeira e Ferreira
(2008, p. 64).
Sob esse fundamento, a língua como estrutura formal se
estende à atividade do locutor que dela faz uso, semantizando-
-a e atualizando seus sentidos no discurso, por isso chamada
língua-discurso. Assim, tomado nosso objeto – a escrita e a
reescrita – como ato de linguagem, pelo qual se postula sem-
pre uma alocução, ou seja, desde que “eu” assume a língua,
implanta diante de si um “tu”, na necessidade de referir uma
certa relação com o mundo, a relação discursiva implicada em
todo ato de linguagem, dada necessariamente pela sua própria
natureza como linguagem, realiza-se em cada enunciação, mas
esta só apreendida pelas marcas do enunciado, o seu produto.
Desse modo, considerando o texto discente processo e produto
da enunciação, não podemos mais, como professores, ignorar a
posição em que nos situamos diante do aluno em seu processo
de escrita e reescrita de textos.
E aqui devemos ter um cuidado com aquilo que percebe-
mos presente em nosso levantamento bibliográfico voltado aos
73
Aline Juchem | Enunciação e ensino: um caso de amor e de língua
processos de escrita e reescrita e que não é demais retomar: a
oscilação terminológica entre os termos interação, interlocução,
diálogo, relação dialógica, entre outros, tomados como equivalentes
no plano geral das teorias que apresentam o nosso objeto. Parece-
-nos que essa oscilação é decorrente da mescla teórica presente
nos estudos inaugurais sobre texto e escrita no Brasil, quando,
a partir das décadas de 70 e 80, ainda não sentíamos a exigência
demasiadamente necessária de um rigor terminológico. Conse-
quência aparente disso é que os termos em questão são tomados
como uma tentativa de explicar o que está subjacente a todo ato
de linguagem, seja falado seja escrito, mas sob um ponto de vista
não propriamente linguístico. Contudo, “o verdadeiro problema é
muito mais profundo. Consiste em reencontrar a estrutura íntima
do fenômeno do qual não se percebe senão a aparência exterior e
em descrever a sua relação com o conjunto das manifestações de
que depende”. E aqui reside nossa necessidade de delimitação:
a busca de uma teoria linguística que nos interrogue e que nos
permita por seus fundamentos encontrar, sob a superfície textual,
o que está implicado a cada tomada da palavra.
Acreditamos que pela operacionalização desse conhecimento
em sala de aula, oferecemos ao aluno o lugar de constituição de
sua subjetividade em que experiencia, na escrita e reescrita, sua
própria presença e a presença daquele a quem escreve. Pois, ao
assumir a língua por sua conta, reconhecendo-a em sua natureza
de comunicação intersubjetiva, o locutor-aluno apropria-se da
escrita, seja qual for seu gênero, para marcar seu lugar, sempre
renovado a cada vez que toma as palavras, mesmo que elas se
refiram ao que já disseram – pois jamais serão repetições se são
atos singulares de utilização da língua.
Sumariamente, é por essa capacidade de entendimento da
escrita e da reescrita como não limitadas à representação do
mundo, mas como atos de produção de significância sobre signi-
ficância que nos valemos da teoria de Benveniste para ancorar
74
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
os princípios deste estudo. Partindo da trajetória docente em
direção à concepção de escrita e reescrita por uma perspectiva
benvenistiana, somos conduzidos a mostrar o lugar que a teoria
enunciativa de Émile Benveniste ocupa no campo da enunciação,
cuja importância equivale ao lugar que ela ocupa em nosso estudo.

A Teoria da Enunciação: o ponto de


encontro
Vale reiterar que a observação das teorias da enunciação e
a consideração em especial da teoria de Benveniste não significa
um tratamento excludente ou hierárquico, mas uma escolha
necessária a qualquer um que se proponha estudar a linguagem.
Mas, afinal, por que gostamos de Benveniste?23
Flores e Teixeira antecipam uma resposta: “Benveniste
é considerado o linguista da enunciação e consequentemente
o principal representante do que se convencionou chamar de
Teoria da Enunciação. Não se trata de estabelecer hierarquias,
mas de reconhecer uma filiação epistemológica” (2005, p. 29).
Para os autores, essa filiação é reconhecida pela atualidade do
pensamento benvenistiano no seio dos mais diversos campos de
conhecimento (Antropologia, Análise do discurso, Psicanálise,
psicologia, Filosofia, Fonoaudiologia, Literatura etc.) e por ter
sido o primeiro a definir explicitamente o termo enunciação.
É exatamente a possibilidade desse atravessamento que fez
a Teoria da Enunciação de Benveniste a novidade no apogeu do
estruturalismo. Segundo os autores, o “princípio da imanência”24
23
Essa interrogação faz analogia aos textos de Barthes (2004) e de Flores (2005),
intitulados, no singular, “Por que gosto de Benveniste” (Barthes propõe como uma
afirmação, e Flores, como uma interrogação).
24
Para Normand, no caso da “imanência”, a descrição da língua se limita ao seu in-
terior, idealmente separada do seu contexto de uso (referente, locutores), portanto,
separada do seu exterior. Para a autora, essa oposição interno/externo provém de
uma interrogação filosófica tradicional, de exigência positivista, e serve para definir

75
Aline Juchem | Enunciação e ensino: um caso de amor e de língua
interditava o entendimento de uma visão estruturalista da lín-
gua – concebida como um sistema de relações internas regidas
por leis de organização –, o que ofuscava qualquer referência a
aspectos exteriores ao sistema por considerá-los fenômenos ex-
tralinguísticos. O grande mérito do pensamento de Benveniste
é exatamente conseguir reunir sob a análise linguística dois ho-
rizontes antes separados, embora em sua natureza indissociáveis:
língua e sujeito. Em testemunho disso, está o título de um dos
capítulos mais célebres dos Problemas de linguística geral I e II
(doravante, PLG I e PLG II) – “O homem na língua”25. Para
Flores e Teixeira (2005, p. 30), a exemplo de Dosse (1994),
o plano do mestre era justamente fazer ingressar o sujeito no
interior do horizonte teórico dos linguistas.
Para definir bem nossa posição, dizer que Benveniste inau-
gura uma semiologia englobante e que ultrapassa as concepções
estruturalistas não significa que ignoramos a filiação ao mestre
Saussure e, por conseguinte, ao estruturalismo moderno que dele
procedeu. Benveniste deve muitas das suas reflexões ao mestre
genebrino, ainda que tenha feito delas pontos de partida: “Cabe
a nós tentar ir além do ponto onde Saussure parou na análise da
língua como sistema significante” (PLG II, p. 219).
Esse ponto transcendente parece ser exatamente sobre o
que nos fala Flores (2008, p. 158) a respeito do tema da uni-
dade da linguística: “não é, pois, necessário pensar em duas
linguísticas, mas na mesma linguística que se transforma para
estudar diferentes fenômenos de diferentes pontos de vista: não
uma escolha metodológica, relacionada à definição adotada de linguagem e de
língua (2009, p. 137).
25
Temos consciência da “bricolagem teórica” ou “terminológica” (termo cunhado de
Normand, 2009) de certos termos presentes nos textos de Benveniste, tal é o caso
do título da quinta parte “O homem na língua”, que, segundo o Avant-propos da
edição francesa de PLG I (1966), consta como “Le homme dans la langage”. Essa
oscilação entre os termos língua e linguagem, por vezes parecendo tão próximos
quanto sinônimos, e por vezes tão intimamente distintos na teoria, indica-nos a difi-
culdade em separar a natureza mesma do homem, constituída na e pela linguagem/
intersubjetividade-língua/subjetividade.

76
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
há um centro (a língua) estudado independentemente do que o
cerca”. No mesmo sentido, escreve Barthes: “a linguagem está
por toda parte, não apenas ao lado”. E continua, no que tange à
abertura da linguística pelo olhar renovado de uma “semiologia
de segunda geração”:

a sua linguística [a dos linguistas da enunciação] prepara ad-


miravelmente o que hoje podemos pensar do Texto: a saber,
o sentido de um signo não é mais do que a sua tradução num
outro, o que é definir o sentido não como um significado último,
mas como um outro nível significante; a saber ainda que a mais
corrente das linguagens comporta elevado número de enunciados
metalinguísticos, que atesta a necessidade de o homem pensar sua
linguagem no momento mesmo em que fala (Barthes, 2004,
p. 205, grifo do autor, acréscimo meu).

Ao que acrescenta, legitimando sua simpatia pela teoria


benvenistiana:

Benveniste – e aí está seu êxito – toma a linguagem nesse nível


decisivo em que, sem deixar de ser plenamente linguagem, reco-
lhe tudo aquilo que estávamos habituados a considerar exterior
ou anterior a ela [...] De modo geral, ao colocar o sujeito (no
sentido filosófico do termo) no centro das grandes categorias da
linguagem, ao mostrar, ao ensejo de fatos muito diversos, que
o sujeito jamais pode distinguir-se de uma “instância do discurso”,
diferente da instância da realidade, Benveniste fundamenta linguis-
ticamente, quer dizer, cientificamente, a identidade do sujeito e da
linguagem (ibid., p. 210, grifo meu).

Diante dessas palavras indispensáveis, tem-se justificada,


mais uma vez, a constituição do projeto de uma semiologia ge-
ral desenhado por Benveniste no campo da linguística: língua e
fala, forma e sentido, semiótico e semântico harmonizados sob
77
Aline Juchem | Enunciação e ensino: um caso de amor e de língua
o olhar do linguista. Desse modo, podemos dizer que a cons-
tituição desse projeto está edificada sob a égide do conceito de
enunciação, o qual instaura esse outro nível, não mais reduzido
à língua nem à fala, mas constituído por ambas, segundo Flores
e Teixeira (2005, p. 42).
Por um lado, se esse projeto se sustenta, deve-se ao cerne
da teoria saussuriana da língua como ligação de forma e sentido,
encarregando o sentido de dar razão às formas. De outro lado,
não é a uma simples combinação a que se deve atribuir o princi-
pal pilar erguido por Benveniste: ele viu a possibilidade de uma
linguística da significação, esta que “trapaceia”26 a própria língua
e que torna tão difícil uma tarefa de metalinguagem, de “falar
da língua na língua”, como escreve Normand (2009, p. 102).
Ao mesmo tempo em que Benveniste exalta filosoficamente
as virtudes da atividade metalinguística, no trecho “Este fato
revela nossa possibilidade de nos elevar acima da língua, de
abstraí-la, utilizando-a em nossos raciocínios e nossas obser-
vações. A faculdade metalinguística [...] é a prova da situação
transcendente do espírito ‘vis-a-vis’ da língua em sua capacidade
semântica” (PLG II, p. 233), o linguista se curva e reserva
cuidado aos domínios da língua: “Mas no fundo de tudo está
o poder significante da língua, que é anterior ao dizer qualquer
coisa” (PLG II, p. 234.).
Conforme Normand (2009), isso fica claro com o alerta de
Benveniste aos linguistas:

Podem-se conceber muitos tipos de descrição e muitos tipos de


formalização, mas todos devem necessariamente supor que o seu
objeto, a língua, é informado de significação, através disso que ele
é estruturado, e que essa condição é essencial ao funcionamento
da língua entre os outros sistemas de signos (PLG I, 1966, p. 12).
26
“Trapacear a língua”, expressão originalmente usada por Barthes.

78
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Essas possibilidades de leitura, atestadas pela autora, de-
monstram que o que se manifesta como metalíngua joga com os
efeitos permitidos pela própria língua, tornando sensível o seu
poder significante:

Percebe-se que um locutor nem mesmo precisa forçar a língua


(“trapacear”) para produzir efeitos de sentido surpreendentes e
que os enunciados mais comuns, cuja forma é esquecida até se
tornar transparente, encerram uma potencialidade significante
que a análise pode tornar visível rompendo a complexidade das
formas (Normand, op. cit., p. 105).

Essa relação introduz o sujeito, constituído na e pela lingua-


gem, o que implica o alargamento de uma análise interna agora
vinculada ao “exterior”, e, sobretudo, ressalta o caráter consti-
tutivo da linguagem, “a maneira pela qual as estruturas de uma
língua produzem sentido; e essa propriedade significante fica
sempre associada à presença de um sujeito que se comunica com
outros sujeitos, em uma inter-relação permitida, suscitada pela
língua”, conforme Normand (2009, p. 148). Com isso, pode-
-se dizer que a linguagem comporta a enunciação, esta como o
ato individual de utilização da língua, o que significa dizer que
o sujeito só se constitui como tal em vista do outro. Eis aqui o
claro empreendimento de uma linguística geral por Benveniste:
“a linguística da interlocução: a linguagem, e, portanto, o mundo
inteiro, que se articula sobre a forma eu/tu” (Barthes, 2004, p.
213).
Logo,

Benveniste foi o primeiro a tratar a enunciação num quadro


formal compatível com o ideal de cientificidade da linguística. A
enunciação é de ordem radical, é da instauração de uma efemeri-
dade radical. Eis o que me interessa: a fórmula da efemeridade
e, por ela, da singularidade que habita todas as regularidades.
79
Aline Juchem | Enunciação e ensino: um caso de amor e de língua
Acredito, realmente, que o campo do singular não despreza a
regularidade, mas também não se encerra nela. Há de fato algo
a mais sobre ciência aí [...] A enunciação é um conceito geral que
só tem sentido para o individual, para cada um. A fórmula é inte-
ressante: o geral serve para o particular, não o geral que serve para
o geral (Flores, 2005, p. 136, grifo meu).

Sob essa afirmação, retomamos a pertinência do quadro


teórico benvenistiano para um professor. Embora a língua seja
comum a todos, a enunciação, efêmera, mostra-nos que cada
ato de (re)escrita é um ato de singularidade. Cabe ao professor
entender essa fórmula. Benveniste não delimita uma metodolo-
gia que nos facilite o trabalho, mas pelo itinerário de sua obra
ele nos aponta caminhos possíveis para uma análise da escrita e
da reescrita27 como atos de enunciação únicos. Ao retomarmos
a fala do aluno, vemos um princípio cujas consequências são
testemunhadas no processo de escrita e reescrita de textos: a
importância da comunicação intersubjetiva, da qual resulta que
tudo o que é organizado pelo discurso (o locutor, sua posição,
seu tempo) não pode ser identificado e definido senão pelos
parceiros da comunicação linguística – neste caso, professor e
aluno. Para Benveniste, a (inter)subjetividade tem, portanto, sua
temporalidade, seus termos e suas dimensões, pela qual se reflete
na língua a experiência de uma relação primordial e constante
entre o locutor e seu parceiro, uma vez que “é sempre ao ato
de fala [escrita] no processo de troca que remete a experiência
humana inscrita na linguagem” (PLG II, p. 80, acréscimo meu).
Nessa linha, entendemos a queixa do aluno, a qual reside no
fato de que no ato de escrita ele não se enxerga em um processo
de troca, justamente simbolização constituída nas trocas faladas
27
Para uma reflexão aprofundada sobre a análise do processo de escrita e reescrita,
ver JUCHEM (2012). Nesse trabalho, a reescrita é concebida como uma metaenun-
ciação do escrito e, por isso, designada como “re-escrita”, termo cunhado a partir
das reflexões benvenistianas.

80
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
ou nas escritas virtuais, simultâneas da internet, que, de certo
modo, recobrem a intersubjetividade falada. Com efeito, o texto
escrito do aluno nada mais é do que a marca assinalada do seu
processo de apropriação da língua como locutor na relação com
o outro e com o mundo, ou seja, de sua história de enunciações
escritas que ele coloca em relação com suas enunciações no MSN
e a qual, por sua vez, remete o locutor a um lugar de enunciação
a ser ocupado que determina as (im)possibilidades do dizer.
Nessa comparação, emerge de sua fala o caráter intersubjetivo
constitutivo e necessário da língua em ação.
De fato, percebemos que a subjetividade que o locutor-aluno
experimenta para propor-se como sujeito está vinculada à neces-
sidade de referência à situação de enunciação – o eu-tu-aqui-agora
–, pois, como lembra Benveniste, “o emprego [de eu-tu] tem
como condição a situação de discurso e nenhuma outra” (PLG
I, p. 281, acréscimo meu). Dessa forma, a enunciação é cada
vez única, proferida quantas vezes forem os eixos de referência
– pessoa-espaço-tempo. Pode-se dizer com isso que a cada nova
enunciação escrita e reescrita emerge um novo sujeito, posto que
o sujeito é o efeito da relação intersubjetiva que se instaura no
contexto de produção de textos em sala de aula.
Como vimos, a questão da significação é transversal à Teoria
da Enunciação, visto que, antes de tudo, a linguagem significa.
Assim, a possibilidade de o locutor-aluno fundar-se na enunciação
escrita se deve à faculdade simbólica da linguagem, na qual e
a partir da qual ele pode experienciar-se em uma nova relação
com o outro, com a língua e, por conseguinte, com a cultura a
cada nova inserção de seu discurso no mundo. Se deslocarmos
a afirmação de Benveniste para o nosso tema, poderíamos dizer
com ele que “muitas noções na linguística [e no ensino] apare-
cerão sob uma luz diferente se as restabelecermos no quadro do
discurso, que é a língua enquanto assumida pelo homem que
fala [escreve], e sob a condição de intersubjetividade, única que
81
Aline Juchem | Enunciação e ensino: um caso de amor e de língua
torna possível a comunicação linguística” (PLG I, p. 293, grifo
do autor, acréscimos meus).

Considerações finais
A partir da problematização feita até então, pensamos que
o processo de (re)escrita não é um ato solitário, tal como perce-
bemos muitas vezes na escola, onde o aluno volta ao seu dizer
sem continuar sabendo para quem e sobre o quê deve exatamente
escrever, o que, evidentemente, resulta na fala que escutamos
como professores no primeiro dia de aula na universidade e da
qual nos valemos aqui. Em contrapartida, o processo de (re)
escrita, como um ato de enunciação, é realizado a várias mãos
que, juntas, pela troca e pelo diálogo, ressignificam esse ato e
reconstroem os sentidos no discurso, possibilitando ao aluno
ser enxergado e, por conseguinte, se enxergar no texto como um
lugar possível de se constituir como sujeito na expressão de sua
singularidade. Na medida em que o locutor-aluno experienciar
para quem escrever, saberá sobre o quê escrever.
Nesse sentido, justificamos em últimas palavras porque gosta-
mos de Benveniste, tomando emprestadas as palavras de Normand
(2009), que aqui parecem dizer tudo:

Eu reencontrava o prazer de ler, de ser levada pelo sentido que


um sujeito pode fazer surgir da língua desde que não faça dela
um mero instrumento a seu serviço, desde que a ame, em suma.
Descobrir os desvios que toma a língua comum para permitir
os efeitos de sentido mais precisos e mais singulares [...] mas
podia ser como linguista, que não se fia em sua intuição e em sua
cultura, mas na precisão de uma análise das formas, do jogo de
seus limites e possibilidades (Normand, 2009, p. 101).

82
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Levados pelo prazer de ler Benveniste que, como professo-
res-pesquisadores, conduzimos este trabalho, bem como as demais
pesquisas sobre o assunto28. Feito esse percurso, mesmo que
sumário, esperamos que ele possa contribuir para o trabalho de
ensino-aprendizagem de escrita e reescrita, bem como de leitura
e análise de textos em sala de aula, levando sempre em conta o
espaço de singularidade do sujeito na língua, o que, sem dúvida,
fomenta o campo de pesquisa em enunciação e, especialmente, o
âmbito de ensino quanto ao olhar frente aos textos produzidos
pelos alunos, esses que, pelo processo de (re)escrita de textos,
mediado pelo outro, (re)produzem o mundo: o seu mundo.

Referências
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da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
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códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEMT, 2002.
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gularidade. Porto Alegre: UFRGS, 2006. Originalmente apresentada
28
Para uma reflexão centrada em uma concepção antropológica-cultural de homem
atrelada à noção simbólica de linguagem, deslocada para o espaço de sala de aula,
com base em Benveniste (2005/2006) e articulada às reflexões de Agamben (2012),
ver SILVA; KNACK; JUCHEM (2013).

83
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84
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à deriva? Letras de Hoje. Porto Alegre: EDIPUCRS, v. 43, n. 1, jan./
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85
Aline Juchem | Enunciação e ensino: um caso de amor e de língua
86
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Capítulo
IV

A teoria enunciativa
de Émile Benveniste e
o estudo do texto:
itinerários investigativos

Carolina Knack29

Tudo é claro no livro de Benveniste,


tudo nele pode imediatamente ser reconhecido como verdade;
e, no entanto, tudo também nele não faz mais do que começar.
(Roland Barthes. O rumor da língua, 2004)

Este capítulo apresenta, em linhas gerais, os primeiros


passos da pesquisa realizada para a elaboração da dissertação de
mestrado intitulada Texto e enunciação: as modalidades falada e
escrita como instâncias de investigação (Knack, 2012)30. Tal como
29
Doutoranda em Estudos da Linguagem, com ênfase em Teorias do Texto e do Discurso,
pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS); mestre na mesma linha de pesquisa (UFRGS) e especialista em Estudos
Linguísticos do Texto (UFRGS). E-mail: carolinaknack@gmail.com.
30
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A dissertação foi defendida pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 2012, sob orientação da professora
Dra. Carmem Luci da Costa Silva.

87
Carolina Knack | A teoria enunciativa de Émile Benveniste e o estudo do texto...
o título indica, a pesquisa buscou tratar de texto à luz da Teoria
da Enunciação, especificamente a de Émile Benveniste.
Evidentemente, tratar de texto sob perspectivas ditas enun-
ciativas não é novidade, haja vista o expressivo número de pes-
quisas que tomam por base os estudos de Bakhtin, de Ducrot,
de Maingueneau – entre outros – e, inclusive, os de Benveniste.
No entanto, em se tratando deste último, parece haver, ainda,
uma lacuna quanto a essa possibilidade, especificamente no que
diz respeito a uma sistematização do referencial teórico-meto-
dológico enunciativo para o estudo de textos falados e escritos
em contexto de ensino de língua materna.
É nesse contexto, portanto, que se insere a pesquisa empre-
endida em Knack (2012), em que buscamos, primeiro, proble-
matizar o potencial da teoria benvenistiana para a abordagem do
objeto texto e, segundo, sistematizar os princípios teórico-metodo-
lógicos da Enunciação para a análise de textos falados e escritos.
Neste capítulo, retomamos apenas parte do percurso teó-
rico que permitiu dar conta desses objetivos. Assim, o presente
trabalho propõe-se a reunir elementos que propiciem desvelar
o diálogo da Teoria da Enunciação, de Émile Benveniste, com
a área dos estudos do texto – interlocução que tem por intuito
produzir reflexões que contribuam para o trabalho dos profes-
sores de língua portuguesa. Para tanto, partindo da observação
da produção teórica de Émile Benveniste, especialmente dos
artigos reunidos em Problemas de linguística geral I e Problemas
de linguística geral II31, pontuamos características quer da obra,
quer do seu processo de escritura para, em seguida, compreen-
dermos o modo como a teoria enunciativa benvenistiana foi lida
pela Linguística brasileira. As questões abordadas nesses dois
tópicos reúnem elementos que alimentam o diálogo desta teoria
com a área dos estudos do texto e que encaminham a pensar
31
Na sequência deste texto, essas obras serão referidas, respectivamente, como PLG
I e PLG II.

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Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
acerca da possibilidade de investigação do funcionamento textual-
-enunciativo, nas instâncias falada e escrita da língua, tomando
como arcabouço teórico a Enunciação de Émile Benveniste.

O texto: um fato enunciativo de


linguagem
O texto, esse todo complexo de sentido, assume especial re-
levância para aqueles que manejam com este todo “multiforme
e heteróclito”, “cavaleiro de diferentes domínios” (Saussure,
2006, p. 17) que é a linguagem, sejam eles linguistas, escritores,
professores, sejam ainda psicólogos, fonoaudiólogos, filósofos ou
historiadores – a lista, sucinta, apenas ilustra o quão diversos po-
dem ser os domínios em que os textos, atualizando a linguagem
e a língua em uso, podem instaurar-se como meios de aceder a
um objeto. No que se refere à eleição desse fato linguístico para
esta pesquisa, destaca-se que tal escolha vem ao encontro da
prática docente.
O texto vem sendo inserido progressivamente em aulas
de língua materna: documentos oficiais que tratam do ensino
de Língua Portuguesa – tais como os Parâmetros Curriculares
Nacionais (1998; 2000; 2002), doravante PCN’s, e os Referenciais
Curriculares do Estado do Rio Grande do Sul (2009) – instituem-
-no como o objeto e a unidade de ensino. Tais documentos assim
o situam na medida em que a abordagem do texto possibilita,
sobretudo, o desenvolvimento da competência discursiva do aluno
– aspecto essencial para uma educação que se quer comprometida
com o exercício da cidadania. Desse modo, tomando a habilidade
textual-discursiva como um potencial a ser explorado no âmbito
da disciplina de língua portuguesa,
89
Carolina Knack | A teoria enunciativa de Émile Benveniste e o estudo do texto...
não é possível tomar como unidades básicas do processo de ensi-
no as que decorrem de uma análise de estratos – letras/fonemas,
sílabas, palavras, sintagmas, frases – que, descontextualizados,
são normalmente tomados como exemplos de estudo gramatical
e pouco têm a ver com a competência discursiva. Dentro desse
marco, a unidade básica do ensino só pode ser o texto (PCN’s,
1998, p. 23, grifo nosso).

O texto integra todos os estratos mencionados e permite que


se trabalhe com a língua em sua totalidade; não há espaço para
exercícios mecânicos e repetitivos, posto que cada texto mobiliza
de forma singular os elementos da língua para produzir sentidos
também singulares.
Essa constituição de sentidos, no entanto, pode também se
ancorar em gestos, em movimentos, em imagens, articulando
as linguagens verbal e não-verbal, motivo pelo qual os PCN’s
propõem considerar texto em um sentido amplo e em um sentido
estrito. No primeiro, texto é empregado para “designar também
unidades básicas de outras linguagens além da verbal” (PCN’s,
2002, p. 43). Um quadro, uma apresentação de balé, uma peça
de teatro ou uma escultura, por exemplo, podem ser conside-
rados textos. Assim, em seu sentido amplo, texto é “qualquer
manifestação articulada que se veicula por linguagens”, sendo
ele “o elemento mínimo de qualquer situação de interlocução”
(PCN’s, 2002, p. 43-44). Já no segundo, texto é entendido como
“unidade básica da linguagem verbal” (PCN’s, 2000, p. 18), pro-
duto e manifestação linguística de uma atividade discursiva que
“forma um todo significativo, qualquer que seja sua extensão”.
Em seu sentido restrito, portanto, “os textos são a concretização
dos discursos proferidos nas mais variadas situações cotidianas”
(PCN’s, 2002, p. 58).
Considerando tais conceituações, na perspectiva dos PCN’s
o texto vai apresentar importância não apenas para a disciplina
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Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
de língua portuguesa, mas para todas as que integram a área de
Linguagens, Códigos e Tecnologias proposta pelo documento, com-
posta pelas disciplinas de língua portuguesa, língua estrangeira
moderna, educação física, arte e informática. Isso porque, nessa
área, “o grande objeto de estudo são as várias linguagens e os
códigos por elas estruturados, nas manifestações particulares que
deles se valem (textos) para estabelecer diferentes formas de co-
municação” (PCN’s, 2002, p. 26). Nesse sentido, cada disciplina
enfatiza aspectos diferenciados em relação ao texto, de modo que
cabe à de língua portuguesa propor atividades que privilegiem
as práticas discursivas, principalmente a leitura e a produção de
textos escritos e a escuta e a produção de textos orais, práticas
que possibilitem, “por meio da análise e reflexão sobre os múlti-
plos aspectos envolvidos [no texto], a expansão e construção de
instrumentos que permitam ao aluno, progressivamente, ampliar
sua competência discursiva” (PCN’s, 1998, p. 27).
Também, nos Referenciais Curriculares do Estado do Rio
Grande do Sul (2009), o texto é apresentado como um dos concei-
tos estruturantes da área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias,
isto é, integra o conjunto de pressupostos que rege a perspectiva
adotada pela área em relação à linguagem. O documento assim
o define:

Texto: produto e materialização de uma atividade de linguagem.


Um texto é um conjunto de relações que se estabelecem a partir
da coesão e da coerência. Em outras palavras, um texto só é texto
quando pode ser compreendido como unidade significativa global,
seja ele escrito, falado, pintado, cantado, dançado etc. Ao mesmo
tempo, só encontra tal unidade e ganha sentido na vinculação
com um contexto. Assim, o texto é resultado da atividade huma-
na interacional (discursiva), que se dá entre sujeitos com uma
intenção responsiva. É a manifestação, por meio da linguagem,
das ideias de um autor e destina-se à interpretação de um outro.
Na origem, o vocábulo “texto” tinha aplicação restrita a objetos
91
Carolina Knack | A teoria enunciativa de Émile Benveniste e o estudo do texto...
da escrita; atualmente, também se refere à fala e a objetos de
linguagens não-verbais ou híbridas, como um filme, uma novela,
uma partida de futebol, uma escultura etc. (Referenciais, 2009,
p. 44, grifos nossos).

Embora a designação texto faça referência tanto à linguagem


verbal quanto à não-verbal, dialogando, dessa forma, com os
PCN’s, os Referenciais Curriculares apontam que se privilegia,
em aulas de língua, o desenvolvimento de competências nucleares
no âmbito da verbal. Segundo o documento (2009, p. 54), tais
competências consistem em: primeiro, “ler textos de gêneros
variados, de modo a reagir diante deles, e, com atitude crítica,
apropriar-se desses textos para participar da vida social e resol-
ver problemas;” e, segundo, “produzir textos de modo seguro
e autoral, não apenas em situações cotidianas da esfera privada,
como em esferas públicas de atuação social”. Essas competências
podem ser desdobradas nas práticas de compreensão oral, leitura,
escrita e fala. O texto é, pois, o ponto de partida e de chegada.
Essa nova valoração conferida ao texto a partir das diretrizes
estabelecidas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais e, mais
recentemente, pelos Referenciais Curriculares do Estado do Rio
Grande do Sul, coloca em pauta, também, a questão referente à
formação do professor. Para que o trabalho voltado ao texto, em
sala de aula, seja menos intuitivo e mais reflexivo, esse professor
necessita munir-se de ferramentas teóricas.
Uma rápida pesquisa acerca de currículos de cursos de
licenciatura em letras com ênfase em língua portuguesa de uni-
versidades de Porto Alegre e da região metropolitana32 permite
constatar que, de fato, o texto tem-se configurado como objeto de
estudo e, portanto, tem integrado a formação básica do professor.
32
Pesquisa realizada através da consulta aos currículos vigentes para o primeiro semestre de
2011, disponibilizados nos sites das universidades. Para mais informações quanto a essa
pesquisa, consultar a seção Introdução, de Knack (2012).

