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Capítulo 4

A abordagem piagetiana

"Papai, por favor, corte este pinheiro — ele faz o vento. Depois que você
cortar ele, o tempo vai ficar bom e a mamãe me leva para um passeio."
"Mamãe, quem nasceu primeiro, você ou eu?"
(Helen Bee, A criança em desenvolvimento.)

Ouvir crianças pequenas dizerem coisas como essas do trecho trans-


crito acima normalmente nos desconcerta, ao mesmo tempo que nos en-
canta e diverte. Nossa atenção se volta então para o modo peculiar que a
criança tem de pensar sobre as coisas e de estabelecer relações entre elas.
Às peculiaridades do pensamento e da lógica das crianças desper-
taram o interesse de Jean Piaget, que se preocupou principalmente com
a questão de como o ser humano elabora seus conhecimentos sobre a
realidade, chegando a construir, no decorrer de sua história, sistemas
científicos complexos e com alto nível de abstração. Ele acreditava que
muito da resposta a essa indagação poderia ser encontrado no estudo do
desenvolvimento do pensamento da criança.

Quem foi Piaget?


Jean Piaget nasceu em 1896, em Neuchâtel, na Suíça, e fale-
ceu em 1980, aos 84 anos de idade.
Desde menino Piaget interessou-se por questões científicas,
estudando moluscos, pássaros, conchas marinhas e mecânica.
Aos 10 anos, publicou as observações que fez sobre um pardal
parcialmente albino e, aos 11 anos, começou a trabalhar como
assistente do diretor do Museu de História Natural de sua cidade.
Concluiu seus estudos em Ciências Naturais em 1915 e, em
1918, doutorou-se nessa mesma área.
Interessado também por filosofia, encontrou na leitura da
obra de Bergson, A evolução criadora, elementos que o ajudaram
o formular a questão à qual se dedicaria por toda a vida: explicar
a rorma pela qual o homem atinge o conhecimento Iógico-abstrato
que o distingue das outras espécies animais.
Embora se tratasse de uma questão tipicamente filosófica, a
Piaget interessava abordá-la cientificamente. Ao longo de seu traba-
lho, assumiu, então, o desafio de construir uma teoria do conheci-
mento baseada na biologia e em que as especulações filosóficas esti-
vessem ancoradas na pesquisa empírica. O elo que Piaget encontrou
entre a filosofia e a biologia foi a psicologia do desenvolvimento.
A elaboração da teoria explicativa da gênese
do conhecimento no homem levou Piaget a
formular propostas teóricas e metodológicas
inovadoras quanto à natureza dos processos de
desenvolvimento da criança e que contrariavam as
teses do inatismo-maturacionismo e do
com-portamentalismo.
O fundamento básico de sua concepção do
funcionamento intelectual e do desenvolvimento
cognitivo éode que as relações entre o organismo e
o meio são relações de troca, pelas quais o orga-
nismo adapta-se ao meio e, ao mesmo tempo, o
assimila, de acordo com suas estruturas, num pro-
cesso de equilibrações sucessivas. Determinar as
contribuições das atividades do indivíduo e das
restrições do ambiente na aquisição do conheci-
mento foi o foco do seu trabalho experimental. No período de 1921
a 1925, Piaget concentrou-se na coleta de dados que permitissem
esboçar os princípios e os fundamentos de sua teoria do
conhecimento. Abordou temas gerais, como a relação entre
pensamento e linguagem (1923), o desenvolvimento, na criança,
do julgamento e do raciocínio (1924), da representação do mundo
(1926), da causalidade física (1927) e do julgamento moral
(1927). Esses estudos foram retomados, revistos e aprofundados
ao longo das décadas seguintes.
No período de 1925 a 1931, com o nascimento de seus três
filhos, Piaget dedicou-se à observação meticulosa do desenvolvi-
mento dos bebês, elaborando análises sobre a construção do real
e o desenvolvimento da inteligência.
Na década de 30, ajudado por seus colaboradores, concentrou a
pesquisa na gênese das noções de quantidade, número, tempo,
espaço, velocidade, movimento, mensuração, lógica e probabili-
dade. Na década de 40, abordou o desenvolvimento da percepção.
A partir dos anos 50, Piaget voltou-se para a sistematização
teórica da epistemologia genética, deixando a seus colaboradores
os estudos em psicologia. Em 1955 fundou o Centro Internacional
de Epistemologia Genética, onde reuniu cientistas de diferentes
áreas (matemáticos, biólogos, psicólogos, lógicos) interessados
em pesquisar problemas epistemológicos.
Na década de 70, já trabalhando exclusivamente nas pesquisas do
Centro de Epistemologia, Piaget dedicou-se à investigação dos
mecanismos de transição que impulsionam e explicam a evolução do
desenvolvimento cognitivo.
Sua vasta produção é um marco de enorme importância para a
psicologia e para os estudos do homem no século XX.

