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Letras . Módulo 6 .

Volume 4

ASPECTOS ESTILÍSTICOS E
PRAGMÁTICOS DA LÍNGUA
PORTUGUESA
Sylvia Maria Campos Teixeira

Ilhéus . 2014
Universidade Estadual de
Santa Cruz

Reitora
Prof.ª Adélia Maria Carvalho de Melo Pinheiro

Vice-reitor
Prof. Evandro Sena Freire

Pró-reitor de Graduação
Prof. Elias Lins Guimarães

Diretor do Departamento de Letras e Artes


Prof. Samuel Leandro Oliveira de Mattos

Ministério da
Educação
Letras | Módulo 6 | Volume 4 | Aspectos Estilísticos e Pragmáticos da Língua Portuguesa

1ª edição | Fevereiro de 2014 | 462 exemplares


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Projeto Gráfico e Diagramação


Waldir Serafim Cotias Júnior

Capa
Waldir Serafim Cotias Júnior

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Ficha Catalográfica
EAD . UAB|UESC
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Coordenação Adjunta UAB – UESC


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Coordenação do Curso de Licenciatura em


Letras Vernáculas (EaD)
Prof. Dr. Rogério Soares de Oliveira

Elaboração de Conteúdo
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Instrucional Design
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Revisão
Prof. Me. Roberto Santos de Carvalho

Coordenação de Design
Me. Saul Edgardo Mendez Sanchez Filho
DISCIPLINA

ASPECTOS ESTILÍSTICOS E
PRAGMÁTICOS DA LÍNGUA
PORTUGUESA

EMENTA
Estudo de aspectos semânticos, estilísticos e pragmáticos da língua por-
tuguesa: correlações e aplicabilidades.
A AUTORA
Professora Ma. Sylvia Maria Campos Teixeira
Formada em Direito pela Universidade Federal Fluminense.
Bacharel e Licenciada em Letras (Português-Francês) pela
Universidade Federal Fluminense (UFF). Especialista em Li-
teratura Brasileira pela Pontifícia Universidade Católica de
Minas Gerais (PUC - MG). Mestre em Estudos Linguísticos
pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atua
nas seguintes áreas: Análise do Discurso, Literatura, Estudos
Culturais e de Gêneros, Língua e Literatura Francesa.
sylviamariateixeira@gmail.com
APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA

Caro(a) Estudante,

Você leu a ementa e ela direciona para três áreas de conheci-


mento aparentemente distintas: Estilística, Semântica e Pragmática.
Falo em aparentemente, porque, em todas as três disciplinas, há
a preocupação em se analisar a escolha discursiva feita pelo enunciador,
que varia de acordo com o público visado e a situação da enunciação.
Nestas aulas, vamos tentar, depois de abordarmos cada discipli-
na em separado, “unir as pontas”, analisando quais seriam as intenções
do enunciador e os efeitos de sentido, criados por ele.

Bons estudos!
SUMÁRIO

UNIDADE 1 - aspectos estilísticos da língua portuguesa


1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................................................... 15
2 EStilística: algumas noções e precursores.............................................................. 15
2.1 funções da linguagem................................................................................................................ 17
2.2 figuras de estilo ou de linguagem: algumas tipologias............................. 26
3 Algumas considerações............................................................................................................ 44
resumindo..................................................................................................................................................... 44
referências.................................................................................................................................................. 45

UNIDADE 2 - aspectos semânticos da língua portuguesa


1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................................................... 51
2 a polissemia como construção do sentido.............................................................. 51
ATIVIDADE....................................................................................................................................................... 54
resumindo..................................................................................................................................................... 56
referências.................................................................................................................................................. 57

UNIDADE 3 - aspectos pragmáticos da língua portuguesa


1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................................................... 63
2 o que é pragmática........................................................................................................................ 63
3 teoria inferencial das implicaduras............................................................................ 73
4 os atos de fala: Searle............................................................................................................... 81
ATIVIDADEs..................................................................................................................................................... 86
RESUMINDO..................................................................................................................................................... 87
REFERÊNCIAS.................................................................................................................................................. 88
UNIDADE 4 - unindo as pontas
1 INTRODUÇÃO.......................................................................................................................................... 95
2 estratégias discursivas............................................................................................................. 95
3 ethos discursivo............................................................................................................................ 102
4 análise discursiva de alguns textos........................................................................... 107
atividade.....................................................................................................................................................112
resumindo...................................................................................................................................................112
referências................................................................................................................................................113
1ªunidade
ASPECTOS ESTILÍSTICOS DA
LÍNGUA PORTUGUESA

Objetivo

Ao final desta unidade, o estudante deverá reconhecer os recursos


estilísticos de diversos textos ficcionais, poéticos e/ou críticos; desen-
volver habilidades de pesquisa estilística na análise de diversas pro-
duções discursivas; identificar algumas figuras de estilo presentes nos
textos.
Aspectos estilísticos da língua portuguesa

AULA 1

1 INTRODUÇÃO

1
Unidade
Nesta unidade, dividida em 3 aulas, falaremos sobre a Estilística
e seus precursores, estudaremos as funções da linguagem, algumas
figuras de estilo e, por fim, analisaremos alguns textos.

2 ESTILÍSTICA: ALGUMAS NOÇÕES E PRECURSORES

Se você olhar no dicionário, vai ver que existem diversas acepções


para o termo estilo. Estilo pode ser:
- Maneira particular de escrever, de exprimir o pensamento: tra-
balhar o estilo.
- Conjunto das qualidades características de uma obra, um autor,
uma época: o estilo romântico, móveis de estilo.
- Modo de vida; procedimento, atitude, maneira de ser: não é de
seu estilo agredir quem quer que seja.
- Uso, costume, hábito, modo: vestir segundo o estilo da época.
Aqui nos interessa as duas primeiras acepções, pois estilo
é o recurso pela qual o sentido é veiculado. Ou seja, é a escolha do
enunciador sobre a maneira de se exprimir.
Você se lembra da dicotomia saussuriana entre língua e fala?
Segundo Saussure (1995), a língua é o resultado de uma convenção
social, ela
[...] existe na coletividade sob a forma de sinais
depositados em cada cérebro, mais ou menos como
um dicionário cujos exemplares, todos idênticos,
fôssem repartidos entre os indivíduos. Trata-se, pois,
de algo que está em cada um deles, embora seja comum
a todos e independente da vontade dos depositários
(p. 27).

O indivíduo, nesta noção, tem apenas um papel acessório. Já a


fala é a realização pessoal da língua; é aí que levamos em conta todas as
variantes pessoais possíveis: ritmo, estilo, sintaxe, pronúncia etc. “Nada
existe, portanto, de coletivo na fala; suas manifestações são individuais

UESC Módulo 6
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Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

para conhecer e momentâneas” (SAUSSURE, 1995, p. 28).


QUEM FOI CHARLES A partir daí Saussure (1995) afirma que o objeto
BALLY?
da Linguística é a língua e que não pretende transpor os
limites entre língua e fala.
Foi um dos seus discípulos, Charles Bally, que,
em 1902, “criou” a Estilística, estudando “os efeitos da
afetividade nos atos de fala” (MELO, 1976, p. 15).
Por tradição, a Estilística é o estudo da arte do bem
escrever e a busca do homem por trás da obra, entretanto
Bally (apud MELO, 1976) foi contra estas propostas.
Fonte: http://famouslinguists.
Para ele, a Estilística não era estudar o bem escrever nem
wikispaces.com/Charles+Bally
o estilo de um autor, mas a língua falada e seus recursos
Charles Bally (1865-
estilísticos, isto é, os efeitos que dizem respeito aos
1947), linguísta suíço, foi sentimentos do locutor, seu estado de espírito etc.
aluno de Saussure e, jun-
to com Albert Sechehaye A Estilística, historicamente, tem elos com a
e Albert Riedlinger, res-
ponsável pela publicação
Retórica e a Poética aristotélicas. A Retórica designa
póstuma do Curso de a atividade do homem que fala em público, é a arte de
Linguística Geral, de Fer-
dinand Saussure. persuadir. Segundo Aristóteles (1998), é uma técnica de
A maior parte de sua
argumentação e se divide em 4 partes:
obra é dedicada à Estilís-
tica, mas também se in- 1) inventio – é a arte da invenção, são o tema, os
teressou pela Linguística
Geral. argumentos, as técnicas de persuasão;
Principais obras:
2) dispositio – é a arte da composição, a disposição
- Tratado de Estilística das grandes partes do discurso;
Francesa – 02 volumes
– 1909.
3) elocutio – é a arte do estilo, escolha e disposição
- A crise do Francês, nos- das palavras;
sa língua materna na es-
cola – 1930. 4) pronuntiatio – é a enunciação do discurso.
- Linguística Geral e Lin-
guística Francesa – 1932.
É em Poética (1991) que Aristóteles aborda os gê-
O arbitrário do signo: va- neros literários: tragédia, poesia, comédia etc. Segundo
lor e significação – 1940.
Aguiar e Silva (1996),
Fonte: http://www.univer-
salis.fr/encyclopedie/char-
les-bally/ [...] Aristóteles fundamenta a sua dis-
tinção das modalidades da poesia quer
em elementos relativos ao conteúdo
[...] assim diferenciando a poesia ele-
vada e nobre (tragédia, epopeia), que
imita o homem superior [...] e a poesia
jocosa (comédia, paródia), que imita o

16 Letras EAD
Aspectos estilísticos da língua portuguesa

homem inferior [...] e o risível da ação para conhecer


humana [...] (p. 345).
QUEM FOI PIERRE GUI-

1
RAUD?

A noção de gênero é inseparável da noção de es-

Unidade
tilo, porque a cada gênero correspondem modos de ex-
pressão precisos, determinando o vocabulário, a sintaxe,
as figuras (GUIRAUD, 1970).
Assim, por exemplo, o gênero épico apresenta-
se como uma narrativa, vinculada a fatos históricos ou
a realizações humanas, dividida em 5 partes: proposição, Pierre Guiraud (1912-
invocação, dedicatória, narração e epílogo. 1983) foi professor de
Linguística, na Universi-
dade de Nice, e autor de
uma obra importante e
2.1 Funções da Linguagem
original. Publicou um di-
cionário das etimologias
obscuras, um dicionário
A Estilística também tem conexões com as erótico sobre a obra de
François Villon e diversos
funções da linguagem (AGUIAR E SILVA, 1996). Para
livros sobre Estilística.
Jakobson (1970), para que haja comunicação linguageira
é necessária a presença dos seguintes elementos: Principais obras:

- Estruturas etimológicas
CIRCUITO DA COMUNICAÇÃO do léxico francês – 1954.
- A Estilística – 1970.
- Patois e dialetos fran-
Contexto ceses – 1971.
- A Etimologia – 1972.
- Semiologia da sexuali-
Emissor__________Mensagem_________Receptor dade – 1978.
- Dicionário erótico –
Contato 1978.
- Dicionário das etimolo-
Código gias obscuras- 1982.
Fonte: www.babelio.com/
auteur/Pierre-Guiraud/
O circuito da comunicação significa que: em um
CONTEXTO, o EMISSOR elabora uma MENSAGEM,
através de um CÓDIGO, veiculada por um CANAL,
para um RECEPTOR.
Cada um desses 6 elementos determina uma
função de linguagem.
Você já estudou as funções da linguagem... mas
vamos relembrá-las e realizar alguns exercícios!

UESC Módulo 6 I Volume 4 17


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

Fonte: www.ajilbab.com

Função Referencial ou Denotativa – centrada no contexto

Chalhoub (1990) afirma que, para entendermos melhor esta fun-


ção, temos de levar em consideração as noções denotação e conotação.
As palavras podem ser usadas em seu sentido original ou ter um novo
significado.
Por exemplo, se digo:

- Ontem queimei minha mão no fogão.

Estou utilizando o termo mão em seu sentido próprio: parte do


corpo humano.
Entretanto se digo:

- Pode me dar uma mão aqui na cozinha.

Neste caso, utilizo mão em seu sentido figurado, ou seja,


significando ajuda.

18 Letras EAD
Aspectos estilísticos da língua portuguesa

No primeiro exemplo, trata-se de denotação; no segundo,


conotação.
A função referencial está ligada à denotação e dá primazia ao

1
conteúdo. Caracteriza-se pelo uso da objetividade e da precisão, da 3ª

Unidade
pessoa do singular, neutralidade, conteúdo informacional. Em geral, a
função referencial está presente em textos científicos, bulas de remédio,
cartas comerciais, resenhas, redações técnicas, relatórios etc.

- Exemplos de função referencial:


Texto 1

Admite-se geralmente que toda arte e toda


investigação, assim como toda ação e toda escolha,
têm em mira um bem qualquer; e por isso foi dito,
com muito acerto, que o bem é aquilo a que todas as
coisas tendem. Mas observa-se entre os fins uma certa
diferença: alguns são atividades, outros são produtos
distintos das atividades que os produzem. Onde
existem fins distintos das ações, são eles por natureza
mais excelentes do que estas (ARISTÓTELES, 1991,
p. 5).

Texto 2
O presente artigo inscreve-se na moldura teórico-
metodológica da produção anteriormente listada e
pretende problematizar determinados conceitos que
circulam na escola fundamental nos últimos anos,
e que, no meu entendimento, estão implicados no
ordenamento de nossas salas de aula e na regulação
das práticas docentes (SOMMERS, 2007, p. 57).

Nos textos 1 e 2, o uso da partícula “se” – “admite-se” / “observa-


se” / “inscreve-se” – confere neutralidade ao discurso: não sou eu quem
falo, é um outro ou, então, uma coletividade.

Mas... na vida há sempre um mas! Campos (1969) afirma que

[...] na poesia clássica, caracterizada pela épica, a função


cognitiva ou referencial é associada preferentemente
à poética, produzindo-se uma poesia da 3ª pessoa,

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Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

para conhecer impessoal, objetiva, descritiva (na


QUEM FOI ROMAN JAKO- epopéia há a representação do objeto
BSON? em sua objetividade mesmo, Hegel) (p.
147 – grifos do autor).

Leia o texto 3, de Cecília Meireles, em que o eu


lírico faz uma descrição de si mesmo. Há uma mescla da
função referencial com a poesia.

Fonte: www.infoescola.com   Texto 3


Roman Osipovich Jako- Retrato
bson (1896-1982), pen-
sador russo, foi consi-
derado um dos maiores Eu não tinha este rosto de hoje,
linguistas do século XX.
Em 1916, os estudantes
assim calmo, assim triste, assim magro,
Jakobson, Victor B. Chk- nem estes olhos tão vazios,
lóvski (1893-1984), Bo-
ris Eikhenbaum (1886- nem o lábio amargo.
1959) entre outros
iniciam alguns encontros
que definiriam os rumos Eu não tinha estas mãos sem força,
da Sociedade de Estudos
da Linguagem Poética, a tão paradas e frias e mortas;
Opoiaz (Óbchchestvo po
izutchéniu poetítchesko-
eu não tinha este coração
vo iaziká) na Universi- que nem se mostra.
dade de Petersburgo.
A atividade conjunta
de críticos e criadores
Eu não dei por esta mudança,
deu origem ao polêmi-
co movimento chamado tão simples, tão certa, tão fácil:
Formalismo Russo. Nele
Jakobson participou ati-
- Em que espelho ficou perdida
vamente, até os traba- a minha face?
lhos formalistas caírem
no descrédito dos adver- Fonte: http://portaldeescrita.blogspot.com.
sários.
Principais obras:
br/2008/06/poema-descritivo-retrato-ceclia.html

- Linguística, Poética, Ci-


nema
- Linguística e Comuni- Função Emotiva ou Expressiva - centrada no
cação
emissor
- A geração que esbanjou
seus poetas
- Poética em ação
Distingue-se por expressar o estado de alma do
emissor, seus sentimentos com o verbo na 1ª pessoa, uso
de interjeições e de exclamações. A função emotiva está

20 Letras EAD
Aspectos estilísticos da língua portuguesa

presente nas poesias líricas, nas cartas de amor, nos depoimentos etc.
Como exemplo, podemos aproveitar o texto 1.
A mensagem do poema está centrada no emissor, as 3 estrofes

1
se iniciam pelo pronome “eu”: “eu não tinha” / “eu não dei”. Um tom

Unidade
melancólico permeia o texto pelo uso de adjetivos – “triste”, “magro”,
“vazios”, “frias” etc. -, intensificados pelas partículas “tão” / “assim”.
E, nas duas últimas estrofes, pressupõe-se um emissor, a quem o eu
lírico (emissor) se dirige, pelo emprego de um travessão, indicando um
diálogo.