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Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Um breve percurso pelas grades curriculares, súmulas e ementas
de disciplinas33 indica que o texto tem ocupado ora centralmente
uma disciplina ora como meio para a abordagem de aspectos
relativos à estrutura e ao funcionamento da língua portuguesa
em si. Uma vista de olhos pelas indicações bibliográficas, quando
presentes, permite elencar alguns estudiosos que são reiterada-
mente citados: Ingedore G. Villaça Koch, Patrick Charaudeau,
Dominique Maingueneau, José Luiz Fiorin, Mikhail Bakhtin,
Luiz Antônio Marchuschi, Eni Orlandi, entre outros. Tal lista
não se pretende exaustiva, apenas ilustrativa da diversidade
teórica com que o texto pode ser explorado, uma vez que há
teóricos representantes da Linguística Textual, da Semiótica, da
Linguística da Enunciação, da Análise do Discurso.
Dentre tais indicações bibliográficas, destaca-se a quase
ausência da referência a Émile Benveniste 34. Diante disso,
perguntamo-nos: A que se deve essa quase ausência nos pro-
gramas de disciplinas que estudam o texto? Não teria a teoria
enunciativa deste linguista subsídios teórico-metodológicos para
a abordagem do objeto texto?
Essas questões conduzem-nos a uma consulta ao Dicionário
de Linguística da Enunciação (Flores et al., 2009) – importante
obra que sistematiza o campo – em busca de possíveis regis-
tros para o termo texto no âmbito da linguística enunciativa, a
qual comporta Émile Benveniste. O Dicionário apresenta duas
ocorrências para texto: uma no âmbito dos estudos de Ducrot
(Flores et al., 2009, p. 230) e outra no de Récanati (Flores
et al., 2009, p. 230).
33
Informações obtidas a partir da consulta aos sites dos cursos.
34
O advérbio quase, para caracterizar a ausência de Benveniste nas indicações biblio-
gráficas, é utilizado justamente para relativizar tal fato, uma vez que localizamos,
dentre as disciplinas que disponibilizaram seus programas de ensino, exceções que
mencionam o linguista em seus referenciais. Consideramos, para este levantamento,
a citação direta de Émile Benveniste, isto é, a referência aos Problemas de linguística
geral I e II.

93
Carolina Knack | A teoria enunciativa de Émile Benveniste e o estudo do texto...
Além da ausência, no contexto do Dicionário de Linguística
da Enunciação (Flores et al., 2009), de uma definição para o
termo texto relacionado à teoria enunciativa de Émile Benvenis-
te – o que se justifica pelo fato de Benveniste ter como objeto a
enunciação –, é possível verificar que texto também está, assim,
ausente do levantamento de termos e de assuntos contido nos
índices remissivos de PLG I e de PLG II. Essas ausências levam-
-nos a explorar a reflexão do autor em busca de possíveis noções
para texto e de uma explicitação do aporte teórico-metodológico
para a abordagem desse objeto. Assim, o estudo desenvolvido em
Knack (2012) apresenta três objetivos: 1º) explorar justamente a
possibilidade de interlocução da teoria enunciativa benvenistiana
com os estudos do texto; 2º) em se configurando tal interface,
sistematizar as noções teóricas da Enunciação benvenistiana que
sustentariam o trabalho com este objeto, discutindo uma concep-
ção para texto; 3º) a partir das noções sistematizadas, investigar
os aspectos da enunciação implicados na constituição do texto
em suas modalidades falada e escrita. Este artigo retoma, em
especial, o percurso teórico empreendido para o cumprimento
do primeiro objetivo.
A possibilidade de explorar o texto nessas duas modalida-
des delineia-se a partir de nossa leitura de O aparelho formal da
enunciação (PLG II): Benveniste, ao tratar da realização vocal
da língua, pontua que esse é o aspecto menos visto em relação
ao fenômeno geral da enunciação (PLG II, p. 82), de forma que
entendemos ser a realização vocal um fenômeno específico da
enunciação. Nossa tese é corroborada pelo apontamento feito
pelo mestre enunciativo ao final do célebre artigo, quando afir-
ma que “seria preciso também distinguir a enunciação falada
da enunciação escrita” (PLG II, p. 90, grifos nossos), por nós
entendidas como fenômenos específicos da enunciação, cada qual
mobilizando de maneira singular o quadro formal enunciativo
elaborado pelo autor.
94
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
A proposição dessa reflexão sinaliza o desafio assumido na
pesquisa, o qual vem ao encontro da prática docente, uma vez que
tanto os Parâmetros Curriculares Nacionais quanto os Referenciais
Curriculares do Estado do Rio Grande do Sul, conforme abordado
anteriormente, recomendam o trabalho, em sala de aula, com o
texto em suas manifestações oral e escrita.
Para que se possa tratar de texto em suas modalidades falada
e escrita desde uma perspectiva enunciativa benvenistiana35, pro-
pomos uma leitura de um conjunto de artigos de PLG I e PLG
II. Antes, porém, de mergulharmos nos textos benvenistianos,
julgamos ser necessário apresentar algumas reflexões acerca da
produção teórica do linguista, especialmente em relação aos
artigos reunidos nos dois volumes de PLG.
A caracterização de elementos que envolvem seja a produção
seja a publicação de tais textos contribui para o entendimento
do processo de elaboração da sua teoria e, consequentemente,
conduz-nos a refletir sobre o que tem possibilitado, de fato, os
diálogos da teoria benvenistiana não apenas com o campo da
linguística, mas com o da psicanálise, o da fonologia, dentre
outros. Nesse percurso, importa observar, a partir do modo como
a teoria benvenistiana foi lida pela linguística brasileira, como se
institui o diálogo dessa teoria com a área dos estudos do texto
Tais questionamentos e reflexões compõem as próximas seções
deste artigo e encaminham-nos a pensar acerca da possibilidade
35
Cabe, aqui, uma observação quanto ao emprego dos termos oral/oralidade e falada(o):
na obra benvenistiana, encontramos registros de ambos os termos para fazer referên-
cia ao aspecto vocal de realização da língua. Vejamos alguns exemplos (com grifos
nossos): “massa dos escritos que reproduzem discursos orais” (PLG I, p. 267).; “O
discurso, porém, é tanto escrito quanto falado” (PLG I, p. 267).; “o aoristo não se
emprega na língua falada” (PLG I, p. 268).; “difícil conceber um curto texto falado
em que [eu e tu] não fossem empregados” (PLG I, p. 278).; “seria preciso também
distinguir a enunciação falada da enunciação escrita” (PLG II,p. 90).; “fraseologia,
que é a marca frequente, talvez necessária, da ‘oralidade’” (PLG II, p. 90).; “sequência
dada de sons que a natureza falada, vocal, da língua exigiria” (PLG II, p. 225). Esses
poucos exemplos bastam para evidenciar que o termo falada(o) é mais recorrente
para delimitar enunciação, discurso, texto como vinculados ao aspecto vocal da
língua. Por isso, também optamos pela utilização desse termo em nosso trabalho.

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Carolina Knack | A teoria enunciativa de Émile Benveniste e o estudo do texto...
de investigação do funcionamento textual-enunciativo em suas
instâncias falada e escrita, tomando como arcabouço teórico a
enunciação de Émile Benveniste.

Émile Benveniste: qual linguística?36


Traçar um percurso das produções teóricas de Émile Ben-
veniste e buscar compreender o itinerário de leituras que dessas
obras se fez requer que empreendamos também nós um itine-
rário, tanto pelos próprios textos do linguista quanto pelos de
seus comentadores. Os caminhos a serem aqui trilhados seguem
em uma direção: almejam situar a produção teórica do linguista,
especialmente a que constitui a Teoria da Enunciação, de modo
a buscar compreender como as características dessa produção
podem ter influenciado as leituras que dela se fizeram – espe-
cialmente a leitura realizada pela linguística brasileira.
Segundo Dessons (2006), os estudos de Benveniste esten-
dem-se sob três domínios principais: o dos estudos iranianos,
o da gramática comparada das línguas indo-europeias e o da
linguística geral37. Embora já fosse considerado um grande indo-
-europeísta, Benveniste tornou-se verdadeiramente reconhecido
apenas a partir do fim dos anos 60, com as seguintes publicações:
a compilação de artigos intitulada Problèmes de linguistique générale
I, publicada na França em 1966; o artigo O aparelho formal da
enunciação38, publicado na revista Langages em 1970, e a segunda
36
Título inspirado no artigo de Claudine Normand (2009a) denominado Émile Ben-
veniste: qual semântica?, em que a autora discute como a questão da referência e
suas relações com a Teoria da Enunciação introduzem-se no constructo teórico de
Benveniste.
37
Para mais informações a respeito dos diferentes domínios estudados por Benveniste
e dos possíveis motivos para o tardio reconhecimento do linguista enquanto espe-
cialista de linguística geral, consultar capítulo 1, de Knack (2012).
38
Conforme argumenta Normand (2009c), somente a partir desse artigo os linguistas
perceberam e passaram a interessar-se pelo viés enunciativo de Benveniste, uma vez
que sua teoria permitia, a partir do retorno do sujeito e dos elementos da subjetivi-
dade, sair do claustro estruturalista.

96
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
coletânea de artigos intitulada Problèmes de linguistique générale
II, publicada na França em 1974.
Tal como grifou Dessons, apesar de ser possível considerar
os trabalhos de Benveniste como particionados em um “setor
filológico e um setor generalista” – este incluindo os estudos
de cunho enunciativo –, e que isso possa dar a impressão de
atividades distintas, o autor defende “trata[r]-se antes de dois
momentos de um mesmo projeto global, que elege a significação
como ponto de vista fundamental sobre a linguagem” (Dessons,
2006, p. 27, tradução nossa). Também Normand (2009a) ar-
gumenta nesse sentido, afirmando ser a referência constante à
significação o que unifica o projeto benvenistiano, o qual consiste
em continuar Saussure e ultrapassá-lo39.
Esses questionamentos acerca do que possibilitaria unificar
as reflexões benvenistianas advêm, sobretudo, dos múltiplos
interesses do linguista e da própria abundância da matéria – se-
gundo Ono (2007), Benveniste publicou 18 livros, 291 artigos
e 300 resenhas críticas. Essa multiplicidade, de certa forma,
atesta que o estudo da linguagem, para o linguista, parece não
poder apresentar-se de maneira sintética, de modo que publicar
em coletânea teria sido a sua única iniciativa para dar forma a
uma Linguística Geral. Isso, segundo a autora (2007, p. 19,
tradução nossa), “pode desconcertar todo aquele que procura
uma linguística edificada passo a passo, de maneira sistemática.”
De fato, o que se convencionou chamar de Teoria da Enun-
ciação em Benveniste advém, também, de um olhar lançado a
posteriori aos textos do linguista e, segundo argumentam Flores
et al. (2008), diz respeito a um conjunto de cerca de vinte arti-
gos escritos ao longo de aproximadamente 30 anos, reunidos e
publicados nos já mencionados PLG I e II. Isso evidencia que
tal teoria não se apresenta como uma proposta teórico-meto-
39
Ultrapassagem que pode ser entendida como o movimento de ir além de.

97
Carolina Knack | A teoria enunciativa de Émile Benveniste e o estudo do texto...
dológica explicitamente elaborada e desenvolvida ao longo dos
anos. Também não há, como afirma Normand (2009a, p. 161),
uma “revolução enunciativa” em Benveniste, pois o interesse do
linguista pelos indícios da presença do homem na linguagem e
na língua é uma constante em suas pesquisas: “a busca dos tra-
ços da subjetividade nas formas linguísticas está presente desde
o início [nos trabalhos de Linguística Geral e frequentemente
nos de gramática comparada] e se teoriza pouco a pouco entre
hesitações e afirmações” (Normand, 2009a, p. 16). Linha a
linha, parágrafo a parágrafo, artigo a artigo, a Teoria da Enun-
ciação desvela-se, ao mesmo tempo em que, confessa Normand,
desvela-se, para ela, o prazer do texto. Benveniste possibilitou
para a atenta leitora uma descoberta:

o prazer de uma bela demonstração numa retórica sedutora,


talvez sedutora demais para ser sempre perfeitamente rigorosa;
era a fluidez de uma escrita livre do peso, que se tornara habitual,
dos programas e de seus resultados; em suma, o “prazer do tex-
to”, conforme a expressão de Roland Barthes, que confessava:
“É preciso ler outros linguistas, mas gostamos é de Benveniste”
(Normand, 2009a, p. 101).

Ao redescobrir o prazer de ler com Benveniste, Normand


concluiu que era possível, sim, “escrever de modo diferente mes-
mo sendo linguista; [e que] podia existir algo diferente de uma
língua desfigurada pela obsessão de fazer ciência” (Normand,
2009a, p. 101). Esse “escrever de modo diferente” que, para a
autora, traduz-se pela escrita livre e sedutora do mestre, tam-
bém foi objeto de comentários de outros importantes leitores de
Benveniste. Barthes (2004), por exemplo, em ensaios por ocasião
das publicações de PLG I e II, observa que aquilo que um sábio
nos proporciona não advém apenas da força de seu saber e de seu
98
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
rigor, mas de sua escritura; para o autor, a escrita de Benveniste
possui uma força que não é a mesma dos outros cientistas.
Barthes (2004, p. 210) ainda afirma que “os livros de saber,
de pesquisa, têm também o seu estilo” e os de Benveniste são
“de grande classe”. Esse estilo, para Meschonnic (1995, p. 53-54
apud Ono, 2007, p. 16), não deve ser entendido “no sentido de
caracteres específicos ou formais de uma escrita, mas sim como
a clareza e a aventura de um pensamento, a invenção de novos
problemas e o método da demonstração”. Em cada artigo de
Benveniste percebemos esses movimentos de proposição de um
problema e sua demonstração e análise. Nesse sentido, Dessons
(2006, p. 10, tradução nossa) entende que, “em Benveniste, a
arte de pensar é, principalmente, a arte do problema.” E sua
qualidade maior está justamente nisto: na invenção do proble-
ma, na formulação de uma questão ainda não posta e passível
de ser formulada indefinidamente e de modo novo a cada vez.
Percebemos essa “capacidade pouco comum de recolocar em
questão aquilo que é percebido como evidência” (Ono, 2007,
p. 16, grifo da autora, tradução nossa) em cada artigo escrito
por Benveniste40.
Podemos dizer que a escritura da Teoria da Enunciação
de Émile Benveniste é especialmente marcada por esses traços:
livre da cobrança de um programa e de seus resultados, essa
teoria delineia-se pouco a pouco no pensamento do linguista,
problema a problema, artigo a artigo, em meio a uma diversidade
de reflexões que frequentemente nos “desconcerta”, como diz
Normand (2009a). O programa enunciativo de fato instaurou-se
quando se agrupou em torno dele tudo o que dizia respeito aos
indícios da pessoa e à subjetividade, ou seja, tudo o que dizia
respeito à presença do homem na linguagem e na língua. Essa
40
O grifo de Ono (2007) no prefixo “re” serve justamente para marcar que, em Benve-
niste, este prefixo possui um duplo valor crítico: de iteração (de novo, novamente)
e de invenção (novo).

99
Carolina Knack | A teoria enunciativa de Émile Benveniste e o estudo do texto...
leitura, a da Teoria da Enunciação, segue então o agrupamento
organizado pelo próprio linguista por ocasião da publicação de
PLG I – e diz respeito essencialmente aos artigos integrantes
das seções A comunicação e O homem na língua – e, em PLG II,
segue a distribuição, nessas mesmas seções, organizada pelos
editores sob a supervisão de Benveniste.
Quanto a esses textos que tratam da Enunciação, Normand
destaca que possuem duas particularidades em relação aos demais:

de um lado, eles se relacionam especificamente às marcas (indí-


cios) da subjetividade, enquanto os outros desenvolvimentos
não fazem intervir o papel do sujeito a não ser nas interpretações
das descrições; de outro lado, é nesses textos que se formula de
maneira sistemática o programa de uma nova linguística, aquela
que deve tratar da frase, e assim do discurso, linguística do se-
mântico distinguida da primeira (e sempre necessária) linguística
do sistema, dita semiótica (Normand, 2009a, p. 160-161).

Essa formulação sistemática de um programa para uma nova


linguística, a do discurso, estava, de certa forma, muito clara em
Benveniste. Já dizia Barthes (2004, p. 210) que tudo era “claro
no livro de Benveniste, tudo nele [podia] imediatamente ser
reconhecido como verdade”. Essa clareza inesgotável, atributo
de grandes obras literárias, afirma Barthes ser conferida pela
beleza e pela experiência do intelecto, e se faz presente apenas na
obra de certos cientistas. Benveniste é, para Barthes, um desses
certos cientistas.
Este mesmo Barthes que fala que tudo está claro em Ben-
veniste também aponta que “havia nele algo exorbitante para um
erudito, o implícito” (Barthes, 1995b, p. 393 apud Ono, 2007, p.
16). Mas como explicar tal dualidade? Continua o autor: “tinha-
-se a impressão de que sua obra, sua própria fala, comportava
sempre um suplemento que não dizia, justamente porque dizia
100
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
muito bem aquilo que queria dizer.” Tal característica, se não
justifica, parece ao menos corroborar o fato de haver diferentes
leituras de Benveniste, na medida em que o implícito exige do
leitor determinadas inferências que, se não apreendidas, podem
acarretar uma leitura parcial e, por vezes, até mesmo contraditória
aos princípios do linguista.
O “modo de escrever diferente” de Benveniste, pontuado
por Normand, e essa nova linguística não proposta na forma
de um modelo tal qual entendido pela ciência da linguagem
são elementos que parecem ter contribuído para o modo como
a Teoria da Enunciação foi lida pela linguística brasileira e,
consequentemente, para o modo como se tem desenvolvido no
contexto dos estudos da linguagem. O próximo item objetiva
justamente recuperar parte desse itinerário de leitura no contexto
da Linguística brasileira e pontuar alguns dos efeitos que esse
itinerário produziu na área dos estudos do texto.

A teoria enunciativa benvenistiana no


contexto da Linguística brasileira e
seus efeitos nos estudos do texto
Vimos que tanto a forma como a Teoria da Enunciação foi
concebida por Benveniste quanto as características de sua escrita
contribuíram, em certa medida, para o modo como se leu seu
programa para uma nova Linguística. Conforme ressaltam Flores
et al. (2008; 2009), no Brasil, embora Benveniste seja frequente-
mente citado em bibliografia especializada, seus estudos ainda não
receberam tratamento sistematizado41. Isso se deve, sobretudo, “às
condições específicas de instauração da Linguística brasileira, em
41
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Enfatizamos que tal lacuna vem sendo suprida, sobretudo, por dissertações e teses desen-
volvidas no âmbito dos Programas de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS), da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS),
da Universidade de Passo Fundo (UPF).

101
Carolina Knack | A teoria enunciativa de Émile Benveniste e o estudo do texto...
especial, com relação ao advento da diversidade dos estudos no
âmbito do discurso” (Flores et al., 2009, p. 11). Isso porque,
nos anos 70, período em que os estudos sobre a Enunciação
começaram a ganhar ênfase na França, chegaram ao Brasil
perspectivas de estudo da linguagem especialmente voltadas ao
discurso, tais como a Análise de Discurso de linha francesa e a
Linguística do Texto. Segundo Cremonese (2007), essas linhas,
e também a Pragmática, acabaram por interferir na introdução
da teoria enunciativa benvenistiana no Brasil, fosse pela leitura
peculiar que fizeram da teoria, fosse pela incorporação de termos
benvenistianos aos seus próprios aparatos teórico-metodológicos.
Quanto a esse último aspecto, podemos citar como primeiro
exemplo a Linguística do Texto, abordada, a seguir, pelo viés de
uma das teóricas mais citadas em indicações bibliográficas de
disciplinas que estudam o texto42: Ingedore Koch. Em Linguística
Textual: uma introdução (1988)43, Koch, em coautoria com Leonor
Lopes Fávero, ao discutir as diferentes concepções de texto e de
discurso no âmbito da Linguística Textual, conclui o seguinte:

É lícito concluir, portanto, que o termo “texto” pode ser tomado


em duas acepções: “texto”, em sentido “lato”, designa toda e
qualquer manifestação da capacidade textual do ser humano,
(quer se trate de um poema, quer de uma música, uma pintura,
um filme, uma escultura etc.), isto é, qualquer tipo de comunica-
ção realizado através de um sistema de signos. Em se tratando da
linguagem verbal, temos o discurso, atividade comunicativa de um
falante, numa situação de comunicação dada, englobando o conjunto
de enunciados produzidos pelo locutor (ou por este e seu interlocutor,
no caso do diálogo) e o evento de sua enunciação. O discurso é
manifestado, linguisticamente, por meio de textos (em sentido
42
Conforme pesquisa em grades curriculares de cursos superiores de licenciatura em
Letras de Porto Alegre (RS) e região metropolitana (cf. seção Introdução deste artigo).
43
A primeira edição da obra data de 1983.

102
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
“estrito”) (Fávero; Koch, 1988, p. 25, grifo entre aspas das
autoras, grifo em itálico nosso).

Nesse trecho, ao definir o termo discurso, é possível perce-


ber que as autoras fazem uso de termos e noções enunciativas,
mesmo sem remetê-las a Émile Benveniste: para tratar da ati-
vidade comunicativa de um falante, há de se considerar o conjunto
de enunciados produzidos em determinada situação (diríamos em
uma situação de enunciação que envolve pessoa, tempo e espaço),
por um locutor e, por meio do diálogo entre um eu e um tu, entre
um locutor e um interlocutor no evento dessa enunciação.
É possível perceber que uma das noções benvenistianas que
está subjacente a tais considerações é a de intersubjetividade. Tal
conceito é fundamental para Benveniste, na medida em que esse
princípio estabelece-se como condição para a subjetividade: para
constituir-se como sujeito de linguagem, está-se na dependência
da existência do outro, do tu. A noção de intersubjetividade pa-
rece ser definidora para a abordagem do discurso proposta pelas
autoras. Não por acaso, algumas páginas à frente, as autoras
situam Émile Benveniste como um dos precursores stricto sensu
da Linguística Textual.

E. Benveniste pode ser considerado um dos pioneiros nos es-


tudos sobre o discurso, ao pôr em realce a intersubjetividade
que caracteriza o uso da linguagem, ressaltando a necessidade
de se incorporar aos estudos linguísticos os fatos envolvidos no
evento de produção dos enunciados (Fávero; Koch, 1988, p.
31, grifo das autoras).

E é exatamente a noção de intersubjetividade, antes subja-


cente às considerações das autoras, que Koch e Fávero enfati-
zam no trecho acima citado. Porém, embora posta em relevo,
a noção é apenas brevemente explicada no parágrafo seguinte:
103
Carolina Knack | A teoria enunciativa de Émile Benveniste e o estudo do texto...
“os aspectos discursivos da linguagem dizem respeito às relações
que na e pela linguagem se estabelecem entre os interlocutores”
(Fávero; Koch, 1988, p. 31, grifo das autoras). E, apesar de
pontuarem a existência das relações entre os interlocutores, os
demais comentários das autoras a respeito da teoria benvenis-
tiana ressaltam apenas o aspecto individual da enunciação: “ato
individual de utilização”, “atividade do locutor que mobiliza a
língua por sua conta”, “conversão individual da língua”, “mani-
festação individual que a atualiza [a língua]” (p. 31). Em outras
palavras: apesar de apontarem que é a intersubjetividade que
“torna possível a comunicação linguística” (p. 31), o alocutário
não é considerado quando da explicação teórica.
Outra obra de autoria de Ingedore Koch que exemplifica
a apropriação de termos e/ou postulados enunciativos benvenis-
tianos é Argumentação e linguagem (2004)44. Ao tratar da tomada
do discurso e, posteriormente, do texto como objeto central de
investigação de perspectivas como a que desenvolve, a autora
diz o seguinte:

Se a frase é uma unidade sintático-semântica, o discurso constitui


uma unidade pragmática, atividade capaz de produzir efeitos,
reações, ou, como diz Benveniste (1974), “a língua assumida como
exercício pelo indivíduo”. Ao produzir um discurso, o homem se
apropria da língua, não só com o fim de veicular mensagens,
mas, principalmente, com o objetivo de atuar, de interagir social-
mente, instituindo-se como EU e constituindo, ao mesmo tempo, como
interlocutor, o outro, que é por sua vez constitutivo do próprio EU,
por meio do jogo de representações e de imagens recíprocas que
entre eles se estabelecem.
Ora, o discurso, para ser bem estruturado, deve conter, implícitos
ou explícitos, todos os elementos necessários à sua compreen-
são, deve obedecer às condições de “progresso” e “coerência”,
para, por si só, produzir comunicação: em outras palavras, deve
44
A primeira edição da obra data de 1984.

104
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
constituir um “texto”. Todo texto caracteriza-se pela textualidade
(tessitura), rede de relações que fazem com que um texto seja um
texto (e não uma simples somatória de frases), revelando uma
conexão entre as intenções, as ideias e as unidades linguísticas
que o compõem, por meio do encadeamento de enunciados dentro
do quadro estabelecido pela enunciação (Koch, 2004, p. 19-20,
grifo entre aspas da autora, grifo em itálico nosso).

Além da menção explícita a Benveniste ao definir discurso, a


autora, na sequência, embora não a nomeie, vai tratar da noção de
intersubjetividade. Além disso, Koch ainda pontua que o texto deve
revelar conexão entre seus elementos “por meio do encadeamento
de enunciados dentro do quadro estabelecido pela enunciação”.
E, então, perguntamo-nos: em que consiste, para a autora, esse
quadro da enunciação? Em que concepção os termos enunciado e
enunciação são tomados no contexto dessa reflexão? Tais questio-
namentos assumem maior relevância se atentarmos para o fato de
que, além de Benveniste, estão presentes na discussão da autora
nessa obra outros teóricos pertencentes ao campo da Linguística
da Enunciação, como Ducrot, por exemplo.
Outra perspectiva teórica que incorpora termos e noções
da Teoria da Enunciação de Benveniste é a Semiótica francesa
oriunda de Algirdas Julien Greimas, também conhecida por
Semiótica greimasiana. Exemplificaremos essa perspectiva pelo
viés dos estudos de Diana Luz Pessoa de Barros (1994) e José
Luiz Fiorin (1999), expoentes da pesquisa semiótica no contexto
brasileiro e reiteradamente citados como bibliografia em disci-
plinas de cursos de letras45.
Segundo Barros (1994, p. 7, grifos da autora), essa pers-
pectiva teórica, que tem por objeto o texto, procura “descrever e
explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz.” Ao
objetivar descrever a constituição da significação do texto (plano
45
Cf. seção O texto: um fato enunciativo de linguagem, deste artigo.

105
Carolina Knack | A teoria enunciativa de Émile Benveniste e o estudo do texto...
do conteúdo), a Semiótica entende que o processo de geração de
sentidos dá-se por meio de um percurso gerativo. Esse percurso
é definido por Greimas e Courtés como um modelo que simula
a produção e a interpretação dos sentidos e que vai, por meio de
mecanismos de conversão, do mais simples e abstrato ao mais
complexo e concreto, compondo-se de três níveis: o fundamental,
o narrativo e o discursivo. É nesse último nível, o discursivo,
que os semioticistas valem-se de aspectos da enunciação para dar
conta da constituição da significação.
Barros (1994) explica que

as estruturas narrativas convertem-se em estruturas discursivas


quando assumidas pelo sujeito da enunciação. O sujeito da enun-
ciação faz uma série de “escolhas”, de pessoa, de tempo, de espaço,
de figuras, e “conta” ou passa a narrativa, transformando-a em
discurso. O discurso nada mais é, portanto, que a narrativa
“enriquecida” por todas essas opções do sujeito da enunciação, que
marcam os diferentes modos pelos quais a enunciação se relaciona
com o discurso que enuncia (Barros, 1994, p. 53, grifos nossos).

Embora saibamos que a expressão sujeito da enunciação está


ausente na produção benvenistiana46, esse termo é costumei-
ramente atribuído a Benveniste. Logo, além dessa expressão,
também os demais trechos grifados na citação acima evidenciam
a incorporação de noções enunciativas benvenistianas ao quadro
da Semiótica, como as escolhas quanto às categorias de pessoa,
tempo e espaço projetadas no enunciado. Essas projeções vão
produzir basicamente dois efeitos de sentido: “o de proximidade
ou distanciamento da enunciação e o de realidade ou referente”
(Barros, 1994, p. 55, grifos da autora).
46
Normand (1996, p. 145) afirma que é possível observar a elaboração, nos textos de
Benveniste, de uma espécie de “constelação” de termos que reúne termos da tradição
gramatical e filosófica, termos não teóricos e termos teóricos. Nessa constelação,
a autora localiza um ausente: o sintagma sujeito da/de enunciação. Ver mais em
Knack (2012), capítulo 3.

106
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Afirma Fiorin (Flores et al., 2009, p. 252) que é Ben-
veniste, de fato, quem serve de fundamento a Greimas para os
estudos discursivos da enunciação. E, como o objeto da Semiótica
é o texto, a enunciação é vista como “instância de mediação, que
assegura a discursivização da língua, que permite a passagem da
competência à performance [fases da estrutura narrativa], das
estruturas semióticas virtuais às estruturas realizadas sob a forma
de discurso.” (Fiorin, 1999, p. 170). Ou seja, o sujeito assume
os esquemas narrativos e os converte em discurso e, ao realizar
essa conversão, projeta no enunciado suas escolhas, as quais
implicam pessoa, tempo e espaço, que remetem à enunciação.
Fiorin (1999, p. 169) explica que Greimas e Courtés,
“com base nos estudos precursores de Benveniste e Jakobson,
esboçaram o que deveria ser um estudo semiótico das categorias
da enunciação.” A incorporação dessas categorias à Semiótica
deu-se por meio da criação de duas operações, cujos termos
Greimas tomou por empréstimo do conceito de shifter (embre-
ante) desenvolvido por Jakobson: a embreagem e a debreagem.
Esses mecanismos, segundo o autor, dão conta da instauração
de pessoa, tempo e espaço no enunciado47.
A partir desses exemplos, podemos perceber que tanto a
perspectiva desenvolvida por Greimas e Courtés quanto a desen-
volvida por Koch acabam por encontrar em Benveniste elementos
que subsidiam diretamente o trabalho que desenvolvem acerca
do texto. Mesmo que Benveniste esteja presente, implícita ou
explicitamente, nas reflexões propostas por essas perspectivas
47
A debreagem pode ser de dois tipos: enunciativa e enunciva. “A primeira é aquela
em que se instalam no enunciado os actantes da enunciação (eu/tu), o espaço da
enunciação (aqui) e o tempo da enunciação (agora)”; já a segunda “é aquela em que
se instauram no enunciado os actantes do enunciado (ele), o espaço do enunciado
(algures) e o tempo do enunciado (então)” (FIORIN, 1999, p. 172, grifos do autor).
Essas duas operações criam, segundo o autor, dois grandes efeitos de sentido: o
de subjetividade e o de objetividade. Já a operação de embreagem, ao contrário
da debreagem, “que é a expulsão fora da instância de enunciação da pessoa, do
espaço e do tempo do enunciado”, consiste num “‘efeito de retorno’ à enunciação,
produzido pela neutralização das categorias de pessoa e/ou tempo e/ou espaço”.
(FIORIN, 1999, p. 173).