Procurando compreender como o homem elabora o conhecimento, Piaget


desenvolveu o que chamou de psicologia genética. A palavra genética, que
ele próprio aplicou à sua psicologia, refere-se à busca das origens e dos
processos de formação do pensamento e do conhecimento.
A infância é considerada como um período particular do processo de
formação do pensamento, que só se completa na idade adulta. É importante,
então, não confundir as contribuições dadas por Piaget à compreensão do
desenvolvimento cognitivo da criança com uma "psicologia da criança". Ele
não se dedicou a estudar o pensamento infantil motivado por um interesse pela
infância em si e também não elaborou» sua psicologia genética movido pelo
interesse por questões propriamente psicológicas. O centro de seu trabalho e de
todos os seus estudos é o desenvolvimento do conhecimento.
A formação de Piaget em Ciências Naturais levou-o a buscar compreender
o conhecimento com base na biologia. Fm sua concepção conhecer é organizar,
estruturar e explicar a realidade a partir daquilo que se vivência nas experiências
com os objetos do conhecimento. >
No entanto, experiência não é a meuma rniga qnp conhecimento. Este
Diessupõe a organização da experiência num sistema de relações. Por
exemplo, "a humanidade atravessou alguns milênios sem perceber a
rela-çãoentre~vida e calor do sol; conhecer algo a respeito do calor solar seria
inserir o calor sentido na pele num sistema de relações que permite
compreendê-lo como condição de existência da vida" (Chiarottino, 1988).

Conhecimento e adaptação: os processos de


assimilação e acomodação
Mas como se dá a inserção de um objeto desconhecimento num sistema
de relações? Segundo Piaget, isso ocorre fundamentalmente Por meio da ação
do indivíduo sobre o objeto. Ao agir sobre o meio, o indivíduo incoxparaasi
elementos que pertencem ao meio. Através des-^Ê-Efpcesso de incorporação,
chamado por Piaget de assimilação, as coisas e os fatos do meio são inseridos
em um sistema de relações e adquirem significação para o indivíduo.
Ao ler estas páginas, por exemplo, você está assimilando o que está
escrito (objeto de conhecimento), conforme vai estabelecendo relações
c
°m as idéias e os conhecimentos que já possui. As idéias e os conceitos
do texto são organizados e estruturados a partir do que você já conhece.