Função Conativa ou Apelativa – centrada no receptor

É marcada pelo uso de verbos no imperativo, de argumentos


explícitos. Nesta função, a linguagem é utilizada como um meio de
levar o outro a adotar certo comportamento, desejado pelo emissor. A
função conativa predomina na propaganda, nos discursos políticos, em
textos de autoajuda etc.

Texto 4

“Queridas brasileiras e queridos brasileiros, pela decisão sobera-


na do povo, hoje será a primeira vez que a faixa presidencial cingirá o
ombro de uma mulher. [...] sei do significado histórico desta decisão”
(Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/853564-leia-
integra-do-discurso-de-posse-de-dilma-rousseff-no-congresso.shtml).

O texto 4 é o início do discurso de posse da Presidente Dilma


Rousseff, pronunciado em 1 de janeiro de 2011. Repare que, logo no
início, o emissor abre um espaço de sedução: “queridas” / “queridos”;
e envolve, em especial, a mulher no seu discurso, enfatizando o fato
de que pela “primeira vez a faixa presidencial cingirá o ombro de uma
mulher”.

UESC Módulo 6 I Volume 4 21


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

Função Fática – centrada no canal

Tem como finalidade assegurar ou manter contato (canal aberto)


entre o emissor e o receptor. Manifesta-se nas repetições, nas frases
feitas: entendeu? / né? / ok? / tipo assim etc.
Texto 5

Ele: – Pois é.
Ela: – Pois é o quê?
Ele: – Eu só disse pois é!
Ela: – Mas “pois é” o quê?
Ele: – Melhor mudar de conversa porque você não me entende.
Ela: – Entender o quê? (LISPECTOR, p. 53).

O texto 5 é um fragmento de A hora da estrela, de Lispector,


em que Macabea e Olimpo travam um diálogo. São duas pessoas que
não estão acostumadas a manter uma conversação, daí a dificuldade
em se comunicarem. Assim, num desejo ou necessidade de manter um
contato, eles se utilizam de frases feitas, de repetições.

Função Metalinguística – centrada no código

É a função pela qual o locutor toma o código que ele utiliza como
objeto de descrição, de seu discurso de um ponto de vista particular.
A função metalinguística aparece em dicionários, gramáticas, resenhas
etc. Também podemos falar em metadiscurso, metafilme, metapoema.
Segundo Maingueneau e Charaudeau (2002), o metadiscurso

é uma manifestação da heterogeneidade enunciativa:


ao mesmo tempo em que ela se realiza, a enunciação
avalia a si mesma, se comenta solicitando a aprovação
do co-enunciador (‘se posso dizer’, ‘falando em sen-
tido estrito’, ‘ou melhor’, ‘isto quer dizer que... ’) (p.
373 – tradução nossa).

Um exemplo de metafilme é o filme Adaptação, de Spike Jonze


(diretor) e Charlie Kaufman (roteirista).

22 Letras EAD
Aspectos estilísticos da língua portuguesa

O filme conta a história de um roteirista, o próprio


Charlie Kaufman (vivido na tela por Nicolas Cage),

1
que é contratado para adaptar um livro sobre orquí-
deas de uma jornalista (vivida por Meryl Streep, que

Unidade
ganhou o Globo de Ouro por sua atuação). Sem ins-
piração e com muita dificuldade de adaptar um mate-
rial aparentemente impossível, ele decide finalmente
escrever um filme sobre um roteirista que não con-
segue adaptar um livro para um filme, usando o livro
dela como base (Ary Monteiro JR. Disponível em:
http://www.cineplayers.com/critica.php?id=136).

Texto 6
DESENCANTO
EU FAÇO VERSOS como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto
(BANDEIRA, 1974, p. 119).

No texto 6, o poeta diz para que serve a poesia e sobre o fazer


poético. Como afirma Goyanna

Entre as práticas literárias que ostensivamente evi-


denciam a consciência crítica do autor, a metapoesia
é sem dúvida uma das mais importantes ou significa-
tivas. Mesmo diante de um poema que apenas discre-
tamente realiza a dimensão metapoética (através da
inserção de um breve comentário limitado a um só
verso, por exemplo), não podemos ficar indiferentes
à voz da consciência criadora que então se manifesta
(1994, p. 53).

Função Poética ou Estética – centrada na mensagem

A função poética não se limita à poesia, pois toda mensagem é


expressiva. Esta função diz respeito à forma da mensagem na medida
em que ela tem seu próprio valor expressivo.

UESC Módulo 6 I Volume 4 23


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

atenção Texto 7
Na análise, é preciso de-
tectar a presença/ausên- Poema
cia de cada uma das fun-
ções da linguagem. Uma
função predomina sobre
Há poesia
a outra e uma boa dica é
perguntar: a função do- na flor
minante é a que respon-
de a pergunta: em qual na dor
intenção a mensagem foi
no beija-flor
transmitida? (ARCAND;
BOURBEAU, 1995). no elevador
(ANDRADE, Oswald. Disponível em: http://
www.portaldafamilia.org/artigos/artigo353.shtml)

Portanto a função poética está em toda parte, des-


de que se apele para o imaginário pelo uso de imagens, de
metáforas, para transformar em poesia o cotidiano.

ATIVIDADE

1) Leia Excertos de Lingüística e Poética, de Ro-


man Jakobson; disponível em http://www.ufrgs.br/
proin/versao_2/jakobson/index01.html. Depois da lei-
tura, faça um comentário, máximo 100 palavras, sobre a
importância das funções da linguagem nos estudos esti-
lísticos.
2) Em que consiste a função conativa da lingua-
gem e a qual fator da comunicação, segundo Jakobson,
ela está ligada. Ilustre sua resposta com um exemplo.
3) Identifique as funções da linguagem nos excer-
tos abaixo. Se houver mais de uma, detecte a predomi-
nante e explique por que é a predominante.

a)
MARIA MAYRINK - Agência Estado
A organização da Jornada Mundial da Juventude
anunciou que o papa receberá os peregrinos argentinos,

24 Letras EAD
Aspectos estilísticos da língua portuguesa

no começo da tarde desta quinta-feira, na Catedral Metropolitana. O


templo tem capacidade para 5 mil pessoas e só elas serão admitidas,
com apresentação do crachá, embora haja mais de 23 mil argentinos

1
no Rio. O acerto foi feito com a Conferência dos Bispos da Argentina

Unidade
(Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/geral,papa-se-
deslocara-em-carro-aberto-diz-porta-voz,1056971,0.htm).

b)
O ÚLTIMO POEMA
ASSIM EU QUERERIA o meu último poema
Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos inten-
cionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais lím-
pidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação (BANDEI-
RA, 1974, p. 223).

c)

Fonte: www.alemdalenda.com.br/

d)

Fonte: itau05.jpg

UESC Módulo 6 I Volume 4 25


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

e)
Percy: ‘Ei, como está indo?’
Annabeth: ‘Hã, não, obrigada.’
Percy: ‘Certo... você já comeu alguma coisa hoje?’
Annabeth: ‘Acho que Leo está de plantão. Pergunte a ele.’
Percy: ‘Então, meu cabelo está pegando fogo.’
Annabeth: ‘Tudo bem. Daqui a pouco.’
(RIORDAN, Rick. A marca de Atena. p. 289).

AULA 2

2.2 Figuras de estilo ou de linguagem: algumas tipologias

Fonte: http://www.portugues.seed.pr.gov.br/modules/galeria/detalhe.php?foto=384&evento=6

As Figuras de Estilo ou de Linguagem não são exclusivas do


texto literário, elas são estratégias discursivas indispensáveis para
seduzir/persuadir alguém a fazer algo. Diversos autores as dividem em
diferentes categorias. Tavares (1969) distingue:
a)Figuras de Palavras.
b)Figuras de Dicção.
c)Figuras de Morfologia.
d)Figuras de Construção.
e)Figuras de Repetição.
f)Figuras de Omissão.

26 Letras EAD
Aspectos estilísticos da língua portuguesa

g)Figuras de Transposição.
h)Figuras de Discordância.
i)Figuras de Pensamento.

1
j)Tropos.

Unidade
Já Suhamy (1981) classifica-as em 6 categorias:

a)Tropos.
b)Figuras de Repetição e de Amplificação.
c)Figuras de Construção.
d)Figuras de Realce.
e)Elipses.
f)Figuras de Pensamento.

Guiraud (1970) nos apresenta 4 classificações:

a)Figuras de Dicção.
b)Figuras de Construção.
c)Tropos ou Figuras de Palavra.
d)Figuras de Pensamento.

Há outras tipologias, mas aqui ficaremos com 3 categorias, a sa-


ber:

dizem res- Elipse/Zeugma, Pleo-


Figuras de peito à ordem natu- nasmo, Anáfora, Anástrofe/
Construção ral das palavras Hipérbato/Sínquise, Anaco-
luto, Polissíndeto/Assíndeto,
Silepse

são as mu- Comparação/Metá-


Tropos ou
danças de sentido fora, Ironia/Antífrase, Eufe-
Figuras de
das palavras mismo/Disfemismo, Sinédo-
Palavra
que/Metonímia

UESC Módulo 6 I Volume 4 27


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

afetam a for- Hipérbole/Litote,


Figuras de
ma das ideias Prosopopeia, Perífrase/An-
Pensamento
tonomásia, Antítese, Oxí-
moro, Paradoxo

Figuras de Construção

- Elipse/Zeugma

É a supressão de um ou mais termos de um enunciado, cuja


ausência não impede a clareza do sentido, o que implica que o receptor
é capaz de resgatar o que falta. Segundo Charaudeau e Maingueneau
(2002),
nos gêneros audiovisuais narrativos, a economia de
termos pode funcionar como índice de que se vai
rápido ao essencial [...]. Em um ensaio, a elipse pode
aparecer como uma densificação do pensamento, em
um romance como resgate autêntico das impressões
(monólogo interior) etc. (p. 209-210 – tradução
nossa).

Exemplos:

a) Maria saiu às 09 horas, Dulcinha às 10, Humberto às 11.


(Houve Zeugma do verbo sair).
b) Saí cedo ontem. (Houve Elipse do pronome pessoal eu).

A diferença entre Zeugma e Elipse é que:

- na Zeugma, o termo já foi mencionado anteriormente. No


exemplo (a), o verbo sair aparece na 1ª oração;
- na Elipse, o termo não foi mencionado, mas é facilmente
detectado. No enunciado (b), o sujeito “eu” é facilmente percebido por
causa da terminação verbal.

28 Letras EAD
Aspectos estilísticos da língua portuguesa

Atualmente, considera-se a Elipse como um você sabia?

fenômeno linguístico geral e a Zeugma uma elipse Encontrei no site “A arte


das palavras” e, segundo
especial.

1
o autor, os textos foram
retirados de páginas de

Unidade
portais. Transcrevi al-
- Pleonasmo guns trechos aqui.

O anúncio foi realizado


É o emprego de expressões redundantes para nesta segunda-feira (24),

enfatizar, para intensificar, o sentido de um termo ou em cerimônia no Museu


da Língua Portuguesa.
de todo o enunciado. Há o Pleonasmo literário e o Ao justificar a escolha de
“Vermelho Amargo”, con-
Pleonasmo vicioso. No caso dos versos de Bandeira: siderado uma obra “ines-
quecível”, o júri afirmou
que o livro “expressa
ANTOLOGIA com densidade a vivên-
cia subjetiva do perso-
A VIDA nagem principal”, que
Com cada coisa em seu lugar. revisita a infância. http://
ultimosegundo.ig.com.br/
Não vale a pena a dor de ser vivida. cultura/livros/2012-09-25/
bartolomeu-campos-de-
(BANDEIRA, 1974, p. 337)
queiros-vence-premio-sao-
paulo-de-literatura.html

Com “A vida [...] ser vivida”, o Pleonasmo


aumenta/intensifica o sentimento de desencanto do Faz sentido indicar de
quem é a vivência: sua
poeta com a vida. vivência ou vivência pes-
soal. Mas não faz sentido
O Pleonasmo vicioso é encontrado principalmen- indicar a natureza obri-
te no registro oral. São frases do tipo: gatória da vivência: ela
sempre será subjetiva.
- Vi com esses olhos que a terra há de comer.
- Gustavo, entre para dentro!
- O viúvo da falecida está inconsolável.

Estrear filme antigo, só


entrando na máquina do
- Anáfora
tempo.

É a repetição de um termo ou um grupo de termos


no início de enunciados em sucessão, com a finalidade de
enfatizar o termo repetido.
Novos recordes? Al-
guma competição já re-

Exemplo: gistrou velhos recordes?
Fonte: http://artedaspa-
a) Há-de tomar o pregador uma só matéria; há-de lavras.wordpress.com/tag/
pleonasmo/
defini-la, para que se conheça; há-de dividi-la, para que se

UESC Módulo 6 I Volume 4 29


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

distinga; há-de prová-la com a Escritura; há-de declará-la com a razão;


há-de confirmá-la com o exemplo; há-de amplificá-la com as causas,
com os efeitos, com as circunstâncias, com as conveniências que se hão-
de seguir, com os inconvenientes que se devem evitar; há-de responder
às dúvidas, há-de satisfazer às dificuldades; há-de impugnar e refutar
com toda a força da eloquência os argumentos contrários; e depois
disto há-de colher, há-de apertar, há-de concluir, há-de persuadir, há-de
acabar. Isto é sermão, isto é pregar; e o que não é isto, é falar de mais
alto (VIEIRA, Sermão da Sexagésima. Disponível em: http://bocc.ubi.
pt/pag/vieira-antonio-sermao-sexagesima.html).
No exemplo (a), o autor repetiu cerca de 15 vezes “há-de”, para
enfatizar quais devem ser as formas pelas quais o orador deve falar para
persuadir o auditório.

- Anástrofe/Hipérbato/Sínquise

As três figuras estão relacionadas à inversão dos termos da


oração.
Na Anástrofe, inverte-se um termo para lhe dar um realce. No
Hipérbato, há uma inversão na ordem habitual dos termos da oração.
Na Sínquise há uma inversão violenta dos termos, chegando a causar
certa confusão (TAVARES, 1969).
Exemplos:

a) Rechinam teus sapatos rua em fora.


Tão leve estou que já nem sombra tenho
E há tantos anos de tão longe venho
Que nem me lembro de mais nada agora!
(QUINTANA, disponível em: http://quintanares.blogspot.com.
br/2004_06_01_archive.html).

b)E o sol da liberdade, em raios fúlgidos,


Brilhou no céu da pátria nesse instante
(Hino Nacional do Brasil, disponível em: http://www.planalto.gov.br/
ccivil_03/constituicao/hino.htm).

30 Letras EAD
Aspectos estilísticos da língua portuguesa

c) Respondem-lhe da terra juntamente,


Co raio volteando com zunido;

1
Anda em giros no ar a roda ardente,

Unidade
Estoira o pó sulfúreo escondido;
A grita se alevanta ao céu, da gente;
O mar se via em fogos acendido
E não menos a terra; e assi festeja
Um ao outro, à maneira de peleja (CAMÕES, Os Lusíadas. Dis-
ponível em: http://www.citi.pt/ciberforma/ana_paulos/ficheiros/lusia-
das.pdf).

No 1º verso do exemplo (a), houve a inversão do sujeito com


o predicado, a ordem direta ficaria assim: teus sapatos rechinam. No 2º
verso, a ordem direta seria: estou tão leve. Ocorreu a Anástrofe nos dois
casos, pois os termos estavam relacionados entre si: sujeito/predicado.
Em (b), a inversão dos termos é bem maior, o receptor precisa
fazer um esforço para resgatar a ordem direta: o sol da liberdade brilhou
[...].
O (c) é um exemplo clássico de Sínquise, você o encontra em
qualquer referência sobre a Sínquise.

- Anacoluto

Anacoluto é a ruptura na construção de uma frase, é formado


por duas partes de frase que estão sintaticamente corretas, mas cuja
sequência dá uma frase complexa sintaticamente ou desviante. Ocorre
na língua falada, quando o falante inicia e, logo depois, interrompe a
frase e a reconstrói de forma diferente.
Exemplo:
a) Eu, parece que estou sem vontade de comer.

- Polissíndeto/Assíndeto

Polissíndeto é a repetição de marcas de coordenação, criando um

UESC Módulo 6 I Volume 4 31


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

efeito de harmonia na frase.


Assíndeto é a justaposição de orações sem nenhuma conjunção;
é muito comum nas enumerações.