107
Carolina Knack | A teoria enunciativa de Émile Benveniste e o estudo do texto...
teóricas, o potencial de sua teoria enunciativa não é explorado,
pois são tomadas de empréstimo somente algumas categorias sem
a consideração do constructo teórico na qual estão fundamentadas.
Além disso, nos exemplos examinados, o texto parece ser
concebido predominantemente como um fenômeno geral, ou seja,
mesmo que se busque dar conta, eventualmente, das especificida-
des do texto falado e do texto escrito, não são discutidas categorias
específicas de análise no interior de cada modalidade – embora a
Linguística do Texto (aqui representada pelos estudos de Koch)
tenha reunido esforços para dar conta do texto em suas moda-
lidades falada e escrita, vinculando-se, sobretudo nos últimos
anos, à Análise da Conversação para dar conta da oralidade48.
No entanto, parece-nos que é o texto escrito, de modo geral,
que tem recebido maior espaço no campo dos estudos textuais.
Além das teorias do texto e do discurso já citadas, destaca-
mos como exemplo também a Análise do Discurso (AD) de linha
francesa, cuja relação com os estudos benvenistianos é um pouco
diferenciada das verificadas até então. Segundo nossa consulta
às referências bibliográficas de disciplinas voltadas ao texto49, a
teórica mais citada no contexto da Linguística brasileira é Eni
Puccinelli Orlandi. Essa autora, referência em AD no Brasil,
desenvolveu uma perspectiva de estudo da linguagem seguindo
os escritos fundadores de Michel Pêcheux. A prática de análise
discursiva desenvolvida por Orlandi considera, na esteira das
concepções peucheutianas, a relação da Análise do Discurso com
48
Citamos como exemplo dessa interface entre a linguística do texto e a análise
da conversação duas obras: uma data de 1999 e intitula-se Oralidade e escrita:
perspectivas para o ensino de língua materna, tendo como autores Leonor Lopes
Fávero – especialista em Linguística Textual –, Maria Lúcia C. V. O Andrade e Zilda
G.O Aquino – voltadas para os estudos de língua falada –, com o tratamento da
interface oralidade e escrita por meio da exploração de textos; a outra obra é mais
recente, data de 2010, e intitula-se Linguística de texto e análise da conversação:
panorama das pesquisas no Brasil – esta é organizada por Anna Christina Bentes
e Marli Quadros Leite e reúne artigos de diferentes pesquisadores, enfatizando o
diálogo entre o campo dos estudos do texto e o da análise da conversação.
49
Cf. seção O texto: um fato enunciativo de linguagem, deste artigo.

108
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
a Linguística, com o Marxismo e com a Psicanálise. A articulação
de saberes de diferentes domínios está diretamente relacionada
com os propósitos da disciplina, a qual, segundo Orlandi (2007),
busca compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho
simbólico constitutivo do homem e da sua história.

Partindo da ideia de que a materialidade específica da ideologia


é o discurso e a materialidade específica do discurso é a língua,
[a Análise do Discurso] trabalha a relação língua-discurso-
-ideologia. Essa relação se complementa com o fato de que, como
diz M. Pêcheux (1975), não há discurso sem sujeito e não há
sujeito sem ideologia: o indivíduo é interpelado em sujeito pela
ideologia e é assim que a língua faz sentido (Orlandi, 2007,
p. 17).

Logo, o discurso é o espaço privilegiado para observar


essas relações entre língua e ideologia e, consequentemente,
para compreender “como a língua produz sentidos por/para
sujeitos” (Orlandi, 2007, p. 17). E é justamente em torno
da questão do sujeito que a autora faz referência à Enunciação,
mas para tecer críticas aos estudos enunciativos benvenistianos.
Afirma Orlandi que o sujeito da Teoria da Enunciação é um
sujeito origem de si, ao passo que o da Análise do Discurso é
um sujeito linguístico-histórico, constituído pelo esquecimento e
pela ideologia. A leitura peculiar que a autora realizou da teoria
enunciativa benvenistiana e, especialmente, suas críticas à con-
cepção de sujeito (Orlandi, 2006, p. 106-108) são retomadas
detidamente por Cremonese (2007, p. 83-86), que conclui que tal
leitura acabou por interferir na recepção da teoria benvenistiana
no Brasil, gerando, inclusive, um apagamento da Linguística da
Enunciação no país.
A despeito dessas críticas, Orlandi (2006, p. 13) afirma que
“a AD tem relações importantes com a Pragmática, a Enunciação
109
Carolina Knack | A teoria enunciativa de Émile Benveniste e o estudo do texto...
e a Argumentação, mas inclui, nessas relações, a consideração
necessária do ideológico, ao asseverar que não há discurso sem
sujeito nem sujeito sem ideologia”.
Uma dessas relações com a Teoria da Enunciação dá-se
quando das tipologias de discursos propostas por Orlandi. Se-
gundo a autora, o funcionamento discursivo está atravessado
e é sobredeterminado por uma tipologia, a qual é considerada
em dimensões histórica e social e incorpora as condições de
produção dos discursos. A autora propõe a distinção entre três
tipos de discurso: lúdico, polêmico e autoritário. Tal distinção,
conforme ela, “deriva de considerações sobre a enunciação, ou seja,
da interação entre locutor e ouvinte, sua relação com o objeto de
discurso e, através dele, com o mundo” (Orlandi, 2006, p. 131,
grifo nosso). A autora enfatiza que parte do conceito de intersub-
jetividade, mas para dele se afastar. Segundo ela, a proposta de
Benveniste privilegia o falante em detrimento do ouvinte; Orlandi
também afirma tratar simultaneamente do falante e do ouvinte no
processo de interlocução. Um dos critérios que Orlandi utiliza
para o reconhecimento dos tipos é a noção de reversibilidade,
elaborada por Benveniste em Estrutura das relações de pessoa no
verbo (Benveniste, 1946/2005).

Segundo Benveniste (1976), “a polaridade das pessoas é na


linguagem a condição fundamental ...”; mais adiante ele diz que
“essa polaridade não significa igualdade nem simetria: ego tem
sempre uma posição de transcendência quanto a tu; apesar disso
nem um dos dois termos se concebe sem o outro”. A partir daí
este autor desenvolve uma análise que, considerando a apropria-
ção da língua pelo sujeito falante, destaca as formas linguísticas que
revelam a subjetividade na linguagem, que organizam as relações
espaciais e temporais em torno do “sujeito tomado como ponto
de referência”. Mas como “nenhum dos dois termos se concebe
sem o outro”, o que propomos é que se considere o outro polo, o do
ouvinte, e se procure suas marcas, as formas linguísticas que revelem
110
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
o seu papel (Orlandi, 2006, p. 34, grifo sublinhado da autora,
grifo em itálico nosso).

Não nos cabe, neste momento, avaliar a leitura realizada


pela autora, apenas apontar que a teoria enunciativa benvenistiana
fornece-lhe subsídios para propor as tipologias. É o critério da
reversibilidade que, afinal, “determina a dinâmica da interlocução:
segundo o grau de reversibilidade haverá uma maior ou menor
troca de papéis entre locutor e ouvinte no discurso” (Orlandi,
2006, p. 154). Mas a autora também enfatiza: “mais do que na
enunciação, a tipologia que proponho tem base na relação da
formação discursiva com a ideológica” (Orlandi, 2006, p. 131).

Questões e repercussões da presença


de Benveniste na Linguística brasileira
Assim, através desses poucos exemplos relativos a perspec-
tivas teóricas textuais, semióticas e discursivas que incorporam
concepções enunciativas a seus aparatos ou realizam leituras
peculiares acerca dessas concepções, buscamos demonstrar que
a presença da teoria enunciativa de Émile Benveniste, no Brasil,
é mediada por disciplinas que não especificamente enunciativas.
Compartilhamos com Flores et al. (2009) que essa constatação
não encerra uma crítica – como os autores bem ressaltam. Esse
fato é aqui retomado com o objetivo de demonstrar que essa
mediação, além de determinar o entendimento de muitos dos
termos do campo – haja vista a variação, por exemplo, na con-
cepção de termos como enunciação e enunciado –, parece também
ter determinado a não elaboração de uma proposta de estudo
voltada ao texto circunscrita à teoria benvenistiana.
Flores et al. (2008) destacam que, de uma forma geral, os
autores viam em Benveniste a possibilidade de abordar aspectos
111
Carolina Knack | A teoria enunciativa de Émile Benveniste e o estudo do texto...
relativos à subjetividade na linguagem e, assim, a partir dos anos
70, numerosos trabalhos passaram a recorrer basicamente a textos
clássicos do linguista, que discutiam essencialmente os pronomes
e os verbos. Uma vez incorporados tais aspectos a outras pers-
pectivas de estudo da linguagem, a teoria de Benveniste passou
a ser tratada “ou como uma fase, ultrapassada, da história dos
estudos linguísticos, ou como exemplo de concepção de sujeito a
ser rechaçada” (Flores et al., 2008, p. 10) – para os que enten-
diam a subjetividade como psicológica, solipsista e egocêntrica.
As demais perspectivas de estudo da linguagem, sobretudo as
que incorporaram pressupostos enunciativos, pareciam então dar
conta do estudo do texto, de modo geral, inclusive contemplando
aspectos da ordem da subjetividade – fatos que, em nosso ponto
de vista, parecem também ter contribuído para a não elaboração
de propostas de estudo do texto circunscritas ao arcabouço teórico
da Enunciação benvenistiana.
Entretanto, pensamos ser possível incorporar, em uma
relação de complementaridade com as já existentes abordagens
textuais, outra que contemple o texto pelo viés da Enunciação
benvenistiana50, isenta dos empréstimos de categorias de outras
perspectivas de estudo do texto. Se a Teoria da Enunciação ben-
venistiana, tal como vimos nos exemplos citados anteriormente,
fornece elementos que subsidiam a prática de estudo, análise e
interpretação de textos falados e escritos – visto que outras teorias
a ela recorrem para dar conta, sobretudo, de aspectos concernen-
tes a sujeito, tempo e espaço –, entendemos que há possibilidade
de desenvolver-se tal proposição de estudo no interior da própria
teoria de Émile Benveniste.
Vimos, no terceiro item deste artigo, que Benveniste desen-
volveu reflexões linguísticas stricto sensu – que incluem os estudos
comparatistas e as referências a Saussure –, além da reflexão
50
As linhas gerais dessa proposta são apontadas na seção final deste artigo.

112
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
sobre a enunciação. Além dessas perspectivas de pensamento,
Flores et al. (2009) destacam que há, também, em Benveniste,
uma terceira perspectiva: trata-se de

um fazer interdisciplinar das ciências do homem em que a


linguagem tem papel fundamental. É o diálogo teórico posto em
prática. Talvez por esse prisma possamos afirmar que Benveniste
produz em um terreno limítrofe que lhe permite falar, em uma
interdisciplinaridade, de filosofia, antropologia, sociologia, psi-
canálise, cultura etc. (Flores et al., 2009, p. 244).

Flores e Teixeira (2011, p. 420) apontam que uma prova


concreta desse caráter multiforme do pensamento de Benveniste
é “o fato de ele ter sido chamado a falar para públicos diferentes,
o que lhe rendeu a publicação de artigos em revistas dos campos
da psicologia, antropologia, psicanálise, sociologia, filosofia,
linguística.” Com efeito, esse fazer interdisciplinar, presente no
seio das próprias reflexões de Benveniste, permite que nós, seus
leitores, coloquemos sua teoria em relação de diálogo com outros
campos – em nosso caso, com o dos estudos do texto.
Em Introdução à Linguística da Enunciação (2005), Flores e
Teixeira mapeiam algumas das interlocuções dos estudos enun-
ciativos com outras áreas e citam como principais as intersecções
da enunciação com: a Literatura, a Filosofia, a Psicanálise, a
Análise de Discurso, a Patologia da Linguagem, a descrição
linguística, linguagem e trabalho e, por fim, texto. Destacamos
que as interfaces identificadas pelos autores dão-se a partir de
estudos de diversos teóricos da Linguística da Enunciação, dentre
eles Benveniste. A interface que aqui nos interessa diz respeito
à enunciação e texto e, quanto a esta, enfatizamos que Flores e
Teixeira (2005, p. 93) pontuam a existência de “trabalhos que
buscam encontrar na semântica argumentativa, tal como foi
desenvolvida por Oswald Ducrot e sua equipe, elementos para
113
Carolina Knack | A teoria enunciativa de Émile Benveniste e o estudo do texto...
pensar a construção do sentido no enunciado a partir de sua
inserção no texto.” Portanto, a interlocução identificada pelos
autores, quando da época de publicação de seu livro, diz respeito
a texto e à Teoria da Argumentação na Língua desenvolvida por
Ducrot e colaboradores.
Logo, a não identificação da interface da área de texto com
a Teoria da Enunciação benvenistiana – conforme mapeamento
realizado por Flores e Teixeira (2005) –, assim como a quase
ausência da referência a Émile Benveniste na bibliografia de
disciplinas voltadas ao texto –, conforme nossa pesquisa aos
currículos, brevemente retomada na segunda seção deste artigo,
permitiu demonstrar – apontam para uma falta, a qual nos move
no desafio de explorar a interface da teoria benvenistiana com os
estudos do texto, propondo um olhar enunciativo para esse objeto.
A constatação dessa falta é corroborada pelo diagnóstico
apresentado por Mello (2012) no primeiro capítulo de sua tese:
a autora investiga a presença de Benveniste em obras (artigos
e livros) publicadas no Brasil, no período de 1998 a 2011, e
constata que Benveniste comparece de forma “tímida”, “pouco
expressiva” na área de estudos do texto e do discurso, sendo
que não há nenhum trabalho nessa área alicerçado unicamente
em sua teoria.
De fato, vimos que os estudos enunciativos desenvolveram-
-se, no Brasil, via outras disciplinas do estudo da linguagem,
identificando-se ora às perspectivas textuais, semióticas, discur-
sivas, ora à pragmática; discutimos que o texto, nosso foco nesta
pesquisa, recebe especial atenção por parte de teorias, como a
Linguística Textual, a Análise do Discurso de linha francesa e a
semiótica francesa, por exemplo, as quais têm desenvolvido, ao
longo dos tempos, aparatos teórico-metodológicos que buscam
dar conta da análise dos diversos aspectos que estruturam esse
objeto. Essa breve incursão pelas perspectivas textuais e discur-
sivas também permitiu constatar a quase ausência do tratamento
114
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
do texto falado nesse âmbito: o foco parece estar mais voltado
para o texto como um fenômeno geral de produção de sentidos
ou, quando tratado em sua especificidade, é a modalidade escrita
que recebe mais espaço.
Ao contrário dessas perspectivas, cujos interesses de alguma
forma repousam no texto, a Teoria da Enunciação benvenistiana
não visa a teorizar especificamente sobre texto, de modo que, ao
abordá-lo, o analista deve operar um deslocamento dos conceitos
teóricos, bem como elaborar um aparato metodológico específico
para a análise textual. O campo de estudos em torno da teoria
enunciativa benvenistiana e seu deslocamento para o campo dos
estudos do texto ainda carece de uma sistematização – motivo
pelo qual desenvolvemos esta pesquisa.
Em nosso entendimento, a interface da Enunciação com os
estudos do texto e os necessários deslocamentos teóricos para tanto
se tornam possíveis na medida em que não há, em Benveniste,
um modelo ou um “método nítido de análise” linguística – “ao
menos não nos moldes que a Linguística comumente entende a
palavra modelo”, conforme destacam Flores et al. (2008, p. 30) –,
o que permite que novas leituras sempre sejam feitas. Os autores
afirmam que, como não há esse modelo ao qual se possa recorrer
como “instância de validação de leituras, é sempre de uma inter-
pretação que se está a falar.” Assim, os textos de Benveniste, cujas
características de escritura buscamos mapear na segunda seção
deste artigo, fornecem ao leitor possibilidades de interpretação
com certa liberdade e isso, segundo os autores, configura, de
certa forma, um ponto positivo, mas também um ponto negativo,
na medida em que a obra “tem sido alvo de leituras que, muitas
vezes, estão em diametral oposição aos princípios teóricos do
autor” (Flores et al., 2008, p. 31). A despeito dessas leituras,
os PLG I e II mantêm-se como “fonte inesgotável de inspiração
teórica” (Flores et al., 2008, p. 30).
115
Carolina Knack | A teoria enunciativa de Émile Benveniste e o estudo do texto...
De fato, são os artigos integrantes dos Problemas que nos
inspiram e nos fazem vislumbrar possibilidades de deslocamen-
tos teóricos para o tratamento do texto. Isso porque, conforme
procuramos mostrar em Knack (2012), não há em Benveniste
uma preocupação com a teorização acerca da categoria texto;
inclusive vimos que o linguista tampouco postula explicitamente
um modelo de análise de língua em uso – o que temos, em sua
obra, dentre outros aspectos, são reflexões acerca da presença do
homem na língua, a partir das quais se delinearam as bases de
um modelo de análise de língua voltado à enunciação, isto é, às
marcas do homem na língua posta em uso – o que se convencio-
nou chamar de “Teoria da Enunciação” (Flores, 2008). Nossa
leitura trata-se, portanto, de uma leitura possível, ancorada nas
próprias pistas calcadas por Benveniste.

Considerações finais
As reflexões propostas neste artigo, tal como referido na
introdução, inserem-se em uma pesquisa mais ampla, que, de
modo geral, vem responder ao anseio de compreender como o
texto, seja falado seja escrito, pode ser analisado pelo viés da Teoria
da Enunciação de Émile Benveniste; e, em decorrência desse
questionamento, apresentar possibilidades teórico-metodológicas
para a abordagem desse objeto, de forma a fornecer subsídios
para o trabalho com o texto falado e escrito em contexto de en-
sino. Esse é o objetivo maior de nossa pesquisa e para o qual o
presente texto contribui na medida em que examina a instauração
de um campo de saber e suas possibilidades de interlocução com
outro(s) campo(s).
Ao retomar os primeiros movimentos argumentativos da pes-
quisa desenvolvida para a elaboração da dissertação de mestrado
da autora (Knack, 2012), este artigo busca investigar a possibili-
dade de um estudo textual-enunciativo a partir da problemati-
116
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
zação do potencial da teoria benvenistiana para tanto. As leituras
realizadas de fato apontam para a multiplicidade e a riqueza das
reflexões de Émile Benveniste, desvelando possibilidades de
deslocamento, para o campo do texto, de noções propostas pelo
linguista acerca da Enunciação. Exemplos dessas possibilidades
de deslocamento são algumas leituras, apropriações e empréstimos
de conceitos enunciativos efetuados por outras linhas teóricas,
como a Linguística Textual, a Semiótica, a Análise do Discurso.
Nesse âmbito, defendemos que a Teoria da Enunciação
benvenistiana estabelece uma relação de complementaridade com as
demais teorias do texto e do discurso. As perspectivas teóricas que
permitem estudar o texto não se opõem; pelo contrário, justamente
por proporem pontos de vista particulares para objetos também
particulares articulam saberes que, então, complementam-se.
Assim, damos continuidade à pesquisa, justapondo aos
olhares já existentes um outro olhar enunciativo para o texto.
Tomando-se a perspectiva enunciativa benvenistiana como pauta
para o tratamento do texto, alguns efeitos são produzidos nesse
campo de estudos, na medida em que essa teoria permite olhar
o texto para além de um produto: sob a enunciação, o texto passa
a ser mais que um produto acabado, no qual simplesmente se
buscam identificar marcas formais que denotem um sentido ali
construído; o texto, sem que se despreze sua condição de produto
da enunciação – como tal, manifesta as escolhas linguísticas que o
locutor opera na sua relação enunciativa com a língua –, pode ser
entendido também como um processo enunciativo de apropriação
e de atualização da língua pelo locutor e, como processo, o texto
está em constante (re)constituição.
Tratar de enunciação é tratar da presença do homem na
língua, logo, tratar de texto sob tal perspectiva implica considerar
os efeitos advindos dessa presença, posto que o sujeito relaciona-
-se com outros sujeitos – inter-relação permitida e suscitada pela
própria língua, como diz Normand (2009a) –, para constituir
117
Carolina Knack | A teoria enunciativa de Émile Benveniste e o estudo do texto...
sentidos e referências e, assim, viver. Logo, todo texto encerra
a singularidade que essas relações (inter)subjetivas instauram;
estudá-lo requer trazer à luz esse processo único em que cada
locutor, a cada vez que coloca a língua em funcionamento por
um ato individual de utilização, entrelaça pessoa (eu-tu), tempo
(agora) e espaço (aqui) às demais formas da língua para produzir
sentidos e referências, agenciando-os e atualizando-os na instância
textual, seja falada, seja escrita.51
Pretendemos, com a proposta de abordagem de textos
falados e textos escritos pelo viés da Teoria da Enunciação de
Émile Benveniste, contribuir com mais uma ferramenta para
auxiliar os professores de língua portuguesa em sua lida diária
em sala de aula.
No início deste capítulo, ao tratarmos das características
da escrita de Benveniste, pontuamos que Barthes afirmara que
Benveniste possuía algo exorbitante para um erudito: o implícito.
Nesse momento, é oportuno trazermos o questionamento de
Ono (2007, p. 16, tradução nossa), do qual compartilhamos e
tomamos como lema de trabalho: “temos suficientemente lido,
e relido, Benveniste de modo que esse implícito venha à tona,
mostrando um novo horizonte [?]”.
O presente texto resume os primeiros passos de uma pes-
quisa que, acima de tudo, trata-se de um trabalho em que,
incessantemente, lemos e relemos Benveniste, na esperança de
desvendar esses possíveis implícitos que, talvez, revelassem-nos
os horizontes de uma perspectiva enunciativa para o estudo do
texto. Ao passo que o trabalho de Ono (2007, p. 18, tradução
nossa) ambicionou “descobrir as potencialidades dos escritos de
Benveniste em matéria de enunciação”, o nosso almeja descobrir
as potencialidades dos escritos benvenistianos em matéria de texto.

51
Para ver detalhadamente a proposta de abordagem de textos falados e escritos
desenvolvida a partir da teoria enunciativa benvenistiana, consultar Knack (2012).

118
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
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120
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Capítulo
V

Linguística da
enunciação e ensino:
categorias analíticas para
a avaliação de relatórios de
estágio supervisionado em
língua portuguesa

Silvana Silva52

Avaliar é, desde sempre, uma das tarefas mais árduas do


campo da Educação. Para agravar ainda mais esse quadro, não
encontramos documentos que estabeleçam parâmetros de avalia-
ção para os discentes em conclusão do curso superior, em nosso
caso, parâmetros gerais para avaliar o aluno durante a realização
dos estágios supervisionados obrigatórios às licenciaturas53. Cum-

52
Professora assistente da área de língua portuguesa da Universidade Federal do Pampa
(UNIPAMPA); doutoranda em Estudos da Linguagem, sob a orientação do Prof. Dr.
Valdir Flores, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); participante
do Grupo de Pesquisa Estudos em Linguagem e Currículo (GELC), liderado pelas
professoras Valesca Brasil Irala e Clara Dornelles, na Universidade Federal do Pampa.
53
O SINAES/2003 (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior) visa à
avaliação das instituições federais cuja principal política é a aplicação do ENC

121
Silvana Silva | Linguística da enunciação e ensino: categorias analíticas para a avaliação...
pre a nós, portanto, pensá-los a partir de pesquisas situadas em
âmbitos regionais (Dornelles, 2012 e outras). A questão que
nos move é a seguinte: Como estabelecer critérios para avaliar a
conversão do aluno-estagiário em professor? Dada a ausência de
critérios gerais, valemo-nos de princípios de ordem linguística
para responder a tal questão. Tais princípios serão elaborados a
partir da contribuição da Linguística da Enunciação, em especial
o aspecto operacional da Enunciação (Ono, 2007). Por ora,
apresentaremos uma revisão bibliográfica de alguns trabalhos
sobre estágio supervisionado em ensino de línguas, procurando
entrever neles critérios de avaliação (Dornelles, 2012 e outros).

O professor em formação: avaliando


análises de relatórios de estágio
Silva (2012), organizador da obra Letramento do professor
em formação inicial: interdisciplinaridade no Estágio Supervisionado
da Licenciatura, mostra-nos onze pesquisas sobre as narrativas
escritas dos estagiários de diversos cursos de licenciatura (letras
- língua portuguesa; letras - literatura; letras - língua inglesa,
matemática, história e geografia) em universidades de diversos
estados do Brasil (Tocantins, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso,
Rio Grande do Sul). Dentre esses trabalhos, interessa-nos mais
detidamente aqueles em que entrevemos critérios de avaliação
do supervisor de estágio e que estejam mais voltados para a área
(Exame Nacional de Cursos). Verifique-se mais detalhes em: <http://portal.mec.gov.
br/arquivos/pdf/sinaes.pdf>. O ENADE (Exame Nacional de Desempenho dos Estu-
dantes), que integra o SINAES, tem o objetivo de aferir o rendimento dos alunos dos
cursos de graduação em relação aos conteúdos programáticos, suas habilidades e
competências. Em um exame do ENADE/LETRAS (2011), não constatamos a presença
de nenhuma questão que versasse sobre a experiência do estágio supervisionado
em língua portuguesa. Em linhas gerais, as questões centram-se em aspectos gerais
de didática, teorias linguísticas e teorias literárias, isto é, o ENADE parece avaliar
o licenciando apenas em sua formação dos primeiros 3 anos do Curso de Letras.
Mais detalhes, pode-se consultar as provas em: <http://portal.inep.gov.br/web/guest/
provas-e-gabaritos-2011>.

122
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
de linguagem/ensino de língua(s). Selecionamos, então, três
artigos: Dornelles (2012); Gonçalves e Ferraz (2012) e Brito
(2012), que serão apresentados de forma a que se tente responder
à seguinte questão: a) como distinguir experiências de estágio
bem e mal-sucedidas? b) que critérios de avaliação subjazem a
esta distinção?

No capítulo “Desafios da didatização da escrita e da gra-


mática no estágio supervisionado em língua materna”, de Clara
Dornelles, pretende-se investigar o modo como uma estagiária de
língua portuguesa, na Universidade Federal do Pampa (Unipam-
pa), didatiza a escrita e a gramática em aulas do 9º ano do ensino
fundamental. Conclui a autora, também supervisora de estágio,
que “os resultados indicam que a maior dificuldade enfrentada
pela aluna foi de ordem metodológica e ocorreu no momento de
orientação dos alunos para a reescrita ” (2012, p. 79). Observa,
ainda, que a estagiária reproduziu algumas formas tradicionais de
ensino de escrita, tais como o recurso do sublinhado nos textos,
e também tentou algumas novas formas de ensino de gramática
e escrita, tais como valorização dos debates orais previamente às
atividades de escrita e percepção de que o conteúdo gramatical
estava sendo aprendido paulatinamente nas atividades de escrita e
não somente nas atividades de análise linguística. Uma citação é
importante, pois indica claramente, para nós, o método de leitura
de Dorneles do relatório de estágio da aluna:

Encontramos, no relatório da estagiária, alguns “sinais” que


demonstram que ela apreende a complexidade da escola; por
exemplo, após as aulas de observação que precederam a regência,
percebeu que muito do que planejara, “em teorias”, precisaria ser
“modif´pç icado e adequado às novas realidades” (p. 5) Essas
novas realidades se referem ao (re)conhecimento da sua turma
e das dinâmicas desse universo escolar específico: os alunos têm
123
Silvana Silva | Linguística da enunciação e ensino: categorias analíticas para a avaliação...
diferentes níveis de maturidade, interessam-se por diferentes
temas típicos da faixa etária; gostam de falar em situações espon-
tâneas; estão acostumados com práticas e objetos tradicionais de
ensino na aula de Língua Portuguesa; sua maior dificuldade na
escrita é começar a escrever; têm dificuldade na leitura de textos
longos; a leitura de textos com temáticas sociais pode suscitar a
emergência de situações delicadas em sala de aula; [...] Reco-
nhecendo esta complexidade da escola/sala de aula, a estagiária
reconhece também que há outros elementos estruturantes da
prática de ensino além da competência técnica” (Dornelles,
2012, p. 69, grifos nossos).

Assim, para Dornelles (2012), além do par conceitual


tradição/inovação metodológicas, o par conceitual tecnicidade/
complexidade da realidade escolar influenciam sua avaliação do
desempenho da estagiária. Logo, se o estagiário, durante sua
prática, procurou mais inovar do que reproduzir e mais lidar
com a complexidade do que se ater a técnicas, então está apto a
ser aprovado no estágio. Observamos, ainda, que a capacidade
de reconhecimento e (re)conhecimento de “sinais” por parte do es-
tagiário da realidade escolar bem como de reconhecimento e (re)
conhecimento de sinais do supervisor no relatório de estágio são
características que conduzem positivamente à reflexão avaliativa
da prática do estágio. No entanto, não percebemos no texto de
Dornelles (2012) critérios linguísticos para o que chama de sinais.
No capítulo “Teoria acadêmica e prática profissional na
licenciatura em letras”, de Adair Vieira Gonçalves e Mariolinda
Romera Ferraz, é analisada a relação entre o Estágio supervisio-
nado e a grade do currículo do curso de Letras da Universidade
Federal da Grande Dourados (UFGD). Constata-se, então,
que o ensino é muito pouco abordado na grade teórico-prática
do curso. A seguir, analisa relatórios de estágio. Para analisar os
relatórios, o autor parte do referencial teórico do sociointeracio-
nismo postulado por Bronckart (2006). As categorias analíticas
124
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
fundamentais do relatório são as seguintes: “1) autor: pessoa
física – aluno mestre da licenciatura em letras; 2) enunciador:
pessoa social – aluno-mestre concludente da licenciatura em
letras/professor em formação inicial; 3) destinatário: pessoa
física – formador responsável pela disciplina de estágio super-
visionado; 4) interlocutor: pessoa social – formador responsável
pelo estágio supervisionado; 5) objetivo do texto: relatar ações
desenvolvidas durante o estágio de observação e de regência, na
educação básica. Comprovar o cumprimento do regulamento
do estágio para obtenção do título de licenciado em letras. 6)
circulação: esfera acadêmica; 7) conteúdo temático: exposição
de aspectos teórico-metodológicos do estágio.” Observamos,
então, que Gonçalvez e Ferraz são mais objetivos que Dornelles
(2012) no reconhecimento de sinais que conduzem à avaliação do
trabalho estagiário. A seguir, os autores analisam uma atividade
de transposição didática em três relatórios de estágio. Vejamos
a forma como os autores analisam duas atividades práticas de
um dos relatórios:

Encontramos a seguinte situação no relatório de estágio.


