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2021v12n1p27
RESUMO
Esta pesquisa teve por objetivo analisar as trajetórias escolares de jovens
universitários diagnosticados com Transtorno de Déficit de Atenção e
Hiperatividade (TDAH) e os efeitos de subjetivação decorrentes da experiência e
apropriação desse diagnóstico. Foram entrevistados três estudantes matriculados
em uma universidade da Grande Florianópolis (SC). A análise das narrativas foi
realizada a partir da perspectiva teórico-metodológica da “análise de práticas
discursivas”, tal como proposta por Spink e Medrado (2013). Destacaram-se os
efeitos de subjetivação dos processos de patologização e medicalização, com
ênfase nas trajetórias escolares. Considerou-se que os sentidos das experiências
do diagnóstico de TDAH são construídos, sobretudo, a partir de referentes
discursivos típicos das racionalidades médico-psiquiátricas, que operam como um
significativo regime de saber-poder subjetivante. Observou-se, também, que a
medicalização da educação e da vida é um processo recorrente para adaptar os
sujeitos em suas trajetórias escolares.
The goal of this study was to analyze educational trajectories of university students
diagnosed with Attention Deficit Hyperactivity Disorder (ADHD) and the
subjectivation effects arising from the experience and appropriation of this
diagnosis. Three students enrolled at a university in Greater Florianópolis (SC) were
interviewed. The analyses of the narratives were carried out from the theoretical-
methodological perspective of the “discursive practices analyses”, as it has been
proposed by Spink and Medrado (2013). The subjectification effects of
pathologization and medicalization processes were highlighted, with emphasis on
educational trajectories. It was considered that the meanings of the experiences of
the diagnosis of ADHD are constructed, mainly, from typical psychiatric discursive
referents, which operate as a significant power-knowledge subjectivation regime.
It was also observed that the medicalization of life and education is a recurrent
process to adapt the subjects in their educational trajectories.
Esta investigación tuvo como objetivo analizar las trayectorias escolares de jóvenes
universitarios diagnosticados con trastorno de déficit de atención e hiperactividad
(TDAH) y los efectos de la subjetivación, resultantes de la experiencia y de la
apropiación de este diagnóstico. Se entrevistó a tres estudiantes matriculados en
una universidad en Florianópolis (SC). El análisis de las narrativas se realizó desde
la perspectiva teórico-metodológica del "análisis de las prácticas discursivas",
según proponen Spink y Medrado (2013). Se destacaron los efectos de
subjetivación de los procesos de patologización y medicalización, con énfasis en
las trayectorias escolares. Se constató que los sentidos de las experiencias del
diagnóstico de TDAH se construyen, sobre todo, a partir de referentes discursivos
típicos de las racionalidades médico-psiquiátricas, que operan como un
significativo régimen de saber-poder subjetivante. También se observó que la
medicalización de la educación y la vida es un proceso recurrente para adaptar a
los sujetos en sus trayectorias escolares.
INTRODUÇÃO
O Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) é, segundo Luengo
(2010), um dos transtornos que apresenta a maior frequência de encaminhamentos
de crianças a centros especializados de neurologia pediátrica. Por ser considerado
por algumas correntes da psiquiatria e da neurologia um transtorno mental crônico
e evolutivo, a tentativa de delimitação de um quadro sintomatológico que
responda aos critérios nosográficos médicos tem levado a diagnósticos em
crianças cada vez mais novas. Como consequência desse processo, ampliou-se a
incidência da medicalização da infância. Ainda de acordo com a autora, é
frequente, no âmbito da educação, a referência ao TDAH como uma forma de
explicação causal que, muitas vezes, é usada para justificar, de modo reducionista,
fenômenos como a repetência, o “fracasso escolar” e a indisciplina. As crianças que
apresentam comportamentos indesejados e/ou que não correspondem às
expectativas esperadas para certos modelos tradicionais de educação são vistas
como sujeitos patológicos e desviantes de padrões normativos. Em muitos casos,
a patologização e a medicalização que incidem sobre essas crianças podem levar
a consequências em várias dimensões de suas trajetórias escolares. A seguir,
apresentamos algumas ponderações teóricas acerca dos efeitos dos diagnósticos
e da medicalização frente ao TDAH.
O conceito de medicalização foi proposto inicialmente por Zola (1972, p. 487). Para
o autor, a medicina se tornou uma instituição de controle social e incorporou
aspectos de outras instituições mais tradicionais, como as religiosas e as judiciais.