Exemplos:

a)Ele viajou. Conheceu a melancolia dos navios, os frios


despertares nas tendas, o atordoamento das paisagens e das ruínas,
a amargura das amizades interrompidas. Ele voltou (FLAUBERT,
Gustave. A educação sentimental).

b) E o olhar estaria ansioso esperando


E a cabeça ao sabor da mágoa balançando
E o coração fugindo e o coração voltando
E os minutos passando e os minutos passando... (Moraes, Vinicius de.
O olhar para trás).

No exemplo (a) – Assíndeto –, a ausência de um conectivo produz


um efeito de simultaneidade das sensações do narrador. “Melancolia” /
“frios” / “atordoamento” / e “amargura” estão no mesmo nível, isto é,
foram apreendidos ao mesmo tempo.
A repetição da conjunção “e”, no exemplo (b), intensifica o sen-
timento de espera do eu lírico e, também, cria a impressão de morosida-
de, ou seja, os minutos custam a passar quando se espera alguém.

- Silepse

É a concordância feita a partir do sentido. Também é chamada de


concordância figurada ou concordância ideológica. A Silepse ocorre em
casos de: gênero, número e pessoa.
Exemplos:

a) – Como foi o jogo ontem?


- A gente estávamos tão cansados que perdemos!
- Que pena!

32 Letras EAD
Aspectos estilísticos da língua portuguesa

No exemplo (a), encontramos os três tipos de Silepse – gênero,


número e pessoa. Gramaticalmente, o correto seria: a gente estava tão
cansada...

1
Unidade
ATIVIDADE

1) Leia o poema 1 e retire as Figuras de Construção presentes


nele e explique os efeitos alcançados pelo eu lírico

Poema 1

CONSOLO NA PRAIA

VAMOS, não chores... Algumas palavras duras,


A infância está perdida. em voz mansa, te golpearam.
A mocidade está perdida. Nunca, nunca cicatrizam.
Mas a vida não se perdeu. Mas, e o humour?

O primeiro amor passou. A injustiça não se resolve.


O segundo amor passou. À sombra do mundo errado
O terceiro amor passou. murmuraste um protesto tímido.
Mas o coração continua. Mas virão outros.

Perdeste o melhor amigo. Tudo somado, devias


Não tentaste qualquer viagem. precipitar-te, de vez, nas águas.
Não possuis casa, navio, terra. Estás nu na areia, no vento...
Mas tens um cão. Dorme, meu filho.

(DRUMMOND, 1992, p. 142-143).

UESC Módulo 6 I Volume 4 33


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

AULA 3

Tropos ou Figuras de Palavras

- Comparação/Metáfora

São figuras de estilo que criam imagens, aproximam dois campos


lexicais, evidenciando um elemento que lhes é comum.
A Comparação é introduzida por como ou um sinônimo (tal
qual, tanto quanto etc.). Na Metáfora, não há unidades introdutórias
de comparação. Tradicionalmente, a Metáfora é considerada uma
comparação abreviada, uma aproximação implícita.
A Metáfora incide sobre:
- O verbo: sua cabeça fermenta, ele fuma de raiva, ele nada no
sangue.
- O substantivo: ele é um leão / um tigre / um cordeiro.
- O adjetivo: uma vida tempestuosa / remorsos devoradores.
- O advérbio: responder secamente / receber friamente.

Exemplos:
a) A vida é como um combate.
b) A vida é combate.
Em (a), temos uma Comparação, introduzida por “como”. Em
(b), uma Metáfora.
A Metáfora na propaganda funciona como uma forma de sedu-
ção. Veja a figura 6:

Fonte: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=24622

34 Letras EAD
Aspectos estilísticos da língua portuguesa

É a propaganda do amaciante Mon Bijou, apresen- leitura recomendada

tando a famosa pintura de Da Vinci, de forma estilizada, e A sedução das metáforas


publicitárias, de Vanessa
assevera ao consumidor que: “Mon Bijou deixa sua roupa

1
da Silva Brito, disponí-
uma obra-prima”. Ela atrai os olhares das pessoas: vel em: www.filologia.org.

Unidade
br/.../A_sedução_das_me-
1º - é uma pintura conhecida de todos; táforas_publicitárias

2º - o emissor brinca com a pintura, não é real-


mente a Mona Lisa, mas um simulacro.
Esta propaganda não informa sobre o produto,
ele já é conhecido, mas cria expectativas, dando-lhe uma
abordagem irônica, que ficará na memória do consumi-
dor.
Uma excelente estratégia de ensino da Metáfora é
através da propaganda/publicidade.

- Ironia/Antífrase

A Ironia é um tropo que consiste em dizer o


contrário do que se quer fazer compreender o destinatário.
É um fenômeno fundamentalmente contextual.
A Antífrase é o emprego de uma palavra ou
grupo de palavras em sentido contrário a sua verdadeira
significação por questão estilística ou devido a algum
tabu.
Alguns teóricos a aproximam da Ironia
(KERBRAT-ORECCHIONI apud CHARAUDEAU;
MAINGUENEAU, 2002); outros afirmam que

[...] o domínio da ironia excede o da


antífrase, até mesmo se distingue dela:
a antífrase suporia a existência de um
verdadeiro sentido que seria dito de
maneira indireta, enquanto que a ironia
desestabilizaria o sentido (BERREN-
DONNER apud CHARAUDEAU;
MAINGUENEAU, 2002, p.50).

UESC Módulo 6 I Volume 4 35


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

Exemplo:
a)
Moça linda bem tratada
Moça linda bem tratada,
Três séculos de família,
Burra como uma porta:
Um amor.
(ANDRADE, Mário. Disponível em: http://www.mensagens-
comamor.com/poemas-e-poesias/poemas_mario_de_andrade.htm).

O exemplo (a) mostra o humor irônico da poesia da 1ª fase


do Modernismo, em que o eu lírico desqualifica a classe burguesa –
“três séculos de família” -, rompendo com as estruturas do passado,
representadas pelos fazendeiros, políticos.

- Eufemismo/Disfemismo

Chama-se Eufemismo toda maneira atenuada de exprimir


algumas ideias ou certos fatos cuja desumanidade pode ferir. O
Eufemismo traduz os tabus verbais, as leis, a moral de uma determinada
época e/ou sociedade.
O Disfemismo é o contrário, não atenua nem ideias nem fatos;
mostra a realidade crua. Também é utilizado para criar situações de
humor.
Exemplos:
a)
CONSOADA
QUANDO A INDESEJADA das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
Talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
(BANDEIRA, 1974, p. 307).

36 Letras EAD
Aspectos estilísticos da língua portuguesa

b)
Moça linda bem tratada
Moça linda bem tratada,

1
Três séculos de família,

Unidade
Burra como uma porta:
Um amor.
(ANDRADE, Mário. Disponível em: http://www.mensagens-
comamor.com/poemas-e-poesias/poemas_mario_de_andrade.htm)

Consoada – exemplo (a) – representa o encontro simbólico com


a morte, mas de forma serena, familiar, camarada. No exemplo (b),
dizer que alguém é lindo e, logo em seguida, dizer que é “burra como
uma porta” é no mínimo indelicado.

- Metonímia/Sinédoque

Ocorre a Metonímia quando uma noção é designada por um


termo diferente do termo próprio. As duas noções estão ligadas por uma
relação lógica de contiguidade; o significante não remete ao significado
habitual, mas a significado diferente. Há, portanto, um deslizamento
semântico.
A Metonímia, segundo as relações de contiguidade, apresenta as
seguintes tipologias:
- Relação de causa / efeito
Exemplo:
a)Ele conseguiu tudo com seu próprio suor. (suor = trabalho)

- Relação de continente / conteúdo


Exemplo:
b) O Brasil assistiu à Copa das Confederações. (Brasil = pessoas,
brasileiros)

- Relação de lugar de origem / produto.


Exemplo:
c) Eu gosto muito de um Bordeaux. (vinho = local de fabricação)

UESC Módulo 6 I Volume 4 37


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

- Relação de símbolo / realidade simbolizada


Exemplo:
d) Os Tigres Asiáticos estão em pleno desenvolvimento
econômico. (Tigres Asiáticos = Taiwan, Cingapura e Coreia do Sul)

- Relação de autor / criação


Exemplo:
e) Ontem comprei um Skank. (Skank = CD/DVD)

Há muitas outras relações que podem ser estabelecidas


metonimicamente. Elas são usuais na língua falada, são expressões que
utilizamos sempre, como: Ele é um bom garfo! / Aquela moça é uma
cabeça! / Ele tem um grande coração! etc.
Emprega-se a Sinédoque quando se quer designar a parte pelo
todo, o particular pelo geral.
Charaudeau e Maingueneau (2002) afirmam que “A sinédoque
interessa muito à análise do discurso pelas variações de denotação que
ela permite na produção dos enunciados” (p. 564 – grifos dos autores –
tradução nossa).
A Sinédoque apresenta as seguintes tipologias:
- Espécie pelo gênero / gênero pela espécie
Exemplo:
a) O homem é mortal (= todos os homens são mortais).
b) Os homens deverão se arrepender de seus pecados (= o
homem...)

- O todo pela parte / parte pelo todo


Exemplo:
c) Com o barulho, acordou a rua (= acordou os moradores)
d) João pediu a mão de Joana (= ele não quer só a mão!)

A diferença entre a Metonímia e a Sinédoque é que:


- Metonímia – designa um objeto ou uma pessoa pelo nome de
outro, eles estão separados, mas mantêm entre si uma relação.

38 Letras EAD
Aspectos estilísticos da língua portuguesa

- Sinédoque – designa um objeto ou uma pessoa pelo nome de


outro com o qual forma um conjunto.

1
ATIVIDADE

Unidade
1) Tente inventar comparações inusitadas para os segmentos
abaixo:
a) Eles se parecem ...........................................................................
b) As cidades crescem .....................................................................
c) Este homem se comporta ...........................................................
d) Ela chorava ..................................................................................
e) Este menino mente .....................................................................
f) Os livros sobre Harry Potter vendem ........................................

2) Faça um levantamento das metáforas presentes no poema


abaixo:
POEMA
O CÉU, azul de luz quieta.
As ondas brandas a quebrar,
Na praia lúcida e completa
Pontas de dedos a brincar.
No piano anônimo da praia
Tocam nenhuma melodia
De cujo ritmo por fim saia
Todo o sentido deste dia.
Que bom, se isto satisfizesse!
Que certo, se eu pudesse crer
Que esse mar e essas ondas e esse
Céu tem vida e têm ser.
(PESSOA, 1972, p. 191).

3) Explique a natureza da relação lógica nas metonímias (ou


sinédoques) que se seguem:
a) Esta notícia foi desmentida pelo Planalto.
b) Seus passos me perseguiam.

UESC Módulo 6 I Volume 4 39


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

Observação c) Desconfie dela: ela tem uma má língua.


O trecho sobre os me- d) Ele adora uma garrafa.
canismos da Hipérbole
é uma tradução livre de
e) Aquele casal tem uma boa adega.
Charaudeau e Maingue- f) Seu ferro atravessou o corpo do inimigo.
neau.

4) Crie 1 situação em que esteja presente a Ironia.

5) Em qual situação você poderia empregar as


antífrases seguintes.
a)Esta roupa é verdadeiramente original!
b)Eu adoro química!
c)Esta manhã, ela está com um humor adorável!

Figuras de Pensamento

- Hipérbole/Litote

A Hipérbole é exagero voluntário da expressão,


enquanto que a Litote é uma falsa atenuação da ideia para
fazer entender mais do que se diz.
Charaudeau e Maingueneau (2002) afirmam que
a Hipérbole utiliza-se de diversos mecanismos como
alguns elencados abaixo:
- Amplificação das comparações e metáforas –
mais branco que a neve.
- Uso de prefixos e sufixos - -hiper, -super, -íssimo
etc.
- Formas do superlativo – é o melhor, é própria
doçura.
- Expressões fixas – um barulho de acordar os
mortos, morrer de rir, sofrer mil mortes.

40 Letras EAD
Aspectos estilísticos da língua portuguesa

Exemplos:

1
a) Ontem, quando acordei, chovia canivetes.
b) Até que sua ideia não é tão ruim!

Unidade
O exemplo (a) é uma Hipérbole feita para exagerar o volume da
chuva. No exemplo (b), temos uma falsa atenuação da ideia, é a Litote.

- Prosopopeia

A Prosopopeia ou Personificação consiste em atribuir


sentimentos e qualidades humanas a animais, plantas, objetos, natureza,
ou seja, tudo que não é humano. A Prosopopeia é muito comum em
fábulas e apólogos.
Exemplo:
a) Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha [...]
(ASSIS, 1992, p. 554).

- Perífrase/Antonomásia

A Perífrase substitui um termo único por uma série de outros


ou locução que o define ou o parafraseia. Quando diz respeito a uma
pessoa, chama-se Antonomásia.
Exemplos:
a) Aquele que veio para nos salvar fez muitos milagres. (= Jesus
Cristo)
b) As belezas naturais da Princesinha do Sul continuam as
mesmas, apesar do progresso. (= Ilhéus)

- Antítese/Oxímoro/Paradoxo

A Antítese contrasta dois termos opostos colocados em um


mesmo eixo semântico e dispostos em construções paralelas. De acor-
do com Charaudeau e Maingueneau (2002),

[A Antítese] oscila naturalmente entre uma definição


como figura de construção e uma definição como fi-

UESC Módulo 6 I Volume 4 41


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

gura de pensamento, conforme se coloque a ênfase na


estrutura que permite colocar em contraste os dois
termos, ou no próprio conteúdo da oposição (p 50).

O Oxímoro reúne dois termos aparentemente contraditórios. É


empregado também de forma lúdica e, às vezes, aproxima-se da Ironia.
O Paradoxo consiste em formular no discurso uma expressão,
geralmente antitética, que é contra o senso comum. Segundo os
filósofos, o Paradoxo estimula o raciocínio e, entre os sofistas, os
enunciados chegaram a levar a raciocínios falaciosos.

Exemplos:

a) De repente do riso fez-se o pranto


Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto (MORAES, Vinicius.
Disponível em: http://pensador.uol.com.br/frase/OTI5MzI/).

b) Amor é fogo que arde sem se ver


É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer (CAMÕES. Disponível em: www.
suapesquisa.com).

c) SONETO VII
Ardor em firme coração nascido!
Pranto por belos olhos derramado!
Incêndio em mares de água disfarçado!
Rio de neve em fogo convertido! (MATOS, Gregório de.
Disponível em http://pensador.uol.com.br/poesias_de_gregorio_do_
matos/).

Em (a), há um exemplo de Antítese, “riso” / “pranto” pertencem


ao mesmo campo discursivo, apesar de serem contraditórios, eles não
se excluem.

42 Letras EAD
Aspectos estilísticos da língua portuguesa

O soneto de Camões (exemplo (b)) foi construído


através de Oxímoros, há uma sobreposição de dois
campos discursivos: negação e afirmação.

1
O exemplo (c) é um Paradoxo, figura de lingua-

Unidade
gem muito cara aos poetas barrocos. Veja que os 3º e 4º
versos se apoiam sobre realidades totalmente distintas.

ATIVIDADE

1) Reconheça as figuras de pensamento nos excer-


tos abaixo:
a)

Fonte: www.delfimsantos.net

b) Eu possa me dizer do amor (que tive):


Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure (MORAES,
Vinicius de. Disponível em: http://www.releituras.com/
viniciusm_fidelidade.asp ).

c) A Cidade Maravilhosa recebe turista o ano in-


teiro.
d)

Fonte: www.propagandaemrevista.blogspot

UESC Módulo 6 I Volume 4 43


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

3 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Existem dezenas de outras Figuras de Linguagem ou de Estilo,


mas acredito que não cabia neste espaço elencar todas. Algumas nem são
mais consideradas como Figuras de Estilo, como é o caso da Catacrese;
outras tanto podem ser Figuras de Construção como de Pensamento, a
depender do teórico. Ainda há as Figuras de Dicção, que você estudou
na Oficina sobre poesia. São as aliterações, as assonâncias, os ecos etc.
Entretanto o interessante é, como afirma Guiraud (1978), ver
a Estilística como uma mediação entre a Literatura e a Linguística.
O estudo estilístico de um texto permite evidenciar os mecanismos
trabalhados por um autor num quadro genérico determinado, para
partilhar uma visão específica de mundo.
A análise estilística de um texto repousa geralmente no estudo
da elocutio, isto é, no estudo do vocabulário, das figuras de estilo, da
sintaxe etc., de maneira a conciliar forma e sentido. E isto vamos fazer
na Unidade IV, isto é, estudar as estratégias discursivas utilizadas pelo
emissor para seduzir/persuadir/informar o receptor.