Hoje explicamos para eles o que são “tipos e gêneros textuais”,
e trouxemos de exemplos um texto informativo. Foi explicado o
que é um acróstico e pedimos para ele produzir um com a Copa
do Mundo com Exemplo (relatório 1)

Entendemos que o conhecimento da distinção entre tipos e


gêneros textuais nem sempre seja um conteúdo necessário ao
aluno da educação básica. A nosso ver, enfatizar essa diferença
é, na verdade, a manutenção de um ensino tradicional em que
conceitos são mais importantes que o uso em si.
Outra situação destacada no Relatório 1 foi o trabalho realizado
com o gênero Charge. Apresentamos o relato:

125
Silvana Silva | Linguística da enunciação e ensino: categorias analíticas para a avaliação...
Hoje trabalhamos com o gênero Charge, explicamos o que é, o
que aborda e para fazer interpretação de uma. Depois para des-
contrair, trouxemos uma Cruzadinha sobre a Copa do Mundo
(Relatório 1)
Do relato depreende-se que as atividades realizadas com o gênero
Charge enfatizam o contexto de produção. Elas desenvolvem a
capacidade de ação dos alunos; estes passam a ter domínio de
situações comunicativas em que a charge se torna um gênero
producente: contexto de crítica, de sátira, relativas a situações
sociopolíticas; por exemplo, as quais, para produzirem efeito,
precisam estar no conhecimento prévio do leitor. Logo, pen-
samos, uma atividade adequada após a leitura de uma charge
seria a produção de um texto do gênero argumentativo (artigo
de opinião, carta argumentativa, por exemplo), em que o aluno
pudesse expor sua opinião sobre o tema da charge. Todavia, os
alunos-mestre utilizaram, em seguida, uma cruzadinha, gênero
que, potencialmente, não contribui para a reflexão/argumentação
provocada pelo primeiro gênero. Portanto, revela-se, na transpo-
sição didática, uma deficiência no entendimento dos objetivos do
gênero bem como do trabalho nessa perspectiva (Gonçalvez e
Ferraz, 2012, p. 124-5).

Percebemos que, na avaliação do trabalho discente, além do


par conceitual tradição/inovação metodológicas, também presentes
em Dornelles (2012), encontramos o par coerência/incoerência entre
proposta e desenvolvimento da atividade bem como atendimento
ou não atendimento das expectativas do supervisor/destinatário do
estágio. Entendemos que este último par é de ordem eminente-
mente enunciativa, uma vez que enfatiza a relação intersubjetiva
entre os interlocutores. É importante lembrar que a dimensão
enunciativa é englobada já na própria teorização de Bronckart.
Essa dimensão nos encoraja a buscar a proposição de critérios
de ordem enunciativa para a avaliação de estágios supervisiona-
dos em língua portuguesa. A pergunta que de imediato surge
é a seguinte: como se organizou esta relação de orientação? O
126
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
supervisor estabeleceu critérios claros antes da prática de ensino
propriamente dita ou esperou que o aluno já os tivesse em sua
caminhada teórico-metodológica como aluno do Curso de Letras?
Concluem Gonçalves e Ferraz que: “há absorção da teoria de
gêneros textuais e dos documentos oficiais nos relatórios. Entre-
tanto, é frágil a transposição didática” (2012, p. 135).
No capítulo “Diários reflexivos de professores de língua
inglesa em formação inicial: o outro que (me) confessa”, de Cris-
tiane de Paula Brito, são colocadas as seguintes questões: “que
dizeres/saberes vêm à tona no discurso dos estagiários? Como os
estagiários concebem o ensino/aprendizagem de língua estrangei-
ra? Qual é a imagem de língua e professor de língua estrangeira
construída pelo sujeito professor de línguas em formação inicial,
ao tomar a palavra para refletir sobre sua própria experiência de
regência?” (2012, p. 139). Baseando-se em teóricos da Análise
do Discurso, tais como Pêcheux e Orlandi, investiga a memória
discursiva que sustenta a tomada de posição do discurso. Toma
como corpus 87 diários reflexivos de estágio supervisionado em
língua inglesa, produzidos por 28 estagiários. Observa que, em
tais diários, o estagiário toma o outro como confidente, alguém
com que pode desabafar sentimentos de descobertas e decisões.
Nessa posição discursiva, o estagiário pode se eximir de respon-
sabilidades sobre a aula. Além disso, observa o apego excessivo dos
estagiários ao plano de aula, como lugar de completude. Vejamos
mais de perto a avaliação de um dos relatórios:

Meu gesto de leitura se delineia no sentido de pensar a repre-


sentação de interlocutor construída a partir da relação com o
imaginário acerca do que considera apropriado, em termos de
linguagem, em um diário reflexivo. Eis alguns recortes:

Então chegara o dia de dar aula sozinha... e ainda dar aula de


inglês! E para completar a professora avaliando. Com certeza
não é uma situação tão confortável né? Os slides ficarão tão
127
Silvana Silva | Linguística da enunciação e ensino: categorias analíticas para a avaliação...
lindos! Como uma boa teacher também pensei no homework!
rsrsrs (Diário 2)

Hoje darei minha primeira aula. Tudo certo com a preparação, a


unidade é fácil, os exercícios também. Preparei atividades extras
e para casa. Tecnicamente estou pronto exceto pelo fato de estar
super nervoso e ansioso com a situação. Acho que é por que fica
aquela preocupação de “será que vão gostar da aula?”, “cumpri os
objetivos e fui bem?” (diário 1)

O outro parece ser representado por alguém próximo, fami-


liar, com quem se teria intimidade suficiente para não usar uma
linguagem formal. Ocorre, portanto, o apagamento da imagem do
outro avaliador, que exerce poder sobre o professor em formação
inicial e o coloca numa situação não “tão confortável”, já que,
afinal, está ali para ensinar o que é ser uma boa teacher. Apaga-se
o outro avaliador e se projeta um outro “eu” do sujeito, como se
o professor estagiário falasse consigo mesmo (à semelhança dos
diários pessoais, por exemplo). Assim, o interlocutor é o outro
do eu (Brito, 2012, p. 146-7).
Observa-se que as categorias avaliativas são as seguintes:
dependência/autonomia do olhar do supervisor e formalidade/infor-
malidade do relatório de estágio. Assim, para Brito (2012), um
estágio bem-sucedido depende da constituição de um ponto de
vista ou posição discursiva por parte do estagiário de relativo
distanciamento em relação ao supervisor e à universidade ou,
de outra forma, pela constituição de um outro que não seja sim-
plesmente da ordem da confissão. E conclui:

as análises apontam a necessidade de instigar o professor em


formação inicial a tomar uma posição discursiva. [...] Não nego
que o diário possa ser espaço de confissão. Há de haver uma
confissão, mas trata-se daquela que (re)vela (a)o sujeito, que se
128
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
lhe escapa, que resvala no momento mesmo do acontecimento,
declarando que é sempre o outro que falta em mim (p. 162).

Constatamos ainda que, assim como no texto de Dornelles


(2012), Brito (2012) também não explicita objetivamente quais
foram os critérios discursivos utilizados para demarcar, delimitar
os diários reflexivos e propor sua análise.
A partir dessa revisãto da literatura, podemos elencar os
critérios de avaliação dos quais o supervisor pode se valer em
sua avaliação dos estagiários:
1) tradição/inovação metodológicas;
2) percepção técnica/complexa da realidade escolar;
3) coerência/incoerência entre proposta e desenvolvimento
da atividade;
4) atendimento ou não atendimento das expectativas do
supervisor/destinatário do estágio;
5) dependência/independência do olhar do supervisor;
6) formalidade/informalidade do relatório.

No item a seguir, a partir da Linguística da Enuncia-


ção, procuramos elaborar critérios de avaliação que incidam
diretamente sobre os relatórios de estágio, de forma a avaliar
objetivamente o trabalho do estagiário, isto é, o professor em
formação inicial.

A contribuição da Linguística da
Enunciação para a avaliação das
narrativas escritas de estagiários
A Linguística da Enunciação tem, entre outras possibili-
dades, no dizer de Flores e Teixeira (2005, p. 93), “a vocação
descritivista das teorias da enunciação, herdada de Saussure.”
129
Silvana Silva | Linguística da enunciação e ensino: categorias analíticas para a avaliação...
Ainda, a leitura de Ono (2007) da noção de enunciação em
Benveniste revela a fertilidade da teoria enunciativa elaborada
pelo autor, uma vez que é possível depreender cinco aspectos
dessa complexa noção teórica, quais sejam, aspecto vocal, aspecto
operacional da conversão da língua em discurso, aspecto dialógico,
aspecto da temporalidade, aspecto referencial. Para este trabalho,
é relevante explorar o aspecto operacional, isto é, a passagem
de critérios gerais, comuns aos estagiários (critérios de ordem
linguística, do semiótico), à discursivização de tais critérios nos
relatórios particulares de cada um dos professores em formação
inicial (critérios de ordem semântica).
Inicialmente, faremos uma leitura de dois artigos de Ben-
veniste, a saber, “A natureza dos pronomes” (PLG I), onde está
posta a noção de operacionalização da língua, por meio da noção
de dêixis ou indicador de subjetividade e o texto “Forma e sentido
na linguagem” (PLG II), onde estão explicitadas as relações
entre a ordem semiótica e a ordem semântica da língua. Em segui-
da, apresentaremos as definições de agenciamento, apropriação,
apresentadas no Dicionário de Linguística da Enunciação (2009),
as quais complementam o arcabouço teórico para a constituição
da metodologia de análise.
Em “A natureza dos pronomes”, Benveniste mostra que a
língua apresenta dois planos: a) o plano da sintaxe, que contempla
os signos nominais, referenciais, e o paradigma da terceira pessoa,
a chamada não-pessoa; b) o plano do discurso, que contempla
signos vazios, auto-referenciais. A esse segundo plano, pertencem
uma série de signos cuja realidade é algo de muito singular. Nas
palavras do autor, “Eu só pode se definir em termos de locução,
não em termos de objetos, como um signo nominal” (PLG I,
p. 278). Esta série de signos, que refere exclusiva e unicamente
à instância de discurso, é chamada de indicadores e inclui várias
classes, tais como pronomes pessoais, advérbios e locuções ad-
130
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
verbiais. O Dicionário de Linguística da Enunciação (2009) assim
define os indicadores de subjetividade:

Formas disponíveis na língua utilizadas para convertê-la em dis-


curso, cujo emprego remete à enunciação. Nota explicativa. Os
indicadores de subjetividade são formulados a partir da discussão
de dêixis, redefinida por Benveniste como contemporânea da
situação de discurso. Esses indicadores pertencem a várias classes
de palavras – pronomes, verbos, advérbios etc. – podendo ser
divididos, de acordo com a noção que expressam, em indicadores
de pessoa, tempo, lugar, objeto mostrado etc. Sua condição de
autorreferenciação deve-se ao fato de sua existência estar ligada
à tomada da palavra, cuja realidade é a realidade do discurso”
(Flores et al., 2009, p. 140).

Aresi (2011), em estudo sobre a noção de indicador na obra


benvenistiana, observa que há ampliação da concepção de indica-
dor de subjetividade, desde o texto “A natureza dos pronomes”
(1956), passando por “A forma e o sentido da linguagem” (1967),
e culminando em “O aparelho formal da enunciação” (1970). O
autor pergunta-se: a que se refere a ideia de índices específicos e
procedimentos acessórios da conversão da língua em discurso? Se
os índices específicos incluem as clássicas designações de locutor/
interlocutor, tempo e espaço, os procedimentos acesssórios incluem
todos os recursos da língua que passam pela atualização da língua
pelo locutor. Ele diz, ainda, que

É o todo da instância de discurso que está em jogo: o ato, com


referência aos interlocutores e à situação em que ele ocorreu, bem
como os caracteres formais do enunciado e seu agenciamento,
sua sintagmatização. Nesse todo estão incluídos todos os níveis
da análise linguística (entonação, escolha e formação lexical,
organização sintática etc.), o que revela o perfil radicalmente
transversal da enunciação em relação aos níveis da língua. Per-
ceber isso, portanto, é levar em conta não só os índices especí-
131
Silvana Silva | Linguística da enunciação e ensino: categorias analíticas para a avaliação...
ficos, mas também (e sobretudo) os procedimentos acessórios
da enunciação. É levando todos estes aspectos em consideração
na análise que podemos ver o sentido de cada ato enunciativo
(Aresi, 2011, p. 274-5).

Oferecendo uma resposta provisória para a questão inicial


deste item, qual seja, Como os estagiários singularizam suas escritas
dos relatórios de estágio convertendo-se em professores em formação
inicial ou como “banalizam” suas escritas permanecendo na condição
de “estagiários”?, é possível dizer que devemos localizar os índices
específicos de pessoa, tempo e lugar e os procedimentos específicos
de recursos sintáticos em cada ato enunciativo que constitui os
relatórios de estágio e reconhecer, nesse sistema de indicação, se
eles apontam tal escrita no sentido de um relatório autônomo,
coerente, formal, inovador ou no sentido de um relatório depen-
dente, incoerente, informal e tradicional, ou, ainda, na direção
da mescla de algumas dessas características.
Com o objetivo de esclarecer a delimitação de unidades de
análise e a relação entre indicação de subjetividade e domínio
de aplicação, apresentamos uma breve retomada do artigo “A
forma e o sentido na linguagem” (PLG II). Como Benvenis-
te percebe a noção de “forma”? Em “A forma e o sentido na
linguagem” (PLG II), o autor atribui um “duplo sentido” ao
termo (no sentido mais literal, de “duplo sentido”, qual seja, o
de indecibilidade de único posicionamento): a) forma no sistema
semiótico; b) forma no sistema semântico. Benveniste (1989, p.
221) inicia seu trabalho fazendo um alerta: “a presente exposi-
ção é um esboço para situar e organizar estas noções gêmeas de
sentido e forma, e para analisar suas funções fora de qualquer
pressuposto filosófico”. Para o autor, “forma e sentido são noções
gêmeas”, isto é, noções que nascem juntas mas que percorrem
caminhos diferentes.
132
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Em virtude da impossibilidade de enumerar, a priori, as
funções da linguagem, Benveniste parte da noção de signo.
Considerando a forma do signo, a saber, o significante, o autor
distingue dois planos: a análise fonêmica (significante) e a análise
semiótica (significante em relação ao significado). Sobre a análise
semiótica, atrelada ao plano do significado, basta dizer que a
língua está sujeita a análises da estrutura formal do significante.
Interessa-nos, sobretudo, o signo no plano do significado, “é no
uso da língua que um signo tem existência; o que não é usado
não é signo; e fora do uso o signo não existe. Não há estágio
intermediário; ou está na língua, ou está fora da língua” (PLG
II, 1989, p. 227). Logo, no sistema semiótico, é suficiente dizer
que a forma do signo está sujeita à análise de sua estrutura formal
e que o sentido do signo é determinado por sua existência ou
inexistência no uso feito ou ignorado pela comunidade falante.
Considerando que forma e sentido são noções gêmeas, Benveniste
parece nos informar que uma análise da estrutura formal só vale
a pena quando determinados signos são aceitos pela comunidade
falante. Em nosso caso específico, a relação interlocutiva entre
professor e aluno em situação de ensino de escrita, as palavras
ou signos utilizados pelo professor só valem a pena serem anali-
sados se estiverem sendo usados para estabelecer uma alocução
com os alunos.
Benveniste continua seu trabalho, afirmando que “há para a
língua duas formas de ser língua no sentido e na forma. Acaba-
mos de definir uma delas: a língua como semiótica; é necessário
justificar a segunda, que chamamos de língua como semântica”
(PLG II, p. 229). Essas duas formas indicam as “modalidades
fundamentais da função linguística, aquela de significar para a
semiótica, aquela de comunicar para a semântica” (PLGII, p.
229). Assim, embora seja impossível definir a priori as funções
da linguagem, é possível dizer que as duas modalidades funda-
mentais, significar e comunicar, são ambas imprescindíveis para
133
Silvana Silva | Linguística da enunciação e ensino: categorias analíticas para a avaliação...
o emprego da língua. Para o autor, é apenas no nível semântico
que se pode pensar a sociedade, pois “o funcionamento semântico
da língua permite a integração da sociedade e a adequação ao
mundo, e por consequência a normalização do pensamento e o
desenvolvimento da consciência” (PLG II, p. 229). Logo, se é
no âmbito da semiótica que a indicação da subjetividade deve
ser analisada, descrita, é somente no âmbito da semântica que ela
pode servir para orientar o desenvolvimento da escrita.
Se a unidade do semiótico é o signo, qual é a unidade da
semântica? A frase. Segundo Benveniste (1989, p. 229), trata-se
do “intencionado, do que o locutor quer dizer, da atualização
linguística do pensamento [...] a semântica resulta da atividade
do locutor que coloca a língua em ação” (Benveniste, 1989,
p. 229-30). Ono (2007), fazendo um estudo da palavra frase
em diversos textos de Benveniste, constata que há três noções
associadas a ela, a saber, atualização, predicação e realização. Es-
clarece ainda, com base no artigo de 1966, “A forma e o sentido
na linguagem”, ora em exame, que sintagmatização, predicação e
atualização são operações realizadas ao mesmo tempo pelo locutor
(Ono, 2007, p. 70). A realização depende do tempo linguístico,
isto é, é da conversão da língua em discurso; logo, sintagmati-
zação, predicação e atualização são operações necessárias para a
realização da frase. A partir dessas afirmações, é possível fazer
uma reflexão sobre as noções de forma e sentido. A forma da frase
é o sintagma; o sentido da frase é a ideia que exprime, ou seja, “a
frase é cada vez um acontecimento diferente [...] ela não pode,
sem contradição de termos, comportar emprego; ao contrário,
as palavras que estão dispostas na cadeia e cujo sentido resulta
precisamente da maneira em que são combinadas não têm senão
empregos” (Benveniste, 1989, p. 231). Daí constatamos que a
forma da frase está à serviço do sentido, ou, em outras palavras,
que a forma é o sentido da frase.

134
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Como apreender o sentido da frase, esta unidade de análise
semântica? É importante explicitar dois conceitos correlatos: agen-
ciamento e apropriação. Após a explicitação destes dois conceitos,
acreditamos ter estabelecido um arcabouço teórico suficiente para
compor a metodologia de análise de relatórios de estágio. Vejamos:

Agenciamento.
Definição: processo de organização sintagmática pelo sujeito.
Nota explicativa: Através do agenciamento, o sujeito organiza
as formas da língua para transmitir a ideia a ser expressa em
seu enunciado.
Termos relacionados: apropriação, referência, sintagmatização
(Flores et al., 2009, p. 47).

Apropriação.
Definição: processo de uso da língua pelo sujeito por meio da
enunciação.
Nota explicativa: Benveniste ressalta que o processo de apro-
priação ocorre com a tomada, por inteiro, da língua. É o esta-
belecimento pelo sujeito de relações com as formas da língua,
de modo a selecionar aquelas que forem compatíveis com a ideia
a ser expressa. [...]
Termos relacionados: atualização, língua, subjetividade.
(Flores et al., 2009, p. 49).

Constatamos que a apropriação do estagiário das orientações


do supervisor culmina no agenciamento de ideias marcadas no
relatório de estágio. Reconhecer, então, a relação entre orientação
e prática revelada na escrita constitui parte do trabalho para o
estabelecimento de uma avaliação justa do trabalho do professor
em formação inicial.

135
Silvana Silva | Linguística da enunciação e ensino: categorias analíticas para a avaliação...
Análise da estrutura do relatório e
relatório de estágio
Tomando a ideia de signo como unidade semiótica e a ideia
de frase como unidade semântica, entendemos que tais conceitos
se concretizam no relatório de estágio supervisionado, respecti-
vamente, pela estrutura do relatório de estágio, isto é, as seções
exigidas pelo supervisor do trabalho e pelo enunciado efetiva-
mente escrito pelo estagiário em relação ao universo discursivo da
escola (dimensão referencial da frase) e a seu próprio desempenho
(dimensão auto-referencial da frase).
É na frase que reconhecemos a indicação de subjetividade
por meio dos índices essenciais de pessoa (eu/tu, em que eu de-
signa o estagiário e tu a imagem do supervisor projetada no rela-
tório), tempo e espaço e os procedimentos acessórios de funções
sintáticas, os quais podem se organizar de forma a atender ou
não aos quatro, entre seis54, critérios de avaliação do relatório de
estágio (a saber, inovação metodológica, percepção da complexi-
dade da escola, coerência entre planejamento e desenvolvimento
das atividades). Em sua plenitude, esses quatro critérios revelam
que o eu projeta para além de tu que deve ser agradado, um ele,
isto é, um terceiro eu/tu que avaliaria o trabalho como inovador,
coerente, formal e independente.
Dessa forma, a indicação de subjetividade é o fator que
garante precisão linguística na avaliação da prática do estagi-
ário, marcada no relatório de estágio. A questão central a ser
respondida é a seguinte: Em que medida o eu agencia signos
que atendem às expectativas gerais do supervisor, marcadas na
54
O segundo, terceiro, quarto, quinto e sexto critérios, a saber, percepção da complexi-
dade da escola, formalidade da escrita, coerência entre plano e aula, independência
do supervisor e atendimento das expectativas do supervisor não serão analisados
neste texto.

136
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
estrutura do relatório e que revelam apropriação plena de ino-
vação metodológica?

O relatório de estágio supervisionado em análise refere-


-se ao componente curricular chamado Estágio Supervisionado
em Língua Portuguesa II e pertence à Gabrielli Dias55, aluna da
Universidade Federal do Pampa, campus Bagé, Rio Grande do
Sul. Ela realizou seu estágio em Pinheiro Machado (RS), em
uma turma de educação de jovens e adultos (EJA), à noite. O
relatório contém 93 páginas (incluindo anexos) e intitula-se O
valor das raízes: gramática, língua e cultura do Rio Grande do Sul,
contando a seguinte estrutura: 1) Conteúdo/assunto; 2) Eixos
articuladores; 3) Apresentação; 4) Objetivos gerais do projeto
de ensino; 5) Série; 6) Materiais; 7) Dinâmica; 8) Possibilidades
de modificação no plano inicial; 6) Referências bibliográficas; 7)
Diários reflexivos das observações das aulas da professora regente;
8) Descrição da escola com fotos; 9) Planos de aula (contendo
data, escola, série, nome do estagiário, conteúdo, objetivo geral,
objetivos específicos, estratégias, recursos, avaliação, observações,
anexos com exercícios e textos); 10) Diários reflexivos das prá-
ticas de sala de aula; 11) Anexos (documentos comprobatórios
do estágio e fotos das atividades).
É necessário informar ainda que, ao término do estágio su-
pervisionado, em dezembro de 2012, a nota auferida ao trabalho
da aluna Gabrielli foi 9,0. Tal avaliação considera três elementos:
a) Pertinência teórica e adequação escolar do projeto de ensino
(4 pontos); b) Qualidade de uma atividade de prática de sala de
aula supervisionada pela professora em visita técnica à escola (2
pontos); c) Completude, pontualidade de entrega e adequação
do relatório de estágio superviosionado (4 pontos).
55
A aluna assinou Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. De qualquer forma,
o nome apresentado é de caráter fictício.

137
Silvana Silva | Linguística da enunciação e ensino: categorias analíticas para a avaliação...
Deste relatório de estágio, selecionamos uma seção. Sele-
cionamos o item “Apresentação” para verificar o critério inova-
ção metodológica. O percurso metodológico será o seguinte: 1º)
destaque das frases, no sentido de frase presente em Benveniste
(PLG I, referido acima); 2) identificação e análise dos índices
essenciais de pessoa-tempo-espaço e dos procedimentos acessórios
das funções sintáticas (Aresi, 2011, referido acima); 3) análise
global da relação entre frase e texto (considerando a relação
entre frase e discurso, presente em “A semiologia da língua”,
Benveniste, PLG II).

Avaliando a presença da inovação


metodológica
Vejamos a “Apresentação” do relatório. Excluímos trechos
de identificação precisa da escola.

1. Perceber que não é a língua que muda com o tempo é os falan-


tes que em sociedade que mudam a língua com o passar do tempo.
(Marcos Bagno)
2. A língua varia por isso muda. Tanto em relação com a língua
falada como com a língua escrita bem como a língua no regio-
nalismo que será o foco dos textos a serem explorados durante
o Estágio II. Por isso a linguagem terá uma atenção especial,
mas com uma abordagem simples para um maior entendimento
da turma.
3. O gênero abordado será música, poesia nas letras das canções
nativistas e tchê music. Introduzir a diferença e a interligação en-
tre o que é: tradição, tradicionalismo, nativismo e regionalismo e
a diferença nas músicas também entre nativistas e tradicionalistas.
4. A proposta do Projeto Cultural é desenvolver a oralidade, a
partir da exploração da cultura do Sul, com base em parte do
histórico da Califórnia da Canção Nativa, que ao longo dos anos,
desde 1971, envolve a cultura e a história do Sul do Brasil, por
138
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
temas ao longo dos anos. A sequência didática será apresentada
aos alunos no primeiro dia de aula.
5. A poesia das letras servirão para explorar os verbos na música
e poesia e em contra partida da cultura, as rixas entre nativismo
e tchê music e observação na linguagem regional das letras das
canções.
6. Ensaiar e apresentar trovas à comunidade escolar do noturno,
como produto final da valorização da cultura do Sul, desenvol-
vendo a oralidade do grupo da turma de EJA.

Neste texto, localizamos 6 frases e, em cada uma delas, índi-


ces específicos de pessoa-tempo-espaço bem como procedimentos
sintáticos específicos. Na primeira frase, os índices de pessoa
são apresentados em ausência, trazendo, então, um enquadre da
ordem da não-pessoa, no caso, o sociolinguista Marcos Bagno.
Nesta frase, há o procedimento sintático da negação “Perceber
que não é a língua que muda com o tempo”, seguido da afirmação
“é os falantes que em sociedade que mudam a língua com o passar do
tempo”. Logo, o sintagma “os falantes” é colocado em destaque.
Na segunda frase, há alguns índices de pessoa-tempo-
espaço, ao longo da frase: “Estágio II”, “atenção especial”,
“abordagem simples” e “maior entendimento da turma”. Ob-
servamos, então, que há, na linearidade sintagmática da frase,
uma progressiva aproximação do redator do relatório com seu
próprio dizer (passagem do ele ao eu). Quanto aos procedimentos
sintáticos, observa-se que os dois primeiros períodos são consti-
tuídos de frases asseverativas curtas e o terceiro, de duas frases
com o conector mas, cuja presença assegura a presença do eu.
Na terceira frase, há um retorno às formas em ausência,
trazendo enquadre da ordem da não-pessoa. Nessa posição, o
estagiário, que já revelara uma preocupação com “a turma”, volta
sua preocupação para o conteúdo. Essa preocupação transparece
até o final da “Apresentação”, na quarta, quinta e sexta frases. No
139
Silvana Silva | Linguística da enunciação e ensino: categorias analíticas para a avaliação...
final da quarta frase, observamos um movimento de aproximação
ao eu/tu, no seguinte trecho “A sequência didática será apresentada
aos alunos no primeiro dia de aula.” No final da frase seis, há
uma ampliação do tu, isto é, do interlocutor, pois se observa a
passagem da denominação “alunos/turma” para “turma de EJA”.
Além disso, há um desdobramento na frase seis da díade eu-tu em
duas díades, que passa da relação professor-alunos da turma para
alunos da turma-alunos de outra turma. Nesse desdobramento, o
tu inverte-se em eu.
Quanto aos procedimentos acessórios, relativos às funções
sintáticas, observamos o uso de frases asseverativas curtas. Em
especial, nas frases cinco e seis, há um esforço de concisão e
objetividade ainda maior, chegando quase ao uso da frase nominal,
por meio de um sujeito marcado por verbo na forma infinitiva
impessoal. Segundo Flores et al. (2008, p. 98-99, grifos nossos),
“diz Benveniste que a frase nominal: 1) liga-se sempre ao discurso
direto; 2) serve sempre a asserções de caráter geral, sentenciosas.
A frase nominal quer convencer, propõe uma relação intemporal,
por isso permanente, agindo com um argumento por autoridade;
supõe o discurso e o diálogo, mas não comunica um dado de fato.”
Ainda que se tenha como resultado a construção sintática de frase
fragmentada, o efeito enunciativo gerado é o da preocupação de
mostrar que se está trabalhando com a linguagem regional (frase
5) com consequente “valorização da cultura do Sul” (frase 6),
conforme enunciado na frase 1. Assim, a quase frase nominal
(frase 6) está vinculada a um suposto discurso direto tal como
enunciado na frase 1 (citação do sociolinguista Marcos Bagno).
Assim, a estagiária coloca sob a forma de premissa impessoal,
inquestionável o aparato teórico da sociolinguística, marca da
qualidade de inovação metodológica.
Assim, os mecanismos de enunciação de não-pessoa (ele),
marcados de forma alternante e mais enfática do que os meca-
nismos de enunciação de pessoa subjetiva (eu), servem para um
140
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
duplo propósito: 1º) garantir a presença do elemento terceiro,
qual seja, a aula, a apresentação, a cultura; 2º) servir de lastro
para a ampliação da dimensão do interlocutor, que parte de um
tu restrito à presença do eu-estagiário, passando a vocês, turma do
EJA. Em linhas gerais, a Apresentação do Relatório de Estágio
II garante a característica da inovação metodológica, uma vez que,
sabemos, as práticas tradicionais de ensino de língua são voltadas
para uma relação restrita de aprendizagem da língua baseada na
relação restrita eu/tu. De certa forma, a aluna compreende que
trabalhar em perspectiva sociolinguística também é uma forma
de atingir a inovação metodológica. No entanto, para que se possa
ratificar a qualidade de inovação metodológica, far-se-ia neces-
sário analisar outras seções do relatório de estágio, em especial
os Diários reflexivos das observações e os Diários reflexivos das
práticas56.

Considerações finais: categorias


analíticas de ordem enunciativa
pertinentes ao relatório de estágio
Concluída a análise, é hora de verificar que categoria ou
categorias analítico-enunciativas são pertinentes para a avaliação
do relatório de estágio. Como vimos, a literatura especializada
em letramento do professor já nos indicara seis características de
um relatório de boa qualidade. Nesse sentido, acreditamos que
a Linguística da Enunciação, de Émile Benveniste, em especial
o conceito de indicação de subjetividade, possa nos oferecer mais
parâmetros avaliativos.
Na análise da “Apresentação”, chama-nos a atenção o fato
da ampliação da instância do tu (interlocutor) de tu-alunos para
56
Para a pesquisa sobre os Diários reflexivos, sugere-se ao leitor a consulta de Zabalza
(2004).

141
Silvana Silva | Linguística da enunciação e ensino: categorias analíticas para a avaliação...
vocês-turma de EJA. Assim, a ampliação – ou redução – da presença
do tu no relatório pode se constituir, a nosso ver, em um sétimo
critério de aferição da qualidade do relatório de estágio. Esse cri-
tério diz respeito aos índices essenciais da indicação de subjetividade.
Quanto aos procedimentos acessórios, relativos às funções sintáticas,
cremos ser prematuro fazer qualquer afirmação mais categórica.
Seria necessário analisar outras seções do relatório de estágio,
tarefa que deve ser executada em um próximo futuro artigo. De
qualquer forma, considerando as grandes funções sintáticas, a
saber, asseveração, injunção e interrogação, percebemos que a
forte presença da asseveração, alternando movimentos de expansão
em frases com conectores e de redução em frases nominais é um
indicativo de qualidade do relatório de estágio.
Gostaria de encerrar este artigo dizendo que as relações entre
as áreas da Linguística da Enunciação e da Linguística Aplicada/
Letramento do professor estão em fase de criação. Nossa tese de
doutoramento (Silva, 2013) é um dos frutos dessa articulação
que, a nosso ver, está apenas começando.

