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CENTRO DE EDUCAÇÃO
CURSO DE PEDAGOGIA
DEPARTAMENTO DE ENSINO E CURRÍCULO
Recife
2022
CRISTIANE MARQUE NOVAES DE OLIVEIRA
MARIA CECÍLIA DE MELO MOURA
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________
Profa. Dra. Ana Paula Fernandes Silveira Mota (Orientadora)
Universidade Federal de Pernambuco
____________________________________________
Profa. Dra. Liliane Maria Teixeira de Carvalho (Examinador Interno)
Universidade Federal de Pernambuco
____________________________________________
Profa Dra. Pompeia Villachan Lyra (Examinador Externo)
Universidade Federal Rural de Pernambuco
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Resumo
A abordagem Pikler evidencia a importância da relação privilegiada educadora-
criança, sobretudo, com crianças da primeira infância. De acordo com os princípios
de Emmi Pikler (FALK, 2014; APPELL; DAVID, 2021), a relação privilegiada tem base
na efetivação de um vínculo afetivo que proporciona segurança emocional na criança,
mediante as ações de cuidado do adulto. A partir desse prisma, foi desenvolvida uma
pesquisa qualitativa com o objetivo de identificar as contribuições da abordagem Pikler
para a construção de uma relação privilegiada entre educadora-criança, no contexto
da Educação Infantil (EI), bem como refletir sobre a pertinência do currículo na EI
sobre práticas pautadas nos princípios da abordagem Pikler. Os dados foram
coletados a partir de entrevistas semiestruturadas realizadas com três educadoras de
escolas da Região Metropolitana do Recife que afirmam ter práticas inspiradas na
abordagem em questão. Para isso, foi utilizada a técnica de análise de conteúdo de
Bardin (1977). Alguns dos resultados deste estudo mostram que a presença da
educadora, como adulto de referência é relevante, contribuindo para o
desenvolvimento pleno e estimulando a autonomia e segurança dos bebês e crianças
pequenas.
1 INTRODUÇÃO
A história sobre a concepção da infância revela que, no passado, as crianças
muitas vezes eram reconhecidas e tratadas como adultos em miniaturas, se vestindo
e executando tarefas, e consideradas inexperientes e incapazes, já que não
conseguiam desenvolver as atividades que lhes eram atribuídas com a excelência
de um adulto. É possível observar, também, que na trajetória histórica, tal concepção
de criança e de infância, perpassa por compreensões que vão desde a aceitação
tácita de uma espécie de natureza infantil, passando por uma ideia de preservação
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Concluinte do Curso de Pedagogia - Centro de Educação da Universidade Federal de
Pernambuco. cristiane.novaes@ufpe.br
2
Concluinte do Curso de Pedagogia - Centro de Educação da Universidade Federal de
Pernambuco. cecilia.melom@ufpe.br
3
Professora Doutora do Departamento de Ensino e Currículo- Centro de Educação da
Universidade Federal de Pernambuco. ana.fsilveira@ufpe.br
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primeira infância, foi a pediatra austríaca, radicada na Hungria, Emmi Pikler (1902-
1984) que assumiu o Instituto Lóczy, localizado em Budapeste, no período posterior à
Segunda Guerra Mundial.