RESUMINDO

Nesta unidade, você estudou:


- As Funções da Linguagem com base na Teoria da Comunicação
de Jakobson.
- As Figuras de Linguagem ou de Estilo.
- Fez o reconhecimento de algumas Funções da Linguagem e de
algumas Figuras de Estilo.

44 Letras EAD
Aspectos estilísticos da língua portuguesa

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro:

1
José Aguilar, 1992.

Unidade
ARCAND, Richard; BOURBEAU, Nicole. La communication effi-
cace: de l’intention aux moyens d’expression. Quebec: Centre Educa-
tif/Culturel, 1995.

ASSIS, Machado de. Obra Completa. Rio de Janeiro  : José Aguilar,


1992. v. II.

BANDEIRA, Manuel. Desencanto. In: BANDEIRA, Manuel. Poesia


completa e prosa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1974. p. 119.

CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do improvável. São Pau-


lo: Perspectiva, 1969.

CHALHUB, Samira. Funções da Linguagem. 3. ed. São Paulo: Ática,


1990.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Diction-


naire d’Analyse du Discours. Paris: Seuil, 2002.

DICIONÁRIO AURÉLIO. Disponível em:


http://www.dicionariodoaurelio.com/Estilo.html#

GOYANNA, Flávia Jardim Ferraz. O lirismo anti-romântico em


Manuel Bandeira. Recife: FUNDARPE, 1994.

GUIRAUD, Pierre. La Stylistique. Paris: PUF, 1970.

GUIRAUD, Pierre; KUENTZ, Pierre. La Stylistique: lectures. 3. ed.


Paris: Klincksieck, 1978.

JAKOBSON, Roman. Linguística e Comunicação. Disponível

UESC Módulo 6 I Volume 4 45


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

em: http://www.cantinhodarevisao.com.br/resources/Roman%20
Jakobson%20-%20Ling%C3%BC%C3%ADstica%20e%20
Comunica%C3%A7%C3%A3o_--WwW.LivrosGratis.Net--_.pdf

JAKOBSON, Roman. Linguística, Poética, Cinema. Tradução Harol-


do de Campos et al. São Paulo: Perspectiva, 1970. Disponível em:
http://letrasespanholufc.blogspot.com.br/2012/03/faca-o-download-
do-livro-aqui.html

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Disponível em: http://gauss-


pet.mtm.ufsc.br/arquivos/ahoradaestrela.pdf

PESSOA, Fernando. Obra Poética. 4. ed. Rio de Janeiro: José Aguilar,


1972.

SAUSSURE, F. Curso de Lingüística Geral. Trad. De Antônio Cheli-


ni, José Paulo Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultrix, 1995.

SOMMER, Luís Henrique. A ordem do discurso escolar. In: Revista


Brasileira de Educação, v. 12 n. 34 jan./abr. 2007, p. 57-67.

SUHAMY, Henri. Les figures de style. Paris: PUF, 1981.

TAVARES, Hênio. Teoria Literária. 4ed. Belo Horizonte: Bernardo


Álvares, 1969.

46 Letras EAD
Aspectos estilísticos da língua portuguesa

Suas anotações

1
Unidade
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UESC Módulo 6 I Volume 4 47



unidade
ASPECTOS SEMÂNTICOS DA
LÍNGUA PORTUGUESA

Objetivo

Ao final desta unidade, o estudante deverá entender os diversos sen-


tidos da polissemia em diferentes contextos sociodiscursivos e saber
abordar os problemas de delimitação e de reconhecimento do fato
polissêmico.
Aspectos semânticos da língua portuguesa

1 INTRODUÇÃO

Nesta unidade, apesar do título – Aspectos Semânticos –, enfocaremos uma


das propriedades da Semântica: a Polissemia. Em seguida, estudaremos como se
constrói os sentidos através da Polissemia.

2 A POLISSEMIA COMO CONSTRUÇÃO DO SENTIDO

2
Unidade
Bréal (1992), em seu Ensaios de Semântica, quando explana sobre a evolução
das palavras e sua capacidade em assumir novos significados diferentes do original,
afirma que:

O sentido novo, qualquer que seja ele, não acaba com o antigo.
Ambos existem um ao lado do outro. O mesmo termo pode
empregar-se alternativamente no sentido próprio ou no sentido
metafórico, no sentido restrito ou no sentido amplo, no sentido
abstrato ou no sentido concreto...
À medida que uma significação nova é dada à palavra, parece
multiplicar-se e produzir exemplares novos, semelhantes na
forma, mas diferentes no valor.
A esse fenômeno de multiplicação chamaremos polissemia (p.
103 – grifos do autor).

Repare que, em seu significado primeiro, a Polissemia era estudada por


critérios diacrônicos. Mas o que nos interessa aqui é que a Polissemia é a propriedade
de um signo linguístico ter diversos significados.
Segundo Dubois et al (1973),

o conceito de polissemia se inscreve em um duplo sistema de


oposições: a oposição entre polissemia e homonímia e a oposição
entre polissemia e monossemia (p. 381 – tradução nossa).

Você já sabe que Homonímia é uma palavra que se pronuncia e/ou se escreve
como outra, mas que as duas não têm o mesmo significado. Em Língua Portuguesa,
temos muitos exemplos, como:
- Acento (sinal gráfico) / Assento (local para sentar).
- Censo (recenseamento) / Senso (juízo).
- Consertar (corrigir) / Concertar (ajustar).
- Laço (nó) / Lasso (frouxo) etc.

UESC Módulo 6 I Volume 4 51


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

atenção

Não confunda Polissemia A Monossemia ocorre quando um termo só tem um


com Ambiguidade!
significado, é o que acontece em relação às terminologias
Na Ambiguidade, não há
clareza, a frase tem du- científicas: laringologia, oftalmologia, apendicectomia,
plo sentido.
Exemplo:
nevralgia etc.
A mãe pegou o filho cor- Você deve estar se perguntando: qual a importância
rendo na rua.
- Quem estava corren- de se estudar os efeitos polissêmicos na língua?
do: a mãe ou o filho?
Victorri e Fuchs (1996) asseveram que

para conhecer
a utilidade da polissemia é particular-
QUEM FOI MICHEL
BRÉAL?
mente clara em relação ao que chama-
mos de sentidos ‘figurados’: ainda que
a existência da polissemia seja uma con-
dição necessária para permitir o empre-
go extenso das palavras com novos usos
[...] (p. 15 – grifos dos autores – tradu-
ção nossa).

Assim, se eu disser – Meus filhos, cuidado quando


atravessarem a rua! – há a possibilidade de dois sentidos
principais:
Fonte: www.landrucimetieres.fr - ou estou me referindo a meus filhos mesmo;
- ou, como professora, posso estar falando com
Michel Bréal (1832-
1915) foi professor no meus alunos.
Collège de France, onde
teve como alunos Ferdi- Observe que os espaços semânticos, assim
nand Saussure e Antoi-
concebidos, colocam o problema de como se organizar
ne Meillet. É conhecido,
sobretudo, por ter sido o o princípio estruturante do desdobramento de sentidos
criador da Semântica.
Principais obras:
diferentes. Aqui vamos seguir o pensamento de Victorri e
- O mito de Édipo – Fuchs (1996), ou seja, são 3 as fontes da Polissemia:
1863.
- As idéias latentes da
linguagem – 1868.
- Dicionário etimológico
- o contexto;
latino – 1885. - as construções sintáticas e
- Do ensinamento das
línguas antigas – 1891. - os deslocamentos de sentido.
- Ensaio de Semântica –
1897.
2.1 O Contexto

Uma palavra polissêmica encontra seu sentido no

52 Letras EAD
Aspectos semânticos da língua portuguesa

contexto, isto é, a partir das outras palavras ao seu redor.


Exemplos:

a) Os empregados daquela fazenda estão colhendo café.


b) – Você quer um café?
c) Os dois amigos se encontraram no café.

2
No exemplo (a), é o grupo verbal “estão colhendo” que indica

Unidade
que “café” são os grãos. Em (b), a formulação “você quer” mostra que
se trata de uma xícara da bebida. A forma verbal “se encontraram”, no
exemplo (c), aponta para a noção de lugar.
Devemos ter sempre em mente que, como afirmam Pietroforte
e Lopes (2003),

[...] A linguagem humana é polissêmica, pois os signos,


tendo um caráter arbitrário e ganhando seu valor nas
relações com outros signos, sofrem alterações de
significado em cada contexto. A polissemia depende
do fato de os signos serem usados em contextos
distintos (p. 132).

2.2 As Construções Sintáticas

De acordo com o complemento – direto ou indireto – alguns


verbos têm significados diferentes.
Exemplos:

a) Ele aspirou o ar frio da manhã com prazer.


b) Dulce aspira a ser uma excelente advogada.

“Aspirou”, no exemplo (a), tem o sentido de respirar; já, no


exemplo (b), o significado é pretender, desejar.

2.3 Os Deslocamentos de Sentido

Os deslocamentos de sentido ocorrem quando a palavra perde

UESC Módulo 6 I Volume 4 53


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

seu sentido primeiro, isto é, neste caso, falamos em sentido conotativo,


sentido figurado ou sentido metafórico.
Exemplos:

a) Ele é um leão!
b) Os remorsos devoram minha alma!

A Polissemia, no deslocamento de sentido, também permite


causar surpresas ao leitor e fazê-lo rir.
Exemplo:

a) - Qual é o único animal que pode mudar de cabeça?


- O piolho.

A expressão “mudar de cabeça” tem o sentido de “ter uma outra


cabeça”, levando a questões de metamorfose, que é o sentido primeiro
da expressão. Entretanto a resposta surpreende com outro sentido, o
sentido figurado, o termo “mudar” pode significar também “deslocar”.
Desta forma, é possível criar outro significado para “mudar de cabeça”:
“deslocar-se de uma cabeça para outra”.

ATIVIDADE

1)Explique como o locutor criou efeitos polissêmicos nos textos


abaixo:

a) Dinheiro encontrado no lixo

Organizados numa cooperativa em Curitiba, catadores de lixo


livraram-se dos intermediários e conseguem ganhar por mês, em média,
R$ 600,00 - o salário inicial de uma professora de escola pública em São
Paulo (Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dimens-
tein/urbanidade/gd210900.htm).

54 Letras EAD
Aspectos semânticos da língua portuguesa

b)

Fonte: http://www.blogdomatheus.com/2012/08/30-tirinhas-hagar.html

2
Unidade
c)

Fonte: http://www.blogdomatheus.com/2012/08/30-tirinhas-hagar.html

d)
“A boca do porto assomava velozmente, cada vez mais próxima”
(FLANAGAN, Brotherband, 2012, p. 70).

e)

Fonte: www.youtube.com

UESC Módulo 6 I Volume 4 55


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

RESUMINDO

Nesta unidade, você estudou que:


a) a maior parte das palavras são polissêmicas, isto é, têm muitos
sentidos;
b) o campo semântico de uma palavra é o conjunto desses sen-
tidos e
c) o jogo com a polissemia é rico de efeitos poéticos e humorís-
ticos.

56 Letras EAD
Aspectos semânticos da língua portuguesa

REFERÊNCIAS

BREAL, Michel. Ensaios de Semântica: Ciência das Significações. Tra-


dução de Aída Ferrás et al. São Paulo: EDUC; Pontes, 1992.

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Diction-


naire d’Analyse du Discours. Paris: Seuil, 2002.

2
Unidade
DUBOIS, Jean et al. Dictionnaire de Linguistique. Paris: Larousse,
1973.

PIETROFORTE, Antonio Vicente Seraphim; LOPES, Ivã Carlos. A


Semântica Lexical. In: FIORIN, José Luiz (Org.). Introdução à Lin-
guística: II. Princípios de Análise. São Paulo: Contexto, 2003. p. 111-
135.

VICTORRI, Bernard; FUCHS, Catherine. La Polysémie: Construc-


tion Dynamique du sens. Paris: Hermès, 1996.

UESC Módulo 6 I Volume 4 57


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

Suas anotações

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58 Letras EAD
Aspectos semânticos da língua portuguesa

Suas anotações

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Unidade
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UESC Módulo 6 I Volume 4 59


3ªunidade
ASPECTOS PRAGMÁTICOS
DA LÍNGUA PORTUGUESA

Objetivo

Ao final desta unidade, o estudante deverá compreender a lingua-


gem como meio de ação sobre os outros e sobre o mundo, reconhecer
os atos de fala em situações concretas de comunicação, e inferir os
implícitos e os pressupostos que permeiam os atos de fala.
Aspectos pragmáticos da língua portuguesa

1 INTRODUÇÃO

Nesta unidade, dividida em 3 aulas, falaremos sobre a Pragmática


e seus precursores, estudaremos os Atos de Fala de Austin, a Teoria
Inferencial das Implicaturas de Grice e os desdobramentos ilocutórios
de Searle.

2 O QUE É PRAGMÁTICA

A Pragmática é uma disciplina relativamente nova, e encontrou


seus fundamentos, mais ou menos, nas décadas de 1950 e 1990.

3
Seus teóricos mais conhecidos são: Austin, Searle, Grice, Ducrot e

Unidade
Anscombre.
Conforme Charaudeau e Maingueneau (2002),

esta noção [de Pragmática] saiu da tripartição de


C. Morris (1938) que distinguia três domínios na
apreensão de todas as línguas, fosse formal ou natural:
(1) a sintaxe, que diz respeito às relações dos signos
com outros signos; (2) a semântica, que trata de suas
relações com a realidade; (3) a pragmática, que se
interessa pelas relações dos signos com seus usuários,
seu emprego e seus efeitos (p. 454 – grifos dos autores
– tradução nossa).

Armengaud (2006), além da definição de Morris, fornece-nos


mais duas: de Diller e Récanati e de Jacques. Para ela, a definição dada
por Diller e Récanati é linguística:

[...] a pragmática ‘estuda a utilização da linguagem no


discurso e as marcas específicas que, na língua, ates-
tam sua vocação discursiva’ (2006, p. 11 – grifos da
autora).

Esta maneira de encarar a Pragmática aproxima-a da Semântica,


sem muitas diferenças (ARMENGAUD, 2006).
Já a definição de Jacques, Armengaud a considera integradora,
porque:
‘A pragmática aborda a linguagem como fenômeno

UESC Módulo 6 I Volume 4 63


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

para conhecer simultaneamente discursivo, comuni-


cativo e social’ (JACQUES apud AR-
MENGAUD, 2006, p. 11 – grifos da
autora).
Desta forma, a Pragmática vai tratar da análise
Fonte: www.babelio.com
das trocas linguageiras, de fenômenos interpretativos,
Françoise Armengaud é dos quais nem a Sintaxe nem a Semântica tratam, como:
doutora em Filosofia e
Maître de Conférences na
noções de contexto e de situações de comunicação,
Universidade de Rennes, informações extralinguísticas, determinação da força
onde ensina Filosofia da
Linguagem e Filosofia da ilocucionária etc. Assim, a Pragmática permite dar conta
Estética. Hoje se dedica à
poesia e à causa dos ani-
de mecanismos que não são especificamente linguísticos
mais. na interpretação dos enunciados.
Principais obras:
- A pragmática. Continuando com Armengaud (2006), ela delimita
- André Verdet: do
três conceitos fundamentais no estudo da Pragmática:
múltiplo ao singular.
- O Antropomorfismo:
questão verdadeira ou a) Ato – “[...] a linguagem não serve só
falso debate?
Fonte: http://www.fr.fnac.
[...] para representar o mundo, [...] ela
be serve para realizar ações” (p.13). Ou
seja, falar é fazer.
b) Contexto – é “[...] a situação concreta
em que os atos de fala são emitidos,
[...] o lugar, o tempo, a identidade dos
falantes etc. [...]” (p. 13). É o conjunto
de condições sociais que são levadas em
conta para o estudo das relações entre
sociedade e linguagem.
c) Desempenho – é a “[...] competência
comunicativa” (p.13 – grifos da
autora). A competência é que explica a
possibilidade do sujeito falante construir
e compreender as frases gramaticais,
interpretar as frases ambíguas, produzir
frases novas (DUBOIS, 1973).

Estes três conceitos deram origem a uma literatura


científica bastante volumosa, levando a caminhos teóricos
diferentes (PINTO, 2001). Entretanto, aqui, como foi
dito acima, analisaremos quatro destes caminhos.

64 Letras EAD
Aspectos pragmáticos da língua portuguesa

OS ATOS DE FALA: AUSTIN atenção

Baseada no texto Quand


dire c’est faire, fiz uma
tradução livre das confe-
rências feitas por Austin
e, também, me utilizei
de alguns de seus exem-
plos. As páginas vêm en-
tre parênteses.