.
Só assim o texto tem algum sentido para você.
Mas, ao mesmo tempo que as idéias e os conceitos do texto são
incorporados ao sistema de idéias e conceitos que você possui, essas
idéias e conceitos já existentes são modificados por aquilo que você leu
(assimilou). Esse processo de modificação que se opera nas estruturas
de pensamento do indivíduo é chamado por Piaget de acomodação.
Tal modo de conceber o funcionamento cognitivo é decorrente do
modelo biológico em que Piaget se baseou. Segundo esse modelo, a
inteligência é um caso particular de adaptação biológica. Um organis-
mo adaptado ao meio é aquele que mantém um equilíbrio em suas tro-
cas com o meio. Ou seja, é aquele que interage com o ambiente manten-
do um equilíbrio entre suas necessidades de sobrevivência e as dificul-
dades e restrições impostas pelo meio. Essa adaptação torna-se possível
graças aos processos de assimilação e de acomodação (que, juntos,
constituem o mecanismo adaptativo), comum a todos os seres vivos.
Assim, a inteligência é assimilação por permitir ao indivíduo incor-
porar os dados da experiência. É também acomodação, pois os novos
dados incorporados acabam por produzir modificações no funciona-
mento cognitivo da pessoa. Logo, "a adaptação intelectual, como qual-
quer adaptação, é exatamente o equilíbrio progressivo entre o mecanis-
mo assimilador e a acomodação complementar" (Azenha, 1994: 26JT
Segundo Piaget, Ao mesmo tempo que, por meio do processo de assimilação/acomoda-
os reflexos, como ção, o indivíduo adapta-se ao meio (elaborando seu conhecimento sobre
o de preensão,
possibilitam ao ele), o seu próprio funcionamento cognitivo vai se estruturando, se organi-
bebê lidar com zando. Uma das primeiras formas de organização cognitiva é o esquema.
elementos do
ambiente,
assimilando-os. A noção de esquema
A criança, ao nascer, é dotada de reflexos que são
reações automáticas desencadeadas por certos estímu1-los.
Esses reflexos (como o de sucção e o de preensão)
possibilitam ao bebê lidar com o ambiente. É através
deles que elementos do meio ambiente (como a chupeta, o
seio materno, a mamadeira, o patinho de borracha, etc.)
vão sendo assimilados pela criança. A assimilação, como
vimos, provoca uma transformação dos reflexos, que
gradativamente vão se diferenciando e se tornando mais
complexos e flexíveis, deixando de ser simples respostas
estereotipadas a estímulos determinados. Esse processo
dá origem a esquemas de ação, tais como pegar, puxar,
sugar, empurrar, etc.
Para entender o que é um esquema de ação, pensemos
no esquema de preensão. Um bebê pode pegar;— por
exemplo, um pequeno cubo de madeira, uma boi a mamadeira ou o dedo
de alguém. Relativamente a cada um desses objetos, a ação de pegar
apresenta pe quenas diferenças quanto aos movimentos que a criança
46 realiza. No entanto, em todas essas situações a ação da criança apresenta
determina-
das características que permitem chamá-la de pegar e que a diferenciam He
outras ações, como puxar, balançar ou empurrar. O esquema de ação t
A organização do
justamente, o que é generalizável em uma ação, o que permite reconhecê-la e real, por meio da
diferenciá-la de outras ações, independentemente do objeto a que se aplica. ação, marca o
É por meio dos es- È j início do
quemas de ação que a criança
começa a conhecer a
realidade, assi-milando-a e
atribuindo-lhe
significações. Quando pega
a mamadeira, ela a
relaciona a seu esquema
"pegar" e atribui-lhe o
sentido de um objeto "que
se pega". Mas a criança
também aplica à mamadeira
o esquema "sugar". Essas
assimilações provocam
transformações nos
esquemas
"pegar" e "sugar", à medida que eles são acomodados ao objeto mamadeira. desenvolvimento
Os esquemas "pegar" e "sugar" acabam então por se coordenar. cognitivo da
Vê-se que, mediante sucessivas assimilações e acomodações, o bebê vai criança.
conhecendo os objetos de seu mundo imediato. Eles são organizados em
objetos "para olhar", "para pegar", "para sugar", "para empurrar", "para
morder", "para olhar e pegar", "para pegar e sugar", "para pegar e morder", e
assim por diante.
A organização do real por meio da ação marca o início do desenvolvi-
mento cognitivo da criança. De acordo com Piaget, os esquemas de ação
ampliam-se, coordenam-se entre si, diferenciam-se e acabam por se
interiorizar, transformando-se em esquemas mentais e dando origem ao
pensamento. Esse desenvolvimento contínuo dos esquemas se dá no sentido
de uma adaptação cada vez mais complexa e diferenciada à realidade.