Nesse contexto, no qual os médicos se autorizam a diagnosticar e a ofertar
tratamento, Carvalho, Rodrigues, Costa e Andrade (2015, p. 1254) consideram que
as singularidades são diretamente afetadas: “[…] a medicalização interfere e
interdita a ação independente e racional dos seres humanos sobre a sua própria
produção de saúde”.
Collares e Moysés (2013), por sua vez, sustentam que a normalização da vida e o
controle e a medicalização das infâncias tem por princípio transformar problemas
que escapam às normas societárias em distúrbios, doenças ou problemas
individuais. Para as autoras, profissionais que assumiram papéis de vigilantes da
ordem e ancoraram-se em instrumentos padronizados de avaliação legitimaram e
reproduziram esse processo de normalização. Nessa perspectiva, os profissionais
da área da educação, da saúde e da psicologia que se vinculam a essas
racionalidades buscaram cada vez mais enfatizar “especialismos” que refinam redes
de controle e de normalização e que atendem aos imperativos de ajustamento
social e de captura das multiplicidades em enquadramentos psicopatológicos
(Collares e Moysés, 2013; Portocarrero, 2004).
MÉTODO
PARTICIPANTES
Tabela 1
Caracterização dos participantes da pesquisa
Por se tratar de uma pesquisa que envolvia seres humanos, foram previstos
possíveis riscos. Assim, antes de iniciar a entrevista, foi apresentado aos
participantes o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Após a
apresentação e leitura do termo, todos os participantes leram, concordaram e
assinaram o mesmo. Ressaltamos que esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de
Ética de Pesquisa vinculado a uma universidade da Grande Florianópolis.
Para a análise das entrevistas, observamos, nas narrativas dos participantes, dois
marcos temporais: o tempo vivido e o tempo curto. Segundo Spink e Medrado
(2013), o tempo vivido é a própria história do sujeito, suas experiências e
percepções no decorrer de sua vida, as memórias do tempo traduzida em afetos.
Trata-se do nosso ponto de referência afetivo, no qual enraizamos nossas
narrativas pessoais e identitárias. Quanto ao tempo curto, segundo Spink e
Medrado (2013), é o tempo do acontecimento, refere-se a interações sociais face
a face: “[…] é o momento concreto da vida social vista como atividade de caráter
interativo” (Spink & Medrado, 2013, p. 33). Salientamos que esses tempos
acontecem de forma concomitante e são atravessados constantemente pelo
tempo longo, que, segundo Spink e Medrado (2013), está ligado a conteúdos
culturais definidos ao longo da história.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A partir de uma leitura psicanalítica, Mano (2009) enfatiza que as formas pelas
quais os significantes se apresentam (no caso de Marina citado acima, o
significante “tranquilo” nos parece exemplar), podem dar suporte a uma fantasia
que emerge como modo de tamponar ou responder ao desejo do Outro. Segundo
Laplanche (2001, p. 114), o desejo tem como um dos seus fundamentos a demanda
de reconhecimento de outrem. Nesse sentido, o desejo é sempre desejo do Outro.
Consideramos que esse sentimento de tranquilidade, expresso por Marina ao
receber o diagnóstico, parece responder, também, a um “desejo de normalidade”.
ESTUDOS INTERDISCIPLINARES EM PSICOLOGIA 40
Londrina, v. 12, n. 1, p. 27-51, abr. 2021
TDAH, SUBJETIVAÇÃO E TRAJETÓRIAS ESCOLARES
Lima & Santos
Pudemos observar nas narrativas escutadas alguns dos efeitos dos psicofármacos,
dentre os quais destacamos o “efeito zumbi”, tal como relatado por Marina:
sem muitas vezes questionar ou problematizar o que se vivencia. Para Butler (2014,
p. 1):
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Heliane de Lima é Assistente Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Especialista
em Violência Doméstica pela Universidade de São Paulo (USP), discente em Psicologia na
Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul/Campus Florianópolis). Atualmente está em formação
em Psicanálise pela Escola Brasileira de Psicanálise (EBP/SC).
E-mail: helianedl@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-4148-3435
Daniel Kerry dos Santos é Psicólogo (CRP 12/11122) pela Universidade Estadual Paulista
(Unesp/Campus de Assis), Mestre e Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). Durante o período de elaboração deste artigo, foi professor do curso de Psicologia da
Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul/Campus Florianópolis e Campus Pedra Branca) e
coordenador do Núcleo de Estudos e Acolhimento às Questões Escolares (NEAQUE/Unisul).
Atualmente atua como esquizoanalista em consultório particular em Florianópolis (SC) e como
pesquisador independente nas áreas da Psicologia Social Crítica, Educação, Esquizoanálise, Estudos
de gênero e sexualidade e Estudos da Subjetividade.
E-mail: dakerry@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-5464-5010