3
Unidade
A Teoria dos Atos de Fala surgiu com a publicação
póstuma, em 1962, das 12 conferências pronunciadas por
Austin, em 1955, em Harvard.
Em sua primeira conferência, Austin (1970)
distingue os enunciados constativos e os enunciados
performativos e, em seguida, compara-os. Os enunciados
constativos descrevem uma situação, podem ser
verdadeiros ou falsos. Os enunciados performativos são
os que produzem uma ação e não são nem verdadeiros
nem falsos. Para demonstrar a tese dá os seguintes
exemplos:
a)‘Eu batizo este barco o Queen Elisabeth’ –
quando se quebra uma garrafa no casco do navio (p. 41).
b) ‘Eu doo e lego meu relógio a meu irmão’ –
como se pode ler em um testamento (p. 41).
Austin continua observando que, para os
enunciados serem considerados performativos, temos de
levar em conta as circunstâncias. Ou seja, para batizar um
navio, a pessoa tem de ser sido designada para fazê-lo.
Para legar um relógio, a pessoa precisa ser proprietária de
um relógio.
Ele termina a conferência explanando sobre o ato
de prometer. Para ele, mesmo que a pessoa não tenha a

UESC Módulo 6 I Volume 4 65


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

para conhecer intenção de cumprir a promessa por qualquer razão, ela


QUEM FOI AUSTIN? não é falsa, porque “[...] a promessa, aqui, não é nula e
inválida, se bem que dada de má fé” (p. 45 – grifos do
autor – tradução nossa).
Na terceira conferência, Austin faz a distinção
entre atos performativos explícitos e atos performativos
implícitos.

- Atos Performativos Explícitos – são os enuncia-


Fonte: www.en.wikipedia.org
John Langshaw Austin dos que designam os atos e dispõem de um significado
(1911-1960) é consi-
autorreferencial. Os enunciados comportam verbos per-
derado um filósofo da
linguagem responsável formativos do tipo – prometer, declarar – que têm o pa-
pelo desenvolvimento
de uma grande parte da pel de determinante do sentido veiculado pelo enunciado
atual teoria dos atos de
em questão.
discurso. Filiado à linha
da Filosofia Analítica, Exemplo:
interessou-se pelo pro-
blema do sentido em fi-
a) Prometo vir amanhã.
losofia. O exemplo (a) só tem um sentido determinado
A língua é analisada, por
Austin, no seio do seu pelo emissor: uso da 1ª pessoa do singular, o verbo
uso e, nomeadamente,
nas relações sociais, das
prometer e a entonação da voz.
quais ela emerge e nas
quais se modifica. Toda-
via, não pretende que a - Atos Performativos Implícitos – também são
busca da verdade deva
chamados de performativos primários. Fazem referência
terminar na linguagem
vulgar, trata-se exata- a uma convenção, mas não designam explicitamente o ato
mente do contrário, pois
o caminho para a verda- que realizam. São reconhecidos pela ausência de um ver-
de deve começar no es-
bo performativo.
tudo da língua comum,
para se estar munido de Exemplo:
um instrumento criado
pelo próprio real.
a) Vou parar de fumar.
Austin não publicou ne- Este enunciado pode ser parafraseado por:
nhum livro; depois de
sua morte, foram reco- “Prometo que vou parar de fumar”.
lhidos artigos, confe-
rências e aulas em dois
É difícil fazer a distinção entre estes dois
livros: performativos, só é possível pelo contexto.
- Quando dizer é fazer –
1962. Exemplo:
- Sentido e Percepção –
1962.
a) Vou ficar por pouco tempo.
Fonte: http://www.info- Pode ser um compromisso, um desafio, um pedido
pedia.pt/$john-langshaw-
de permissão etc.

66 Letras EAD
Aspectos pragmáticos da língua portuguesa

Foi na oitava conferência que Austin dividiu os enunciados per-


formativos em:

- Ato de Fala Locucionário – é o ato de dizer a frase.


- Ato de Fala Ilocucionário – a frase se constitui ela própria a
ação que ela enuncia.
- Ato de Fala Perlocucionário – a ação performativa não é
produzida pelo enunciado enquanto tal, ela, em vez disso, mantém as
consequências produzidas pelo fato de dizer alguma coisa.

Se eu digo:

3
Unidade
Você quebrou o vaso!

O simples fato de proferir a frase é um ato locucionário. O


ato ilocucionário realizou a ação: protestar/chamar a atenção. O ato
perlocucionário é a influência que é exercida sobre o outro para que não
volte a praticar a ação de quebrar qualquer objeto.
Preste atenção: a força ilocucionária do enunciado está na forma
como é pronunciado, em quais circunstâncias, obrigando o ouvinte a
responder.
Continuando...
Como adverte, Austin fez uma divisão exploratória da força
ilocucionária dos atos de fala:

1) Veriditivo (Veridictivo) – como o próprio nome diz, é o ato


ilocucionário de emitir um veredito/juízo sobre um assunto, mas “[...]
eles podem constituir, por exemplo, uma estimativa, uma avaliação, ou
uma apreciação” (p. 153). Pode ser proferido por:
- um juiz durante uma audiência;
- um médico diagnosticando uma doença ou
- um pesquisador apresentando sua tese.

2) Exercitivo – consiste em decidir sobre algo ou alguém: “[...]


remete ao exercício de poderes, de direitos, ou de influências” (p. 154).

UESC Módulo 6 I Volume 4 67


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

Exemplos:
a) Proíbo que você vá à festa!
b) Proponho que saiamos mais tarde.
c) Confio que Humberto vai se sair bem na pesquisa de mestra-
do.

Segundo Austin, “O ato veriditivo é judiciário, e por isto de dis-


tingue do ato legislativo ou do ato executivo, que são todos os dois
exercitivos” (p. 155).

3) Comissivo (Compromissivo/Promissivo) – “[...] obriga


aquele que fala a adotar uma certa conduta” (p. 159).
Exemplos:
a) Prometo que não farei mais isto!, disse a criança chorando.
b) Garanto que vou chegar na hora certa!

4) Condutivo (Comportamental) – provoca uma reação no


comportamento do outro.
Exemplos:
a) Aprovo o seu novo emprego, é bem melhor que o outro.
b) Agradeço a sua atenção em relação a minha mãe.

5) Expositivo – “Os expositivos são empregados nos atos


de exposição: explicação de uma maneira de ver, condução de uma
argumentação, esclarecimento do emprego e da referência das palavras”
(p. 162).
Exemplos:
a) Reconheço que estava errada sobre aquele assunto.
b) Nego qualquer participação naquele complô!
Na décima segunda conferência, Austin faz uma lista dos verbos
empregados com cada ato de fala. Abaixo, relaciono alguns destes
verbos:

68 Letras EAD
Aspectos pragmáticos da língua portuguesa

ATO DE FALA ILOCUCIONÁRIO VERIDITIVO (p. 155)

Condenar Avaliar Decretar que


Declarar Estabelecer Estimar
Decidir Caracterizar Apreciar
Sustentar Condenar Diagnosticar
Especular Interpretar como Calcular

ATO DE FALA ILOCUCIONÁRIO EXERCITIVO (p. 157)

3
Unidade
Designar Proclamar Aconselhar
Ordenar Promulgar Perdoar
Condenar Dedicar Revogar
Escolher Votar Impedir
Legar Reivindicar Demitir
Advertir Excomungar Declarar aberta
Exortar Solicitar a sessão
Suplicar

UESC Módulo 6 I Volume 4 69


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

ATO DE FALA ILOCUCIONÁRIO COMISSIVO/PROMISSIVO


(p. 159)

Prometer Ligar-se Declarar-se a favor


Estar decidido a Ter a intenção de Contratar
Propor-se Projetar Dar sua palavra
Garantir Engajar-se Jurar
Consagrar-se Estar de acordo Apostar
Adotar Opor-se Consentir

ATO DE FALA ILOCUCIONÁRIO


CONDUTIVO/COMPORTAMENTAL (p. 161)

Desculpar-se Criticar Rosnar


Agradecer Blasfemar Bendizer
Cumprimentar Aprovar Desejar
Congratular-se Favorecer Encorajar
Felicitar Protestar Saudar
Simpatizar Provocar Desafiar

70 Letras EAD
Aspectos pragmáticos da língua portuguesa

ATO DE FALA ILOCUCIONÁRIO EXPOSITIVO (p. 163)

Afirmar Perguntar Revisar


Negar Testemunhar Postular
Descrever Relatar Deduzir
Classificar Conjecturar Argumentar
Identificar Aceitar Interpretar
Mencionar Conceder Distinguir
Prevenir Opor-se a Detalhar

3
Dizer Aderir a Definir
Responder Reconhecer Ilustrar

Unidade
Replicar Repudiar Explicar

Nas 12 conferências, Austin apenas esboçou a


Teoria dos Atos de Fala, mas foi dado um grande passo
para o tratamento sistemático dos aspectos pragmáticos
da linguagem. Esta teoria será desenvolvida por Searle.

ATIVIDADES

1) Na segunda conferência, Austin traça um quadro


esquemático como sobre as coisas devem se desenvolver
corretamente, em relação ao ato de fala performativo.
Ele estabelece 6 regras para que tal aconteça. Faça um
levantamento dessas 6 regras e exemplifique. Está
disponível em http://pt.scribd.com/doc/132533146/
AUSTIN-J-L-Quando-dizer-e%CC%81-fazer.
conferência

2) Dê um exemplo de uma sentença contextualizada Assista a duas conferên-


cias do Professor Kana-
e explicite o ato locutório, o ato ilocutório e o ato
villil Rajagopalan sobre
perlocutório envolvidos no exemplo. a Teoria dos Atos de
Fala. Disponível em ht-
tps://www.youtube.com/
watch?v=Z5sZdGWMDhQ

UESC Módulo 6 I Volume 4 71


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

para conhecer 3)Indique uma das possíveis forças ilocucionárias


QUEM FOI HERBERT presentes nas frases abaixo:
PAUL GRICE?

a) Parabéns pelo seu aniversário!


b) Ai! Você esta pisando no meu pé.
c) Estou arrependida pelo que fiz com você.
d) Por favor, passe a manteiga.
e) Conte comigo durante sua campanha.
Fonte: www.
philosophicaldisquisitions.
blogspot.com  

Grice (1913-1988), fi-


lósofo britânico, desen-
volveu a ideia de que a
comunicação é regida
por um “princípio de co-
operação” e “máximas
conversacionais”.
Principais obras:

- Meaning
- Aspects of Reason
- The conception of value

atenção

As referências sobre as
máximas se encontram
em GRICE, Herbert Paul.
Lógica e Conversação, p.
84-88.

72 Letras EAD
Aspectos pragmáticos da língua portuguesa

3 TEORIA INFERENCIAL DAS IMPLICATURAS

Para Grice (1982), o escopo da Pragmática é procurar explicar de


que forma são inferidas as implicaturas oriundas de uma interlocução.
De acordo com Spohr (2009),

[...] os interlocutores, durante uma situação


conversacional, realizam esforços permanentes de
cooperação, o que os leva a considerar relevantes
todas as contribuições feitas pelos outros falantes da
situação enunciativa (p. 186).

3
Grice propôs, para definir tais condições de conversação, dois
tipos de implicaturas:

Unidade
- Implicaturas Conversacionais – são a aplicação das máximas de
conversação.
- Implicaturas Convencionais – resultam de um cálculo funda-
mentado em normas sociais.
Grice parte de um exemplo para introduzir os termos técnicos
implicitar (implicate), implicatura (implicature) e implicitado
(implicatum).
Exemplo (GRICE, 1982, p. 84):
- (A) e (B) estão conversando sobre (C).
- (A) pergunta a (B) sobre a situação de (C) no seu emprego.
- (B) responde: "Oh! Muito bem, eu acho; ele gosta de seus
colegas e ainda não foi preso".
Ele continua explicando que a resposta poderia ser:
- C é o tipo de pessoa que tende a sucumbir às tentações provo-
cadas por sua ocupação
ou
- os colegas de C são, na verdade, pessoas muito desagradáveis e
desleais.
Caberiam outras respostas, mas, pelo conhecimento prévio que
A e B têm de C, fica implícito que C é uma pessoa capaz de ceder às
pressões do seu trabalho e fazer algo que o leve à prisão.
A partir desta constatação, Grice desenvolve uma teoria
comunicacional, na qual os interlocutores trabalham a mensagem

UESC Módulo 6 I Volume 4 73


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

linguística, conforme certas normas comuns que determinam um


esquema de cooperação entre eles.
Desta forma, Grice (1982) estrutura o Princípio de Cooperação
mediante máximas e submáximas que se articulam entre si. A
compreensão das inferências parte do princípio da cooperação e das
máximas de quantidade, de qualidade, de relação e de modo.

Categoria de Quantidade

A ela correspondem 2 máximas:

1) Faça com que sua contribuição seja tão informativa como re-
querido para a conversação.
2) Não dê mais informações que o necessário.

Exemplo:

a) Que horas são?


b) São 9 horas da manhã.

No exemplo acima, nenhuma das máximas foram quebradas,


haveria uma violação se, por exemplo, B respondesse, além de informar
as horas: “Está fazendo frio” ou “O sol está brilhando”.
Entretanto Grice afirma que:

A segunda máxima é questionável; pode-se dizer que


ser super-informativo não é uma transgressão do
Princípio de Cooperação mas meramente uma perda
tempo (1982, p. 87).

Categoria de Qualidade

Nesta categoria, encontra-se a supermáxima: Contribua da


maneira mais verdadeira possível. Esta máxima leva a duas outras
máximas:

74 Letras EAD
Aspectos pragmáticos da língua portuguesa

1) Não fale o que você acredita ser mentira.


2) Não fale algo sobre o qual você não pode fornecer evidências.

Exemplo:

a) O Rio de Janeiro é a capital do Brasil?


b) Não.

Nenhuma máxima foi violada no exemplo acima. A violação


ocorreria se B tivesse respondido: “É”, isto é, estaria dando uma
informação errada.

3
Unidade
Categoria de Relação

A Categoria de Relação está ligada a uma única máxima: Seja


relevante. Ou seja, deve ser dito o que é importante para a conversação.
Contudo o próprio Grice afirma que:

Embora a máxima em si seja muito concisa, sua


formulação oculta vários problemas que me preocupam
muito: questões a propósito de que tipos de foco de
relevância podem existir, como se modificam no curso
da conversação, como dar conta do fato de que os
assuntos da conversação são legitimamente mudados,
e assim por diante (1982, p. 87).

A Teoria da Relevância foi desenvolvida por Sperber e Wilson,


em Relevance: communication & cognition (1986) e, segundo Campos
(2008, p. 11), “A comunicação humana tende a ser dirigida para a
maximização da relevância”. Nas “Considerações Últimas” de seu
artigo, Campos atesta que no conceito de relevância há graus de custo e
benefício e elenca quais são eles (p. 23).

UESC Módulo 6 I Volume 4 75


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

custo pode envolver benefício pode envolver

processamento cognitivo; mental, grau de importância quanto ao


neurofisiológico etc.; conteúdo/proposição;

processamento da linguagem ver- grau de adequação, de conexão, de


bal ao nível fonológico; interatividade;

processamento da linguagem ver- compreensão de implicaturas;


bal ao nível sintático;

processamento da linguagem ver- implicação contextual;


bal ao nível semântico;

processamento da linguagem ver- benefício retórico;


bal ao nível pragmático;

grau de acessibilidade de contex- benefício cultural;


tos;

grau de acessibilidade de memória benefício moral;


lexical;

grau de calculabilidade de inferên- benefício psicológico;


cias, dedutivas, indutivas etc.;

grau de percepção de ambiente benefício emocional.


cognitivo.

76 Letras EAD
Aspectos pragmáticos da língua portuguesa

Exemplo:

Imagine uma situação em que Dulce quer se encontrar com


Homero e pergunta a Maria por ele.
Dulce. Você viu Homero?
Maria. Tem um Doblô na frente da Escola de Ballet Dinâmica e
Movimento.
À primeira vista, houve uma violação das máximas de relevância
e quantidade. Entretanto, extralinguisticamente, se Maria pressupõe
que Dulce sabe que Homero tem um Doblô e onde é a Escola de Ballet
Dinâmica e Movimento, o Princípio de Cooperação não foi violado.