A noção de equilibração
O processo de desenvolvimento depende, na perspectiva piage-üana, de
fatores internos ligados à maturação, da experiência adquirida P ela criança em
seu contato com o ambiente e, principalmente, de um Processo de
auto-regulação que ele denomina equilibração.
Para Piaget, a equilibração é uma propriedade intrínseca e constj-
*tMtiva da vida mental. Por meio dela é que se mantém um estado de
■RUüíbrio ou de adaptação em relação ao meio, Toda vez que, em nossa
re
lação com o meio, surgem conflitos, contradições ou outros tipos de
dificuldade, nossa capacidade de auto-regulação ou equilibração entra
em ação, no sentido de superá-los. Quando, por exemplo, um bebê tenta
pegar um objeto pendurado sobre o berço, o objeto pode oferecer algu-
ma resistência a seu esquema de pegar, que, em desequilíbrio, obriga-o
a modificá-lo ou a coordená-lo com outro esquema, como o de puxar.
Essa atividade da criança — a acomodação ou coordenação de seus
esquemas de ação — é desencadeada graças à sua capacidade de
auto-regulação, com o objetivo de compensar a resistência oferecida
pelo objeto e alcançar um novo estado de equilíbrio.
Quando falamos em alcançar um novo estado de equilíbrio, quere-
mos destacar que o processo de equilibração não consiste numa volta ao
estado anterior, mas leva a um estado superior em relação ao inicial. No
caso de nosso exemplo, o fato de a criança não conseguir pegar o objeto
já indica que seus esquemas precisam ser aperfeiçoados. A
reequilibra-ção, por meio da acomodação ou da coordenação de seus
esquemas, implica uma ultrapassagem da situação anterior, uma
abertura para novas possibilidades de ação.

A concepção sobre estágios de desenvolvimento


Poderíamos dizer, então, que o desenvolvimento, na concepçãg
piagetiana, é fundamentalmente um processo de equilibrações sucessl^ vas
que conduzem a maneiras de agir e de pensar cada vez mais comple- —. xas e
elaboradas. Esse processo apresenta períodos ou estágios definidos-,"V
caracterizados pelo surgimento de novas formas de organização mental.
Os estágios se sucedem numa ordem fixa de desenvolvimento, sendo um
estágio sempre integrado ao seguinte. Além disso, cada estágio se caracteriza
por uma maneira típica de agir e de pensar e constitui uma forma particular de
equilíbrio em relação ao meio. A passagem de um estágio a outro se dá
através de uma equilibração cada vez mais completa. Ou seja, a criança passa
de um estágio a outro de seu desenvolvimento cognitivo s*^ quando seus
modos de agir e pensar mostram-se insuficientes ou inade-i*»J quados para
enfrentar os novos problemas que surgem em sua relaçãa^^ com o meio.
Essa insuficiência é compensada pela atividade da criança, que acaba por
engendrar modos mais elaborados de ação e pensamento.
O modelo de desenvolvimento cognitivo de Piaget destaca quatro
períodos principais: o sensório-motor (do nascimento até aproximadamente
os 2 anos de idade), o pré-operatório (dos 2 aos 7 anos), o operatório concreto
(dos 7 aos 11 anos) e o operatório formal (dos 11 aos 15 anos).

