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dança em foco

Ensaios
contemporâneos
de videodança
Na última década, a videodança tem se consoli-
dado como uma das vertentes mais promissoras da
dança mundial. O uso da tecnologia e das novas
mídias como ferramentas de criação e execução de
obras, nas quais o corpo e a imagem se desdobram
nas mais diversas possibilidades, trazem a cena
um novo movimento de criadores e pesquisadores,
que na cidade do Rio de Janeiro, se intensificou
com as ações promovidas e as publicações realiza-
das pelo dança em foco — Festival Internacional de
Vídeo & Dança. Abrigar este evento pioneiro fez
com que a cidade se consolidasse como um polo de
criação e pesquisa na área de videodança, abrindo
não somente uma vasta gama de produções,
mas um importante espaço para intercâmbio, difusão
e criação de pensamento.
É com o intuito de reconhecer este espaço
conquistado no panorama da dança internacional,
ampliando a difusão da produção e do pensamento
em torno da videodança, que a Secretaria Munici-
pal de Cultura do Rio de Janeiro, por meio do
Fundo de Apoio à Dança — FADA 2011, vem apoiar
a publicação dança em foco — Ensaios Contemporâ-
neos de Videodança. A publicação, que reúne
ensaios inéditos sobre a interação corpo/imagem/
movimento, traz para o público um rico material
de pesquisa, registro histórico e reflexão crítica,
que servirá de leitura não somente aos que produ-
zem, estudam e escrevem sobre a área, mas
também para os amantes da dança, da videoarte e
das novas mídias, interessados pelas suas mais
recentes tendências.
Assim, é com grande satisfação que desejamos a A publicação deste Ensaios Contemporâneos de
todos uma ótima leitura e ao dança em foco muitas Videodança é uma ação do dança em foco — Festival
novas conquistas por vir. Internacional de Vídeo & Dança. De fato, mais do
que um festival, trata-se de um projeto que se
Emilio Kalil multiplica em variadas ações, formatos e geografias.
Secretário Municipal de Cultura Construído em torno de diversas estratégias, o
dança em foco ocupou-se, desde sua criação,
com as zonas de fronteira, os entrelugares e as conver-
gências indefiníveis que atravessam a arte de hoje,
vinculando-se às diversas possibilidades estéticas
que surgem do encontro das novas tecnologias
(sobretudo da imagem) com a dança contemporâ-
nea: videodança, performances interativas, instala-
ções coreográficas, espetáculos multimídia e tudo
aquilo que — em um sentido mais largo — problema-
tize o corpo e a imagem.
Neste cenário, no entanto, durante dez anos,
foi mesmo a videodança o que se estabeleceu como
lugar privilegiado para proposições poéticas
da interface corpo/imagem/movimento. Sua miv
(Mostra Internacional de Videodança) recebeu cen-
tenas de obras de todo o mundo, circulou por
quase todos os estados brasileiros e foi tematizada
pela maioria dos textos nas quatro publicações que,
de 2006 a 2009, o dança em foco teve ocasião
de produzir. Daí que estes Ensaios Contemporâneos
sejam de Videodança.
Nele, são reunidos escritos de artistas e pesqui-
sadores nacionais e internacionais ocupados em
estabelecer um pensamento crítico em torno de uma
produção audiovisual que insiste em reinventar-se.
Em sua maioria inéditos, os ensaios versam sobre
Introdução
4–5
a pré-história e a história do encontro da dança com legado, de fundar os vínculos que, no tempo, pro-
o cinema, desfilam obras e artistas que fundamen- duzem a história possível de uma arte.
taram aquilo que viria a ser chamado de videodan- E é mesmo neste sentido — de produzir uma his-
ça, assim como problematizam dimensões poéticas, tória possível da videodança — que Airton Tomazzoni
transdisciplinares e críticas. Trata-se, aqui, mais e Leonel Brum acompanham, de modos distintos,
uma vez, de publicar/publicizar — a partir de diferen- aqueles acontecimentos que, durante os pouco
tes backgrounds — proposições que pensam e mais de 100 anos que nos distanciam da emergência
fazem pensar o trânsito afetivo entre as poéticas do do cinema, reúnem corpo e tecnologias da imagem.
corpo em movimento e da imagem em movimento. Tomazzoni ocupa-se da dança tal como emerge
naquele cinema que — ainda no período pré-sonoro
João Luiz Vieira elege como tema o cinema de Maya — inventava-se como técnica e linguagem. A imagem
Deren, artista seminal no âmbito do que reconhe- silenciosa surge como um lugar profícuo para que
cemos hoje sob o termo videodança. De fato, corpo e movimento, como imagens, se reconfigu-
a dança emerge em sua obra como uma dimensão rassem e instaurassem novas anatomias, poéticas,
que potencializa e instrumentaliza experimentações sentidos e espaços. Aí, a breve cronologia — limitada
que a desviam do modelo cinematográfico hollywoo- entre o momento em que o cinema nasce e aquele
diano. A partir de obras que datam da década de em que se torna sonoro (1927) — não diminui a
1940 — a exemplo de Meshes of the Afternoon (1943) potência e a dimensão fundadora de uma arte feita
e A Study in Choreography for Camera (1945), da fisicalidade silenciosa dos corpos-luz.
nas quais o autor se detém —, formulava-se o Leonel Brum faz um mapeamento dos aconteci-
conceito de “filme-dança”, em que bailarino, câmera mentos que, desde seus antecedentes cinematográ-
e montagem conspiram para o estabelecimento de ficos, preparam a constituição daquilo que chama a
“uma dança fílmica que apenas pode ser executada cena da videodança: as pesquisas de movimento
no cinema”. realizadas no pré-cinema (no âmbito da cronofotogra-
O ensaio da pesquisadora Silvina Szperling fia), experimentações do chamado primeiro cinema, os
aborda o percurso e as influências da realizadora musicais hollywoodianos, as vanguardas cinematográ-
argentina Narcisa Hirsch, atuante hoje ainda ficas e a videoarte. Em tal percurso — finalizado com a
aos seus 84 anos. Ao emprestar-lhe o título Ritual abordagem do surgimento da videodança no Brasil — é
in Transfigured Time, tomado de uma obra de Maya mesmo toda uma cena que vai se delineando, resulta-
Deren, de 1946, apontam-se de imediato vínculos do de apropriações, rupturas, transgressões e derivas
quanto ao universo temático daquela artista, que atravessaram a história das aproximações, fricções
mas sobretudo à potência de se estabelecer um e distanciamentos entre dança, cinema e vídeo.
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dE videodança
É também um percurso o que descreve Claudia Alexandre Veras fundamenta seu texto em
Rosiny: suas referências àqueles marcos incon- duas perguntas que, segundo ele, modulam
tornáveis — os pioneiros do cinema, os filmes expe- a variação constitutiva das obras de vídeo-dança