A partir de suas observações e pesquisas, Pikler percebeu que o
desenvolvimento saudável das crianças depende do modo como são cuidadas e do
tipo de ambiente que estão inseridas, além de ter reconhecido que é prejudicial
influenciar e/ou acelerar o desenvolvimento dos bebês, defendendo, sobremaneira, a
necessidade de que a criança se desenvolva de forma autônoma. Nesse sentido,
Pikler reconhece que se faz necessária a construção de uma “relação privilegiada”,
com qualidade estruturante e desenvolvida de maneira afetiva entre a criança e o
adulto de referência, que cuida e educa. Valoriza-se que a relação seja estabelecida
com respeito, compreendendo a criança como um ser com desejos e anseios, e que
precisa do adulto para conseguir atender às suas necessidades e potencializar sua
ação autônoma. Desse modo, com atenção integral para as necessidades nos
momentos oportunos, a criança amplia a competência de conviver de maneira
autônoma, sendo cuidada, recebendo afeto e atenção em tempo e medida
adequados, garantindo o sentimento de segurança, pertencimento e conforto. Para
isso, os cuidados dedicados às crianças devem favorecer o desenvolvimento de um
envolvimento afetiva real, o que corrobora para que ela tome consciência de si
mesma, e essa construção podemos classificar como uma relação privilegiada. A
efetivação de um compromisso privilegiado entre bebê/educador deve ser amparada
com profissionalismo e responsabilidade, em que o adulto oportuniza o estreitamento
de laços, principalmente, nos momentos de cuidados individuais e com atitudes
respeitosas (APPELL; DAVID, 2021).
Valorizando essa realidade, a pesquisa aqui apresentada tem como tema
central a relação privilegiada entre educadora e criança na EI, considerando-a
fundamental para o desenvolvimento da autonomia da criança. Além disso, é
importante compreender a garantia de uma relação estável que possa lhe assegurar
trocas reais com a educadora, bem como a construção da consciência de si e do outro,
podendo ser consolidada a partir da troca relacional que acontece nas ações de
cuidado.
O interesse pelo tema surgiu a partir da nossa experiência pessoal como
profissionais da EI, atuando como auxiliar de desenvolvimento infantil, no espaço
educacional público, e estagiária em grupos de crianças pequenas, no espaço
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privado. Desse modo que, foi possivel observar que em instituições de EI, é comum
perceber uma relação tensa entre adultos e crianças, em que os pequenos
apresentam ansiedade e desejos de que suas demandas sejam atendidas
prontamente e, em contrapartida, as professoras tendem a sentir irritabilidade,
impaciência e sobrecarga pelo alto número de demandas a serem realizadas. Em
paralelo às nossas inquietações, advindas da nossa experiência profissional na EI,
vivenciamos experiências curriculares no curso de Pedagogia da UFPE, onde tivemos
acesso a algumas leituras sobre a Abordagem Pikler, aguçando nosso olhar sobre o
tema. Essas vivências contribuiram para ampliar a nossa compreensão sobre o
respeito e o desenvolvimento integral dos bebês como fundamentos da abordagem,
tendo como ponto de partida as próprias competências do ser, o que reflete a
convicção de que os bebês são seres competentes, com desejos e anseios, que
identificam o espaço onde estão inseridos e reconhecem um ambiente seguro e
acolhedor.
Mediante o interesse pela temática explicitada, realizamos um breve
levantamento exploratório no portal de periódicos da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), considerando o recorte
temporal de 2000 a 2022. Ao pesquisar os descritores “Abordagem Pikler e relação
privilegiada” não foi apresentado nenhum trabalho acadêmico nesta temática. Apenas
quando foram inseridos os descritores “Pikler e relação privilegiada” foi encontrado
um artigo de Dellodone e Coutinho (2020) que consiste em uma revisão de literatura
de cunho qualitativo, que tem como objetivo analisar os princípios orientadores da
abordagem Pikler-Lóczy e cita em um dos seus tópicos a relação privilegiada entre o
educador e a criança como um dos princípios norteadores da abordagem Pikler, sem
mais aprofundamentos. O trabalho das autoras citadas foi uma revisão de
dissertações, teses e livros. Além deste, encontramos alguns trabalhos que citam as
referidas temáticas, como um artigo de Kelleter e Carvalho (2019) que desenvolveram
uma pesquisa sobre inclusão em creches, citando, brevemente, a necessidade de se
estabelecer uma relação emocional privilegiada com uma pessoa, principalmente, nos
espaços educacionais. O trabalho aponta que os vínculos afetivos que são originados
no cuidado é um ponto importante das contribuições de Emmi Pikler e afirma ainda
que é através de um relacionamento seguro com o adulto, que o bebê vai se
conectando consigo, com o outro e com o mundo que o cerca.