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143
Silvana Silva | Linguística da enunciação e ensino: categorias analíticas para a avaliação...
144
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Capítulo
VI

A semantização do
discurso metafórico:
um olhar enunciativo

Aline Wieczikovski Rocha57


Claudia Stumpf Toldo 58

O trabalho que ora apresentamos fundamenta-se nos


estudos reunidos em Problemas de linguística geral I e II, publi-
cados em 1966 e 1974, respectivamente, de Émile Benveniste.
Dedicaremos mais atenção, principalmente, aos seguintes textos:
a) “Níveis de análise linguística” (1964), que problematiza
a questão da significação da língua; b) ‘Forma e sentido na
linguagem” (1966), no qual Benveniste continua tratando das
questões de forma e sentido que já aparecem no texto de 1964, mas
trazendo agora os conceitos semiótico e semântico, ressaltando
que da ordem do semiótico é tudo aquilo que está no interior da
língua – portanto o signo é a unidade semiótica; e da ordem do
57
Mestre em Letras/Estudos Linguísticos pela Universidade de Passo Fundo.
58
Professora, doutora do curso de Letras e do PPGL – Mestrado em Letras da Univer-
sidade de Passo Fundo. E-mail: claudiast@upf.br

145
Aline Wieczikovski Rocha, Claudia Stumpf Toldo | A semantização do discurso metafórico...
semântico traz a frase como sua expressão, no emprego das formas
da língua e O aparelho formal da enunciação (1970), quando trata
especialmente sobre o que chama de enunciação.
Queremos destacar que Benveniste amplia o aspecto se-
mântico do seu trabalho, ultrapassando as bases saussureanas.
Reapresenta a forma como sendo a língua no sistema semiótico
cuja função é significar, e o sentido corresponde à frase, que
tem como função comunicar, desempenhando assim seu papel
semântico da língua em dada situação de enunciação, sempre
única e irrepetível.
Nesse cenário de reflexões, apresentamos um diálogo teórico
do pensamento benvenistiano acerca da linguagem que julga-
mos possível para analisar o fenômeno da metáfora em textos
publicitários.

A natureza articulada da linguagem:


da noção de nível aos fundamentos
semânticos da língua
É num movimento de enlace que Benveniste tece o estudo
dos possíveis níveis de análise, discutindo a questão do sentido
que muito bem serve a este trabalho. Para Flores; Teixeira (2008,
p. 29), Émile Benveniste talvez seja o primeiro linguista que
desenvolveu um modelo de análise da língua especificamente
voltado à enunciação sem se afastar do quadro estruturalista de
Saussure. Está aí a origem da singularidade de suas reflexões e
a sensibilidade com que observa e registra a importante contri-
buição de Ferdinand de Saussure no quadro da linguística. Nas
palavras do próprio Benveniste, “Saussure é em primeiro lugar
e sempre o homem dos fundamentos” (PLG-I, 1995a, p. 35).
Eis o reconhecimento a Saussure e à elaboração da sua ciência
dos sistemas de signos.
146
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Benveniste traz como princípio da doutrina saussuriana a
linguagem, que, “como quer que se estude, é sempre um objeto
duplo formado de duas partes cada uma das quais não tem valor
a não ser pela outra” (PLG-I, 1995a, p. 43). Ressalta o autor
que essa presença do dual é algo indissociável da linguagem, pois
tudo nela “tem de ser definido em termos duplos; tudo traz a
marca e o selo da dualidade opositiva” (PLG-I, 1995a, p. 43).
Essa filiação de Benveniste ao quadro estruturalista saussurea-
no o conduz a tomar de Saussure a concepção de língua como
sistema, movimento que o faz pensar no conceito de linguagem.
Segundo Benveniste, quando um objeto como a linguagem
é estudado com espírito científico, evidencia-se que todas as
questões se propõem ao mesmo tempo, conforme o fato lin-
guístico, e que se refere, especialmente, relativamente ao que
se deve admitir como fato, isto é, aos critérios que o definem
como tal. Logo, Benveniste (PLG-I, 1995b, p. 127) reconhece
que a linguagem requer descrições formalizadas, pautadas em
procedimentos e critérios adequados. Trata-se, pois, de organizar
os estudos de linguagem, seguindo princípios racionais e cons-
truções descritivas coerentes da língua. Estabelece-se, assim, o
que Benveniste acredita ser “essencial na determinação do pro-
cedimento de análise”, a noção de nível. É ela quem possibilita
que “a arquitetura singular das partes e do todo” das formas
linguísticas seja analisada, além de configurar duas importantes
operações: a segmentação e a substituição.
Nesse incurso reflexivo, Benveniste propõe que se pense
nessas operações em um nível superior, ou seja, segmentando e
substituindo unidades mais extensas. Para ele, o sentido torna-se
“a condição fundamental que todas as unidades de todos os níveis
devem preencher para obter status linguístico” (PLG-I, 1995b, p.
130-131). O nível estrutura-se, desse modo, como um operador
do processo de análise e configuração das unidades linguísticas.
147
Aline Wieczikovski Rocha, Claudia Stumpf Toldo | A semantização do discurso metafórico...
Ao ampliar a discussão, Benveniste formula duas definições,
a de forma e de sentido de uma unidade linguística. À primeira,
atribui-se “a sua capacidade de dissociar-se em constituintes de
nível inferior”; e à segunda, “a sua capacidade de integrar uma
unidade de nível superior”, respectivamente, (PLG-I, 1995b,
p. 135-136). Essas propriedades apresentam como caracterís-
tica sua indissociabilidade no funcionamento da língua, pois
se relacionam no processo de análise em função da natureza
articulada da linguagem. Assim, projetar as bases do sentido na
língua implica observar a forma em dois níveis: o semiótico e
o semântico. Este vincula-se à frase e, portanto, à referência, à
ideia, à sintagmatização; aquele ao signo (saussureano). Esses
dois níveis operacionais da língua em ação convertem a língua à
chamada língua-discurso.
A conversão da língua em discurso diz respeito à sintagma-
tização-semantização, o que é explicitado por Benveniste no texto
de 1966 A forma e o sentido na linguagem. Resumindo, podemos
dizer que a sintagmatização é um trabalho realizado pelo locutor
relativo ao estabelecimento de inter-relações entre as palavras que
constituem o enunciado. Essa noção de sintagmatização coloca
em relevo as conexões entre as palavras, conexões estas que estão
a serviço de uma ideia a ser expressa, que é relativa, por sua vez,
à atitude do locutor e à situação enunciativa; a semantização é
um processo concernente ao uso da língua para atribuição de
referência à atitude do locutor e à situação enunciativa.
A passagem do signo para um nível superior, sua saída do
domínio da palavra e sua inserção no domínio da frase é uma im-
portante avaliação processual dos níveis realizada por Benveniste:

A frase, criação indefinida, variedade sem limite é a própria vida


da linguagem em ação. Concluímos que se deixa com a frase o
domínio da língua como sistema de signos e se entra num outro
universo, o da língua como instrumento de comunicação, cuja
148
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
expressão é o discurso. [...] Há de um lado a língua, conjunto
de signos formais, destacados pelos procedimentos rigorosos,
escalonados por classes, combinados em estruturas e em sistemas;
de outro, a manifestação da língua na comunicação viva. A frase
pertence bem ao discurso. É por aí mesmo que se pode defini-la:
a frase é a unidade do discurso (PLG-I, 1995b, p. 139).

A frase tratada como unidade completa traz em si sentido e


referência: “sentido porque é enformada de significação, e refe-
rência porque se refere a uma determinada situação” (Benvenis-
te, 1995b, p. 140). O estudo dos níveis de análise de Benveniste
o conduz à conclusão de que a linguagem começa a partir do
“discurso atualizado em frases”, pois é aí que “a língua se forma e
se configura” (Benveniste, 1995b, p. 140). O discurso é o espaço
em que o nível da frase se realiza, é onde podemos ver a língua
que é forma construindo conteúdo, manifestando sentidos sempre
singulares. O nível da frase coloca em cena não só a língua, mas
uma língua que é, sobretudo, discurso: língua-discurso. Face a
essas considerações, é necessário observar o papel que a língua
desempenha no uso da linguagem e, dessa forma, referenciar o
aspecto semântico da teoria Linguística da Enunciação.
Como já citada, a importância de Saussure é destaque nas
considerações de Benveniste, posto que Saussure, tratando do
signo linguístico, abriu caminho para uma descrição das unidades
semióticas, sendo que “estas devem ser caracterizadas pelo duplo
ponto de vista da forma e do sentido, já que o signo, unidade
bilateral por natureza, se apresenta por sua vez como significante
e como significado” (p. 225). Na semiologia, “o que o signo
significa não dá para ser definido,” pois para que um signo exista
como tal, é preciso que “ele seja aceito e que se relacione de uma
maneira ou de outra com os demais signos.” O cerne da questão
não é mais definir o sentido, já que no plano do significado o
critério de análise é se algo significa ou não. Para Benveniste,
149
Aline Wieczikovski Rocha, Claudia Stumpf Toldo | A semantização do discurso metafórico...
“significar é ter sentido e nada mais” (PLG-II, 1989d, p. 227),
e completa:

este sim ou não só pode ser pronunciado por aqueles que ma-
nuseiam a língua, aqueles para os quais esta língua é a língua
e nada mais. Nós erigimos, desta forma, a noção de uso e de
compreensão da língua como um princípio de discriminação,
um critério. É no uso da língua que um signo tem existência;
o que não é usado não é signo; e fora do uso o signo não existe.
Não há estágio intermediário; ou está na língua, ou está fora da
língua (PLG-II, 1989d, p. 227).

Outro ponto da análise de Benveniste está na representa-


tividade da frase, na sua função comunicativa na língua. Acerca
disso ele assegura:

pensamos que o signo e a frase são dois mundos distintos e que


exigem descrições distintas. Instauramos na língua uma divisão
fundamental, em tudo diferente daquela que Saussure tentou
instaurar entre língua e fala. Parece-nos que se deve traçar,
através da língua inteira, uma linha que distingue duas espécies
e dois domínios do sentido e da forma, ainda que, eis ainda aí
um dos paradoxos da linguagem, sejam os mesmos elementos
que se encontrem em uma e outra parte, dotados, no entanto,
de estatutos diferentes (PLG-II, 1989d, p. 229).

Nesse contexto, forma e sentido na língua tornam-se indis-


sociáveis, intensificando as discussões a respeito da condição
semiótica e semântica da língua, pois, de acordo com suas pro-
posições “Do semiótico ao semântico há uma mudança radical de
perspectiva: todas as noções que passamos em revista retornam,
mas outras e para entrar em relações novas” (Benveniste, 1989d,
p. 229). Assim, a semiótica caracteriza-se por ser própria da lín-
gua, enquanto que a semântica depende que um locutor coloque
150
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
a língua em ação para que se realize. Posto isso, é necessário
atentar para particularidades como a do signo semiótico e da frase.
Compreende-se que o primeiro, para que exista em si e funde
a realidade da língua, não encontra aplicações particulares. Já a
frase, enquanto expressão do semântico, apresenta, além dessa
particularidade, a relação com as coisas que estão fora da língua.
Se o signo tem por parte integrante o significado, o sentido da
frase está relacionado à situação do discurso e à atitude do locutor
(PLG-II, 1989d, p. 230).
Dadas essas considerações, Benveniste (1989a, p. 231) apre-
senta como princípio o fato de que o sentido da frase é diferente
do sentido das palavras que a compõem, porque “o sentido de
uma frase é sua ideia, o sentido de uma palavra é seu emprego
(sempre na acepção semântica).” Transmitir a ideia, que é sempre
particular, é uma tarefa em que o locutor seleciona e emprega
as palavras de acordo com o sentido pretendido. Nessa acepção,
introduz-se a noção de referente, que “é o objeto particular a que
a palavra corresponde no caso concreto da circunstância ou do
uso” (Benveniste, 1989d, p. 231). Na medida em que o sentido
da frase tem a proporção da ideia que ela exprime, a referência da
frase é vista como “o estado de coisas que a provoca, a situação de
discurso ou de fato a que ela se reporta e que nós não podemos
jamais prever e fixar” (Benveniste, 1989d, p. 231). Portanto, o
conceito de referência deve ser examinado, uma vez que é através
dela que se pode perceber do que o texto trata e traz subsídios
para que se observe a organização do texto.
A frase é, então, sempre um acontecimento singular, que
“não existe senão no instante em que é proferida e se apaga neste
instante; é um acontecimento que desaparece” (Benveniste,
1989d, p. 231). No que se refere às palavras, seu sentido é
resultado do modo como são combinadas, empregadas. Assim,
“o sentido de uma palavra consistirá na sua capacidade de ser
integrante de um sintagma particular e de preencher uma função
151
Aline Wieczikovski Rocha, Claudia Stumpf Toldo | A semantização do discurso metafórico...
proposicional” (Benveniste, 1989d, p. 231-232). A polissemia
é, nesse caso, a soma de valores contextuais instantâneos, e em
constante movimentação de valor e permanência. É na perspectiva
semântica da língua que posicionamos este estudo, visto que trazer
à cena a metáfora implica considerarmos a sua potencialidade
em integrar um sintagma particular, preenchendo uma função
proposicional e manifestando, assim, a polissemia, essa soma de
valores contextuais instantâneos.
Considerar uma entidade lexical como signo ou como pala-
vra implica duas consequências opostas. Concernente à primeira,
Benveniste diz que “dispõe-se muitas vezes de uma variedade
bastante grande de expressões para enunciar, como se diz, a mes-
ma ideia” (PLG-II, 1989d, p. 232). À segunda, respeita ao fato
de que o agenciamento da ideia deve sofrer restrições, “há aqui
necessariamente uma mistura sutil de liberdade no enunciado da
ideia e de restrição na forma deste enunciado, que é a condição
de toda a atualização da linguagem” (Benveniste, 1989d, p.
232). Entender a articulação semântica é ver que o sentido da
frase encontra-se na totalidade da ideia, que é percebida por uma
compreensão global; e que a forma é obtida pela “dissociação
analítica do enunciado processada até as unidades semânticas, as
palavras” (Benveniste, 1989d, p. 232). A propósito do sentido,
Benveniste afirma que,

o sentido das palavras, por seu turno, se determina em relação ao


contexto de situação. Ora, as palavras, instrumentos da expressão
semântica, são materialmente os signos do repertório semiótico.
Mas estes signos, em si mesmos conceptuais, genéricos, não
circunstanciais, devem ser utilizados como palavras para noções
sempre particulares, específicas, circunstanciais, nas acepções
contingentes do discurso (PLG-II, 1989d, p. 232-233, grifo
do autor).

152
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Esses dois sistemas apresentam-se na língua em uso da
seguinte forma: na base está o sistema semiótico, enquanto
organização de signos, conforme o critério da significação,
“tendo cada um destes signos uma denotação conceptual e
incluindo numa sub-unidade o conjunto de seus substitutos
paradigmáticos” (Benveniste, 1989d, p. 233). A partir deste
fundamento semiótico, a língua-discurso constrói uma semântica
própria, cuja significação é intencionada e produzida através da
sintagmatização das palavras, considerando que, “cada palavra
não retém senão uma pequena parte do valor que tem enquanto
signo” (Benveniste, 1989d, p. 234).
Esse duplo sistema não está simplesmente presente na lín-
gua, é ele que a movimenta num ritmo tão veloz e, ao mesmo
tempo, sutil que analisá-lo ou desprendê-lo exige um grande
esforço, pois um pertence ao outro, tamanho o poder significante
da língua. E tudo o que se diga sobre isso será sempre incompleto.
Flores (2010) compreende que os níveis “estão numa inter-
relação muito singular, para criar sentido e referência” e esse
mecanismo de inter-relação é denominado, pelo autor, como
transversalidade enunciativa, “a qual se caracteriza por permitir
ver a língua como um todo atravessado pelas marcas da enuncia-
ção”. Assim, os níveis de análise linguística posicionam a metáfora
como uma unidade de análise, logo, construir seu sentido implica
observar a sua capacidade de integração, que respeita ao sentido,
e de distribuição, que condiz à forma. A metáfora inscreve-se,
desse modo, como um fenômeno da língua em ação e, como
veremos, analisá-la significa desmembrá-la e do mesmo modo
reintegrá-la a uma unidade maior, em busca da construção do
sentido. Analisá-la significa, então, trabalhar com a ideia do
sentido novo, do sentido inédito, do sentido outro.
153
Aline Wieczikovski Rocha, Claudia Stumpf Toldo | A semantização do discurso metafórico...
A conversão individual da língua:
um processo semântico
Essas considerações que fazemos acerca da enunciação estão
embasadas em O aparelho formal da enunciação, último texto publi-
cado pelo autor sobre o tema e visto por muitos (cf. Ono, 2007)
como uma síntese do programa teórico de Benveniste. Porém,
desde seus primeiros estudos, Benveniste destaca a importância
do caráter social da língua. Em Saussure após meio século, texto
de 1963, o autor já anuncia sua posição acerca da importância da
língua na sociedade, afirmando que “Não é a língua que se dilui
na sociedade, é a sociedade que começa como língua” (1995a, p. 47).
O aparelho formal da enunciação é um texto que mostra como
Benveniste melhor precisou as questões da forma e do sentido,
apresentando reflexões sobre o emprego das formas e o empre-
go da língua. O teórico observa o emprego das formas como um
correspondente a todas as descrições linguísticas que a ela estão
relacionadas, ou seja, é compreendido como “um conjunto de
regras fixando as condições sintáticas nas quais as formas podem
ou devem normalmente aparecer, uma vez que elas pertencem a
um paradigma que arrola as escolhas possíveis” (Benveniste,
1989e, p. 81), que pertencem ao signo do nível semiótico.
Já o emprego da língua é entendido como “um mecanismo
total e constante que, de uma maneira ou de outra, afeta a lín-
gua inteira” (Benveniste, 1989e, p. 82). O emprego da língua
relaciona-se com a definição de enunciação, o que dificulta a
apreensão do fenômeno, porque é confundido com a própria
língua. Tamanha é a sua necessidade que passa despercebido,
dada a natureza articulada da linguagem.
A enunciação é vista por Benveniste como sendo o “colocar
em funcionamento a língua por um ato individual de utilização”
(PLG-II, 1989e, p. 82), e determina como sua condição especí-
154
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
fica “o ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do
enunciado, que é nosso objeto. Este ato é o fato do locutor que
mobiliza a língua por sua conta” (Benveniste, 1989e, p. 82).
Essa relação do locutor com a língua é o que determina os carac-
teres linguísticos da enunciação. Deve-se, portanto, “considerá-la
como o fato do locutor, que toma a língua por instrumento, e nos
caracteres linguísticos que marcam esta relação” (Benveniste,
1989e, p. 82). A enunciação é um grande processo, e para o
teórico pode ser estudado sob diversos aspectos, mas, para o
momento, destacam-se os três principais.
O primeiro corresponde à realização vocal da língua, pois
os sons emitidos e percebidos são sempre atos individuais. Cada
um sabe que, “para um mesmo sujeito, os mesmos sons não são
jamais reproduzidos exatamente, e que a noção de identidade
não é senão aproximativa” (Benveniste, 1989e, p. 82-83), isso
porque a enunciação é produzida em diversas situações. O prin-
cípio de que a enunciação supõe a conversão individual da língua
em discurso requer mais uma vez o estudo do sentido, “como o
sentido se forma em palavras, em que medida se pode distinguir
entre as duas noções e em que termos descrever sua interação”
(Benveniste, 1989e, p. 83). A semantização da língua está no
centro deste aspecto da enunciação e conduz à teoria do signo e
à análise da significância.
Percebe-se, então, que “o ato individual pelo qual se utiliza
a língua introduz em primeiro lugar o locutor como parâmetro
nas condições necessárias da enunciação” (Benveniste, 1989e,
p. 83). Nesse sentido, a língua sem a enunciação não passa de
uma possibilidade. Dada a enunciação, ela efetiva-se em discurso.
Benveniste diz: “a enunciação pode se definir [...] como um
processo de apropriação. O locutor se apropria do aparelho formal
da língua e enuncia sua posição de locutor por meio de índices
específicos [...] e procedimentos acessórios” (Ibidem, p. 84).
155
Aline Wieczikovski Rocha, Claudia Stumpf Toldo | A semantização do discurso metafórico...
Assim, assumir a posição de locutor implica postular ins-
tantaneamente o outro diante de si, pois toda enunciação corres-
ponde, ainda que explícita ou implicitamente, a uma alocução,
que automaticamente postula um alocutário. Nesse ato, o locutor
mobiliza a língua pela necessidade de se referir pelo discurso.
Nas palavras de Benveniste:

O ato individual de apropriação da língua introduz aquele que


fala em sua fala. Este é um dado constitutivo da enunciação. A
presença do locutor em sua enunciação faz com que cada instân-
cia de discurso constitua um centro de referência interno. Esta
situação vai se manifestar por um jogo de formas específicas cuja
função é de colocar o locutor em relação constante e necessária
com sua enunciação (PLG-II, 1989e, p. 84).

Observe-se, ainda, a terceira série de termos que respeitam


à enunciação, o paradigma das formas temporais relacionados a
EGO, centro da enunciação. Estabelece-se, nesse fundamento,
a temporalidade como produto da enunciação. Dela, instaura-
-se a “categoria do presente, e da categoria do presente nasce
a categoria do tempo. O presente é propriamente a origem do
tempo. Ele é esta presença no mundo que somente o ato de
enunciação torna possível” (Benveniste, 1989e, p. 85). Nessa
categorização, a função do presente formal é explicitar o presente
inerente à enunciação, renovável a cada situação de discurso,
e imprimir na consciência o sentimento de uma continuidade
denominada tempo.
Para o autor (PLG-II, 1989e, p. 85-86), continuidade e
temporalidade “se engendram no presente incessante da enun-
ciação, que é o presente do próprio ser e que se delimita, por
referência interna, entre o que vai se tornar presente e o que
já não o é mais.” Assim, o que caracteriza a enunciação “é a
acentuação da relação discursiva com o parceiro, seja este real ou
156
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
imaginário, individual ou coletivo” (Benveniste, 1989e, p.
87). Essa característica desenha o chamado quadro figurativo da
enunciação, pois é na forma de discurso que a enunciação coloca
em igual posição duas figuras, sendo uma a origem e a outra o
fim da enunciação.
Esta análise, mesmo que incompleta, intenciona observar o
emprego das formas e como isso inscreve sentidos distintos no
emprego da língua e na língua em uso/língua-discurso.

Análise enunciativa do sentido


metafórico
O texto, objeto deste estudo, apresenta como anúncio
principal o seguinte: “Acredite, você não vai querer ver este carro
irritado”. Há também um texto secundário, disposto num bloco,
cujo segmento destaque é: “Chegou o Civic Si. O esportivo mais
furioso do país”. O anúncio (ver figura a seguir) porta em sua
estrutura dois enunciados que apresentam elementos metafóricos,
possíveis de serem submetidos à análise, a saber: a) carro irritado;
b) esportivo furioso.
Enquanto produto do discurso, a metáfora requer uma
descrição e análise de duplo sentido: a do signo e a da frase. Se
desconsiderarmos a distinção que há entre o signo e a frase, os
sentidos das metáforas apresentadas, na perspectiva aqui adotada,
não podem ser definidos, porque, de acordo com Benveniste
(PLG-II, 1989d, p. 231), “o sentido da frase é sua ideia, o sen-
tido de uma palavra é seu emprego”, ou seja, o sentido da frase
é diferente do sentido das palavras que a compõem.
Nesse caso, precisamos refletir como os enunciados “Acre-
dite, você não vai querer ver este carro irritado” e “O esportivo
mais furioso do país” se constituem enunciados metafóricos nesta
publicidade. Ao retomarmos Benveniste (PLG-II, 1989d, p.
157
Aline Wieczikovski Rocha, Claudia Stumpf Toldo | A semantização do discurso metafórico...
O enunciado submetido à descrição dos níveis

158
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
159
Aline Wieczikovski Rocha, Claudia Stumpf Toldo | A semantização do discurso metafórico...
229-230), encontramos a constatação de que a função linguística
apresenta duas modalidades: a de significar e a de comunicar. A
primeira respeita à semiótica e é vista como propriedade da língua,
a segunda, à semântica que depende de um locutor colocando a
língua em ação para que se realize.
A partir daí, é possível realizar a descrição semiótica e,
portanto, colocar em prática a modalidade de significar desses
enunciados, ou seja, dar a eles os sentidos dos respectivos signos,
os sentidos do nível semiótico construindo a seguinte relação:
1) Você não vai querer ver este homem irritado e 2) O homem mais
furioso do país. É visível que os sentidos dados a esses enunciados
não correspondem àquele que o texto publicitário oferece, mesmo
que essas descrições tenham em si significado. Assim, é preciso
elevar os signos que compõem a publicidade a um nível superior,
o semântico, que é capaz de dar conta da questão do sentido,
ou seja, ao nível da frase que é “responsável pelo encontro do
sentido e da designação, que embora sua associação apresentam-
-se distintamente”(Benveniste, 1995b, p. 137). Dessa maneira,
poderemos observar que não temos o mesmo sentido, já que
não temos a mesma enunciação. Essa enunciação constrói uma
referência que lhe é própria: o sentido das palavras empregadas
nesta publicidade.
A frase é a expressão do semântico e como tal agrega
particularidades, ou seja, além de apresentar a particularidade
do signo semiótico, é capaz de relacionar-se com as coisas que
estão fora da língua, porque o sentido da frase está relacionado
à situação do discurso e à atitude do locutor. Desse modo,
enunciar “Acredite, você não vai querer ver este carro irritado”
ou “Chegou o Civic Si. O esportivo mais furioso do país” não é
apenas mobilizar a língua, mas dar a ela um sentido singular e
fundado pela língua-discurso, em que o locutor, para transmitir
a ideia, que é sempre particular, seleciona e emprega as pala-
vras de acordo com o sentido pretendido. Nesse caso, o eu que
160
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
enuncia carro irritado e esportivo furioso não é diferente daquele
que enuncia homem irritado e homem furioso, e sim a situação do
discurso, que é “o objeto particular a que a palavra corresponde
no caso concreto da circunstância ou do uso”, ou seja, o referente
(Benveniste, 1989d, p. 231). Pensar a referência é concernir
que a língua-discurso constrói uma semântica própria, porque o
sentido está edificado na passagem da forma vazia à forma plena
de um signo, e, para observar esse processo de semantização do
enunciado metafórico, é fundamental a análise da circunstância
em que a palavra é aplicada.
Dizer que um homem está irritado/furioso é diferente de dizer
que um carro está irritado/furioso, posto que a primeira construção
prevê na descrição do signo homem esse valor, e sua referência
é esse homem, enquanto que a segunda, além de passar por essa
descrição prevista pelo signo semiótico, precisa construir outros
sentidos, porque sua referência está determinada pela palavra
carro, e é aí que a metáfora se constitui, na produção destes
sentidos outros.
O uso da metáfora permite ao locutor convencer o seu alo-
cutário (tu) de que o seu produto é diferenciado, com qualidades
específicas que o potencializam frente aos demais produtos da
mesma categoria, e não o absurdo de que o carro é violento ou
nervoso. Essa compreensão está inscrita na expressão semântica
dos enunciados, que está implantada na enunciação representada
na publicidade.
Pode-se dizer que o eu que enuncia (grupo Honda), enun-
cia em alocução a um tu (leitor/consumidor) o seu produto/
objeto (Civic Si) a partir de uma “realidade de discurso”, a
qual é designada por Benveniste (PLG-I, 1995c, p. 278-279)
como sendo a realidade a que se refere eu ou tu, pois o eu só
será possível na instância da locução, uma vez que significa “a
pessoa que enuncia a presente instância de discurso que contém eu.”
Então, analisar o enunciado da publicidade é pensar no eu como
161
Aline Wieczikovski Rocha, Claudia Stumpf Toldo | A semantização do discurso metafórico...
indivíduo presente na instância discursiva, é pensar também na
situação de alocução, a qual postula o indivíduo alocutado, que
corresponde ao tu do discurso.
As formas irritado e furioso são formas da língua que, ao
passarem pelo trabalho de emprego dessas formas em dada
situação enunciativa, têm um tratamento diferenciado, ou seja,
um tratamento discursivo porque a frase “é a própria vida da
linguagem em ação” (Benveniste, 1995b, p. 139). Assim, a
análise da palavra no domínio semântico precisa comportar além
da análise da forma, que se apresenta de modo rígido, compacto,
também a análise do seu sentido, que está ligado ao modo como
o usuário da língua o emprega na situação de discurso, ou seja,
a cada enunciação.
Observemos, então, a descrição da imagem como colabora-
dora na produção enunciativa, e, posteriormente, a sua capacidade
de significar frente ao domínio da linguagem verbal.

A imagem como colaboradora de


sentidos
A construção da mensagem publicitária organiza-se de
forma diferente das demais mensagens, já que impõe explícita
e implicitamente valores, mitos e ideais e outras elaborações
simbólicas. Por isso, a imagem é considerada um importante
recurso na construção do texto.
Assim, ao observar a imagem do texto 2, é possível verificar,
em primeiro plano, o carro Honda Civic Si, na cor vermelho,
cujo ângulo da foto privilegia o seu lado direito, onde também
estão dispostos outros elementos que servem à publicidade: uma
mangueira, uma esponja, uma chaleira, quatro caixas vazias de chá
de camomila e um balde, no qual os sachês do chá encontram-se
imersos. Num segundo plano, está uma casa de cor clara e de
162
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
grande dimensão, dando a ideia de que o carro está estaciona-
do em seu quintal. O fundo da imagem é preenchido por um
crepúsculo. No rodapé esquerdo da publicidade há um breve
texto descritivo referente às inovações do automóvel e, alinhada
à direita, está a marca do produto.
O signo vermelho é considerado a cor mais ativa e emocional,
e como tal representa para a publicidade a força, a vibração, o po-
der, a sedução. O vermelho contribui à imagem porque oferece a
ideia de coragem e atitude, em virtude da potência que há no Si e
que o torna superior aos demais carros. A mesma cor, ainda numa
perspectiva do senso comum, também sugere a explicação para a
suposta irritabilidade do carro descrita na mensagem, pois uma
das características visíveis do nervosismo e da irritação é a cor
vermelha.
O crepúsculo que recobre o fundo da imagem é um com-
plemento que fortalece a sensação de fúria, de nervosismo e de
calor. As caixas de chá de camomila vazias e seus sachês imersos
em um balde afirmam o suposto nervosismo do carro, implantado
pelo sentido do signo semiótico, pois o balde de chá o acalmará
do mesmo modo que a mangueira o refrescará, uma vez que o
chá de camomila contém propriedades medicinais que acalmam,
o que permite inferir que o mesmo atua na peça publicitária como
símbolo da tranquilidade. Do mesmo modo, a mangueira, que
substitui o chuveiro para um refrescante banho. Nesse contexto,
o carro, por ser um carro furioso, precisa de um banho e uma
dose de chá de camomila expressivos, para que possa se acalmar.
Quando questionamos o modo como as descrições dos
signos semióticos podem interferir na construção do sentido
metafórico, constatamos que essa descrição corresponde ao
sentido genérico do signo e que o sentido metafórico passa por
esse sentido para se constituir como tal. Todo esse processo de
construção dos sentidos está determinado pela referência da frase,
e nela também está uma relação muito particular, a relação entre
os signos verbal e visual. Isso porque, como analisamos anterior-
163
Aline Wieczikovski Rocha, Claudia Stumpf Toldo | A semantização do discurso metafórico...
mente a irritação ou fúria do carro não tem o mesmo sentido que
a forma semiótica aplica, mas sim o sentido de potência frente
aos demais modelos da categoria. A referência da frase promove
essa construção semântica e convida o leitor da publicidade a
observar a imagem que a constitui, e nela perceber que o cenário
é a descrição do sentido semiótico das formas irritado e furioso,
e a palavra carro, assim como sua imagem, é a referência dessas
formas como unidades metafóricas.
Vejamos, então, essa fusão de linguagens na compreensão
do discurso.