rimentais de vanguarda e os musicais —, no entanto, (conforme a grafia preferida pelo autor) sobre duas
pretendem informar sobre a dimensão intermi- perspectivas: “O que distingue uma vídeo-dança
diática que atravessa a arte do século xx e contex- de um filme de dança? O que distingue uma
tualizar uma análise de obras de videodança. Rosiny vídeo-dança de um filme de ação?” A partir destas
arrisca-se mesmo a listar “Quinze teses para a questões, problematiza aspectos sobre o regis-
fenomenologia da videodança”, ligadas a aspectos tro — do teatro-filmado à dança-filmada —, conven-
formais, técnicos e estéticos. A última parte de ções de decupagem, câmera e espaço de represen-
seu ensaio ocupa-se do complexo estatuto da narra- tação. Ao final, ensaia uma problematização
tiva na videodança, comparando as diferentes dos processos de criação na videodança a partir
soluções espaço-temporais de três representativas das lógicas da ficção e do documentário.
obras europeias. A australiana Karen Pearlman aproxima as
A história da dança é evocada por Beatriz artes de editar e coreografar, reconhecendo procedi-
Cerbino e Leandro Mendonça como um modo de mentos análogos entre a construção de sequências
tensionar as noções de escritura e autoria. De Feuillet por editores e a construção de frases de movi-
a Thierry De Mey, passando por Thomas Edison, mento por coreógrafos. Como estratégia, desloca
a dança que se fixa graficamente — como nota- do âmbito musical elementos a ele diretamente
ção ou registro luminoso — torna-se outra e estabe- vinculados: pulso, simetria, assimetria, fraseado,
lece, em sua identidade instável e fugidia, novas tempo, e também corpo e espaço são objetos
questões para si mesma. da ocupação daqueles que editam e coreografam o
Cristiane Bouger aborda a problematização do ritmo — metáfora musical maior, chave de um saber
futurismo, sob a forma de vídeo, pelas coreógrafas composicional.
Rosana Chamecki e Andrea Lerner, a partir daque- Ainda que sem referências à matrizes composi-
les elementos que eram caros ao ideário do movi- cionais da música, o esforço de Paulo Caldas
mento: no curta-metragem das artistas, velocidade, em seu ensaio é também de afirmar uma analogia
dinamismo, simultaneidade e violência fundamen- entre dança e cinema/vídeo: um mesmo logos
tam o quase contraditório projeto de celebrar — dramatúrgico rege a cinese como dimensão comum
no contexto da Performa 09 —Terceira Bienal de e faz convergir coreografia e cinematografia como
Novas Artes Visuais Performáticas de Nova York — escrituras de movimento. Seu percurso é menos
os passados 100 anos do Manifesto Futurista. pela história do que pelos modos de encontro — as
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interfaces — entre corpo e imagem em movimento, prolonga-nos questões e tensões absolutamente
as conspirações e configurações de influência pertinentes entre dança (ou, mais abrangentemente,
recíproca que renovadamente se estabelecem nos arte) e tecnologia em nossa contemporaneidade.
palcos e telas. Não a videodança, mas a escrita sobre ela
No ensaio de Carolina Natal, é o espaço que é o tema de Suzana Temperley, que marca o que
emerge como eixo em torno do qual dança e cinema reconhece como uma defasagem entre a produção
são tematizados. O termo dancine nomeia uma e as formulações críticas a elas dirigidas. De fato,
terceira instância estabelecida a partir da inter- a videodança é objeto de teorizações oriundas
-relação, em trio, do espaço da tela (imagético), do frequentemente de seu próprio contexto artístico.
espaço físico (geográfico) e, neles onipresente e São os artistas aqueles que mais se têm ocupado
compartilhado, o espaço do corpo. A partir de de pensar esta arte, o que faz a autora se pergun-
formulações foucaultianas, é como outro espaço, tar sobre o estatuto da crítica de arte, hoje,
heterotopia, que o espaço-trio — e suas modula- sobretudo diante daquelas poéticas que, como
ções — será concebido como uma ocasião para a videodança, são híbridas, “complexas e ainda
novas possibilidades poéticas. controvertidas”.
Alejandra Ceriani se pergunta sobre novos esta- Enfim, é com tal variedade de perspectivas
tutos da dança para a tela quando novas tecnologias que, com o presente livro, o dança em foco espera
— sobretudo a presença massiva da internet — se contribuir para a consolidação de um espaço para
estabelece como suporte das imagens que o mundo a videodança e para a formação de um pensamento
produz hoje. crítico em torno desse modo de produção audiovi-
“Observações sobre dança para a câmera e um sual. Anos depois de lançar a primeira publicação
manifesto”, de Douglas Rosenberg, aborda questões dedicada à videodança no Brasil, o projeto renova
sobre a materialidade e a imaterialidade da foto- seu esforço de tematizá-la e difundi-la.
grafia, do cinema e do vídeo. Depois de considera- A presente publicação só se tornou possível
ções sobre a construção do corpo impossível — “um graças ao patrocínio da Prefeitura da Cidade do Rio
corpo sem as restrições da gravidade, do tempo e de Janeiro, através do edital do Fundo de Apoio à
mesmo da morte”, reconstruído através das técni- Dança (FADA), de 2011. Nosso primeiro agradeci-
cas cinematográficas — se encerra com um manifes- mento é, portanto, à Secretaria Municipal de Cultura
to dedicado à “dança para tela”. Datado do fim e, em especial, à sua Gerência de Dança.
dos anos 1990, anacrônico, portanto, diante do nosso A lista de agradecimentos que seria possível
veloz contexto tecnológico, o ensaio, em seu tom redigir aqui é extensa: artistas, colaboradores, insti-
“apaixonado” (como reconhece, hoje, o autor), tuições públicas e privadas, nacionais e estrangeiras
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se multiplicaram em torno desse projeto pioneiro João Luiz Vieira
nascido em 2003, o dança em foco. O visionário cinema  
De toda ela, no entanto, mencionaremos apenas de fluxo de Maya Deren 15
um nome (ligado ao Sesc Rio, instituição ainda
hoje parceira que, através do Espaço Sesc, primei- Silvina Szperling
ramente acolheu o projeto e, assim, ajudou a RITUAL IN TRANSFIGURED TIME:
fundá-lo): Beatriz Radunsky. A ela dirigimos nosso Narcisa Hirsch. poesia sufi, danças
especial carinho e gratidão, não apenas na condição extáticas E olhar feminino 27
de diretores do dança em foco, mas como cidadãos
que prezam pela cultura do Rio de Janeiro. Airton Tomazzoni
Um baile mudo: a dança no cinema
Paulo Caldas, Leonel Brum, Eduardo Bonito pré-sonoro 51
e Regina Levy
Leonel Brum
VIDEODANÇA: UMA ARTE DO DEVIR 75