Ainda, tivemos acesso a uma revisão bibliográfica sobre a Abordagem Pikler
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desenvolvida por Santos, Santos e Lyra (2021) que traz a importância da relação
afetiva privilegiada entre criança e educador. Após o levantamento, entende-se a
pertinência dos estudos da abordagem para a temática escolhida, pois através de
leituras, fica evidente que o cultivo da relação privilegiada entre educador e criança
são essenciais para o fortalecimento da autoestima e autonomia das crianças
inseridas nestas relações, sendo assim, uma relação que se constrói com muito
respeito ao tempo de cada bebê. Contudo, os trabalhos acessados trazem
compreensões apenas no âmbito das literaturas que discutem sobre a abordagem.
Dessa forma, compreendendo que os modos de ser e estar do educador na
relação com a criança é uma condição importante para garantir os princípios da
Abordagem Pikler, nos perguntamos: será que é possível identificar as contribuições
da relação privilegiada para a experiência na EI, especificamente, na relação
educadora-criança que acontece na prática? O que deve acontecer numa prática para
que seja configurada uma relação privilegiada?
Diante de tais questões, a pesquisa buscou como objetivo geral: identificar as
contribuições da Abordagem Pikler para o estabelecimento da relação privilegiada
entre educadora-criança, no contexto da Educação Infantil. Como objetivos
específicos: (a) identificar possíveis práticas que visem a efetivação de uma relação
privilegiada entre educadora-criança, presentes no cotidiano de cuidar-educar da EI,
a partir do que anuncia a Abordagem Pikler; (b) analisar, a partir da percepção de
educadoras que se inspiram na Abordagem Pikler, como a relação privilegiada
educadora-criança pode ser construída na prática da EI; (c) refletir sobre a pertinência
do currículo na EI sobre práticas pautadas nos princípios da abordagem Pikler.
A seguir, apresentaremos a fundamentação teórica com discussões sobre EI,
abordagem Pikler, o sentido do cuidar e educar e a relação privilegiada. Após o
levantamento, entende-se a pertinência dos estudos da abordagem para a temática
escolhida, pois atráves de leituras, fica evidente que o cultivo das relações
privilegiadas entre educador e criança são essenciais para o fortalecimento da
autoestima e autonomia dos pequenos. A quarta seção trará a análise e os resultados
a partir das entrevistas e leituras realizadas e, por fim, as considerações finais com
possíveis desdobramentos para o campo de estudo da EI em diálogo com a
abordagem Pikler.
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e higiene dos pequenos é imprescindível reconhecer que não se deve impor uma
aprendizagem sistemática. Os mesmos vão adquirindo o hábito e a compreensão da
importância de cada ação de forma que desenvolve o reconhecimento sobre o
significado de cada atitude; percebe-se o respeito ao seu tempo, limitações e avanços.
Um educador dócil e atento adiciona à sua prática o convite de participação das
crianças no desenvolvimento das ações de cuidado. Desde os recém-nascidos até a
crianças maiores, valorizar e incentivar a participação é importante, fazendo de cada
momento uma oportunidade de ser desenvolvida uma relação consolidada no respeito
e na atenção, assim, contribuindo para a tomada de consciência de seu lugar no
mundo.
Como Appell e David (2021) destacam, as práticas de banho e troca,
alimentação e cuidados com a saúde devem contribuir para o desenvolvimento das
crianças sem causar dependência, dessa forma as demandas devem ser atendidas
de maneira equilibrada, sem que ultrapassem os limites de suas necessidades, para
contribuir com o domínio da situação na medida de suas possibilidades. Partindo
desse pressuposto, compreende-se que a relação entre educador e criança precisa
ser constituída de respeito e deve favorecer, portanto, o desenvolvimento pleno de
forma que cada detalhe da relação seja considerado e valorizado para, assim, garantir
um desenvolvimento seguro aos bebês e crianças pequenas.