A relação metafórica entre a palavra e


a imagem na semantização da língua
O estudo dos signos considerados metafóricos, irritado e
furioso, demonstra que as palavras se realizam no discurso, isto
é, seus sentidos não estão relacionados apenas ao signo semiótico,
apresentando-se em constante relação com o objetivo do locutor,
na elaboração do discurso, e a situação em que esse discurso é
proferido.
Como propriedade do discurso, os enunciados “Acredite,
você não vai querer ver este carro irritado” e “O esportivo mais
furioso do país” deixam de ser uma mera possibilidade da língua
e, na enunciação, passam a ser a língua plena e viva. A alocução
em questão dirige-se ao leitor, que é convocado a observar o
porquê do não querer ver a irritação e a fúria do carro, expressa
na cena enunciativa pelos elementos que compõem a imagem
da peça publicitária. Além disso, o leitor terá de compreender
que as formas irritado e furioso constituem-se metáforas porque
estão circunscritas à referência da publicidade, ou seja, à palavra
carro, portanto, só apresentam sentido metafórico para o discurso
expresso na publicidade.
164
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Os sentimentos de irritabilidade e fúria que compõem o
enunciado metafórico fazem parte da campanha da marca Honda,
a qual preza pela venda da imagem de um produto considerado
uma máquina potente e agressiva, pois o Si é furioso porque tem
192 cavalos de potência. É tanta potência que são necessárias
seis velocidades em seu câmbio. A imagem colabora para que o
leitor/consumidor atente para essa potencialidade do carro, pois
estão dispostos ao seu lado elementos que provocam um efeito
de ironia no momento em que sugerem acalmar o carro com
um balde de chá de camomila. O sentido do texto se constrói na
presença do nível semântico da língua, porque é nele que está a
língua-discurso, e a possibilidade de um signo ter o sentido me-
tafórico. Podemos, dessa forma, ilustrar essa passagem do signo
vazio ao pleno, a partir do mecanismo da referência, assim: a)
homem irritado/furioso, então nervoso, intenso; b) carro irritado/
furioso, além de intenso, potente.
A metáfora é a língua em pleno funcionamento, uma vez
que tem a capacidade de integrar uma unidade menor a outra
maior, e da mesma maneira (re)construir o sentido do texto.

Considerações de uma análise


enunciativa: a palavra e a imagem
em ação
Expor um elemento linguístico como a metáfora à análise
enunciativa resulta em considerações muito singulares a cada texto
analisado, visto que a arquitetura do texto publicitário reserva ao
leitor, e ao pesquisador, elementos sempre inéditos, bem como a
enunciação. A primeira questão a ser considerada, nesta discus-
são, é a de que a metáfora não é apenas um elemento linguístico
que ornamenta a linguagem, uma vez que sua presença no texto
regulariza a reorganização de sentidos desse texto.
165
Aline Wieczikovski Rocha, Claudia Stumpf Toldo | A semantização do discurso metafórico...
Outro fator importante a se destacar é o de que a metáfora
é uma realização da língua e de seu duplo sistema, ou seja, uma
realização que tem a participação do nível semiótico, na quali-
dade de provedor do valor genérico de todo signo da língua, e,
sobretudo, do nível semântico, que se encontra acima do nível
semiótico na língua, e que é responsável por promover a língua
à condição de língua-discurso.
Assim sendo, a metáfora se constitui como tal apenas quando
observada na comunicação discursiva, porque é nela que a língua
vive em plenitude, porque é a partir dela que os interlocutores
cumprem suas necessidades comunicativas. Dessa forma, assumir
um enunciado como metafórico é dar a ele a propriedade de ser
uma elaboração do discurso, e como tal existir apenas “na rede
de indivíduos que a enunciação cria em relação ao aqui-agora
do locutor” (Benveniste, 1989e, p. 86, grifos do autor). Essa
relação que a metáfora constrói, na perspectiva enunciativa, é
evidenciada na análise proposta, onde o sentido da metáfora é
estabelecido pela referência do seu respectivo discurso. Cons-
tatamos que o centro de referência demonstra ser fundamental
para que se considere um enunciado como metafórico, pois a
referência de furioso e irritado, na primeira ocorrência, refere-se
a carro, ao passo que na segunda a homem. Logo, os sentidos
de ambos serão diferentes, já que o homem visto como irritado,
furioso poderá, assim, ser intenso, estar nervoso. E o carro tem
essa intensidade, atribuída pelo nível semiótico, em razão da sua
potência. Mais uma vez, é a língua-discurso que percebe essa
promoção de sentidos outros.
A metáfora é, assim, um exemplo de fenômeno linguístico
que consegue, na cena enunciativa, transpor a dimensão do valor
semiótico e provocar um valor específico para o texto em que está
operando. Então, analisar o seu sentido no discurso é observar
seu valor frente ao dispositivo que propicia sua enunciação. Fora
dessa enunciação, não há metáfora, há, pois, apenas um signo em
166
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
nível semiótico. Para ser metáfora precisa ser língua-discurso,
precisa pertencer a um locutor em uma esfera de comunicação,
precisa criar sentido e sentidos que serão sempre outros em
distintas enunciações.
Para Benveniste, a linguagem tem em si “poder funda-
dor”, porque tem a capacidade de instaurar o imaginário, de
animar as coisas inertes, de fazer ver o que ainda não existe, de
trazer de volta o que desapareceu. A palavra é o poder mais
alto já permitido aos homens, porque nela está a faculdade de
simbolizar. Isso porque, no âmbito do discurso, a linguagem é
promotora de uma relação entre as palavras e os conceitos, e,
além de representar objetos e situações, produz “signos que são
distintos dos seus referentes materiais” (PLG-II, 1989f, p. 30).
Assim sendo, a metáfora não pode ser excluída da linguagem, e
nem ser vista, apenas sob a perspectiva de figura de pensamento
ou de elemento ornamentador de discursos, tal qual algumas
perspectivas teóricas preconizam. A metáfora é linguagem que
se materializa na língua-discurso.
A análise enunciativa de metáforas permite observar que,
a cada enunciação, a metáfora dispõe, abastece o discurso de
um sentido diferente, porque o seu valor será dado a partir da
enunciação, que pressupõe o homem usando a língua em dada
situação. Não se pode esquecer, então, que, a metáfora é uma
construção que está na língua e que reflete esse processo dinâmico
de “inventar novos conceitos e por conseguinte refazer a língua,
sobre ela mesma de algum modo” (Benveniste, 1989g, p. 21).
Nossa análise de metáforas refletiu a noção de sentido
e verificou que ela opera unicamente no interior da língua e,
principalmente, sob dois domínios de sentido: o semiótico e o
semântico. Assim, o signo que compõe a língua é visto como a
unidade semiótica, dotada de sentido para aqueles que dominam
essa língua. Ele é, segundo Benveniste, apenas isto: “ser reco-
nhecido como tendo ou não um sentido. Isto se define por sim,
167
Aline Wieczikovski Rocha, Claudia Stumpf Toldo | A semantização do discurso metafórico...
não” (PLG-II, 1989g, p. 21). Isso porque esse sentido semiótico
é um sentido já constituído, previsto e armazenado sempre de
modo isolado. Em direção contrária, ruma a semântica, que tem
“o sentido resultante da adaptação dos diferentes signos entre
eles” (PLG-II, 1989g, p. 21, grifos do autor). Estamos diante
da imprevisibilidade da língua. A metáfora é uma operante des-
ses dois níveis, entretanto o nível semântico é o responsável por
manifestar os sentidos específicos do discurso, já que estes são
produtos do individual e, por isso, únicos e irrepetíveis.
Essa dupla passagem, semiótica e semântica, que a metáfora
realiza precisa estar presente para que possa ser compreendida
nesta perspectiva, pois de um lado está o seu sentido genérico, que
é próprio do signo da língua, e do outro a construção do sentido
específico, o da língua-discurso. Retomamos, aqui, Benveniste
que afirma estar na base do sistema semiótico a organização dos
signos, cujo critério é o da significação, sendo que cada um desses
signos possui “uma denotação conceptual e incluindo numa sub-
-unidade o conjunto de seus substitutos paradigmáticos” (PLG-
-II, 1989d, p. 233). Sobre esse nível, está a língua-discurso que
“constrói uma semântica própria, uma significação intencionada,
produzida pela sintagmatização das palavras” (PLG-II, 1989d,
p. 233-234). Desse modo, a metáfora participa do que Benveniste
chama de “duplo sistema”, podendo servir como exemplo para
demonstrar o que é do domínio semiótico e o que é do semântico.
Observar a metáfora nesse contexto de duplo sistema é ob-
servar que ela passa da condição de signo, sua condição formal,
para a condição de palavra, pois só assim poderá integrar-se à
frase. Isso equivale a dizer que ela se desloca da língua para o
discurso. Precisamos lembrar, mais uma vez, que o homem faz
uso da língua por intermédio de frases e que cada uma destas será
sempre única, singular, irrepetível e direcionada a uma situação
de discurso. A metáfora configura uma espécie de elo, visto
que ela intermedia a relação entre o homem e o mundo, entre o
168
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
homem e o homem, e, na condição de palavra, possibilita o pen-
samento e a linguagem. E mesmo que não haja a experiência da
metáfora, o homem tem, no discurso, a possibilidade de formar
o sentido, de construir o objeto, porque a linguagem tem esse
poder de intermediar, de dar forma, sentido e conteúdo. Eis a
arquitetura da metáfora.
Então, a metáfora enquanto elemento da língua-discurso faz
do texto publicitário uma construção dinâmica e potencializadora,
porque a cada enunciação metafórica os sentidos se recriam. Essa
enunciação metafórica, do texto publicitário, consegue aliar as
linguagens verbal e visual, pois o sentido do discurso se constitui
a partir da referência, a qual se encontra, sim, na palavra, mas
tem na imagem uma espécie de suporte que afirma a referência.
O especial do texto publicitário está aí, na sua capacidade de
realizar a metáfora no verbal e no visual.

Referências
BENVENISTE, Émile. Saussure após meio século. In: _____ . Proble-
mas de linguística geral I. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995a. p. 34-49.
_____ . Os níveis de análise linguística. In: _____ . Problemas de lin-
guística geral I. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995b. p. 127-140.
_____ . A natureza dos pronomes. In: _____ . Problemas de linguística
geral I. 4. ed. Campinas: Pontes, 1995c. p. 277-283.
_____ . A forma e o sentido na linguagem. In: _____ . Problemas de
linguística geral II. Campinas: Pontes, 1989d. p. 220-242.
_____ . O aparelho formal da enunciação. In: _____ . Problemas de
linguística geral II. Campinas: Pontes, 1989e. p. 81-90.
_____ . Esta linguagem que faz a história. In: _____ . Problemas de
linguística geral II. Campinas: Pontes, 1989f. p. 29-40.
_____ . Estruturalismo e linguística. In: _____ . Problemas de linguística
geral II. Campinas: Pontes, 1989g. p. 11-28.

169
Aline Wieczikovski Rocha, Claudia Stumpf Toldo | A semantização do discurso metafórico...
FLORES, Valdir do Nascimento; TEIXEIRA, Marlene. Introdução à
Linguística da Enunciação. São Paulo: Contexto, 2008.
FLORES, Valdir do Nascimento. A enunciação e os níveis de análise
linguística. Anais do Seminário Internacional de Texto, Enunciação
e Discurso – SITED. PUCRS: set. 2010, p. 396-402.

170
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Capítulo
VII

Práticas de letramento,
ensino de línguas
e multimodalidade
na era digital
Elisa Marchioro Stumpf
Aline Aver Vanin

O discurso sobre as deficiências da realidade educacional


brasileira tem se tornado mais frequente nos últimos anos, à me-
dida que avaliações internacionais revelam dados desanimadores
a respeito do desempenho de alunos da educação básica. Em
que pese o fato de que tais avaliações e seus parâmetros possam
ser questionadas, é difícil negar constatações empíricas advindas
dos sujeitos envolvidos no ambiente escolar: tanto professores
quanto alunos apontam para o fato de que os conteúdos presentes
nos currículos parecem não estar adequados à realidade atual,
causando desmotivação e resistência por parte dos alunos, em
especial por aqueles provenientes de camadas mais populares
(Rojo, 2009). Se por um lado esse quadro do ensino parece
171
Elisa Marchioro Stumpf
, Aline Aver Vanin | Práticas de letramento, ensino de línguas ...
bastante caótico, por outro tais constatações são positivas porque
colocam em xeque algumas crenças latentes ao fazer pedagógico e
abrem espaço para repensar as práticas atuais. Um exemplo disso
é a reformulação do ensino médio realizada no Rio Grande do
Sul, com a implantação do ensino politécnico que, ao aproximar
teoria e prática, procura auxiliar o aluno a integrar os conteúdos
e pensá-los sob uma perspectiva de uso social59.
Neste capítulo, procuramos tematizar como o ensino de
língua portuguesa (ou mesmo o ensino do português como lín-
gua adicional) pode contribuir para a fazer o aluno se ver como
sujeito nas diversas possibilidades de interação social que se dão
por meio da linguagem escrita. Isso se alinha ao que é postula-
do pelos Referenciais Curriculares do Rio Grande do Sul, que
afirmam ser o objetivo das disciplinas de línguas e literatura dar

ao aluno condições de, ao longo da escolaridade, ampliar suas


competências para agir no mundo através do uso de línguas, de
amadurecer e constituir-se como ser de linguagem que é e, por
fim, de chegar à compreensão de conceito de língua que possa
ser relacionado a qualquer uma com a qual venha a ter contato
(2009, p. 53).

Nesse sentido, é relevante aproximar o ensino de língua


com as realidades que os alunos trazem e compartilham em sala
de aula. De nada adianta centrar as atividades de ensino em
uma língua estanque, cujos exercícios e práticas não ultrapas-
sam o nível das frases. Ou, numa tentativa de se enquadrar ao
que muito se discute hoje, levar os alunos a praticarem gêneros
discursivos que não se aproximam daqueles que encontram
em seu dia a dia. Seria como ensiná-los a escrever cartas num
59
“Há a necessidade da construção de uma nova proposta político-pedagógica em que
o ensino das áreas de conhecimento dialogue com o mundo do trabalho, que interaja
com as novas tecnologias, que supere a imobilidade da uma gradação curricular”
(RIO GRANDE DO SUL, 2011, p. 6).

172
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
tempo em que até mesmo os e-mails parecem ultrapassados. As
práticas de ensino de língua precisam estar em conexão com os
gêneros da contemporaneidade, com destaque, aqui, para os
da esfera virtual. É relevante chamarmos a atenção para o fato
de que, enquanto há uma grande parte da população brasileira
sem acesso à informação, uma outra parcela parece ter nascido
com os gadgets nas mãos. Esses últimos, os nativos digitais60, são
capazes de conviver com espantosa naturalidade com cada novo
lançamento tecnológico, adaptando-se às múltiplas modalidades
de interação entre humanos e máquinas.
Portanto, de maneira mais específica, nosso objetivo é
discutir de que forma o mundo digital, no qual muitos alunos
encontram-se praticamente imersos, influencia as práticas de lei-
tura e de escrita. Longe de demonizar tal influência, procuramos
mostrar como essas diferentes tecnologias podem ser utilizadas
a favor do trabalho pedagógico com a língua em sala de aula,
em uma perspectiva que valoriza a interação como princípio
orientador das práticas de linguagem. Além disso, tomamos
como princípio organizador do ensino a prática social, que des-
loca o planejamento de uma sequência de conteúdos ordenados
para uma escolha de textos significativos para o aluno, enquanto
membro de uma dada comunidade. Para Kleiman (2007, p. 5),
tomar a prática social como “ponto de partida e de chegada”
não implica abandonar os conteúdos específicos da disciplina,
mas sim trabalhar com eles em uma perspectiva que enfatize sua
importância na participação efetiva e competente em diversas
práticas sociais por meio da linguagem. O grande desafio que
se coloca para o professor é como determinar quais textos são
significativos, dada a “bagagem cultural diversificada dos alunos
que, antes de entrarem na escola, já são participantes de atividades
60
Expressão cunhada por Marc Prensky (2001) para se referir às pessoas que nasceram
em uma época em que tecnologias digitais são usadas cotidianamente.

173
Elisa Marchioro Stumpf
, Aline Aver Vanin | Práticas de letramento, ensino de línguas ...
corriqueiras de grupos que [...] já pertencem a uma sociedade
tecnologizada e letrada” (Kleiman, 2007, p. 9).
Essas considerações justificam nossa escolha por tomar os es-
tudos sobre letramento como base de nossa reflexão. Ao conceber
que as práticas de leitura e escrita são socialmente situadas, tais
estudos permitem ampliar a consideração de diferentes práticas,
sem colocá-las em posição de maior ou menor prestígio, embora
apontem para a valorização social que algumas delas possuem.
Assim, a ancoragem nesses estudos permite o resgate e o estudo
de diferentes práticas que extrapolam o contexto escolar, mas que
dele podem fazer parte e serem objetos de reflexão e estudo por
parte de alunos e professores. É nesse ponto que a esfera virtual
adentra as práticas de letramento. A propagação dos gêneros da
cibercultura em todos os setores da vida contemporânea propicia
uma reflexão sobre uma reinvenção dos processos de leitura e de
escrita provocada pela influência do meio virtual. Considerando
essas mudanças, nosso texto tem como objetivo central discutir
as práticas de letramento na contemporaneidade, em especial
aquelas fundamentadas nos gêneros da esfera virtual.
O trabalho se divide em três partes. Inicialmente, procura-
mos contextualizar a corrente de estudos que dá suporte a nossa
discussão, mostrando, ainda que de maneira breve, o surgimento
e o desenvolvimento dos estudos sobre letramento. A seguir,
focamos nossa reflexão nas práticas de letramento que podem
fazer uso dos gêneros da esfera digital, com especial atenção às
suas consequências para a leitura e escrita. Por fim, procuramos
debater como incluir tais práticas no ensino de língua materna
ou até mesmo adicional.
Antes de seguir nosso percurso, cabe fazer uma ressalva.
O foco deste artigo recai, inevitavelmente, sobre a sala de aula,
dada a natureza de nossas experiências e trajetórias acadêmicas.
Entretanto, não queremos, com isso, responsabilizar unicamen-
te o professor pela inclusão ou não de práticas de letramento
174
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
relacionadas à esfera digital no seu fazer pedagógico. Sabemos
que discutir essa questão passa por outras instâncias, incluindo
aí aquelas que poderiam garantir uma infraestrutura adequada
e perspectivas de formação continuada para docentes em exercí-
cio61. Nosso objetivo é orientado a fim de mostrar a importância
deste trabalho como algo que possa mobilizar o aluno em uma
aprendizagem significativa e sugerir alguns caminhos possíveis.

Práticas de leitura e de escrita:


múltiplas e socialmente situadas
Nos meados da década de 80, surgiu um novo enfoque nas
pesquisas sobre leitura e escrita. Oferecendo um contraponto
às pesquisas de cunho cognitivista, os chamados New Literacy
Studies (Novos Estudos do Letramento) procuraram apresentar
uma abordagem sociocultural das práticas letradas. Utilizando
a etnografia como metodologia de pesquisa, trabalhos como os
de Heath (2001, publicado originalmente em 1982) e Street
(1984) ofereceram uma descrição detalhada de tais práticas. Isso
possibilitou mostrar como algumas práticas são mais sociais e
academicamente valorizadas, em detrimento de outras, o que aca-
bou por colocar em xeque concepções sobre práticas de leitura e
escrita que tinham como verdade uma concepção de língua como
algo normatizado, estático e passível de ser apreendido por meio
da transmissão de conhecimentos. Essas concepções anteriores
defendiam, inclusive, que tais processos eram possibilitados por
meio do domínio de certas habilidades independentes que, uma
vez adquiridas, podiam ser transferidas para outros contextos. No
contexto brasileiro, essa corrente de estudos resultou na introdu-
ção de um novo conceito, o de letramento. Práticas de leitura e de
escrita, ou de letramento, são um tipo de prática social construída
61
Kleiman (2008) chama a atenção para o fato de que temas como textos multimodais
parecem ainda não ocupar um espaço significativo na formação inicial do professor.

175
Elisa Marchioro Stumpf
, Aline Aver Vanin | Práticas de letramento, ensino de línguas ...
nas interações dos sujeitos com os gêneros do discurso com os
quais se convive. Kleiman (1995) afirma que letramento é um
conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema
simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para
objetivos também específicos. Já Soares (2002) mostra que o
letramento está além da ideia da própria prática da leitura e de
escrita, ou do impacto da escrita sobre a sociedade, mas como
estado ou condição de quem exerce as práticas sociais de leitura
e de escrita, de quem participa dos eventos em que a escrita é
parte da interação entre pessoas e do processo de interpretação
dessa interação – isto é, os eventos de letramento.
Os eventos de letramento estão ligados a qualquer situação
em que a escrita é parte da natureza das interações entre os parti-
cipantes. Para Heath (1983), esses eventos são situações em que
a escrita se torna essencial na atribuição de sentido. Os grupos
sociais que têm domínio do uso da escrita mantêm interações,
atitudes, competências discursivas e cognitivas que lhes conferem
condições para interagir em uma sociedade letrada. Contudo,
“na perspectiva dos Estudos do Letramento, não há apenas uma
forma de usar a língua escrita – a reconhecida e legitimada pelas
instituições poderosas, à qual todos têm acesso –, mas há múltiplas
formas de usá-la, em práticas diversas que são sociocultural e
historicamente determinadas” (Kleiman, 2008, p. 490). É por
esse motivo que se defende uma visão plural e multicultural
das práticas de uso da língua. Os contextos sociais nos quais as
produções escritas se inserem não são, necessariamente, aqueles
de maior prestígio; na verdade, quaisquer comunidades de fala
com características discursivas próprias fazem uso da escrita.
Assim, a reflexão sobre práticas de letramento situadas e bem
constituídas levam não só à consciência de um empoderamento
pela linguagem, mas a um posicionamento sobre o lugar dentro
da comunidade discursiva ao qual cada sujeito pertence. Para
176
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Street (2003), o engajamento em práticas de letramento é sempre
um ato social, e isso afeta a natureza do letramento em progresso.
Além disso, por considerar que os atos de ler e de escrever
são atos de poder e de autoridade, Street (1993) apresenta uma
abordagem ideológica de letramento em detrimento de um mo-
delo autônomo de letramento. Segundo esse último modelo, a
escrita é “um produto completo em si mesmo, que não estaria
preso ao contexto de sua produção para ser interpretado; o pro-
cesso de interpretação estaria determinado pelo funcionamento
lógico interno ao texto escrito” (Kleiman, 1995, p. 22).
Já o modelo ideológico não desconsidera os estudos empre-
endidos, seguindo o modelo autônomo. Entretanto, ele aponta
para o fato de que as práticas que se desenvolvem em torno da
escrita são influenciadas por fatores culturais e relacionadas às
estruturas de poder de uma dada sociedade, o que se reflete de
maneira especial nas práticas escolares de letramento (Kleiman,
1995, p. 38-39). Os Novos Estudos do Letramento mostram que
essas práticas são, na verdade, diversas e socialmente situadas.
Um exemplo é o estudo de Heath (2001) que, ao comparar
eventos e práticas de letramento de diferentes comunidades,
mostra como o que se entende por letramento no processo ini-
cial de escolarização valoriza certas práticas letradas ao invés de
outras. Pode-se dizer que alunos que não conseguem dar conta
das práticas iniciais de letramento não foram suficientemente
treinados da forma como a escola valoriza. A autora mostra, por-
tanto, que alguns estilos cognitivos ou estilos de aprendizagem
são mais importantes para as atividades escolares de leitura e
escrita de textos. Entretanto, tais estilos não se resumem a uma
questão de preferência e/ou habilidade do indivíduo, mas de-
pendem fortemente das práticas iniciais de socialização às quais
uma criança é exposta no grupo social em que é criada. Assim,
práticas valorizadas no âmbito escolar podem ou não ter feito
177
Elisa Marchioro Stumpf
, Aline Aver Vanin | Práticas de letramento, ensino de línguas ...
parte das experiências prévias da criança em diferentes eventos
e práticas de letramento na sua vida pré-escolar.
De acordo com Heath (2001), os eventos e práticas de
letramento que ocorrem em uma comunidade americana de
classe média escolarizada são as que irão se repetir mais tarde
na escola. Ao analisar a leitura de histórias para dormir, a autora
constata que as questões de compreensão de texto seguem uma
certa sequência. Inicialmente, são empregadas questões do tipo
“o que é isso?”, que buscam categorizar e classificar fenômenos e
objetos, bem como compará-los com novas e diferentes ocorrên-
cias. Esse tipo de questão tem uma consequência importante, pois,
segundo a autora (2001, p. 322), “a explicação sobre informações
pontuais é repetida quando se aprende a identificar os tópicos
frasais, escrever esquemas e responder a testes padronizados
que pedem os títulos corretos para cada história, e assim por
diante”62. Ou seja, uma vez aprendida, espera-se que o aluno
consiga descontextualizar essa habilidade e aplicá-la em outras
atividades de leitura, compreensão e escrita de textos.
Após ter atingido o domínio desse tipo de explicação, as
crianças devem, então, fornecer explicações lógicas (“reason-expla-
nations”) ou comentários afetivos, que normalmente vêm depois
das explicações sobre informações pontuais (“what-explanations”),
na ordem dos exercícios de leitura. As explicações lógicas, que
se intensificam nos anos finais do ensino fundamental, diferem
do outro tipo por não apresentarem conteúdo com alto grau de
redundância e por dependerem de conhecimentos detalhados em
um dado domínio. Esse conhecimento, no entanto, é imprevisível
e, muitas vezes, pode extrapolar o conhecimento do professor,
motivo pelo qual muitas vezes tais questões são deixadas como
62
No original: “the what-explanation is replayed in learning to pick out topic sentences,
write outlines, and answer standardized tests that ask for the correct titles to stories,
and so on”. Todas as traduções são de responsabilidade nossa.

178
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
“crédito extra”. Por último, os comentários afetivos figuram no
final de atividades de leitura ou também como “crédito extra”63.
Além disso, espera-se que a criança domine determinados
comportamentos em relação aos momentos de leitura do texto
escrito. Entre eles, fazem parte os estilos de tomada de turno e
maneiras de demonstrar conhecimento. Para a autora, nas prá-
ticas levadas a cabo a partir do evento de contar histórias antes
de dormir, as crianças aprendem a ouvir e a esperar por pistas
que sinalizam sua vez de falar e responder às perguntas, além
de aprender sinais para poder falar em um grupo.
Como se pode constatar, os estudos ancorados nessa pers-
pectiva dão relevo a aspectos que costumavam ser ignorados até
então, tais como as identidades construídas pelos participantes
e as relações de poder que circundam as práticas letradas. Nas
palavras de Ivanic (2004, p. 222), “letramentos são heterogêne-
os, moldados por interesses, epistemologias e relações de poder,
têm consequências para identidade e estão abertos à contestação
e mudança”64.
Nesse sentido, Hall (2005) compreende identidade como
a concepção de sujeito como possuidor de diversas identidades
formadas continuamente, sofrendo mudanças em função das
relações simbólicas que estabelece. O sujeito, então, assume
diferentes identidades em diferentes momentos. Enquanto
membro de um grupo, o indivíduo deve aprender a habitar no
mínimo duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a
63
Tais perguntas podem se encaixar em dois tipos de questão, de acordo com a tipo-
logia elaborada por Marchuschi (2001), a saber: perguntas subjetivas e perguntas do
tipo vale-tudo. Em comum a esses dois tipos, está o fato de que são perguntas que
admitem qualquer resposta e, por isso, não podem ser avaliadas propriamente. Isso
revela o quanto a escola não encoraja os alunos a fazer uma relação entre o texto
e as suas vivências e preferências de leitura, o que certamente não contribuiu para
a formação de leitores.
64
No original: “literacies are heterogeneous, are shaped by interests, epistemologies
and power relations, have consequences for identity and are open to contestation
and change”.