Os estágios do desenvolvimento cognitivo

O período sensório-motor

48 O desenvolvimento cognitivo se inicia a partir dos reflexos que gra-


_ dualmente se transformam em esquemas de ação. Do nascimento até
os 2
„n0s de idade, aproximadamente, a criança passa do nível neonatal, marcado
pel° funcionamento dos reflexos inatos, para outro em que ela já é capaz de
uma organização perceptiva e motora dos fenômenos do meio. A criança repete
De início, reflexos inatos respondem aos estímulos do meio. Luz, sons, seus atos, devido
contrações faciais. A cabeça volta-se para a direção de onde vêm oS sons. a seus efeitos
interessantes,
Calor, frio, fome, cheiros, choros... O corpo reflete o mundo e ainda não se
que ganham
diferencia dele. intencionalidade.
A criança age sobre o mundo. Ela repetidamente chupa o dedo, suga a
pontinha da manga da roupa: movimentos não intencionais, centralizados no
seu próprio corpo, se repetem sempre. O reflexo inato de sugar assimila,
incorpora novos elementos do meio (o dedo, a roupa) e a0 mesmo tempo vai
sendo transformado por eles (acomodação), pois sugar o seio é diferente de
chupar o dedo, que também é diferente de sugar a própria roupa.
"Para conhecer os objetos, o sujeito tem que agir sobre eles e, por
conseguinte, transformá-los: tem que deslocá-los, agrupá-los, combiná-los,
separá-los e juntá-los", afirma Piaget (1983: 14). A consciência da criança
sobre o meio externo se expande lentamente, | conforme suas ações se 49
deslo- | cam de seu próprio corpo para | os objetos. A mão agarra, ache-
| ga o objeto ao corpo, à boca que
experimenta, empurra-o para longe de
si. As pernas agitam-se em es^emeios.
Puxar, empurrar, contrair, distender,
apanhar, largar, juntar, espalhar, apertar,
f]g| afrouxar, são ações que também se
repetem. Os olhos acompanham os
movimentos.
O centro não é mais o corpo da criança,
já que por intermédio dessas ações a criança
manipula os elementos do meio. As
ações"agora são repetidas devido aos efeitos
interessantes que produzem, analisa Piaget.
Aos poucos, meios e fins vão sendo diferenciados e as ações começam a
ganhar intencionalidade. A descoberta casual de que a argola agarrada Produz
movimentos e sons num brinquedo suspenso acima do berço leva a criança a
repetir o movimento. Ela age para atingir um propósito. Os movimentos
ficam mais complexos, mais amplos, como engatinhar, Pôr-se de pé, andar.
Nesse percurso o eu e o mundo tornam-se progressivamente distintos. O
indivíduo e os objetos diferenciam-se e organizam-se no plano das ações
exteriores, e a permanência dos objetos vai sendo c°nstruída. O brinquedo,
que ao ser retirado da criança deixava de e*istir para ela, passa a ser
procurado. A criança começa a perceber ^e os objetos, as pessoas, continuam
existindo mesmo quando estão ÍOra do seu campo de visão.
Formam-se as primeiras imagens mentais dos objetos ausentes do
meio imediato. São elas que possibilitam o desenvolvimento da função
simbólica, mecanismo comum aos diferentes sistemas de representação
(jogo, imitação, imagens interiores, simbolização). Com o desenvolvi-
mento da função simbólica, a partir do segundo ano de vida, o eu e o
mundo reorganizam-se num novo plano: o plano representativo.
A criança reproduz, ou imita, utilizando gestos ou onomatopéias, o
comportamento e os sons de um modelo ausente, representando-o de
alguma forma simbólica no jogo do faz-de-conta. Por meio de uma ima-
gem mental, um símbolo, começa a imaginar fatos, objetos, pessoas,
acontecimentos que ocorreram em outras ocasiões, procurando re-
lembrá-los. O espaço e o tempo se ampliam, à medida que o desenvol-
vimento da função simbólica a libera de agir somente em situações do
meio imediato. Ela torna-se capaz de imaginar ações ou fatos sem
praticá-los efetivamente.

O período pré-operatório

Representando mentalmente o mundo externo e suas próprias


ações, a criança os interioriza. E nesse período que ela se torna capaz de
tratar os objetos como símbolos de outras coisas. O desenvolvimento da
representação cria as condições para a aquisição da linguagem, pois a
capacidade de construir símbolos possibilita a aquisição dos significa-
dos sociais (das palavras) existentes no contexto em que ela vive.
Nesse momento, a criança deverá reconstruir no plano da repre-
sentação aquilo que já havia conquistado no plano da ação prática.
Assim, a diferenciação entre o eu e o mundo, que já tinha se completa-
do no plano da ação, deverá ser elaborada no plano da representação.
Centrada no seu próprio ponto de vista, a criança ainda não é capaz de
se colocar no lugar do outro nem de avaliar seu próprio pensamento.
Ela não considera mais de um aspecto de um problema ao mesmo tem-
po, fixando-se sempre em apenas um deles.
Ao repartir o refrigerante com o irmão, a criança só considera a
partilha justa se o líquido ficar em altura igual nos dois copos, mesmo
que um deles seja visivelmente mais estreito. Ela considera apenas uma
dimensão do problema (a altura do líquido no copo), a mais evidente em
termos perceptivos. Não é ainda capaz de raciocinar levando em conta
as relações entre as várias dimensões envolvidas (a largura e o formato
do copo), e o tipo de percepção que tem dos objetos determina o tipo de
raciocínio que faz sobre eles.
Nas explicações que dá, o seu ponto de vista prevalece sobre as
relações lógicas. Ela diz coisas como "Ficou de noite porque o sol foi
dormir", "Quem fez aquele rio foram os homens que moravam ali".
Ações humanas explicam os fenômenos naturais, elementos da nature-
za praticam ações humanas, são dotados de intencionalidade e quali-
dades humanas.
Como a noção de permanência dos objetos, que leva muito tempo ra Ser
elaborada no nível sensório-motor, os processos de raciocínio lógico e
os conceitos demoram também um longo tempo para se desenvolver, a
partir desses primeiros raciocínios (pré-lógicos) de que a criança se
torna capaz com a representação.
Ao final do
período
O período das operações concretas pré-operatório, o
pensamento da
É apenas ao final do período pré-operatório, após equilibrações criança começa a
assumir a forma
sucessivas, que o pensamento da criança assume a forma de operações de operações
intelectuais. As operações são ações mentais voltadas para a cons intelectuais.
tatação e a explicação. A classificação e a seriação, por exemplo, são
ações mentais. Essas ações
são sempre reversíveis, ou T
seja, têm a propriedade de
voltar ao ponto de partida. *-
A criança torna-se capaz
de compreender o ponto de
vista de outra pessoa e de
conceitualizar algumas rela
ções. Portanto, é nessa fase
que são estabelecidas as bases
para o pensamento lógico, >
próprio do período final do de
senvolvimento cognitivo. J