Dando continuidade à compreensão sobre o que fundamenta a abordagem, na
próxima seção apresentaremos de maneira mais detalhada sobre a Abordagem Pikler
e como a relação adulto-criança pode ser prevista nas práticas de Educação Infantil.
Outra contribuição que o trabalho como pediatra trouxe para Emmi Pikler foi a
possibilidade de observar em um hospital de bairro que trabalhava, a análise do setor
de cirurgia que chamou a sua atenção sobre a estatística de acidentes envolvendo as
crianças nos bairros ricos da cidade. Falk (2022) comenta que Emmi Pikler estava
convencida de que a criança que pode mover-se em liberdade é mais prudente e já
aprendeu a cair, em contrapartida, a criança que é superprotegida, e que se move
com limitação tem mais chances de se envolver em acidentes.
Suas inquietações sobre o cuidado com a criança, a valorização da autonomia
e a necessidade de permitir movimentos livres, tinha como base, também, algumas
ideias de seu marido, György Pikler, que era um pedagogo progressista. Como pais,
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Emmi Pikler e seu esposo, decidiram optar por uma educação baseada no cuidado,
sem acelerar as fases do desenvolvimento e respeitando a autonomia de sua filha,
garantindo condições para que ela pudesse viver de forma tranquila e com suas
possibilidades para aproveitar os movimentos.
Além de médica hospitalar e mãe, atuou como pediatra familiar dando apoio a
famílias que tinham bebês ou crianças pequenas, e foi no ano de 1946 que assumiu
a direção da instituição de acolhimento que já existia desde o ano de 1940 – o Instituto
Lóczy. Inicialmente, Emmi Pikler e sua parceira de trabalho Maria Reinitz enfrentaram
diversos desafios para dar continuidade ao trabalho no Instituto Lóczy. Além de
questões relacionadas à estrutura física do local, foi necessária uma mudança total
no quadro de funcionários, pois não se adequaram ao trabalho dedicado ao cuidado
detalhado às crianças. Diariamente, os novos funcionários aprendiam sobre formas
respeitosas de tratar as crianças, como: a importância de respostas verbais às ações
dos bebês, a atenção nos momentos de cuidado sempre verbalizando para a criança
aquilo que irá fazer em seu corpo, o respeito aos movimentos livres das crianças, sem
a necessidade de realizar movimentos bruscos, entre outras ações que demonstram
respeito à criança, que deve ser vista como o principal sujeito desta relação (FALK,
2021).
Com o trabalho desenvolvido no Instituto Lóczy, hoje denominado Instituto
Pikler, reconhece-se na abordagem uma “Pedagogia dos Detalhes”, posto que tudo
que advém da atitude educadora, desde o ambiente organizado, os objetos e
materiais escolhidos para compor o contexto da criança, o olhar, gestos expressivos
e conduta nos cuidados, são, fundamentalmente, cruciais para potencializar o avanço
da criança em sua inteireza.
Com essa acepção rica em detalhes, a abordagem se estrutura em princípios
que devem estar incorporados nas ações de cuidar-educar, ei-los: o respeito pelo
bebê e à sua individualidade, a valoração da atividade autônoma, a liberdade dos
movimentos e a importância do vínculo afetivo e da relação privilegiada, cuja
discussão deste último princípio citado será ampliada a seguir.
linguagem vasta e segura, garantindo assim uma relação com um vínculo profundo e
estável, uma relação privilegiada, que tem como objetivo sempre oferecer as
condições necessárias para um bom desenvolvimento que a torne pronta para o futuro
(APPELL; DAVID, 2021).