3
Por quê?

Unidade
Porque podemos inferir que Maria está comunicando que
Homero está na Escola de Ballet. Este segundo significado inferido é o
que Grice chama de implicatura.
Também observe que a resposta de Maria envolveu o custo em
um grau de calculabilidade de deduções e inferências, mas houve o
benefício em relação à compreensão da implicatura.
Se Maria tivesse respondido algo do tipo: Não sei, mas me
disseram que o carro dele estava na frente da Escola de Ballet Dinâmica
e Movimento – o custo seria alto, sem trazer benefício. Não atendeu às
expectativas de Dulce e, além disso, não deu uma informação precisa.

Categoria de Modo

A esta categoria está ligada à supermáxima – Seja claro – e às


máximas:

1) Evite se exprimir de maneira obscura.


2) Evite a ambiguidade.
3) Seja breve.
4) Seja ordenado.

Exemplo:
Dulce. Você viu Homero?

UESC Módulo 6 I Volume 4 77


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

Maria. Não sei, mas me disseram que o carro dele estava na


frente da Escola de Ballet Dinâmica e Movimento.
Como já foi dito, a resposta de Maria é obscura e não satisfaz as
expectativas do interlocutor.

Violação das máximas conversacionais

Diferente de Austin (as condições de sucesso de um performativo)


e de Searle (as condições de sinceridade), as máximas conversacionais
não têm regras preestabelecidas. Os locutores tanto podem respeitá-las
como violá-las, o que não leva à falha na comunicação.
As máximas conversacionais podem ser violadas de diversas
maneiras:
- De modo involuntário – o locutor não sabe a resposta correta
ou não escutou direito ou então houve algum mal entendido.

Exemplo:

a) Marileide viajou hoje cedo?


b) Viajou, antes das sete horas, ainda estava amanhecendo, estava
escuro ainda... ela pegou o avião das duas horas da tarde. Ela estava de
calça comprida... eu acho...

Há muitas informações, B transgride a máxima de quantidade e


A pode duvidar da fidelidade das informações.
- De modo voluntário – o locutor não quer cooperar, está
mentindo ou quer levar o interlocutor a um erro.

Exemplo:

a) A. Você me ama?
B. Hoje está muito quente.

Em (a), há uma evidente quebra da máxima de qualidade, B não


quer responder a pergunta de A. Talvez porque não ama A, ou não tem

78 Letras EAD
Aspectos pragmáticos da língua portuguesa

certeza do amor.

a) A. Onde fica a Avenida Soares Lopes?


B. Em qualquer lugar de Ilhéus.

No exemplo (b), houve a violação de duas máximas – qualidade


e modo –, podemos dizer que B estava de má vontade ou não sabe a
localização da Avenida.
As máximas podem ser violadas para provocar o riso. O professor
Possenti, em seu livro Os humores da língua (1998), faz uma análise
linguística de diversas piadas, mostrando como a quebra de algumas

3
máximas faz com que o texto seja uma piada.

Unidade
Leia a tirinha abaixo:

Fonte: http://www.blogdomatheus.com/2012/08/30-tirinhas-hagar.html

No diálogo entre Hagar e seu filho, houve a violação da máxima


de qualidade. Quando o garoto pergunta se as boas maneiras são
importantes à mesa, a resposta de Hagar é não verdadeira, porque os
vikings, como se sabe historicamente, sempre saqueavam a Inglaterra.
Ora, por que seriam convidados para jantar com o rei da Inglaterra? O
menino logo inferiu que boas maneiras não são importantes como a
mãe falou.
O humor decorreu da sobreposição do dito e do implicado.

ATIVIDADES

1) Escreva qual a máxima está sendo infringida e a implicatura


decorrente das falas de Calvin.

UESC Módulo 6 I Volume 4 79


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

Fonte: www.filologia.org.br

1) Dê dois exemplos de cada tipo de implicatura.

2) Por qual máxima o locutor pretende optar nos segmentos


abaixo:

a) Não sei se tenho evidências para isto, mas ................................


b) Isto é um pouco confuso, mas ...................................................
c) As pessoas dizem que .................................................................
d) Não posso revelar. ......................................................................
e) Sem mudar de assunto, ...............................................................

80 Letras EAD
Aspectos pragmáticos da língua portuguesa

4 OS ATOS DE FALA: SEARLE para conhecer

QUEM É JOHN ROGERS


SEARLE?
Searle (1972; 1995), a partir da Teoria dos Atos de
Fala de Austin e da Teoria Inferencial das Implicaturas de
Grice, procurou descobrir as regras que regem os atos de
fala e exprimir as funções das circunstâncias destes atos.
Para ele, uma teoria da linguagem é uma teoria da ação,
pois a enunciação de uma frase é uma ação, isto é, um ato
de fala.
A Teoria dos Atos de Fala searliana se articula em
dois componentes: o exame do sucesso de um ato de fala Fonte: www.en.wikipedia.org

3
(1979) e uma taxionomia dos atos de fala (1995).
John Rogers Searle

Unidade
Searle formula o ato de fala como se segue: (1932-), filósofo norte-
americano, dedicou-se
inicialmente à linguística

- toda intenção do locutor – crença, desejo, ordem e a filosofia da linguagem


e, posteriormente, à filo-
etc. sofia da mente. Searle se
notabilizou ao propor o
- pode ser expressa explícita e literalmente por argumento hipotético do
meio de uma frase. Quarto Chinês, no qual
criticava a Inteligência
Artificial Forte. O próprio
Searle se qualifica como
Ou seja, toda frase é redutível a um performativo. um racionalista biológico,
Exemplo: sendo sua obra uma for-
te crítica a outras corren-
tes da filosofia da mente,
como o funcionalismo.
- Hoje está chovendo.
- Eu afirmo que hoje está chovendo. Principais obras:
- Os atos de fala: um en-
saio de filosofia da lingua-

No exemplo acima, temos um ato proposicional – gem – 1969.


- Expressão e Significado:
Hoje está chovendo – e um ato ilocucionário: a afirmação. Estudos da teoria dos atos
de fala – 1979.
Esta distinção entre os atos proposicional e - Intencionalidade – 1983.
ilocucionário permite compreender os fenômenos da - Mente Cérebro e Ciência
– 1984.
negação: proposicional e ilocucionária. - A Redescoberta da Men-
te – 1992.
Exemplo: - O Mistério da Consciên-
cia – 1997.
- Consciência e Lingua-
a) Prometo não fumar mais. gem – 2002.
- Liberdade e Neurobiolo-
b) Não prometo que vou parar de fumar.
gia – 2004.

Fonte: www.skoob.com.br

UESC Módulo 6 I Volume 4 81


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

entrevista Percebeu a diferença? Na frase (a), há uma negação


Leia a entrevista conce-
proposicional, o próprio ato de fumar que é negado. Em
dida por Searle. Dispo-
nível em: http://www. (b), temos a negação ilocucionária, porque é o ato de
p e s s o a l . u t f p r. e d u . b r /
paulo/revel_8_entrevis- promessa que é negado.
ta_john_searle.pdf
Searle (1972) afirma que a força ilocucionária
encontra-se na ordem das palavras, na entonação, na
pontuação etc.
Exemplo:

a) Não saia, vá estudar.

Observe que (a) tanto pode ser uma ordem como


um conselho. Então um ato proposicional pode ter mais
de uma força ilocucionária.
A partir desta constatação, Searle (1972) fez uma
divisão entre:

- Ato de Fala Direto – quando é realizado de for-


ma típica do ato.

Exemplo:

a) Pode me dar um cigarro? – ato de fala de pedir.


b) Que horas são? – ato de fala de perguntar.

- Ato de Fala Indireto – utiliza-se de formas


linguísticas características de outro ato.

Exemplo:

a) Como esta sala está quente!

O locutor não está fazendo uma constatação


apenas, ele espera que o alocutário abra a janela / ligue o
ar condicionado / ligue o ventilador.

82 Letras EAD
Aspectos pragmáticos da língua portuguesa

Atenção: o ato de constatar é secundário e o de pedir, primário.

Regras constitutivas do ato ilocucionário

Searle (1995) enunciou 7 regras para que o ato ilocucionário


fosse bem sucedido. Elas são as seguintes:

1) Regras Preparatórias

Essas regras supõem que os interlocutores têm capacidade de se


comunicar. Ou seja, eles falam a mesma língua, não sofrem de nenhuma

3
enfermidade que os impeça de se comunicarem.

Unidade
2) Regra de Conteúdo Proposicional

De acordo com esta regra, o locutor predica a propósito de um


ato futuro.

3) Regra Essencial

Esta regra define a meta do ato ilocucionário. O conteúdo


proposicional deve ser definido, isto é, a intenção do locutor é que o
enunciado X o coloque na obrigação de efetuar Y.

4) Regras Preliminares

As regras preliminares preveem que os interlocutores devem


partilhar certos conhecimentos (conhecimento prévio), concordar
em relação a algumas condições etc. Por exemplo, se o locutor dá uma
ordem, é preciso que o interlocutor seja capaz de realizá-la.

5) Regra da Sinceridade

Para Searle (1984), a sinceridade é uma pré-condição inerente


aos atos de fala e o interlocutor confia na sinceridade do locutor.

UESC Módulo 6 I Volume 4 83


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

Por exemplo, se alguém profere – Eu os declaro marido e mulher


–, é necessário que o locutor tenha sido investido deste poder e que os
interlocutores acreditem que possa realizar casamentos.

6) Regras de Intenção

São as intenções do locutor de perguntar / prometer / ordenar


etc. e, ao mesmo tempo, fazer o interlocutor saber de sua intenção pela
enunciação da frase.

7) Regras de Convenção

São os meios linguísticos que o locutor tem para enunciar sua


intenção: eu prometo, eu proíbo, eu ordeno etc.
Searle também fala sobre as regras normativas que gerenciam as
relações entre os indivíduos. Elas são de ordem social e não importa se
o locutor é polido ou grosseiro, não influencia na força ilocucionária.

Classificação dos Atos de Fala

Você está lembrado(a) de que Austin classificou os atos de fala


de acordo com a força ilocucionária do verbo, não está? Searle (1972;
1995) tece uma crítica a esta classificação, afirmando que a força
ilocucionária do ato de fala não está somente no verbo, mas também no
próprio ato, cuja força é comum a todas as línguas naturais. Por isso, sua
classificação é em função da força ilocucionária.

1) Atos Asseverativos / Assertivos / Representativos – mostram


o comprometimento do locutor com a verdade de uma proposição. E
ele acredita na verdade de uma proposição.
Exemplo:

No Brasil, a primavera começa dia 22 de setembro.


Eu afirmo / assevero que no Brasil a primavera começa dia 22 de

84 Letras EAD
Aspectos pragmáticos da língua portuguesa

setembro.

2) Atos Diretivos – refletem a tentativa de levar o interlocutor a


fazer algo. São os convites, as sugestões, os conselhos, as ordens.
Exemplo:

Pare de brincar, vá estudar!


Eu ordeno / aconselho / peço que pare de brincar, vá estudar!

3) Atos Expressivos – consiste na expressão dos sentimentos e


atitudes do locutor.

3
Exemplo:

Unidade
Obrigada pelo convite.
Eu agradeço o convite.

4) Atos Comissivos / Promissivos – são atos cujos efeitos pro-


duzem mudanças de comportamento por meio do que se diz. É o caso
da promessa.
Exemplo:

Virei amanhã de manhã!


Prometo / garanto que virei amanhã de manhã!

5) Atos Declarativos – requerem situações extralinguísticas para


que se realizem e se baseiam nas instituições ocupadas pelos interlocu-
tores. Esses atos promovem uma mudança da realidade. São exemplos
as declarações, nomeações, ritos litúrgicos etc.

5.1) Atos Declarativos Assertivos – neste caso, o locutor tem


uma autoridade específica para realizar o ato declarativo assertivo: acei-
tar ou excluir alguém em um concurso, declarar alguém sem condições
para o serviço militar etc.

UESC Módulo 6 I Volume 4 85


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

ATO VERBO

Assertivo Afirmar, asseverar, dizer etc.

Diretivo Ordenar, pedir, mandar, requerer,


perguntar etc.

Expressivo Desculpar, agradecer, felicitar, saudar etc.

Comissivo Prometer, garantir etc.

É claro que há muitas críticas contra a classificação dos atos de


fala; em Costa (2010, p. 270), encontramos duas, que acho importantes:

Uma das críticas dirigidas à Teoria dos Atos de Fala


é a de que lhe falta uma visão dialógica, uma vez que
a noção de ato de fala é excessivamente centrada no
falante individual, e desse modo trata da ação, no
entanto negligencia a interação. Além disso, também
leva em consideração enunciados isolados, deixando
de lado sequências maiores de enunciados ou textos,
analisados fora de uma situação concreta, de um
contexto real de uso.

Você viu que Grice, quando formulou o Princípio de Coopera-


ção, mostrou que se pode recuperar a força ilocutória de um ato de fala,
mesmo que não haja uma especificação lexical.

ATIVIDADES

1) Dê um exemplo de 1 ato de fala direto e de 1 ato de fala indi-


reto e explique a força ilocucionária presente nos exemplos.

2) Classifique os enunciados a seguir, de acordo com a taxiono-

86 Letras EAD
Aspectos pragmáticos da língua portuguesa

mia de Searle.

a) Eu agradeço muito pelo que você fez pelo meu filho.


b) A UESC é uma excelente universidade.
c) Por favor, não demore!
d) Esse bolo está bom demais!
e) Você sabe onde fica a Avenida Itabuna em Ilhéus?
f) Não entre agora, espere ser chamado.
g) Sei que não fez por mal.
h) Daqui a uma semana entrego os resultados das provas.
i) Aqui está o Processo de Reconhecimento do Curso de Letras

3
Vernáculas – EaD.

Unidade
j) Declaro aberta a sessão...

RESUMINDO

Nesta unidade, você estudou:

- A Teoria dos Atos de Fala na perspectiva de Austin e Searle.


- A Teoria Inferencial das Implicaturas de Grice.

UESC Módulo 6 I Volume 4 87


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

REFERÊNCIAS

ARMENGAUD, Françoise. A Pragmática. Tradução de Marcos Mar-


cionilo. São Paulo: Parábola, 2006.

AUSTIN, John Langshaw. Quand dire c’est faire. Traduit par Gilles
Lane. Paris: Seuil, 1970.

AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer: palavra e ação. Tradu-


ção de Danilo Marcondes de Souza Filho. Porto Alegre: Artes Médicas,
1990. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/132533146/AUSTIN-
J-L-Quando-dizer-e%CC%81-fazer.

CAMPOS, Jorge. Relevância, kluges, emoções: reflexões provocativas.


In: CAMPOS, Jorge; RAUEN, Fábio José (Orgs.). Tópicos em Teoria
da Relevância. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008. p. 11-25. Disponível
em: http://www.pucrs.br/edipucrs/teoriadarelevancia.pdf

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Diction-


naire d’Analyse du Discours. Paris: Seuil, 2002.

COSTA, Gláucia Rejane da. A força ilocucionária nos atos de fala do


GESTAR II. In: Interdisciplinar. Ano 5, v. 10, n. especial 2010, p. 263-
279. Disponível em: http://200.17.141.110/periodicos/interdisciplinar/
revistas/ARQ_INTER_10/INTER10_Pg_263_279.pdf

DUBOIS, Jean et al. Dictionnaire de Linguistique. Paris: Larousse,


1973.

GRICE, Herbert Paul. Lógica e Conversação. In: DASCAL, Marcelo.


(Org.). Fundamentos metodológicos da linguística. Tradução de João
Wanderley Geraldi. Campinas: Unicamp, 1982. p. 81-103.

SEARLE, John Rogers. Les actes de langage. Essai de Philosophie du


Langage. Traduit par Hélène Pauchard. Paris: Hermann, 1972.

88 Letras EAD
Aspectos pragmáticos da língua portuguesa

SEARLE, John Rogers. Expressão e Significado. Estudo da teoria dos


atos de fala. Tradução de Ana Cecília de Camargo; Ana Luiza Marcon-
des Garcia. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

SPOHR, Maria de Lourdes. Efeitos contextuais e ambiente cognitivo:


aspectos inter-relacionados e determinantes da relevância para o leitor.
In: CAMPOS, Jorge (Org.). Inferências Linguísticas nas Interfaces.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2009. p. 182-203. Disponível em: http://
www.pucrs.br/edipucrs/inferencias.pdf

3
Unidade

UESC Módulo 6 I Volume 4 89


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

Suas anotações

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90 Letras EAD
Aspectos pragmáticos da língua portuguesa

Suas anotações

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3
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Unidade
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UESC Módulo 6 I Volume 4 91


4ªunidade
UNINDO AS PONTAS

Objetivo

Ao final desta unidade, o estudante deverá reconhecer algumas es-


tratégias discursivas, inscritas como marcas linguísticas, utilizadas na
construção de sentidos e significados discursivos e analisar o ethos
discursivo como a imagem que o locutor faz de si no discurso.
Unindo as pontas

1 INTRODUÇÃO

Nesta unidade, analisaremos alguns textos a partir da noção de


estratégias discursivas e ethos discursivo, tentando “unir as pontas”, isto
é, Estilística, Semântica e Pragmática.