HOJE A PROFESSORA V kAANDOU VÁRIOS ALUNOS


ENSINOU QUE DOIS MAS AO QUADRO-NEGRO PARA
DOIS SÃO QUATROÍ , SO^^ARE^V DOIS MAIS <■
DOIS IGUAL A QUATRO. )

F
onte: Nossas crianças. Abril Cultural, 1970. v. 4.

A reversibilidade do pensamento possibilita à criança construir


noções de conservação de massa, volume, etc. O pensamento reversível
pode ser definido como a capacidade de levar em consideração uma
série de operações que, revertidas, conduzem ao estado inicial. E o que
ocorre, por exemplo, com a noção de conservação de líquidos: uma
cr
iança, num nível operatório, é capaz de compreender que a quantidade
de refrigerante contida em um copo permanece a mesma quando
despejada em outro mais alto e mais estreito, embora o nível do líquido
s
e torne mais elevado. Essa capacidade está relacionada à possibilidade
51
de ela representar mentalmente a operação inversa — o líquido
retornando ao copo original — e, desse modo, compreender que a quan-
tidade se mantém invariável, a despeito das alterações perceptíveis. As-
sim, se for repartir o refrigerante com o irmão, despejando-o em dois
copos de formatos diferentes, essa criança terá condições (diferente-
mente de uma criança menor) de considerar as múltiplas dimensões en-
volvidas no problema, estabelecendo relações entre altura e largura do
copo e quantidade de líquido.
Assim, por meio das operações — inicialmente só aplicáveis a ob-
jetos concretos e presentes no ambiente — os conhecimentos cons-
truídos anteriormente pela criança vão se transformando em conceitos.