Para que esse vínculo seguro e acolhedor seja oportunizado em instituições de
atendimento às crianças é muito importante que se tenha a compreensão do que
realmente determina uma relação privilegiada, e, nesse tocante, Appell e David
(2021), a partir da imersão vivida no Instituto Lóczy, descrevem uma relação real e
conscientemente controlada, em que o adulto não deposita expectativas nas crianças,
tendo suas atitudes pautadas pelo respeito à personalidade e necessidades da
criança de forma inteligente, destacando ainda que os momentos de cuidado
contribuem diretamente para o sucesso dessa construção. Dentre essas
características, é possível destacar que situações como a frequente troca de
cuidadores é totalmente prejudicial para que se firme essa relação.
Desse modo, percebe-se que a relação entre o educador e a criança não deve
ser baseada na percepção de relação mãe e filho, ao contrário, o papel desse
educador deve ser consciente, profissional e supervisionado. Como regra geral, é
imprescindível reconhecer que criança tem pais, ou seja, em um espaço institucional
voltado ao cuidar-educar, a criança não é filha da educadora, e, nesse sentido, ser
boa educadora significa “se interessar pelo processo de desenvolvimento global da
criança, em vez de abordá-la com sentimentos maternais instintivos” (FALK, 2022,
p.25).
A interação com a criança possibilita a construção de uma relação privilegiada
e os momentos de cuidados corporais são uma oportunidade singular. São nesses
momentos que se torna possível uma atenção individualizada à criança; a interação
entre adulto-criança acontece de forma plena, visto que são durante esses momentos
que há o encontro face a face, permitindo assim que se afinem vínculos. Dessa forma,
supõe-se que a criança tem suas necessidades básicas supridas, reconhecendo no
adulto a pessoa que lhe proporciona uma segurança física, desencadeando, assim,
um sentimento de segurança emocional e desenvolvendo um vínculo afetivo com esse
adulto, o que faz validar uma relação privilegiada.
Nos princípios piklerianos, o desenvolvimento autônomo da criança deve ser
objetivo a ser alcançado. Esse desenvolvimento deve ser permeado por prazer, logo,
a iniciativa e o fazer sozinho ganham valor quando gera alegria na criança. A criança
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4
Disponível em:<https://pikler.com.br/> Acesso em: 20 set, 2022.
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3 METODOLOGIA
Esta pesquisa é de cunho qualitativo, que de acordo com Neves (1996) se
caracteriza como uma pesquisa direcionada, ao longo de seu desenvolvimento; além
disso, não busca enumerar ou medir eventos. A pesquisa qualitativa tem como um
amplo foco de interesse, além de partir de uma perspectiva diferenciada da adotada
pelos métodos quantitativos. Para atender os objetivos, selecionamos educadoras da
EI a fim de identificar as percepções delas sobre como é construída a relação
privilegiada e as possíveis repercussões no desenvolvimento das crianças. Não
buscamos medir ou comparar dados quantitativamente, mas sim compreendê-los a
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Nas subseções a seguir, traremos a análise dos dados deste estudo que foram
categorizados em três principais eixos de análise, sendo eles: a Confiança na relação
privilegiada entre educador-criança; Autonomia de bebês e crianças pequenas e
Currículo na Educação Infantil. Julgamos importante destacar que as duas primeiras
categorias já se incluíam nas expectativas de categorias de análises desde o início do
projeto, pois reconhecemos o aporte destas temáticas na Abordagem. A última
categoria surge diante dos resultados coletados nas entrevistas, em que as
educadoras trazem destaques para o tema e reconhecemos a relevância, visto que
se trata de uma etapa de ensino e que há um debate sobre currículo e planejamento
das experiências, que é legítimo no campo da Educação Infantil. Dessa maneira, se
entende o currículo na EI como uma busca de articulação entre as experiências e
saberes das crianças com os conhecimentos que fazem parte do patrimônio cultural,
artístico, científico e tecnológico da sociedade por meio de práticas planejadas e
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Eu acho que essa relação privilegiada ela vai desde o momento que a
criança chega na escola, né? Desde o momento que ela é recebida na
recepção, que é trazida para ela a importância de ela como um ser, né?