179
Elisa Marchioro Stumpf
, Aline Aver Vanin | Práticas de letramento, ensino de línguas ...
traduzir e a negociar entre elas, resultando disso a formação de
culturas híbridas.
Somos socialmente construídos e individualmente orienta-
dos; o indivíduo é, necessariamente, contextualizado, ao mesmo
tempo em que se empenha em irromper desse contexto com
um comportamento individualizado. Ao relacionarem-se com
outros, todas as ações que partem dos sujeitos e daqueles com
quem interagem contribuem para a formação de marcas que os
transformam. É por meio da linguagem que significados do estar
no mundo se concretizam. Mais do que comunicar, a linguagem
serve à elaboração da realidade, e é por meio dela que o sujeito
poderá dizer como a sua realidade se configura e tornar mani-
festo um conjunto de crenças sobre o mundo. Por isso, não se
pode falar em língua sem tratar das identidades de cada sujeito
e dos grupos aos quais se inserem: aprender (sobre) uma língua
significa abrir nossas identidades para mudanças e refletir sobre
essas identidades que assumimos ou que podemos assumir. Para
Simões et al. (2012), por serem expressões das identidades sociais
é que as línguas não existem sem variação: “a variabilidade dos
usos da língua é um recurso para que possamos, no espaço da
linguagem, nos constituir em nossas singularidades, associações
e conflitos identitários” (p. 85).
O ensino de língua, materna ou adicional, está diretamente
ligado à construção das subjetividades dos alunos, e essas estão
indissociavelmente ligadas à construção de suas identidades so-
ciais. Por isso, provocar reflexões a respeito das relações entre as
identidades é essencial para que os aprendizes possam livrar-se de
um pensamento estanque e voltado à crença de que a realidade
é aquela que se apresenta a eles, e não como algo que é a todo o
momento construído. Simões et al. (2012, p. 85) reforçam essa
ideia ao afirmar que “o acesso a novos modos de usar a língua,
especialmente os vinculados à escrita, representa a oportunidade
de [...] pensarmos em nossas identidades não como destinos
180
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
inexoráveis, aos quais estamos submetidos, mas colocá-las em
xeque e realizar escolhas”. Alunos que reflitam sobre aquilo que
aprendem e que saibam negociar sentidos para a realidade são
sujeitos empoderados; eles podem, a partir disso, escolher como
interagir em diferentes grupos sociais e, consequentemente, saber
como posicionar-se em situações diversas.
Nessa linha, defende-se que o ensino vise à dialogicidade,
em detrimento de uma prática monológica, centrada no docente.
Para auxiliar os alunos na construção de suas identidades em
sua comunidade discursiva, as práticas pedagógicas devem ser
orientadas com vistas a tornar visíveis, desafiar e lidar com dis-
cursos oficiais e não oficiais (Lillis, 2003, p. 193). Um discurso
monológico parte do pressuposto de que a comunidade de fala
(neste caso, a escolar) é homogênea, enquanto os objetivos de
um ensino dialógico focam mais na noção de que a comunidade
é heterogênea, isto é, traz consigo múltiplos saberes, os quais
devem ser aproveitados. Para Lillis (2003, p. 198), a língua, bem
longe de ser uma entidade estática, com significados fixos, como
implicado em dicionários, por exemplo, é um fenômeno vivo e
social que carrega significados e contribui dinamicamente para
que esses possam ser elaborados. Somente por meio de práticas
significativas, com o uso de gêneros do discurso próximos da
realidade dos alunos, pode-se levar à consciência do lugar que os
aprendizes podem ocupar e, consequentemente, das identidades
sociais que podem assumir.
Por esse motivo, as práticas que envolvem o uso da lingua-
gem devem implicar a inserção de sujeitos interlocutores em
determinados contextos – ou situações de produção –, visando a
diferentes finalidades de comunicação e a partir de lugares enun-
ciativos diversificados (Rojo, 2004). O acesso a novos modos de
usar a língua ocorre por meio das experiências sociais ao longo
da vida, a partir das quais as práticas e os eventos de letramento
serão apropriados para que só assim o sujeito, consciente de que
181
Elisa Marchioro Stumpf
, Aline Aver Vanin | Práticas de letramento, ensino de línguas ...
pode ter voz, possa circular em diferentes esferas sociais. Em
se tratando da comunidade discursiva virtual, a manipulação
das diversas ferramentas oriundas das novas tecnologias leva à
reelaboração de gêneros discursivos que, na sua multimodalidade,
acabam moldando também as maneiras de falar sobre a realidade.

Práticas de letramento na comunidade


virtual
Como discutimos anteriormente, a noção de letramento
está associada ao papel que a linguagem escrita tem em nossa
sociedade e aos modos como as pessoas fazem uso da escrita em
determinadas situações. Logo, os eventos e práticas de letramento
não podem ocorrer somente na escola. De fato, é preciso reco-
nhecer que os alunos participam de inúmeros eventos e práticas
de letramento antes mesmo de entrar na escola e fora dela ao
longo de sua trajetória. Nas palavras de Kleiman (1995, p. 20),
“o fenômeno do letramento extrapola o mundo da escrita tal qual
ele é concebido pelas instituições que se encarregam de introduzir
formalmente os sujeitos no mundo da escrita”. Se é verdade que,
nos últimos anos, a escola parece manter um diálogo com o que
se passa para além dos seus muros, incorporando elementos da
realidade dos alunos, não se pode dizer que essa mesma atenção
tem sido estendida às novas tecnologias de informação e de co-
municação65. Dessa forma, é importante ressaltar que quaisquer
espaços nos quais os sujeitos interagem, os materiais aos quais
têm acesso, as pessoas com quem se comunicam têm papel funda-
mental como agentes de letramento. Nesse sentido, aproximar as
65
De acordo com uma pesquisa realizada pelo Centro de Estudos sobre as Tecnologias
da Informação e da Comunicação, embora haja a presença de computadores e
internet nas escolas, apenas 8% das instituições da rede pública têm computadores
na sala de aula. Além disso, tal pesquisa demonstrou que, para mais da metade dos
professores, o computador serve para praticar conteúdos discutidos em aula (UM
BALANÇO, 2013).

182
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
diversas instâncias do cotidiano aos inúmeros gêneros discursivos
com os quais os alunos estão em contato, de modo a dar sentido
a esse aprendizado, só pode resultar em bons frutos. Por isso,
é necessário estabelecer uma ponte entre as experiências vividas
pelos alunos e o ensino de língua.
Muitos desses estudantes lidam com as novas tecnologias
com habilidade natural, demonstrando que essas estão arraigadas
às suas atividades cotidianas, como caminhar e conversar. É difícil
ignorar o fato de que a virtualidade não é mais um mundo à parte,
nem que faz parte da realidade, mas é a própria realidade. Na era
contemporânea, não se pode mais dissociar o desenvolvimento
dessa habilidade da influência da interação humano/máquina.
Por isso, deixar de tratar de questões ligadas ao mundo virtual
é deixar escapar a oportunidade de tornar o ensino mais signi-
ficativo. Aliar as tecnologias digitais ao processo de letramento,
promovendo um processo de aprendizado significativo, só pode
levar a um empoderamento social e cultural tanto por parte dos
estudantes como daqueles que ensinam.
Para Silva (2005, p. 63), a cibercultura está relacionada com
“modos de vida e de comportamentos assimilados e transmitidos
na vivência histórica e cotidiana marcada pelas tecnologias infor-
máticas, mediando a comunicação e a informação via Internet”.
Há muito pouco tempo, o espaço virtual era uma realidade
acessível a poucos, com muitas limitações. Essa realidade parecia
distante das massas e conseguir informações poderia levar dias
ou meses. Hoje, cada vez mais pessoas têm acesso às máquinas
e a rede faz parte de suas vidas, assim como qualquer tipo de
atividade cotidiana. Gibson (2010) corrobora essa aproxima-
ção quando afirma que “o ciberespaço, há não muito tempo,
era um lugar específico, em que visitávamos periodicamente,
distinguindo-o do mundo físico familiar. Agora, o ciberespaço
183
Elisa Marchioro Stumpf
, Aline Aver Vanin | Práticas de letramento, ensino de línguas ...
transformou-se. [...] Colonizou o espaço físico”66. O mundo
virtual se confunde com a vida comum, e a hiperconectividade
vem mudando a forma como elaboramos a própria cultura. Isso
se reflete na intensidade com que a informação se propaga, e na
forma como ela está disposta. O ciberespaço trouxe à tona formas
multimodais de comunicação, em que os gêneros discursivos se
desdobram em uma infinidade de maneiras de dizer. Em uma
mesma página da Web, a compreensão de um texto tem o su-
porte de fotografias, figuras, gráficos, hyperlinks, símbolos como
emoticons, cores, sons. Um texto não é somente um conjunto de
parágrafos (bem) encadeados, mas um apanhado de estímulos
multimodais com os quais se aprende a jogar conforme seu uso.
Trata-se da emergência de uma realidade quase palpável.
Para Gee e Hayes (2011), a linguagem sempre englobou a
combinação entre som, palavra, ícone e imagem, e, vista dessa
forma, a ideia de multimodalidade não parece ser tão nova. O que
ocorre é que, hoje, essa multimodalidade é exacerbada, em que
estímulos variados tocam a todos os sentidos de forma intensa.
Os sujeitos que interagem com essas tecnologias recebem um
fluxo muito maior de informações, mas muitas vezes não sabem
o que fazer, ou não conseguem lidar com elas. Desse modo,
aprender a selecionar informações e ler de forma crítica também
são habilidades pressupostas no letramento, especialmente em
práticas que envolvem a ampla multimodalidade e disponibilidade
propiciada pela esfera digital.
Entendendo-se que todo o texto é multimodal em essência
– haja vista a sua materialidade como fruto de múltiplos planos
de construção (Kress; Van Leuween, 1998) –, a leitura e com-
preensão de cada produção constitui um processo de reflexão
sobre a constituição textual. Se cada texto é um conjunto bem
66
No original: “Cyberspace, not so long ago, was a specific elsewhere, one we visited
periodically, peering into it from the familiar physical world. Now cyberspace has
everted. [...] Colonized the physical”.

184
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
formado de modalidades, é necessário levar essa metarreflexão
para a sala de aula. Atualmente, com a presença cada vez mais
constante das tecnologias na vida cotidiana, as atividades de
leitura e de escrita passaram a exigir uma maior consciência não
só sobre o processo de interpretação textual, mas sobre os novos
modos de escrever propiciados pela multimodalidade tecnológi-
ca. Para Ribeiro (2013), há a necessidade de letramentos e do
domínio de ferramentas para o alcance de um grau de seleção e
de decisão cada vez maior em produção textual, e isso implica
mais e novas formas de participação na cultura escrita.
Como afirma Rojo (2007, p. 63), “embora hoje em dia
os textos em ambiente digital estejam, a cada dia mais, multis-
semióticos, multimidiáticos e hipermediáticos (Lemke, 1998),
sua matéria prima é principalmente e desde sempre a linguagem
escrita”. O texto eletrônico, também chamado de hipertexto, tem
tido um grande impacto nas práticas de leitura, pois, embora a
leitura do texto verbal escrito seja necessária, ela já não é mais
suficiente para dar conta dos sentidos do texto. Nas palavras
da autora, “é preciso colocá-lo em relação com um conjunto de
signos de outras modalidades de linguagem que o cercam, ou
intercalam ou impregnam” (Rojo, 2007, p. 65). Nesse sentido,
pode-se dizer que estamos diante de um novo letramento: se
lembrarmos o conceito de Soares trazido anteriormente, para
quem letramento envolve o estado ou condição de quem exerce
práticas sociais de leitura e escrita, então esse letramento fun-
damentado na esfera digital diz respeito a “um certo estado ou
condição que adquirem os que se apropriam da nova tecnologia
digital e exercem práticas de leitura e escrita na tela” (Soares,
2002, p. 151, grifos da autora).
Para a autora, tais práticas são moldadas pelas tecnologias
digitais de leitura e de escrita, considerando-se dois elementos
que as diferenciam das tecnologias tipográficas, quais sejam, o
espaço de escrita e os mecanismos de produção, reprodução e
185
Elisa Marchioro Stumpf
, Aline Aver Vanin | Práticas de letramento, ensino de línguas ...
difusão da escrita. Em relação ao espaço de escrita, entendido por
Bolter (1991, apud Soares, 2002, p. 149) como “campo físico
e visual definido por uma determinada tecnologia de escrita”,
pode-se dizer que ele causou alterações no que diz respeito às
práticas de escrita e leitura, aos gêneros e usos da escrita e às
relações entre escritor, texto e leitor. Ao contrário do texto em
papel, que tem sua dimensão definida materialmente e é escrito
e lido sequencialmente, o hipertexto tem sua dimensão definida
pelo leitor, bem como seu início, meio e fim, e é lido de forma
multilinear, sem uma ordem predefinida (Soares, 2002, p. 150 ).
De acordo com Soares (2002, p. 153-154), em relação aos
mecanismos de produção, recepção e difusão da escrita, é possí-
vel afirmar que a cultura do texto eletrônico é análoga à cultura
do manuscrito, visto que ambos não são estáveis e rigidamente
controlados. O texto eletrônico também encurta a distância entre
autor e leitor, já que o leitor torna-se autor ao escolher, entre as
múltiplas possibilidades, a estrutura do texto. Em relação à ques-
tão da autoria, é importante lembrar que a internet trouxe uma
importante alteração com relação a esse aspecto, visto que esse
meio “possibilita a publicação e distribuição na tela de textos que
escapam à avaliação e ao controle de qualidade” (Soares, 2002,
p. 155), o que exige do leitor um letramento crítico para decidir
a respeito da qualidade e confiabilidade dos textos disponíveis
no meio digital.

As implicações da multimodalidade
tecnológica para o ensino
Novas tecnologias levaram a mudanças significativas no
modo de pensar e agir do homem contemporâneo. Com a hi-
perexposição e o uso desenfreado da rede, concepções sobre o
aprendizado, especialmente o da leitura e da escrita, ganham
186
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
novos questionamentos. Tendo em vista que não se pode mais
pensar numa linearidade nem em apreensão, em termos de cons-
trução de conhecimentos, é urgente refletir também sobre o modo
como as pessoas estão se comunicando na rede. As tecnologias
digitais propiciaram o desenvolvimento da multimodalidade
em termos não só digitais, mas da própria atividade letrada. As
pessoas passaram a utilizar mais a escrita e a leitura nesses meios,
e o domínio das ferramentas digitais disponíveis leva também a
mudanças importantes sobre as formas de expressão.

A Internet tornou possível, como afirma Beaudouin (2002),


que passássemos a conversar com as mãos e os olhos, ao invés
de com a boca e os ouvidos. O ambiente digital escrituralizou
(Lahire, 2003) mesmo a conversa do dia a dia.
Portanto, os atos de ler e escrever são ainda mais fundamentais na
interação virtual que em nossas interações cotidianas, no mundo
atual. E isso torna relevante e urgente o estudo dos letramentos
digitais (Rojo, 2007, p. 63)

Cabe-nos, nesse momento, pensar como as novas práticas de


letramento, nas quais participam todos os que utilizam tecnologias
de informação e comunicação, podem influenciar as práticas de
linguagem centradas no texto que ocorrem no ambiente escolar.
Em primeiro lugar, ressaltamos a importância de conhecer os
gêneros que os alunos utilizam nas suas práticas sociais cotidianas.
Como havíamos dito anteriormente, um planejamento de ensino
orientado pelas práticas sociais, e não pelos conteúdos, implica
descobrir quais textos são significativos para os participantes de
uma dada comunidade. O professor assume, dessa forma, um
papel de etnógrafo, em que pesquisa as práticas nas quais os
alunos se engajam e como se dá a interação nelas. A partir disso,
é possível pensar na seleção de gêneros a serem trabalhados, sem
perder de vista a sua função na prática social em que ocorrem,
187
Elisa Marchioro Stumpf
, Aline Aver Vanin | Práticas de letramento, ensino de línguas ...
com destaque para a interlocução construída nas interações.
Sem a consideração das práticas e da interlocução estabelecida,
corre-se o risco de trabalhar com os gêneros pensando somente
nas suas características e estrutura, sem levar em conta o fato de
que esses aspectos são determinados fundamentalmente por causa
do interlocutor, e são estabelecidos no momento da fala ou da
elaboração escrita. Uma vez que essa etapa foi concluída, a tarefa
consiste em organizar uma progressão de gêneros, partindo dos
mais familiares aos alunos até chegar em gêneros com os quais
os alunos possam não ter tanto contato, mas que desempenhem
um papel importante nas práticas sociais nas quais os alunos já
interagem ou irão interagir futuramente. Acreditamos que à escola
se deve o papel de, além de incluir as práticas dos alunos fora
dos seus muros, ampliar o leque de participação social efetiva
e competente desses aprendizes, possibilitando a eles o contato
significativo com outros gêneros.
Em segundo lugar, ao incluir os gêneros que circulam na
esfera digital e que fazem parte das práticas sociais em que os
alunos participam, o professor já potencializa o processo de
leitura, que envolve quatro papéis (Freebody; Luke, 1990):
decodificador do código, participante do texto, usuário do texto
e analista do texto. Em primeiro lugar, porque o próprio processo
de atribuição de sentido, ou seja, de participação no texto, vai
além do texto escrito e engloba os outros elementos semióticos
presentes, cada um com seu próprio código, bem como a interação
entre esses elementos. Assim, deve-se propiciar estratégias que
ajudem o aluno a compreender os diferentes sistemas semióticos,
como cada um deles significa e como a integração entre eles
contribui para o sentido global do texto. Além disso, é necessário
mediar a leitura de forma que os alunos possam fazer inferências
adequadas na construção de significados. Quanto mais próximo
o texto for da realidade dos alunos, maior a possibilidade de que
isso ocorra, o que também justifica nossa ideia anterior de que
188
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
o professor deve assumir um papel similar ao de um etnógrafo
e partir do conhecimento dos alunos. Em segundo lugar, partir
das práticas sociais facilita ao aluno se colocar como usuário do
texto, na medida em que ser um leitor proficiente “é ser capaz
de participar em atividades sociais em que o texto escrito tem
um papel central”67 (Freebody; Luke, 1990, p. 10). Deve-se,
portanto, auxiliar o aluno no reconhecimento dos papéis sociais
dos textos e como esses papéis moldam os textos em si e a leitura
que se faz deles, fazendo, dessa forma, com que os alunos possam
refletir sobre as práticas sociais em que participam e a função da
linguagem. Por último, ser um analista do texto implica reco-
nhecer os posicionamentos ideológicos que subjazem aos textos
e responder de forma crítica a eles.
Nesse sentido, a esfera digital oferece maiores possibilidades
de interação e participação dos leitores, oportunizando aos alu-
nos a chance de manifestar sua opinião de forma pública e com
interlocutores reais fora da sala de aula. É por meio dessa esfera
que se evidencia o fato de a leitura não ser uma atividade linear,
nem superficial, mas que requer habilidades que extrapolam os
limites dos caracteres. A multimodalidade tecnológica se reflete
na escrita, mas essa diferença, hoje, passa despercebida pelos
nativos digitais, constatação que vai ao encontro da previsão
feita por McLuhan de que as tecnologias tornam-se invisíveis à
medida que se tornam familiares.
Em terceiro lugar, destacamos uma das principais vantagens
de se trabalhar com textos eletrônicos presentes no cotidiano dos
alunos: a possibilidade de interação oferecida pela Web 2.068, que
permite a troca de informações e a construção colaborativa do co-
nhecimento. Embora todos os gêneros tenham uma interlocução
67
“is being able to participate in those social activities in which written text plays a
central part”.
68
Web 2.0 refere-se a mudanças que tornaram o ambiente virtual mais interativo e
colaborativo, no que diz respeito ao compartilhamento de informações entre usuários,
o que facilitou a publicação de conteúdo pelos mesmos (VELLOSO, 2010, p. 19).

189
Elisa Marchioro Stumpf
, Aline Aver Vanin | Práticas de letramento, ensino de línguas ...
em potencial, que deve ser recuperada no momento de escrita, os
gêneros que circulam na Web podem ter uma interação mais real
e, dessa forma, facilitar para o aluno a definição do seu interlocu-
tor no momento da escrita. Assim, ao invés de produzir um texto
somente com o propósito de ser avaliado, muitas vezes apenas
pelo professor, o aluno terá que produzir um texto adequado à
situação de produção e publicação, definindo seu propósito para
então escolher o gênero e os recursos que vai utilizar para, enfim,
compartilhar em sua comunidade de fala, lugar onde socializam
suas ideias e opiniões. A concretização de ideias utilizando os
diversos gêneros emergentes na esfera virtual, uma realidade
significativa para os alunos, aproxima-os dos propósitos alme-
jados nas práticas de letramento: que essas práticas de leitura e
de escrita, socialmente construídas nas interações com os demais
sujeitos da comunidade de fala, levem a uma construção contínua
de identidades e, consequentemente, à oportunidade de escolher
modos de expressão e de posicionamento em seu grupo social.
Para finalizar, gostaríamos de destacar um ponto relativo
ao uso da tecnologia em sala de aula. Pouco adianta introduzir
novas ferramentas e manter velhas práticas de ensino. Uma aula
expositiva terá o mesmo efeito se for com o texto escrito no quadro
ou projetado em uma tela. As novas tecnologias de informação e
comunicação implicam o surgimento de novos modos de interação
e são esses novos modos que devem ser objeto de reflexão em
sala de aula. Nossa proposta é mostrar como as práticas sociais
em que os alunos interagem com seus pares, notadamente por
meio do uso de recursos tecnológicos, podem ser aproveitadas
no ambiente escolar para ressignificar o espaço de aprendizado.
Busca-se não apenas aproveitar-se da multimodalidade dos gêne-
ros digitais simplesmente como uma analogia àqueles do passado
(isto é, a carta que foi transformada no e-mail, que se transformou
numa mensagem em rede social, que, por sua vez, foi sintetizada
em poucas palavras em mecanismos de mensagem rápida via
190
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
smartphones), mas como uma forma de aproveitar os eventos e
práticas de letramento para refletir sobre as mudanças no modo
como as interações ocorrem na contemporaneidade. A escrita
situada e com posicionamento crítico, bem como a habilidade de
leitura e interpretação são instrumentos de poder. E é por meio
de um ensino dialógico, com práticas afinadas com a realidade
dos aprendizes, atento aos novos gêneros da contemporaneidade
que se constroem identidades que determinarão os lugares de
cada indivíduo em seus grupos sociais. Ao proporcionar aos
alunos a possibilidade de estabelecer interações significativas
tanto com o texto enquanto objeto de estudo quanto com outros
membros de sua comunidade, o ensino de língua torna possível
uma apropriação significativa das práticas de linguagem que
permitem a participação social.

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cao/2013/05/24/um-balanco-sobre-a-presenca-da-tecnologia-nas-
-escolas/>. Acesso em: 24 maio 2013.
VELLOSO, Maria Jacy Maia. Letramento digital na escola: um estudo
sobre a apropriação das interfaces da web 2.0. 2010. 143 f. Disserta-
ção (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais,
Belo Horizonte, 2010.

193
Elisa Marchioro Stumpf
, Aline Aver Vanin | Práticas de letramento, ensino de línguas ...
194
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Capítulo
VIII

Alguns conceitos-chave
da semiótica do texto:
funcionalidade no ensino
da leitura na escola
Elisane Regina Cayser1
Marlete Sandra Diedrich2
Patrícia Valério3

A leitura de textos, tanto dentro da escola quanto fora dela,


dá acesso a informações e contribui significativamente para a
formação de cidadãos críticos (Freire, 1995). Porém, o que se
constata nas práticas escolares é que nem sempre os professores
1
Professora do Curso de Letras da Universidade de Passo Fundo (UPF); mestre em
Letras (PUCRS) e especialista em Linguística Aplicada à Alfabetização (PUCRS).
Atualmente, coordena o curso de especialização em Língua Portuguesa/UPF e a
área de Língua Portuguesa/UPF, atuando no Curso de Letras com disciplinas ligadas
à Língua Portuguesa, às Práticas de Ensino e ao Estágio Supervisionado. É coordenadora
do subprojeto PIBID/Capes/UPF – Letras/ Língua Portuguesa. E-mail: ecayser@upf.br.
2
Doutoranda em Letras pela UFRGS, mestre em Linguística pela Pontifícia Univer-
sidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), professora de Língua Portuguesa
e Linguística do Curso de Letras da Universidade de Passo Fundo (UPF). E-mail:
marlete@upf.br.
3
Doutoranda em Linguística Aplicada na Universidade do Vale do Rio dos Sinos
(UNISINOS), mestre em Letras/Estudos Linguísticos pela Universidade de Passo
Fundo (UPF), professora do curso de Letras da UPF. E-mail: patriciav@upf.br.

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Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério | Alguns conceitos-chave da semiótica...
têm clareza acerca do que deve ser abordado, analisado, quando
se fala em compreensão textual.
O letramento que vem sendo oferecido aos alunos, tanto
do ensino fundamental quanto do médio, geralmente está muito
vinculado – se não restrito – ao livro didático, o que leva a dizer
que esse tem papel fundamental na formação de leitores. Tal cons-
tatação justifica nossa opção por, na sequência, analisar a prática
pedagógica a partir do que é apresentado em livros didáticos.
Os documentos oficiais apontam para o interesse de se
renovar a prática de ensino através da não-fragmentação do
conhecimento, o que possibilitaria, então, a verdadeira formação
do sujeito para a cidadania (PCNEM, 1999).
Na área de língua materna, isso implicaria a necessidade de
se desprender de um ensino tradicionalmente voltado à nomen-
clatura gramatical, adotando uma linha enunciativo-discursiva,
em que a linguagem seja vista como forma de interação entre
sujeitos, o que remete diretamente ao conceito de texto, enquanto
enunciado, o qual estabelece o vínculo entre dois interlocutores
que, como tal, interagem num determinado tempo e num de-
terminado espaço social.
Primando por isso, os livros didáticos deveriam propor ati-
vidades de leitura que possibilitassem essa formação de um leitor
proficiente, capaz de reconstruir os sentidos do texto através da
comparação, da generalização, da análise dos recursos linguísticos
empregados e dos efeitos criados por eles, sendo capaz, inclusive,
de posicionar-se em relação ao texto quanto à visão de mundo
por ele apresentada.
Na maioria das vezes, porém, o que se verifica é a existên-
cia de uma prática de leitura que oscila entre dois polos: de um
lado, a subjetividade extrema; de outro, a objetividade extrema.
Na primeira perspectiva, tem-se a supremacia do leitor
sobre o texto – o que vale é o tema e a opinião que o leitor tem
196
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
a respeito dele. Nesse caso, o texto funcionaria como mero pre-
texto para discutir posições pessoais ou do grupo, sem a análise
de aspectos relativos à construção dos sentidos no texto, através
da materialidade linguística.
Na segunda perspectiva – a da objetividade extrema –,
tem-se a supremacia do texto em detrimento dos interlocutores
e das suas visões de mundo, dos seus conhecimentos.
Marcuschi (1996), em meados dos anos 1990, fazendo uma
análise de livros didáticos de língua portuguesa, constatou que os
manuais nada mais apresentavam do que uma série de atividades
de “copiação”, não servindo, portanto, ao desenvolvimento da
habilidade leitora. Segundo ele, a grande maioria das questões
era de ordem formal, raramente estimulando uma reflexão crítica
acerca do texto. Apesar de necessárias ao entendimento do texto,
tais questões não são suficientes para tanto.
O mesmo estudo também constatou serem frequentes os
exercícios que indagavam sobre opiniões pessoais, os quais, como
já dito anteriormente, apenas se apoiam no texto como trampolim
para discussões de posições individuais e, portanto, não contestá-
veis pela materialidade linguística. Ao final da análise de algumas
obras, o autor constatou que mais da metade dos exercícios de
compreensão apresentados pelos manuais escolares podiam ser
divididos em quatro categorias; “a) perguntas respondíveis sem
a leitura do texto; b) perguntas não respondíveis, mesmo lendo
o texto; c) perguntas para as quais qualquer resposta serve; d)
perguntas que só exigem exercício de caligrafia” (idem, p. 7).
Essas categorias demonstram uma inadequação conceitual
sobre a compreensão textual e o próprio desenvolvimento cogni-
tivo dos alunos. A primeira falha, e da qual a seguinte decorre, é
o tratamento da língua como um código estanque e transparente,
e não como atividade constitutiva – através da qual se constroem
sentidos –, cognitiva e uma forma de ação entre interlocutores.
197
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério | Alguns conceitos-chave da semiótica...
Dada a opacidade da língua, não se pode imaginar que
todos os sentidos estejam objetivamente inscritos no texto. A
polissemia existe e a pluralidade de significados é resolvida
através do acionamento de conhecimentos compartilhados entre
os interlocutores, seja no texto escrito, seja no oral. Justamente
dessa interação é que surge a ideia de compreensão como uma
espécie de coautoria, através da qual os sentidos são construídos
em parceria entre quem produz e quem ouve/lê o texto.
Essa concepção de compreensão defendida por Marcuschi
acaba por obrigar um redimensionamento no segundo equívoco
conceitual cometido pela escola: a visão de texto como depositório
de informações acabadas e imutáveis e no qual deve ser buscada
uma única resposta ou, num outro extremo, qualquer resposta.
Como, no processo de leitura, são desencadeados processos
cognitivos através dos quais são acionados conhecimentos de
mundo distintos, cada texto pode suscitar diferentes – mas não
infinitas – inferências, ou seja: entender um texto implica criação
de sentidos, e não passividade. Nas palavras de Marcuschi (idem,
p. 10), age-se sobre os textos, e não simplesmente reage-se a eles.
O autor estabelece, a partir dessas considerações, cinco ní-
veis em que podem ser lidos os textos. O mais básico deles seria
aquele em que somente há uma repetição do texto original; no
segundo, definido como horizonte mínimo de leitura, o texto é
parafraseado e a leitura ainda é vista como a busca de informa-
ções objetivamente postas no texto; no terceiro nível – horizonte
máximo – estaria a leitura das entrelinhas, o que compreende a
tomada de conclusões a partir de inferências feitas sobre o texto;
no quarto patamar – horizonte problemático – encontrar-se-iam
as leituras que extrapolam o texto através de uma sobreposição
do conhecimento de mundo do leitor/ouvinte sobre o texto; no
quinto e último nível estaria situada a leitura inadequada, em
que o leitor/ouvinte, dependendo das condições de enunciação,
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Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
depreende outro sentido diferente daquele inicialmente inten-
cionado no texto.
Para o autor (idem), a falha na concepção de língua e de
texto evidenciada pelos livros didáticos desconsidera o fato de que
a compreensão não pode se restringir àquilo que está linearmente
posto no texto. Compreender é, antes, construir – ativamente,
portanto – um sentido, o que acaba por aproximar a recepção e
a produção textual, já que necessariamente quem compreende
está produzindo outro texto, paralelamente, através da negociação
dialógica entre leitor, autor e texto, a qual é influenciada por vários
fatores, sobretudo pelas condições de produção e recepção dos
enunciados. Isso leva à confirmação de que os livros didáticos, no
aspecto referente à compreensão de textos, além de desvinculados
das necessidades da nossa época, desconsideram o avanço dos
estudos teóricos acerca da língua.
Especificamente quanto à compreensão de textos no livro
didático, o autor reforça que a questão que se coloca não é a
ausência de tais atividades, mas sim a sua natureza, que confunde
compreensão com decodificação, não levando a uma reflexão
crítica sobre o texto e pressupondo sua monossemia. Nesse
sentido, Marcuschi formula uma tipologia para as questões de
compreensão encontradas nos manuais didáticos (2008, p. 271-
272), assim resumida:
• Perguntas do cavalo branco de Napoleão – em que a
resposta já se encontra embutida na própria pergunta.
• Cópias – questões que sugerem a mera transcrição de
trechos textuais.
• Objetivas – questões em que a resposta encontra-se em
conteúdos objetivamente inscritos no texto.
• Inferenciais – questões que exigem processos inferenciais
que englobam conhecimentos textuais e outros.
199
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério | Alguns conceitos-chave da semiótica...
• Globais – questões que consideram o texto em sua totali-
dade e, por isso, exigem processos inferenciais complexos.
• Subjetivas – questões que se relacionam superficialmente
com o texto, sendo a resposta de ordem pessoal e, por
isso, inquestionável. Também são problemáticas por,
frequentemente, solicitarem respostas de acordo com a
ideologia pregada pela escola.
• Vale-tudo – questões que usam o texto como pretexto
para discussão de assuntos aleatórios a ele. Também
possibilitam respostas de cunho pessoal.
• Impossíveis – questões que indagam sobre conteúdos
não presentes no texto, sendo que a resposta depende
de conhecimentos enciclopédicos unicamente.
• Metalinguísticas – questões que indagam sobre assuntos
de ordem formal.