O período das operações formais

Apenas na adolescência é que o indivíduo se torna capaz de pensar


abstratamente, refletindo sobre situações hipotéticas de maneira lógica.
As operações mentais que aplicava só a objetos podem ser aplicadas,
agora, também a hipóteses formuladas em palavras.
O pensamento sobre possibilidades, sobre acontecimentos futuros,
sobre conceitos abstratos apresenta-se cada vez mais articulado. O adoles-
cente não tem mais necessidade de estar diante dos objetos concretos ou de
operar sobre eles para relacioná-los. Ele transforma os dados da experiên-
cia em formulações organizadas e desenvolve conexões lógicas entre elas.
O adolescente torna-se, enfim, capaz de pensar sobre o seu próprio
pensamento, ficando cada vez mais consciente das operações mentais
que realiza ou que pode ou deve realizar diante dos mais variados pro-
blemas. Essa consciência a propósito do próprio pensamento "pode ser
presumida pelo seguinte tipo, muito citado, de perguntas de adolescen- >
tes: 'Eu me surpreendi pensando acerca do meu futuro e então comecei
a pensar por que estava pensando no futuro, e aí comecei a pensar por
que eu estava pensando sobre por que eu estava pensando no meu futu-
ro'" (Evans, 1980: 116).
pesquisando a criança: o método clínico
Em 1919, trabalhando com Simon na padronização dos testes de
inteligência, Piaget voltou sua atenção para as respostas tidas como er-
radas dadas pelas crianças que participavam dos testes. Começou a se
preocupar com quais seriam as razões das falhas das crianças em com-
preender determinadas coisas, com qual seria o tipo de raciocínio implí-
cito em suas respostas.
Indagando-se sobre os processos de pensamento que estariam por
trás das respostas erradas, Piaget desenvolveu um "método de obser-
vação que consiste em deixar a criança falar, anotando-se a maneira
pela qual ela desenvolve o seu pensamento. A novidade consiste em
deixar a criança falar, seguindo suas respostas: guiada por elas, a crian-
ça é encorajada a falar cada vez mais livremente. Dessa forma, é pos-
sível obter em cada domínio da inteligência um procedimento clínico
de exame que é análogo ao que os psiquiatras adotaram como meio
para a elaboração do diagnóstico. E a resposta da criança que deter-
mina parcialmente o próximo passo do experimentador" (Azenha,
1994: 105).
Piaget chamou esse tipo de procedimento de método clínico. Em
algumas investigações, a criança era incentivada a agir sobre objetos e
depois a falar sobre o que havia feito.
Uma das situações mais famosas utilizadas por Piaget começava
com duas bolas iguais feitas com massa de modelar. Pedia-se à criança
que as segurasse e perguntava-se se havia ou não a mesma quantidade
de massa nas duas bolas.
Quando a criança respondia afirmativamente, mudava-se a forma
de uma das bolas, passando-a para a forma de um^ salsicha, por
exemplo, e novamente se perguntava à criança se havia na salsicha a
mesma quantidade de massa que na bola. Algumas crianças diziam que
sim, explicando que havia a mesma quantidade porque se se fizesse de
novo uma bola, esta seria igual à primeira. Outras, mais novas, davam
explicações como "esta tem mais porque é mais comprida",
referindo-se à salsicha.
Por meio de situações desse tipo, Piaget procurava compreender a
maneira de pensar da criança em diferentes idades. Para ele, não inte-
ressava se a criança acertava ou errava ao responder, mas sim a maneira
como pensava no problema proposto. Seu objetivo era apreender o tipo
de operação mental que a criança realizava (no caso desse exemplo, ele
investigava as noções de conservação e a reversibilidade do pensamen-
to da criança).
Assim, com base nas pesquisas realizadas através do método
clíni-Co e também na observação direta de seus próprios filhos,
especialmen-te nos dezoito primeiros meses de vida, Piaget, auxiliado
por inúmeros colaboradores, foi gradativamente elaborando sua teoria
sobre o desenvolvimento cognitivo da criança.
Desenvolvimento, aprendizagem e educação: a
influência da abordagem piagetiana na escola
Vimos que, na concepção piagetiana, o desenvolvimento da crian-
ça é um processo que depende essencialmente da equilibração, que é a
capacidade natural de auto-regulação do indivíduo. As estruturas cog-
nitivas da criança são elaboradas e reelaboradas continuamente a partir
da sua ação (física ou mental) sobre o meio.
De acordo com esse quadro teórico, a aprendizagem praticamente
não interfere no curso do desenvolvimento. A ênfase nos processos
internos e na atividade construtiva da própria criança resulta em uma
concepção que considera a aprendizagem como dependente do pro-
cesso de desenvolvimento. Ou seja, aquilo que a criança pode ou não
aprender é determinado pelo nível de desenvolvimento de suas estru-
turas cognitivas.
Segundo Piaget, tudo o que é transmitido à criança sem que seja
compatível com seu estágio de desenvolvimento cognitivo não é de
fato incorporado por ela. A criança pode imitar mecânica e externa-
mente o adulto, mas não compreende (e, portanto, não conhece) o que
está fazendo.
As formulações de Piaget têm tido grande influência sobre a práti-
ca pedagógica, inclusive no Brasil. Ao destacarem o papel ativo da
criança no processo de elaboração do conhecimento, têm sido responsá-
veis por idéias como: o papel fundamental da escola é dar à criança
oportunidades de agir sobre os objetos de conhecimento; o professor
não deve ser aquele que transmite conhecimentos à criança, mas sim
um agente facilitador e desafiador, de seus processos de elaboração; a
criança é quem constrói o seu próprio conhecimento.
Sugestão de atividades
Organizando as informações do texto
i Abaixo estão relacionados os principais conceitos da teoria
pia-getiana. Dê o significado de cada um deles.
• adaptação;
• assimilação;
• acomodação;
• equilibração;
• esquema;
• estágio de desenvolvimento.
2. Sintetize as principais idéias de Piaget acerca do processo de desen-
volvimento.
3. Faça uma comparação, apontando as semelhanças e diferenças, entre
as maneiras como o desenvolvimento é visto pelas abordagens
pia-getiana, inatista-maturacionista e comportamentalista. Compare
sua resposta com as de seus colegas, num debate que envolva a classe
toda.