A criança é muito vista como um bebezinho, bebê, né? E aqui não, aqui
desde o momento que ela entra até o momento que ela vai fazer o
lanchinho dela, para trazer, ela é como um ser potencial, né? E como a
fala dela, a postura dela é respeitada, né? É importante o que ela fala,
o que ela pensa, o que ela expressa, da forma com que ela explora,
tudo que ela traz para a gente, tudo isso é respeitado e é dado
importância e eles se sentem importantes. (Extrato da entrevista de E2)
Olha, eu acho que tudo que é feito para a criança e que oportuniza a
ela de uma forma natural, é ganho porque ela não vai pensar da forma
mecanizada pra poder responder a certa oportunidade. Um exemplo
disso é, quando uma criança ela vai fazer o lanche dela, tudo que ela
faz, ela faz de uma forma natural. Então até o que você propõe pra
ela, até o que você traz pra ela acontece de uma forma muito natural
[…]Então, desenvolvimento não só motor, mas cognitivo e a questão
da expansão da imaginação da criança, porque veja só, tudo que você
traz pra ela, tudo que você proporciona pra ela, você tá dizendo o
tempo todo, desde o momento que ela chega na Escola Margarida até
o momento que ela sai, que o que ela faz importa, o que ela pensa
importa e o que ela sente é importante. Então, ela não vai ficar parada
diante de um desafio lá na frente pensando no que que ela vai fazer
ou não, porque ela sabe que independente do que ela fizer vai ser
bom, vai dar certo! Entendeu? (Extrato da entrevista de E3)
A definição dada pela E1 sobre o que seria a relação privilegiada entre ela e as
crianças com quem trabalha tem muitos pontos em comum com a concepção de
relação privilegiada pensada por Pikler. Pensar em uma relação baseada na
potencialidade dos bebês e crianças pequenas, além de cuidados individualizados e
respeitosos, são aspectos fundamentais que destacamos em sua fala. Além disso,
surge ainda neste relato aspectos relacionados à importância de confiar na potência
do bebê e acreditar que ele é capaz de realizar movimentos de forma autônoma, e
mais, que ele consegue perceber a presença da educadora como alguém que fornece
segurança, pois caso ele caia, ela estará lá para acolhê-lo, o que demonstra
compreensão sobre o tema. Sobre a confiança na criança, E3 destaca:
Eu acho que quando você entende que o bebê ele nasce competente,
você já tá dando palmas pra Emmi Pikler, né? Quando os bebês
chegam lá e você enxerga os bebês como completos, como inteiros,
como pessoas, a gente já tá de alguma maneira atuando ali a partir
desse princípio da abordagem, né? (Extrato da entrevista de E3).
pesquisando sobre tudo que lhes é acessível. Destacam ainda o educador como a
pessoa que precisa compreender o seu papel de observador nessa relação e que
deve confiar na potência do bebê. Para E1, parece haver no bebê uma característica
própria de ser pesquisador, possuindo uma força motriz que o impulsiona à
descoberta:” é preciso confiar nos bebês e permitir que eles descubram o mundo, pois
são capazes de fazer isso sozinho. Eles são incansáveis assim, a pesquisa é
incansável, ela nunca acaba”, diz em um momento da entrevista. Já E3 reconhece
que se faz necessário oportunizar as descobertas, para que assim as crianças
desenvolvam o seu potencial ao máximo e declara:
A criança, ela é um ser potencial, né? Ela é um ser que tem todas as
potencialidades, é necessário a gente saber dos cuidados, né? Que
elas são pequenas, elas ainda não têm a noção do perigo, os cuidados
são necessários, mas ao mesmo tempo tem que se dar essa
oportunidade pra que elas venham conseguir a se desenvolver,
porque elas são capazes de fazer isso. (Extrato da entrevista de E3).
que “a criança pode brincar sozinha e tirar proveito disso” (TARDOS; SZANTO, 2021,
p.51).