2 ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS

A noção de estratégia discursiva, em Análise do Discurso, refere-


se às escolhas possíveis do locutor em uma situação de comunicação.
Segundo Charaudeau (1996), o espaço de escolha do locutor
é um espaço onde se desdobram 3 tipos de estratégias: estratégias de
legitimação, estratégias de credibilidade e estratégias de captação.

- Estratégias de Legitimação

4
Unidade
Estratégias de Legitimação são a construção de uma posição
de autoridade a partir da qual o discurso se constitui. Ora, em muitas
situações, o locutor precisa legitimar seu discurso. Então como fazê-lo?
É aí que ele tenta estruturar uma autoridade institucional ou pessoal. A
meta do locutor é que lhe seja reconhecido o direito à palavra e o direito
de ter aquele tipo de discurso.
Por exemplo, no ato de fala veriditivo, o juiz, ao fim de um
julgamento, declara o réu culpado. Foi-lhe conferido o poder de decisão
por uma autoridade institucional. E antes de ter sua palavra legitimada,
tem de se submeter a um processo seletivo.

- Estratégias de Credibilidade

As Estratégias de Credibilidade visam à elaboração de uma po-


sição de verdade que dá crédito ao discurso. Neste caso, o locutor se
coloca em uma posição de avaliador de seu próprio discurso.
Charaudeau e Maingueneau (2002) afirmam que para constituir
uma posição de verdade o sujeito deve:

UESC Módulo 6 I Volume 4 95


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

1) “colocar-se numa posição enunciativa de neutralidade, quan-


to à opinião que exprime” (p. 154 – grifo dos autores). Isto acontece
em textos técnico-científicos, em que há preocupação de provar fatos
e verdades.

2) “colocar-se numa posição de engajamento” (p. 154 – grifo dos


autores). O sujeito escolhe argumentos ou palavras que podem persua-
dir seu interlocutor a partilhar de suas convicções.

3) “colocar-se numa posição de distanciamento que o levará a


tomar uma atitude fria do especialista que analisa sem paixão, como o
faria um expert” (p. 154-155 – grifo dos autores).

Leia o lead abaixo:

Dilma fala em robustez fiscal - mas, na verdade, tortura números.

Embora tente mostrar credibilidade por meio de discurso, o


governo vem antecipando dividendos e créditos de empresas para
engordar as contas públicas (Disponível em http://veja.abril.com.br/
noticia/economia/dilma-fala-em-robustez-fiscal-mas-na-verdade-
tortura-numeros).

Com o modalizador “na verdade”, o locutor afirma que sua visão


se acomoda melhor à verdade dos fatos. E, com o termo “embora”, re-
tira a credibilidade do discurso governamental.

- Estratégias de Captação

As Estratégias de Captação consistem em operações de persuasão


destinadas a conquistar a adesão do alocutário, criando, nele, a ilusão de
fazer parte de um grupo ou de uma ideia.
O sujeito pode ter duas atitudes na estratégia de captação
(CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2002):

96 Letras EAD
Unindo as pontas

- polêmica – o sujeito ou defende ou questiona a legitimidade de


alguma causa e

- de dramatização – é feita à base de analogias, metáforas, apoian-


do-se em crenças para despertar as emoções do outro.

Aqui podemos pensar em duas situações de captação: midiática


e publicitária.
Quando um suporte midiático (jornal, rádio, televisão,
Internet) transmite uma informação, é preciso que esta informação
seja reconhecida como verdadeira. Para que isto aconteça, Charaudeau
(2000) nos oferece três possibilidades:

- autenticando o fato – com a ajuda de documentos, de imagens


que dão “a impressão que ‘a realidade, é o que é mostrado’” (CHA-

4
RAUDEAU, 2000).

Unidade
- reconstruindo o fato – através de testemunhos que apresentam
a realidade como verdadeira.

- explicando o fato – por intermédio de entrevistas e debates


com profissionais especialistas no assunto.

No contrato de comunicação publicitária, para tornar a


persuasão verossímil, as agências de publicidade pesquisam hábitos,
lazer, alimentação, rituais sociais e/ou religiosos, expectativas sociais
e pessoais, autoimagem etc. É constituída uma imagem do produto-
serviço, na qual o sujeito se reflete e se vê refletido.
Para engendrar tal imagem, os produtos são apresentados como
capazes de:

a) permitir ao sujeito o reencontro com o paraíso perdido;


b) oferecer ao consumidor a possibilidade da afirmação de um
desejo particular e individual e
c) proporcionar ao indivíduo uma imagem de si mesmo

UESC Módulo 6 I Volume 4 97


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

fortemente idealizada.

Como vimos, o que encontramos no contrato do discurso


publicitário é um projeto de sedução para captar o interlocutor.
Outro ponto importante a observar na estratégia de captação é
que ela pode se realizar de duas formas, como nos ensina Maingueneau
(1984).

- Como captação – o sujeito “respeita” o discurso do outro, isto


é, um enunciado inscrito na memória discursiva da história de um povo
tem valor de autoridade.
Por exemplo, o enunciado “Em se plantando tudo dá” que, desde
a Carta de Caminha, vem sendo utilizado para descrever as riquezas do
Brasil. Este enunciado se transformou em uma memória de autoridade e,
conforme a área de conhecimento, é parafraseado como: “Brasil, celeiro
do mundo” (Agricultura); “Brasil, pulmão do mundo” (Ecologia) etc.

- Como subversão – o sujeito desqualifica a autoridade de um


texto, isto é, com fins satíricos ou cômicos, imita ou ridiculariza uma
parte ou totalidade de uma obra. Podemos exemplificar com:
Exemplo 1:

FONTE: http://www.site-magister.com/parodi.htm

A figura 1 é a famosa pintura de Leonardo da Vinci, uma das pin-


turas mais conhecidas do mundo. O locutor subverte a obra, mas deixa
expresso o aspecto lúdico.

98 Letras EAD
Unindo as pontas

Exemplo 2:

Texto 1 Texto 2
Canção do exílio Canção do Exílio às Avessas
Gonçalves Dias Jô Soares
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá; Minha Dinda tem cascatas
As aves, que aqui gorjeiam, Onde canta o curió
Não gorjeiam como lá. Não permita Deus que eu tenha
Nosso céu tem mais estrelas, De voltar pra Maceió.
Nossas várzeas têm mais flores, Minha Dinda tem coqueiros
Nossos bosques têm mais vida, Da Ilha de Marajó
Nossa vida mais amores. As aves, aqui, gorjeiam
Em  cismar, sozinho, à noite, Não fazem cocoricó.
Mais prazer eu encontro lá;

4
Minha terra tem palmeiras, O meu céu tem mais estrelas

Unidade
Onde canta o Sabiá. Minha várzea tem mais cores.
Minha terra tem primores, Este bosque reduzido
Que tais não encontro eu cá; deve ter custado horrores.
Em cismar –sozinho, à noite– E depois de tanta planta,
Mais prazer eu encontro lá; Orquídea, fruta e cipó,
Minha terra tem palmeiras, Não permita Deus que eu tenha
Onde canta o Sabiá. De voltar pra Maceió.
Não permita Deus que eu
morra, Minha Dinda tem piscina,
Sem que eu volte para lá; Heliporto e tem jardim
Sem que disfrute os primores feito pela Brasil’s Garden:
Que não encontro por cá; Não foram pagos por mim.
Sem qu’inda aviste as palmeiras, Em cismar sozinho à noite
Onde canta o Sabiá.  sem gravata e paletó
Olho aquelas cachoeiras
Fonte:   http://www.horizon- Onde canta o curió.
te.unam.mx/brasil/gdias.html
No meio daquelas plantas
Eu jamais me sinto só.

UESC Módulo 6 I Volume 4 99


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

O texto 1 pertence ao período literário romântico de 1836,


quando o Brasil tinha acabado de se tornar independente. No anseio
de se afirmar como nação no processo mundial de modernização, os
“inventores” buscaram a cor local, baseados “nas projeções edênicas da
Carta de Caminha e dos textos descritivos dos estrangeiros que aqui
estiveram, para veicular a idéia inaugural de Pátria como um paraíso
tropical de reminiscências míticas” (TEIXEIRA, 2001, p. 46).
Estes versos se transformaram em um verdadeiro hino de louvor
à pátria, inclusive é citado no Hino Nacional: “Nossos bosques têm
mais vida / ‘Nossa vida’ em teu seio ‘mais amores’”.
A Canção do Exílio às Avessas – texto 2 – refere-se à corrupção
durante o governo de Collor. A “Casa da Dinda”, local em que Collor
morava, era o símbolo do poder governamental.
Observe que o texto 2, apesar de subverter o texto 1, segue a
mesma métrica: versos heptassílabos ou redondilha maior. O emprego
da redondilha maior vem desde o período trovadoresco, porque, além
de conferir grande musicalidade ao texto, facilita a memorização.
Também é preciso levar em consideração as condições de
produção do discurso: os dois textos pertencem a épocas diferentes.
O primeiro relaciona-se a uma fase de ufanismo nacional; o segundo, a
uma fase de corrupção.

Fonte: http://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2012/09/simbolo-do-poder-na-era-collor-casa-da-dinda-nao-
tem-mais-moradores.html

100 Letras EAD


Unindo as pontas

ATIVIDADES

1) Quais as estratégias discursivas empregadas pelo sujeito nos


enunciados a seguir?

a) “Presos pelo Mensalão ficam em celas individuais com chuvei-


ro e água fria” (Disponível em: http://noticias.uol.com.br/).

b)

<img src=”http://imguol.com/2013/09/20/chamadas-album-partidos-politicos-2013-1379683107461_300x100.png”
alt=”Arte/UOL” width=”300” heigh=”100”>

4
Pluripartidarismo dos escândalos inibe o discurso ético para 2014

Unidade
c) Número de fazendas invadidas por sem-terra sobe para 21 no
interior de SP.
(Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/
nacional,numero-de-fazendas-invadidas-por-sem-terra-sobe-para-21-
no-interior-de-sp-,1097374,0.htm).

UESC Módulo 6 I Volume 4 101


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

atenção 3 ETHOS DISCURSIVO


O texto sobre ethos dis-
cursivo é fruto de um
artigo escrito por mim
e a orientanda Milena A noção de ethos pertence à tradição retórica, e
Santos de Jesus, para o
curso de Especialização
passa a ser utilizada por linguistas de inúmeras correntes
em Leitura e Produção teóricas tais como a Análise do Discurso, a Pragmática,
de Texto (UESC), e está
em fase de publicação. a Teoria da Argumentação, dentre outras. Aristóteles
(1998), em sua Retórica, dividiu a argumentação
discursiva em três partes:

- a razão (logos);
- a emoção ou paixão do auditório (pathos) e
- o caráter ou costumes do orador (ethos).

Ele se distancia dos retóricos de sua época que


não observam o ethos como elemento contribuinte
para a persuasão, admitindo que “quase se poderia dizer
que o carácter [ethos] é o principal meio de persuasão”
(ARISTÓTELES 1998, I, p. 49).
Eggs (2011) admite que, na Retórica, de Aristóteles,
o ethos abrange campos semânticos opostos. O primeiro
tem um sentido moral e fundado na epieíkeia. Essa abarca
as atitudes e virtudes como honestidade, benevolência ou
equidade. Em outra perspectiva, o ethos também tem
um sentido neutro ou “objetivo” de héxis como hábitos,
modos e costumes ou carácter. Para Piris (2012), o ethos
retórico deve ser compreendido como uma construção
discursiva na qual se fazem presentes as dimensões moral
e social do orador. Além disso, o sucesso do orador não
estará relacionado à honestidade, mas às impressões que
seu discurso causa.
A integração do termo ethos às ciências da
linguagem tem uma primeira expressão na teoria
polifônica da enunciação de Oswald Ducrot (1984).
A pragmática semântica vai se interessar não pelo
sujeito falante, mas pela instância discursiva do locutor.

102 Letras EAD


Unindo as pontas

Com isso, não se confunde as instâncias ficcionais para conhecer

discursivas com o sujeito empírico (real). Ela associa QUEM É DOMINIQUE


MAINGUENEAU?
a enunciação à aparição de um enunciado que não tem
relação com o sujeito que o reproduz. Ela vai diferenciar
o locutor (L) do enunciador (E) que é a origem dos
posicionamentos expressos no discurso. A análise do
locutor L consiste não em observar o que ele diz sobre
si mesmo, mas compreender a aparência que as escolhas
de suas enunciações lhe conferem. É nesse ponto que se
observa a noção de ethos em Ducrot “(...) o ethos está
Fonte: http://www.fundepe.
ligado a L, o locutor enquanto tal: é enquanto fonte da com/novo/cited/dominique.php

enunciação que ele se vê dotado de certos caracteres que, Dominique Mainguene-


au (1950-) pesquisa fe-
por contragolpe, tornam essa enunciação aceitável ou nômenos da enunciação
rebarbativa” (DUCROT, 1987 p. 186). Nesse sentido, linguística e, sobretudo,
a Análise do Discurso.
o ethos é mostrado por meio dos rastros deixados pelas

4
Desde janeiro de 2012,
é professor de Linguística
enunciações nos enunciados.

Unidade
da Universidade de Paris
A temática do ethos retórico integrado à Análise IV Paris-Sorbonne.

do Discurso tem sido discutida por meio dos trabalhos Principais obras:

de Maingueneau. Dessa maneira, a proposta do autor


- Novas tendências em
sobre o ethos abrange a seguinte perspectiva: Análise do Discurso –
1989.
- Elementos de linguísti-
[...] longe de reservá-lo à eloquência ca para o texto literário
jurídica ou mesmo à oralidade, propõe – 1996.
- Pragmática para o dis-
que qualquer discurso escrito, mesmo
curso literário – 1996.
que negue possui uma vocalidade - Análise de textos de co-
específica, que permite relacioná-lo municação – 2001.

a uma fonte enunciativa, por meio - O contexto da obra lite-


rária – 2001.
de um tom que indica quem disse: o - Dictionnaire d’Analyse
termo ‘tom’ apresenta a vantagem de du Discours – 2002.
valer tanto para o escrito quanto para o - Gêneses do Discurso –
2005.
oral: pode-se falar do ‘tom’ de um livro
- Discurso Literário –
(MAINGUENEAU, 2011, p. 72). 2006.
Cenas da Enunciação –
2008.
O ethos está intimamente relacionado ao processo - Doze conceitos em Aná-
lise do Discurso – 2010.
enunciativo, podendo ser compreendido a partir da
perspectiva em que o Locutor seleciona um conjunto de Fonte: www.companhia-
dasletras.com.br
enunciados referentes à imagem a qual deseja compor
para o interlocutor. Dessa maneira, o ethos está associado

UESC Módulo 6 I Volume 4 103


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

a uma noção discursiva na qual implica a construção de uma imagem do


orador por meio da produção discursiva. O ethos funciona na perspectiva
do autor citado como fiador do discurso, ou seja, o legitimador do
discurso pelo seu modo de dizer.

A instância que assume o tom de uma enunciação


evidentemente não coincide com o autor efetivo
da obra. Trata-se, de fato, dessa representação do
enunciado que o co-enunciador deve construir a partir
de índices de várias ordens fornecidas pelo texto.
Essa representação desempenha o papel de um fiador
que se encarrega da responsabilidade do enunciado
(MAINGUENEAU, 1995 p. 139 – grifo do autor).

O fiador é composto de caráter, de “feixe de traços psicológicos”


(p. 139) os quais correspondem a estereótipos específicos de uma
época, e a corporalidade a qual remete a uma “representação do corpo
do enunciador da formação discursiva” (PIRIS, 2012, p. 40). O
ethos passa a ser compreendido como uma “voz” que carrega em si
um “corpo enunciante” historicamente especificado e que pressupõe
uma determinada situação na qual sua enunciação ao mesmo tempo em
que requer a cena enunciativa permite sua legitimação. O ethos vai se
desdobrar no registro do “mostrado” e eventualmente no do “dito”.
Nessa perspectiva, sua eficácia consiste na presença dele nas enunciações
sem que seja explicitada no enunciado.
Desse modo, o caráter e a corporalidade do fiador garantem
legitimidade ao discurso. Esses são elaborados a partir de um conjunto
de representações sociais valorizadas ou desvalorizadas, de estereótipos
sobre os quais a enunciação se mantem e, por sua vez, contribui para
reforçar ou transformar o ethos.