Refletindo sobre as informações do texto

Comente uma das afirmações abaixo:


• "Pelo próprio fato de todo conhecimento ser, ao mesmo tempo,
acomodação ao objeto e assimilação do sujeito, o progresso da
inteligência (desenvolvimento psicológico) opera no duplo senti
do da exteriorização e da interiorização, e seus dois pólos serão o
domínio da experiência física e a conscientização do próprio fun
cionamento intelectual" (Piaget, A construção do real na criança).
' "Para conhecer os objetos, o sujeito tem que agir sobre eles e, por con-
seguinte, transformá-los: tem que deslocá-los, agrupá-los,
combiná-los, separá-los e juntá-los. Nesse sentido, o conhecimento
não é nem uma cópia interior dos objetos ou acontecimentos do real,
nem o mero reflexo desses objetos e acontecimentos que se
imporiam ao sujeito. Ele é uma compreensão do real, construída a
partir de modos de ação do sujeito sobre o meio, dependendo dos dois
— sujeito e objeto — ao mesmo tempo" (Piaget, A epistemologia
genética).
"Cinqüenta anos de experiência ensinaram-nos que não existem
conhecimentos resultantes de um simples registro de observações, 55
sem uma estruturação devida às atividades do indivíduo. Mas,
tampouco, existem estruturas cognitivas a priori ou inatas: só o
funcionamento da inteligência é hereditário, e só gera estruturo
mediante uma organização de ações sucessivas, exercidas sobre os
objetos" (Piaget. Apud: Piatelli-Palmarini, Teorias da linguagem
teorias da aprendizagem).

Pesquisa de campo

Você já deve ter ouvido falar em construtivismo. Essa palavra, que


vem ganhando destaque entre os educadores brasileiros desde a década
de 70, origina-se na teoria piagetiana:
"Uma concepção construtivista da inteligência, como acentua
Piaget, incluiria a descrição e a explicação de como se constróem as
operações intelectuais e as estruturas da inteligência, que, mesmo
não determinadas por ocasião do nascimento, são gradativamente
elaboradas pela própria necessidade lógica" (Azenha, M. G.
Construtivismo: de Piaget a Emilia Ferreiro).
Converse com alguns professores da Ia. à 4* série e da pré-escola.
Pergunte-lhes como definem o construtivismo e o que pensam de sua
relação com a educação. Anote suas respostas.
Confronte as respostas dos professores com a definição acima. Ela-
bore, a partir desse confronto, três conclusões a respeito da relação en-
tre as teorias psicológicas e a prática dos professores.

Exercitando a análise

Retome os dados das entrevistas com pais e professores realizadas


ao final do estudo do segundo capítulo. Destaque agora nas respostas
dadas por pais e professores aspectos que as associam a uma visão pia-
getiana de desenvolvimento.

Sugestão de leituras

AZENHA, M. G. Construtivismo: de Piaget a Emilia Ferreiro. São Paulo:


Ática, 1994.
CASTRO, A. D. Piaget e a pré-escola. São Paulo: Pioneira, 1986.
EVANS, R. I. Jean Piaget: o homem e suas idéias. Rio de Janeiro:
Fo-rense-Universitária, 1980.
PIAGET, J., INHELDER, B. Psicologia da criança. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 1989.
RAMOZZI-CHIAROTTINO, Z. A teoria de Jean Piaget e a educação. In: PEN-
TEADO, W. A. P. Psicologia e ensino. São Paulo: Papelivros, 1986.

Filme recomendado

Os transformadores, documentário apresentado pela TV Cultura (epi-


sódio Piaget).

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