Desta feita, o educador precisa ter claramente a compreensão de seu papel,
das escolhas realizadas na organização do ambiente para promover a autonomia,
reconhecendo o bebê como o ator principal de seu desenvolvimento e entendendo
que, como educador, deve contribuir ativamente na preparação do ambiente,
assumindo uma atitude observadora nos passos que compõem o processo da
aquisição da autonomia. Essa compreensão corrobora com a análise feita pelas
educadoras e pode ser reconhecida na fala de E1: “A minha prática na verdade é
pautada sobre a observação dos bebês. Então o meu lugar de educadora é um lugar
de observação mesmo, de ver os bebês, de entender os bebês e a cada um dos
bebês”.
Nesse contexto, Soares (2017) afirma que as tarefas de cuidado devem ser
realizadas com atenção e dedicação, respeitando o ritmo do bebê, e jamais de forma
apressada e mecanizada. Consonante a isso, destacamos que durante os cuidados
aos bebês é oportunizado de forma singular o seu desenvolvimento autônomo e
consciente, e para isso, se faz necessário que haja interação constante com ele,
solicitando a sua participação e antecipando sempre cada atitude, como a autora
sinaliza:
A gente tem dois grupos, na verdade a gente tem um grupo só, [...] mas
a gente divide, é uma divisão meramente... pela fase de
desenvolvimento, assim, no brincar, dos ambientes, dos materiais, mas
que todas as crianças acessam todos os espaços [...] os bebês
transitam, eles têm o quintal lá fora e esse espaço é mutável, então a
gente a gente muda eles conforme a gente o que está mais chamando
a atenção, a pesquisa dos bebês e tal, das crianças. (Extrato da
entrevista de E1)
O brincar precisa ser a base do currículo das instituições de EI para que dessa
maneira os bebês se desenvolvam com satisfação. O convite ao brincar precisa ser
uma constante no cotidiano, entendendo que a iniciativa deve ser sempre da criança.
Então, o espaço físico da EI deve oportunizar as escolhas de forma que a faça sentir-
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se segura e satisfeita, que ora pode ser em um espaço externo ora interno, como
destaca E3, quando descreve a sala de referência de sua turma:
conteúdos, o que fica claro no destaque feito por Soares (2017), que diz que as
“atividades de treinamento podem render habilidades que seriam conquistadas mais
adiante e inibem o ato de criação genuína, que expressa a originalidade de cada
sujeito” (p. 31).
A partir do que foi trazido e diante da percepção das educadoras, percebemos
que as instituições em que atuam divergem na compreensão do currículo necessário
para o atendimento aos bebês de 1 a 2 anos. Em uma das instituições, as atividades
desenvolvidas são compreendidas pela educadora como uma preparação para as
etapas seguintes ao berçário. Nesta instituição, há ausência de um planejamento para
essa turma, contudo, há uma preocupação voltada para o cumprimento de conteúdos
programáticos pré-estabelecidos a partir da turma seguinte. Sendo assim, o
atendimento aos bebês acontece sem um planejamento prévio e sem compreensão
dos objetivos a serem alcançados com as atividades desenvolvidas no berçário.
precisa ser feito pra criança pra depois a gente começar as vivências
que vão ser de acordo com o planejamento né?” (Extrato do relato da
gestora da Escola Margarida durante a visita presencial)
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
FALK, Judit. Abordagem Pikler -Educação Infantil. 3. ed. São Paulo: Omnisciência,
2022.
OLIVEIRA, Zilma Ramos de. Educação infantil: fundamentos e métodos. 2 ed. São
Paulo: Cortez, 2005.
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SILVA, Isabele Duarte. *Quando a criança chega ao mundo, que mundo chega à
criança?* – Abordagem Pikler-Lóczy e a Docência na Educação Infantil. Trabalho de
Conclusão de Curso de Pedagogia. 58 p. Florianópolis: UFSC, 2019.
TARDOS, Anna; SZANTO, Agnés. O que é autonomia na primeira infância? In: FALK,
J. (org). Educar os três primeiros anos: a experiência de Lóczy. Araraquara: JM
Editora, 2022.