Caráter e corporalidade do fiador apoiam-se, então,


sobre um conjunto difuso de representações sociais
valorizadas ou desvalorizadas, de estereótipos sobre
os quais a enunciação se apoia e, por sua vez, contribui
para reforçar ou transformar. Esses estereótipos
culturais circulam nos registros mais diversos [...]
livros de moral, teatro, pintura, escultura, cinema,
publicidade [...] (MAINGUENEAU, 2011, p. 72).

104 Letras EAD


Unindo as pontas

A efetivação da persuasão de um texto decorre da identificação do


coenunciador com um sistema de valores historicamente especificados.
Nesse sentido, o discurso é inscrito em uma configuração sócio-histórica
e está intrinsecamente relacionado aos conteúdos e à legitimação
de sua cena enunciativa. O enunciador leva em conta a instituição
discursiva a qual se encontra inscrita em certa configuração cultural
e que implica “papéis, lugares e momentos de enunciação legítimos,
um suporte material e um modo de circulação para o enunciado”
(MAINGUENEAU, 2011, p. 75).
Maingueneau (2011), ao admitir a relação entre ethos e “cena
enunciativa”, divide a última em três cenas: a englobante, a genérica
e a cenografia. A cena englobante corresponde ao tipo de discurso, a
genérica ao gênero e cenográfica “ela não é imposta pelo gênero, ela é
elaborada pelo texto” (p.75). A cenografia trabalha paralelamente ao
ethos e à enunciação, legitimando o enunciado.

4
A cenografia só se desenvolve plenamente se mantiver

Unidade
uma distância em relação ao coenunciador o qual não pode agir
imediatamente sobre o discurso. O ethos vai sendo mostrado mediante
o desenvolvimento da enunciação e não permite a separação entre texto
e corpo assim como das do mundo representado e a enunciação que
carrega. Dessa maneira funciona como um fiador que proporciona uma
identidade já que origina uma representação de mundo.
Repare que qualquer discurso é propício a diversas cenografias,
pois o locutor pode falar para seu(s) alocutor(es) como um estudante,
um pai, um amigo, um empresário etc. e atribuir diversas representações
aos receptores.
Para ficar mais claro, imagine estas duas situações:

- Um palestrante falando para um auditório de policiais, juízes


sobre o combate às drogas.
- Um palestrante falando para um auditório de professores,
pedagogos sobre o combate às drogas.

Qual cenografia seria adequada para cada auditório? Qual ethos o


locutor deve construir para que seu discurso seja legitimado?

UESC Módulo 6 I Volume 4 105


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

Podemos pensar em duas alternativas.


1ª situação – policiais, juízes – o discurso do palestrante pode
ser construído em torno da questão de repressão, combate ao tráfico de
drogas, aumento das penalidades.
2ª situação – professores, pedagogos – o discurso deve girar em
torno de tratamento e reinserção social do usuário de drogas.
O palestrante, nas duas situações, construiu um ethos (uma
imagem de si) que deu credibilidade, legitimidade e captou seu auditório.

ATIVIDADE

Imagine uma ou duas situações em que o sujeito tenha de


construir 2 ethos para atender a públicos distintos. A cenografia não
precisa ser excludente, apenas tem de atender a dois públicos diferentes.
SUGESTÕES:

- Violência urbana e segurança pública.


- Menor abandonado.
- Violência contra a criança.
- Eutanásia.
- Vinda de médicos estrangeiros.

106 Letras EAD


Unindo as pontas

4 ANÁLISE DISCURSIVA DE ALGUNS TEXTOS atenção

Não usei aspas nas aná-


lises, porque são referen-
Você viu que, no cruzamento de disciplinas – tes:

Estilística, Semântica e Pragmática –, as análises


- Texto 1 – são produto do
artigo “A construção do

[...] partem, no entanto, do princípio feminino no discurso de


posse de Dilma Rousse-
que os enunciados não se apresentam ff”, escrito por mim e pela
como frases ou série de frases, mas orientanda Milena Santos
como textos. Ora um texto é um modo de Jesus. O artigo já foi
enviado para publicação.
de organização específico que é preciso
estudar como tal relacionando-o às - Texto 2 – pertencem ao
condições nas quais ele é produzido artigo “A temática nordes-
(GRAWITZ, 1993, p. 345 – tradução tina nos produtos audiovi-
suais Brasileiros”, escrito
nossa).
por Cesário Alvim Pereira
Filho, Marcelo Pires de
Oliveira e Sylvia Maria
Portanto é levando em consideração quais efeitos
Campos Teixeira, e publi-
estilísticos, semânticos e/ou pragmáticos que o sujeito cado nos Anais do XXXIV

4
Congresso Brasileiro de
construiu para fazer uma imagem de si no discurso. Ciências da Comunicação.

Unidade
Então mãos à obra!
- Texto 3 – são do artigo
“O mito da masculinidade
em Jorge Amado”, publi-
Texto 1 cado nos Anais do X Con-
gresso Internacional da
ABRALIC.
E1 - Queridas brasileiras e queridos brasileiros,
pela decisão soberana do povo, hoje será a primeira vez
que a faixa presidencial cingirá o ombro de uma mulher.
[...] sei do significado histórico desta decisão.
E2 - Venho para abrir portas para que muitas outras
mulheres, também possam, no futuro, ser presidenta; e
para que - no dia de hoje - todas as brasileiras sintam o
orgulho e a alegria de ser mulher.
E3 - Venho, antes de tudo, para dar continuidade ao
maior processo de afirmação que este país já viveu. Venho
para consolidar a obra transformadora do presidente
Luís Inácio Lula da Silva, com quem tive a mais vigorosa
experiência política da minha vida.
E4 - Mas mulher não é só coragem. É carinho
também. Carinho que dedico a minha filha e ao meu
neto. [...]. É com este mesmo carinho que quero cuidar

UESC Módulo 6 I Volume 4 107


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

revisão do meu povo, e a ele - só a ele - dedicar os próximos anos


Só para lembrar as con- da minha vida.
dições de produção do
discurso!

O texto 1 são trechos do discurso de posse de


- Um locutor: aquele
que diz, tem uma po- Dilma Rousseff, pronunciado em 1 de janeiro de 2011,
sição sócio-histórica
(posição de pai, de pro- e está disponível em http://www.brasil.gov.br/noticias/
fessor, de amigo, de sa-
arquivos/2011/01/01/leia-integra-do-discurso-de-posse-
cerdote etc.).
de-dilma-rousseff-no-congresso.
- Um alocutário: aquele
para quem se diz o que
No enunciado 1, início do discurso, o locutor
se tem a dizer, tem uma constrói uma enunciação na qual o conjunto de
posição sócio-histórica.
- Um referente: o que elementos textuais origina um ethos (fiador) que nos
dizer, sempre determi-
nado pelos sistemas se-
remete à condição de exclusão da mulher da participação
mânticos de coerência e pública durante parte da história da sociedade brasileira.
de restrições.
Entretanto assume também um ethos de inovador social
- Uma forma de dizer: é
já que é a primeira mulher a ocupar o mais alto cargo
preciso que se escolham
as estratégias para se parlamentar em uma esfera de dominação masculina.
dizer.
Com isso, é percebido que marca sua fala por meio
- Um contexto em sen-
da adjetivação construída com os termos “Queridos
tido estrito: as circuns-
tâncias imediatas – o brasileiros e queridas brasileiras,” corroborando para a
aqui e o agora do ato de
discurso.
construção de um ethos que marca a diferença entre os
gêneros e ajuda a definir seu ethos de mulher.
- Um contexto em sen-
tido estrito: as circuns- É perceptível que há uma tentativa de afastamento
tâncias imediatas – o
aqui e o agora do ato de
de ethos individual e a integração a um ethos coletivo
discurso. feminino por parte da presidente, no segundo enunciado.
- Um contexto em sen- Em E3, a cena enunciativa ainda traz a representação
tido lato: as determi-
nações sócio-históricas,
do ex-presidente Lula e a concepção que ele realizou um
ideológicas, o quadro governo transformador que serve de modelo para que o
das instituições em que
o discurso é produzido enunciador (a presidente), enquanto inovador social, o
– a família, a escola, a
siga.
igreja, o sindicato, a po-
lítica, a informação etc. No quarto enunciado, o ethos construído é de uma
mulher de coragem para governar uma nação, mas que
usa a imagem maternal para elaborar o ethos de matriarca
nacional.
Você viu que a cenografia evocada no discurso de
posse de Rousseff é de uma precursora feminina dotada

108 Letras EAD


Unindo as pontas

de coragem para “fazer o Brasil dar certo”, mas que não se afasta dos
valores tradicionais conferidos ao gênero feminino como a valorização
da família e da maternidade.

Texto 2

E1 - Verdade seja dita, Ojuára nasceu numa tarde de agosto, aos


vinte e oito anos de idade. Até então, ele não passava de um bedamerda
empregado no armazém do sogro, um turco brabo que só a gota, que
parecia ter parido sozinho a filha única, tal a presença dos dois. Até
aquela tarde, gravada para sempre na história de Jardim de Caiacós,
Ojuára era José Araújo Filho, homem triste, cara fechada, conversa
pouca. Enquanto definhava sob a montanha de papéis do armazém ou
sucumbia sob os braços e o mau humor da mulher, Zé Araújo nem de
longe desconfiava que a cidade toda o achava leso, imoral e manicaca.

4
Não valia um tostão de mel coado (CASTRO, 2006 p. 11).

Unidade
E2 - O caboclo Ojuára apareceu na porta com roupa de mescla
e jibão de couro. Trazia uma viola atravessada nas costas, presa por um
talabarte.
Segurava na mão esquerda um bisaco de couro, muito cheio de
coisas, porque se via que estava abarrotado. Já não era Zé Araújo, todo
mundo viu logo pelo jeitão. E os mais observadores olharam para seus
pés, pra ver se o caboclo estava usando bota de salto alto. Não estava:
era mesmo alpercata de couro cru. [...] Seus ombros também estavam
mais largos e no rosto tinha desaparecido completamente aquele jeito
de marido mandado, jeito de merda n’água, que vai para onde é levado
(CASTRO, 2006, p. 50).
Os enunciados acima são fragmentos do cordel As pelejas de
Ojuára, de Nei Leandro de Castro, e narra a história de Zé Araújo,
caixeiro viajante, e se passa em Jardim dos Caiacós. Zé Araújo seduz a
filha de um comerciante e é obrigado a se casar, tornando-se um escravo
da mulher, do sogro e motivo de chacota de toda cidade. Revoltado,
transforma-se em Ojuára e começa uma nova vida, na qual é herói, dono
de sua própria vida, que revestido da nova identidade transforma-se em
homem valente e destemido que enfrenta personagens míticos, entre

UESC Módulo 6 I Volume 4 109


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

atenção eles o Diabo, e personagens do sertão nordestino, como


Os enunciados do tex- jagunços, cangaceiros e touros bravos.
to 3 foram retirados de
AMADO, Jorge. Terras A partir do contexto socioeconômico do Brasil, na
do Sem Fim. 72. ed.
região Nordeste, não é difícil compreender a temática da
Rio de Janeiro: Record,
2004. obra: a luta pela sobrevivência, apesar da falta de respeito.
Os dois enunciados mostram a mudança de Araújo
em Ojuára: de infra-homem, aquele que pede desculpas
a todo mundo e a si próprio, o super-homem. É aí que se
corporifica o ethos mitificado do nordestino, a partir do
enunciado euclidiano: o sertanejo é um forte.

Texto 3

E1 – “O coronel Horácio [...]. Tinha cerca de


cinqüenta anos e seu rosto, picado de bexiga, era fechado
e soturno. As grandes mãos calosas seguravam fumo de
corda e o canivete com que faziam o cigarro de palha.
Aquelas mãos, que muito tempo manejaram o chicote
quando o coronel era apenas um tropeiro de burros,
empregado de uma roça no Rio do Braço, aquelas mãos
manejaram depois a repetição quando o coronel se fez
conquistador da terra” (p. 40-1).
E2 – “Corriam lendas sobre ele, [...]. As velhas
beatas que rezavam a São Jorge na igreja de Ilhéus
costumavam dizer que o coronel Horácio, de Ferrada,
tinha debaixo da sua cama, o diabo preso numa garrafa”
(p. 41).
E3 - “Seus jagunços diziam que ele era um macho
de verdade e que valia a pena trabalhar para um homem
assim. Nunca deixava que jagunço seu parasse na cadeia
e certa vez saíra especialmente da fazenda para libertar
um que estava na prisão de Ferradas. Depois de tirá-lo de
entre as grades, rasgara o processo na cara do escrivão”
(p. 44).
E4 – “Virgílio os olhava e teve um desejo de rir, o

110 Letras EAD


Unindo as pontas

coronel era ridículo, parecia um palhaço de circo com aquele camisolão


bordado, a cara picada de bexiga” (p. 100).
E5 – “Por isso se admirou quando Horácio se voltou para Maneca
Dantas e disse: [...]. Virgílio não esperava aquela voz firme e enérgica
de Horácio. Chocava com a imagem que ele formara do coronel. [...]
aquela franqueza com que Horácio falava dos advogados, da advocacia
e da justiça, as palavras fortes envoltas em certo desprezo, novamente
chocaram Virgílio. A figura do coronel como um palhaço torpe e cômico
ia ruindo na imaginação do advogado” (p. 101).
E6 – “Vinha uma ameaça na sua voz, os homens abaixaram
a cabeça. Horácio riu seu riso para dentro. Virgílio o via um gigante
de força inimaginável. Sob o império da sua voz desapareciam até as
cômicas flores do camisolão” (p. 103).
E7 – “Virgílio o seguiu com os olhos prenhes de admiração” (p.
104).

4
E8 – “Assim com o cavalo levantado sobre as patas traseiras,

Unidade
levantado ele também da sela, o chão com as marcas do risco das patas
do animal, o rebenque numa mão, a outra sustentando pela rédea o
equilíbrio do cavalo, Horácio parecia uma estátua eqüestre de um antigo
guerreiro” (p. 140).
Os enunciados apresentam tanto a descrição física de Horácio,
dado pelo narrador, quanto a impressão que o personagem causa aos
olhos dos outros. São impressões contraditórias.
Comecemos pela descrição física: um homem de meia-idade,
rosto picado de bexiga, mãos calosas. Em Virgílio (E4), provoca o riso
– ridículo, palhaço de circo.
Nos outros enunciados, vemos surgir a figura de um grande-
homem, isto é, aquele que detém o poder político, mágico (E2),
econômico e bélico (WELZER-LANG, 2004). Horácio é identificado
ao Patriarca e ao Self-made Man. Possui terras, cuida de seus domínios e
de seus homens (E3). Mostra-se aí a ideologia burguesa: com ocupações
voltadas para o capitalismo e para a preservação da vida.
No decorrer do texto, a conquista de terras, pelo Coronel
Horácio, é lembrada diversas vezes. Em nome dela, eclodem conflitos,
travam-se batalhas, decidem-se destinos. Acompanham-no a lealdade

UESC Módulo 6 I Volume 4 111


Aspectos estilísticos e pragmáticos da língua portuguesa

dos jagunços (E3) e o respeito daqueles que o tinham ridicularizado (E5


e E6). Até chegar ao ponto culminante: Horácio é a personificação dos
grandes guerreiros (E8) -, numa representação semidivina de virilidade.
Repare que Virgílio, em E6 e E7, muda seu julgamento sobre
Horácio e o vê como “um gigante de força inimaginável” e olha “com
os olhos prenhes de admiração”, pois foi, através de construções
discursivas, que houve uma manipulação simbólica. Ou seja, quem era
ridículo passou a ser o homem viril, superior.

ATIVIDADE

Em grupo de 4 ou 5, escolha um texto (jornalístico, literário,


propaganda etc.) e analise como o sujeito constrói o ethos, criando uma
imagem de si no discurso.

RESUMINDO

Nesta unidade, você estudou:

- as estratégias discursivas e
- a construção da imagem de si através do ethos discursivo.

112 Letras EAD


Unindo as pontas

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. Retórica. Tradução de Manuel Alexandre Júnior et al.


Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1998.

CASTRO, Nei Leandro de. As pelejas de Ojuára: o homem que desa-


fiou o diabo. 4.ed. São Paulo: Arx, 2006.

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114 Letras EAD


Unindo as pontas

Suas anotações

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