Analisadas 2.360 questões à luz da tipologia criada, o pesqui-


sador constatou que 70% das perguntas exigiam apenas a cópia
do texto ou a localização de informações objetivamente inscritas,
enquanto que apenas 10% exigiam algum tipo de inferência.
Outros 11% foram classificados como questões impossíveis de
serem respondidas a partir do texto, subjetivas ou de vale-tudo.
Os demais 9% ficaram por conta das questões metalinguísticas.
O autor confirma, assim, a ausência, nos materiais por ele
analisados, de uma concepção do que seja compreender um texto,
do que decorrem problemas e equívocos na própria organização
das questões que visam a esse fim.
Dada essa inconsistência no trabalho apresentado pelos
livros didáticos, apresenta-se, a seguir, um breve resumo da
Teoria Semiótica do Texto, de linha greimasiana, a qual pode
consistir num instrumento importante para o professor perceber
200
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
o funcionamento do texto enquanto unidade de significação em
que todas as partes convergem para a construção do todo textual.

A Teoria Semiótica do Texto


Inserida nos estudos da Semântica, a Semiótica caracteriza-
-se como uma teoria gerativa, sintagmática e geral: gerativa por
mostrar que temas e figuras distintas na superfície textual podem
corresponder a valores, conceitos idênticos na essência dos textos;
sintagmática por explicar o próprio processo de construção e des-
construção do texto, e geral por mostrar que, independentemente
do plano de expressão, o conteúdo segue a mesma organização.
Cabe distinguir, aqui, o que se entende por plano de con-
teúdo e por plano de expressão. O plano de conteúdo de um
texto pode ser definido como a instância onde estão inscritos os
personagens, o tempo e o espaço do enunciado, o espaço onde o
enunciador se projeta no enunciado através de diferentes efeitos
criados, em que ocorrem as mudanças de estado dos sujeitos em
relação a dado objeto-valor, bem como a dimensão onde se esta-
belecem as categorias semânticas de base que conferem coerência
ao todo textual. Em suma, o plano de conteúdo nada mais é do
que a união dos três diferentes níveis do percurso de geração de
sentido previstos pela Semiótica do Texto: nível discursivo, nível
narrativo e nível fundamental. Tal plano, no entanto, para que o
texto possa ser manifestado, necessita do apoio de um plano de
expressão, ou seja, de um canal e de um código específicos que
sejam capazes de tornar o texto existente também para o outro –
já que, somente com o plano de conteúdo, ele somente existiria
na mente de quem produz o texto. É, pois, da união desses dois
planos – o de conteúdo e o de expressão – que surge, então, o
plano da manifestação propriamente dita.
201
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério | Alguns conceitos-chave da semiótica...
Conforme já dito, para a Semiótica do Texto, o plano de
conteúdo de um texto é estruturado em três diferentes níveis: o
superficial, o intermediário e o profundo.
No nível superficial – nível das estruturas discursivas –
afloram os termos que dão concretude a instâncias mais abstratas
e gerais dos níveis mais profundos do texto. É nesse nível que
são apontados os personagens, os cenários, o tempo, as ações de
um texto.
Já o nível intermediário – nível das estruturas narrativas
–, apresenta os valores com que os sujeitos – explicitados na
estrutura discursiva – entram em conjunção ou disjunção, ou
seja, com os quais passam a estabelecer uma relação de posse ou
de privação. Dada essa característica fundamental, é nesse nível
que ocorrem as transformações de estado do texto. Em outras
palavras, é no nível intermediário que se estabelece a narratividade
do texto, seja ele temático ou figurativo.
No nível profundo – nível da estrutura fundamental –, aflo-
ram os significados mais simples e abstratos, os quais garantem a
unidade do texto por meio de uma categoria semântica delimitada
por dois termos de significação oposta.
Explicitados os níveis que compõem o texto, pode-se traçar o
percurso de organização do sentido: quem produz o texto parte do
nível fundamental, tendo claro quais são os polos opostos entre si
que devem nortear a construção de todo o texto, daí estabelecen-
do as relações entre os sujeitos e os valores para, somente numa
última instância, revestir tais sujeitos e tais valores de concretu-
de, através das figuras ou dos temas. Já com o leitor/receptor, o
caminho seguido é o inverso: percebem-se, primeiramente, os
elementos concretos instaurados no texto, depois se estabelecem
as relações conjuntivas ou disjuntivas entre sujeitos e objetos
para, somente após, chegar-se à definição dos dois significados
abstratos que se opõem e que norteiam o texto.
202
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Com vistas a analisar cada um dos níveis que compõem o
percurso gerativo de sentido, os mesmos serão apresentados, a
seguir, de forma mais especializada.
Antes de passar à análise dos níveis, deve-se antecipar que
cada um deles apresenta uma gramática própria, ou seja, um
modo de organização e de significação. Desse dado, advém,
respectivamente, a denominação sintaxe e semântica discursiva,
narrativa ou fundamental, denominação que não pode ser con-
fundida com a estabelecida pelos estudos gramaticais tradicionais.
Ambos os elementos estão intimamente relacionados e mantêm
uma relação complementar entre si.

O nível fundamental
No nível fundamental, os sentidos são o mais abstratos
possíveis, os quais são, depois, nos níveis subsequentes de estru-
turação do texto, gradativamente revestidos por elementos mais
concretos, existentes no mundo real ou fictício. Caracterizam-se,
também, como sendo os mais simples: liberdade vs. dominação,
vida vs. morte etc. Dessa forma, para que se possa estabelecer
a semântica do nível fundamental, é necessário selecionar dois
termos, ambos pertencentes à mesma categoria semântica, que se
opõem entre si. É a partir desses dois termos que se constrói todo
o sentido do texto, sendo que cada um dos termos recebe – em
dado texto – um valor: positivo ou negativo, valores esses que
aparecem inscritos no próprio texto, e não no sistema axiológico
do leitor. No caso de a categoria liberdade ser valorizada positiva-
mente, diz-se que ela é eufórica, enquanto a categoria dominação
passa a ser valorizada negativamente, ou seja, configura-se como
disfórica. A título de exemplificação, pode-se citar o que diz
Fiorin (1997):

o discurso de certos fundamentalistas que pregam a violência do


martírio valorizará positivamente a morte e negativamente a vida,
203
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério | Alguns conceitos-chave da semiótica...
ao passo que o discurso sobre a felicidade como algo do aqui e
agora possivelmente considerará a vida como valor positivo e a
morte, como negativo (p. 20).

Já a sintaxe do nível fundamental é entendida como a


ordem de sucessão na geração dos sentidos. Assim, os termos
estabelecidos na semântica fundamental – termos A e B – são,
na sintaxe, organizados através de operações de negação ou
de asserção, podendo, no dizer de Barros (1997), aparecer as
seguintes relações:
• afirmação de A, negação de A, afirmação de B;
• afirmação de B, negação de B, afirmação de B (p. 20).

O nível narrativo4
Para Barros (1997), as estruturas narrativas simulam tanto a
história do homem em busca de valores ou à procura de sentido
quanto a dos contratos e dos conflitos que marcam os relaciona-
mentos humanos. Em suma, a sintaxe narrativa trata, fundamen-
talmente, das mudanças de estado dos sujeitos – figurativizáveis
por uma pessoa, uma coletividade, um animal – em relação ao
objeto – figurativizável por um lugar, uma situação, um desejo.
A partir dessa definição, podem-se estabelecer dois tipos de
enunciados básicos na sintaxe narrativa: o enunciado de estado,
que aponta para uma situação de conjunção ou de disjunção entre
o sujeito e o objeto, e o enunciado de fazer, que aponta para a
transformação das relações existentes anteriormente, explícita
ou implicitamente colocadas no texto. Assim, um sujeito pode
4
É preciso, aqui, distinguir narração de narratividade. Por narração entende-se um tipo
específico de texto, no qual a narratividade é mais explícita, dado que as mudanças
de estado estão ligadas diretamente a personagens circulando em tempos e espaços.
Já por narratividade entende-se um componente básico de todo texto, independente
de sua tipologia, responsável pelas alterações de estado existentes num texto. Dessa
forma, deve ficar claro que o nível narrativo aqui definido não se restringe a textos
unicamente narrativos.

204
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
estar privado de um determinado objeto de desejo, por exemplo,
buscando, através do uso de estratégias diferenciadas – objetos
modais – apoderar-se dele.
A essa mudança de estado chama-se programa narrativo do
texto, através do qual é possível definir se o sujeito se apropria
de um determinado objeto-valor – programa narrativo de
aquisição –, como é o caso do exemplo acima mencionado, ou
dele passa a ser privado – programa de privação.
Fiorin (1997) alerta, sobre isso, para o fato de as narrativas,
em geral, constituírem-se como complexas, nas quais se sucedem
estados de ser e de fazer. Em tais narrativas, quando estruturadas
de uma forma canônica, é possível perceber quatro diferentes
fases encadeadas a partir de pressuposições lógicas:
• a fase da manipulação, em que um sujeito leva outro a
querer ou a dever fazer algo, ou a não querer ou não
dever fazer algo. Essa ação entre sujeitos pode ocorrer
por meio da tentação, da intimidação, da sedução ou
da provocação. Pressupõe-se, então, a existência de um
sujeito manipulado e de um manipulador, os quais, even-
tualmente, podem ser representados pela mesma figura;
• a fase da competência, em que o sujeito destinador, no
dizer de Barros (1997, p. 28), “doa ao destinatário-sujeito
os valores-modais do querer-fazer, do dever-fazer, do
saber-fazer ou do poder-fazer”. Como diz o próprio
nome, é nesta fase que o sujeito se torna capaz de agir,
ou, dizendo de forma mais precisa, de assumir-se como
sujeito da narrativa;
• a fase da performance, em que se efetivam as mudanças
de estado, ou seja, em que o sujeito passa de um estado
de disjunção com determinado objeto-valor para um
estado de conjunção, ou vice-versa;
205
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério | Alguns conceitos-chave da semiótica...
• a fase da sanção, em que se constata a transformação,
podendo, o sujeito, ser punido ou premiado.

Sobre essas fases, cabe reforçar que nem sempre elas se


manifestam na superfície textual. Algumas vezes, o que ocorre
é que um texto somente explicita a sanção sofrida pelo sujeito,
que pode ser, por exemplo, um castigo recebido por ter tido certo
tipo de comportamento. Nesses casos, de qualquer forma, estão
implícitas as outras fases: o sujeito foi manipulado a adotar certo
comportamento, recebendo, então, poder – competência – para
agir, o que o levou à ação propriamente dita. Em suma, muitas
vezes a narrativa tende a desenvolver apenas uma das fases, ou
a reorganizar as fases em uma estrutura diferente da canônica.
Isso permite dizer que a estrutura apresentada pelo texto não
é rígida, e sim norteada, conforme já dito, por pressuposições
lógicas. Essa implicitude característica de muitos textos só vem
a confirmar a pertinência da análise proposta pela Semiótica do
Texto, que é, antes de mais nada, lógico-semântica, ou, de acordo
com a nomenclatura utilizada nos níveis, sintático-semântica.
A semântica narrativa ocupa-se especificamente dos valo-
res inscritos nos objetos, classificando-os como objetos modais
e objetos de valor. Os objetos modais são aqueles capazes de
possibilitar, ao sujeito, a transformação de estado, enquanto que
os de valor são os próprios objetos com que o sujeito estabelece
relações conjuntivas ou disjuntivas. Ambos objetos relacionam-se
no texto, daí dizer-se que o sujeito é modalizado na sua mudança
de estado, modalização essa que pode ocorrer pelo querer, pelo
dever, pelo poder ou pelo saber. Assim, no caso de um sujeito
desejar, por exemplo, adquirir um carro, esse representa o objeto-
-valor com que ele deseja entrar em conjunção. Para que haja,
então, a mudança do estado de disjunção para o de conjunção, o
sujeito precisa de um objeto-modal, que lhe possibilite ter a posse
206
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
do automóvel, objeto esse que pode ser figurativizado por um
certo valor recebido como herança, um aumento de salário etc.
Sobre a semântica narrativa é necessário dizer, por fim,
que um mesmo objeto pode, na estrutura narrativa, representar
ora um objeto modal, ora um de valor. Pode, também, o mesmo
objeto representar, em diferentes textos, diferentes objetos-valor.

O nível discursivo
Por ser o nível discursivo o mais próximo da manifesta-
ção, ele caracteriza-se como sendo a estrutura onde afloram os
elementos mais concretos e, também, mais complexos – porque
variados – do texto. Assim, textos distintos na estrutura discur-
siva por figuras ou temas diversos podem vir a ter, na estrutura
fundamental, as mesmas categorias semânticas de base.
Para Barros (1997),

a análise discursiva opera [...] sobre os mesmos elementos que


a análise narrativa, mas retoma aspectos que tenham sido postos
de lado, tais como as projeções da enunciação no enunciado, os
recursos de persuasão utilizados pelo enunciador para manipular
o enunciatário ou a cobertura figurativa dos conteúdos narrativos
abstratos (p. 53-54).

A sintaxe discursiva analisa as relações que se estabelecem


entre enunciador-enunciado e enunciador-enunciatário, embora
tal divisão nem sempre seja simples, uma vez que os recursos exis-
tentes no enunciado têm sua razão de ser em função do próprio
destinatário: o enunciador visa a atuar sobre o enunciatário, em
última instância, a convencê-lo, usando, para tanto, dois efeitos
de sentido básicos: o de proximidade ou o de distanciamento, e
o de realidade ou de referente. Para isso, o enunciador se projeta
no enunciado, não sendo correto, no entanto, imaginar que o
207
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério | Alguns conceitos-chave da semiótica...
enunciador está no enunciado: ele deixa, sim, pistas no texto.
O enunciador se projeta no enunciado – processo denominado
de desembreagem – por meio das categorias de pessoa, tempo
e espaço.
Especificamente quanto à projeção através da pessoa, po-
dem-se distinguir duas estratégias: o uso da primeira pessoa no
discurso, o que causa um efeito de parcialidade, ou da terceira
pessoa, que produz o distanciamento e a consequente impar-
cialidade.
Já o efeito de realidade ou referente é alcançado por meio
do processo de ancoragem: o enunciador instaura no texto ele-
mentos – atores, espaço e tempo – que, ao mesmo tempo em
que concretizam os dados abstratos do nível narrativo, criam a
ilusão da veridicção.
O texto pode ser analisado, ainda na sintaxe discursiva,
quanto às relações argumentativas estabelecidas por ele entre
enunciador e enunciatário: o primeiro exerce um fazer persuasivo,
enquanto o segundo, um poder interpretativo, pautado nas pistas
deixadas por aquele.
Essa manipulação ocorre através de uma espécie de contrato
de veridicção, que pode levar o enunciatário a acreditar ou não
no discurso. Isso significa dizer que o discurso não é, em si,
verdadeiro ou falso: ele é produzido como tal.
Também são sobremaneira importantes, para a análise da
persuasão textual, os pressupostos e os subentendidos, que insta-
lam, no texto, diferentes vozes capazes de conduzir o enunciatário
a um determinado universo de valores e de crenças desejados
pelo enunciador.
A semântica discursiva, por sua vez, trata dos investimentos
temáticos ou figurativos que afloram nesse nível. Segundo Fio-
rin (1997, p. 64), “todos os textos tematizam o nível narrativo
e depois esse nível temático poderá ou não ser figurativizado”.
208
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério (Org.) | Ensino de língua e enunciação
Ou seja: mesmo quando da leitura de um texto que se utilize,
no nível discursivo, de figuras, é necessário que sejam percebi-
dos os percursos temáticos seguidos, tendo em vista as figuras
representarem dados concretos que revelam significados mais
abstratos, ou seja, temáticos. O autor assim define figuras e temas:

A figura é o termo que remete a algo do mundo natural: árvore,


vaga-lume, sol, correr, brincar, vermelho, quente etc. Assim, a
figura é todo conteúdo de qualquer língua natural ou de qualquer
sistema de representação que tem um correspondente perceptível
no mundo natural. [...]. Tema é um investimento semântico,
de natureza puramente conceptual, que não remete ao mundo
natural. Temas são categorias que organizam, categorizam,
ordenam os elementos do mundo natural: elegância, vergonha,
raciocinar, calculista, orgulhoso etc. (p. 65).

Essa diferenciação no grau de concretude dos elementos


presentes no texto faz com que se distingam, então, dois tipos
de textos: os figurativos e os temáticos. Os primeiros, para
Fiorin (idem, p. 65), “constroem um simulacro da realidade,
representando, dessa forma, o mundo; os segundos procuram
explicar a realidade”. Note-se, no entanto, que muitas vezes os
textos apresentam tanto figuras quanto temas, havendo, nesses
casos, predominância de uns sobre os outros.
Cabe reforçar, conforme já foi dito quando enfocado o nível
narrativo, que diferentes figuras podem recobrir percursos te-
máticos idênticos, do mesmo modo que também o contrário pode
ser percebido: figuras idênticas podem atualizar temas distintos.
Em um texto, normalmente são estabelecidas redes figura-
tivas e redes temáticas, ou seja, as figuras e os temas se reiteram.
A essa redundância de traços figurativos ou de temas abstratos
dá-se o nome de isotopia. São as isotopias as responsáveis pela
coerência semântica do texto, que, aliada à coerência narrativa, à
209
Elisane R. Cayser, Marlete S. Diedrich, Patrícia Valério | Alguns conceitos-chave da semiótica...
coerência argumentativa e à coesão interfrástica – essa no plano
da expressão –, garante a coerência global do texto.
Na sequência, passaremos, então, à análise de um texto
utilizando alguns dos conceitos-chave da Teoria Semiótica do
Texto. Dados os limites deste artigo, optamos por enfocar apenas
o nível discursivo e o nível fundamental, ambos em relação à
sua semântica. O texto analisado é “Madonna e os meninos”, de
autoria de Claudia Laitano, publicado no Jornal Zero hora de
13 de abril de 2013.

Análise de texto na perspectiva da


Semiótica do Texto

Madonna e os meninos
A imagem tem a composição clássica de uma pintura renascen-
tista: a luminosa figura da madonna é o centro para o qual todos
os outros elementos do quadro convergem. A madonna, neste
caso, não é “uma” madonna, mas “a” Madonna. E as crianças
não são anjos, mas meninos pobres do Maláui.
Divulgada há alguns dias pelas agências de notícias, a fotografia
de Madonna cercada por crianças africanas é como aqueles
passatempos em que se procuram os sete erros em uma ima-
gem. Há algo fora do lugar ali, embora não seja fácil apontar as
incoerências sem deter-se alguns minutos nos detalhes da foto.
Uma imagem não é apenas uma imagem, mas todo o repertório
de informações prévias que evoca. Olhando Madonna sentada
no chão em um dos países mais pobres do mundo, é impossível
não pensar em tudo o que sabemos sobre ela, sobre celebridades,
sobre filantropia. De alguma forma, todas essas informações vão
sendo processadas em nosso cérebro até que chegamos a um
veredicto íntimo que nos faz: a) ficar indiferentes, b) desconfiar
dos interesses por trás da foto, c) achar que Madonna é uma
pessoa bacana, d) ficar com pena das crianças pobres, e) pensar
que também deveríamos estar fazendo trabalho voluntário.

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Não sendo uma pessoa de natureza cínica, daquelas que vê
intenções ocultas por trás de qualquer gesto de generosidade
aparentemente desinteressado, fiquei incomodada com essa
fotografia. Há algo naquela roupa branca, naqueles joelhos
dobrados sobre a terra escura, no olhar indiferente das crianças
em contraste com o olhar estudado da visitante, nas risadas dos
adultos no fundo da foto, na gratuidade do gesto de sentar-se
em meio a crianças sem interagir com elas, que grita para o
espectador: “Oi, você sabe quem eu sou e agora sabe também
que sou tão legal, que nem me importo de estar aqui sujando a
minha calça branca”.
Celebridades usam o trabalho voluntário como uma espécie de
Omo Total da imagem pública. Não há nada que limpe uma
barra e tenha um efeito tão imediato quanto uma boa fotografia
de um astro sujando os sapatos na terra escura do mundo real.
Por outro lado, não há divulgação mais eficiente para uma causa
humanitária do que associá-la a uma celebridade. É um toma lá
dá cá que pode, sim, beneficiar ambos os lados – e é preciso ser
pragmático com relação a isso.
Mas para que a imagem de uma pessoa comprometida com
causas sociais se consolide, como nos casos de Audrey Hepburn,
Lady Di e agora Angelina Jolie, não basta uma viagem ao Haiti e
um sorriso. É preciso persistência e consistência, qualidades que
nem todos os samaritanos de ocasião conseguem desenvolver – o
que me parece ser o caso de Madonna.
No Brasil, que está longe de ter uma cultura de trabalho volun-
tário regular e organizada, as empresas mais antenadas começam
a dar importância a esse tipo de experiência na hora de contratar
funcionários. É um outro tipo de toma lá dá cá – e pode ajudar
o país a começar a usar o seu enorme potencial de solidariedade
de forma mais sistemática.
E mesmo isso pode ser produto, em parte, da visibilidade que
as celebridades vêm dando ao trabalho voluntário. De coração
ou não.
(LAITANO, Cláudia. Madonna e os meninos, Zero Hora,
Porto Alegre, 13 abr. 2013. Segundo Caderno.)

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O texto de Cláudia Laitano cria, já no título, uma relação
com a madona, tema tradicional na arte sacra cristã, represen-
tada quase sempre como Maria com seu filho Jesus nos braços,
frequentemente cercados por outros personagens. Tal relação se
estabelece tanto no título quanto na imagem que acompanha o
texto verbal. “Menino”, no título, remete à ideia da Virgem Maria
com o menino Jesus, enquanto o texto não-verbal apresenta traços
que confirmam essa leitura inicial: a protagonista Madonna está
no centro, tendo destaque, com um ar de candura reforçado pela
pureza do branco da sua roupa. Ao seu redor, crianças/meninos,
que parecem condenados à pobreza, ao esquecimento. É o olhar
de Madona que leva a luz, que ilumina o futuro dessas crianças.
No nível discursivo, analisam-se as projeções da enunciação
no enunciado. Quanto a isso, pode-se dizer que o texto faz uso
da desembreagem enunciativa, o que implica o uso da 3ª pessoa.
Essa opção traz a ele um efeito de distanciamento daquele que diz
em relação ao que ele diz, ou seja, seguindo uma certa tradição
de objetividade, imparcialidade em relação aos fatos relatados.
Claro que se trata, neste caso, como em todos os outros em que
se opta por um ou outro tipo de desembreagem, de uma ilusão
de distanciamento e imparcialidade, já que a posição do autor
obviamente está presente sempre.
De qualquer forma, ao usar a 3ª pessoa nos dois primeiros
parágrafos do texto e fingir tal objetividade, o enunciador cria
a ilusão de distanciamento e, portanto, adota a posição de mero
locutor, deixando que os outros se sintam assumir a enunciação.
Já no terceiro parágrafo, o discurso passa da impessoalidade
para a 1ª pessoa do plural, e logo no parágrafo seguinte aparece
a 1ª pessoa do singular. A desembreagem enunciativa cria, então,
o efeito de proximidade, de profundo envolvimento com aquilo
que está sendo dito – que Madonna está fazendo uma boa ação
com segundas intenções. É, sim, uma posição pessoal colocada
de forma inequívoca, explícita no texto. Porém, no parágrafo
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seguinte, na linha 19, volta-se à 3ª pessoa – o que equivale a dizer
que, no momento da comprovação da posição adotada, volta-se
a criar um efeito de distanciamento e de maior credibilidade,
solidificando, dessa forma, a posição defendida.
Quanto aos efeitos de realidade ou referente, o discurso copia
o real, tanto por citar elementos de ancoragem que o enunciatário
reconhece como verdadeiros, existentes, como África – conti-
nente pobre, Madonna – cantora pop norte-americana, citação
de celebridades famosas também pelo voluntariado etc., como,
principalmente, pela fotografia que acompanha o texto – não há
como negar que realmente o fato se sucedeu. Como diz Fiorin
(1997, p. 60), na medida em que se tornam “reais as persona-
gens, os locais e os momentos em que os fatos ocorrem, torna-se
verdadeiro todo o texto que a eles se refere”.
Dito isso, resta analisar, no nível das estruturas discursivas,
as pistas da enunciação que favorecem a persuasão do enuncia-
tário: o texto procura instaurar-se, claramente, como verdade,
fazendo o destinatário acreditar nos valores que sustenta. O
enunciador confronta o comportamento de Madonna com o
comportamento de outras celebridades, mostrando que, ao con-
trário de uma ação pontual, para que alguém seja tomado de
fato como altruísta é necessária uma história longa e constante
de ações filantrópicas.
Um recurso muito presente no texto de Laitano é o de
emprego de pressupostos e subentendidos, através dos quais
diferentes vozes se cruzam no texto. Um exemplo pode ser
verificado na afirmação de que “Celebridades usam o trabalho
voluntário como uma espécie de Omo Total da imagem pública”.
A imagem de Omo – produto usado para alvejar, deixar limpas
as roupas – combina perfeitamente com a imagem de Madon-
na sentada, toda de branco, junto às crianças do Maláui. Ora,
Madonna é, sim, uma celebridade. Portanto, subentende-se que
tenha alguma coisa a ser limpa – talvez a sua imagem pública,
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manchada por polêmicas protagonizadas pela cantora. Isso
compõe a astúcia da enunciação – fazer o enunciatário entender
aquilo que o enunciador quer dizer sem, no entanto, ser necessário
que ele tenha dito. Muitos outros procedimentos poderiam ser
analisados neste texto. No entanto, dados os limites deste artigo,
optamos por apresentar esse único caso de subentendido, como
mostra de quão fascinante pode ser o recurso de implicitar para
a construção da persuasão.
Quanto à semântica discursiva, há dois procedimentos pos-
síveis: a tematização e a figurativização, sendo um predominante
em relação ao outro, e não exclusivo. Neste texto, predominante-
mente temático, por analisar um acontecimento em específico, as
figuras também se fazem presentes, especialmente no início do
texto, quando o enunciador já começa elencando elementos que
se opõem entre si e que levam a construir um percurso figura-
tivo. De um lado, tem-se Madonna, caracterizada como figura
luminosa, tanto no texto verbal como no não-verbal; de outro
lado, tem-se as crianças africanas, caracterizadas pela pobreza,
metaforicamente falando, pela escuridão de uma existência repleta
de necessidades (obviamente, do ponto de vista de quem olha
da perspectiva de Madonna, com um conceito ocidentalizado de
qualidade de vida e felicidade).
Esses dois elementos, note-se, estão em oposição. Logo
no início do terceiro parágrafo, porém, o próprio enunciador
trata de fazer a transposição do texto que até então era pre-
dominantemente figurativo para um temático, quando afirma
que “uma imagem não é apenas uma imagem”. Segue-se, pois,
um texto onde predominarão os temas, num tratamento mais
abstrato do mundo, através da análise de valores envolvidos na
questão. Nesse momento, surge a análise da figura do primeiro
eixo, da sua brancura (l. 18), como representante da pureza
de sentimentos, das possibilidades infinitas, de altruísmo, em
oposição ao segundo eixo figurativo: as crianças africanas estão
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no mesmo link semântico de “terra escura” (l. 18), de falta de
possibilidade. O enunciador, porém, já dera pistas de que esta
análise pode estar equivocada: quando afirmara que havia algo
de estranho na imagem, denunciando a sua artificialidade. A
mesma denúncia volta a ser feita quando o texto afirma que o
enunciador ficou incomodado com a formatação da cena para fins
específicos de divulgação de uma imagem pessoal de Madonna: a
não-interação entre a cantora e as crianças, os olhares estudados,
a artificialidade da pose.
Até então, tem-se, no nível fundamental (lembramos que
o nível narrativo não será, intencionalmente, explorado aqui),
uma oposição básica entre a ideia de essência e a de aparência:
a aparência é disfórica, enquanto que só a essência é valorizada
positivamente. Prova disso é o fato de o texto fazer menção à
necessidade de algumas celebridades fazerem filantropia apenas
para “limparem a sua barra”, como “uma espécie de Omo Total”,
trecho, aliás, que está em perfeita sintonia figurativa e temática
com o paradoxo criado entre terra escura – mundo real – sapatos
sujos de barro X astro – aquele que é das alturas, que está acima
das coisas do mundo trivial.
Retomando – até então o texto valoriza positivamente a ideia
de sinceridade, de altruísmo e de solidariedade sem segundas
intenções, condenando atitudes pautadas em um retorno midiático
favorável à construção da imagem da celebridade.
A grande guinada do texto vem, porém, assinalada, na linha
25, quando a autora aponta para “o outro lado” – a de que as
causas humanitárias também ganham com a associação às cele-
bridades, confirmando que é preciso ser, usando suas palavras,
“pragmático” e se dobrar à realidade.
A partir desse ponto, é quebrada a estrutura até então manti-
da em que o disfórico seria a aparência, o externo, posicionamento
que fica mais evidenciado nos dois últimos parágrafos, em que o
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enunciador passa a defender que mesmo uma ação filantrópica
voltada a interesses pessoais de dada celebridade pode ser bené-
fica uma vez que pode criar uma cultura de filantropia junto à
sociedade, que se inspira nos atos dos seus ídolos.
Veja-se, quanto a isso, que o texto em questão pode ser
caracterizado como de uma estrutura complexa, dado que até
um momento parece defender uma posição e, ao final, acaba
por reconsiderar a postura inicialmente adotada, sem, com isso,
tornar-se incoerente. Se em mais do que a metade do texto a
oposição semântica de base era aparência X essência, a partir da
linha 25, mais precisamente da expressão “por outro lado”, a
oposição semântica é substituída pelo fazer X não fazer, em que
o valorizado positivamente é o fazer, a ação benemérita, seja ela
movida por intenções não declaradas ou não. Afinal, de acordo
com o texto, as celebridades podem dar visibilidade ao trabalho
voluntário, assim incentivando os outros a também adotá-lo.

Considerações finais
Buscou-se, com este breve trabalho, refletir acerca das prá-
ticas de leitura de texto adotadas pela escola, sobretudo a partir
daquelas apresentadas pelos livros didáticos, de maneira a mos-
trar que um trabalho consistente em termos de desenvolvimento
de estratégias de leitura mais complexas, que levem o aluno a
perceber a organização textual, demanda um conhecimento
profundo do que seja o texto e, especialmente, da forma como
se constroem, nele, os sentidos.
Para tanto, apresentou-se a Teoria Semiótica do Texto de li-
nha greimasiana, a qual, acredita-se, é um instrumento de grande
valia para o professor para encaminhar reflexões que privilegiem
as inferências, as generalizações e as comparações.
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Especialmente, julga-se que os conceitos referentes à sin-
taxe e à semântica do nível discursivo, bem como os ligados à
semântica do nível fundamental sejam extremamente produtivos
em termos de propiciar a análise dos mecanismos semânticos do
discurso no plano de expressão em textos de gêneros diversos.

Bibliografia
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Ática, 1997.
BRASIL/ SEMTEC. Parâmetros curriculares nacionais: ensino médio.
Brasília, DF: MEC/SEMTEC, 1999.
FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. 6. ed. São Paulo:
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FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se
completam. 30. ed. São Paulo: Cortez, 1995.
GREIMÁS, A. J. e COURTÉS, J. Dicionário de semiótica. São Paulo:
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MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e
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MARCUSCHI, Luiz Antônio. Exercícios de compreensão ou copiação
nos manuais de ensino de língua? Em Aberto, Brasília, ano 16, n. 69,
1996.

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www.meritos.com.br

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