Claudia Rosiny
Videodança: história, estética
e estrutura narrativa de uma forma
de arte intermidiática 115

Beatriz Cerbino e Leandro Mendonça


Coreografia, corpo e vídeo:
Apontamentos para uma discussão 151

Cristiane Bouger
A discussão entre Marinetti e Ungari
reimaginada por chameckilerner 167

Alexandre Veras Costa


Kino-Coreografias — Entre 
o Vídeo e a Dança 193

dança em foco Sumário


Ensaios contemporâneos
dE videodança
Karen Pearlman 
João Luiz Vieira
A edição como coreografia 217

Paulo Caldas
Poéticas do Movimento:
Interfaces 239
O visionário cinema
Carolina Natal
de fluxo de Maya Deren
  1
Dancine: inter-relação
de espaços 255

Alejandra Ceriani
projeto webdança: uma
coreografia do gesto digital 283

Douglas Rosenberg
observaçÕes sobre dança para

A câmera E um manifesto 311

Susana Temperley
escrita perplexa: por um
possível encontro entre crítica
E videodança 329

João Luiz Vieira é professor-doutor do Departamento de Cinema e Vídeo


e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFF (Universidade
Federal Fluminense).

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Ensaios contemporâneos
1 Uma versão mais condensada deste texto, intitulado 14–15
dE videodança
“Câmera, olhar, corpo em movimento: Maya Deren”, apareceu no
volume Dança: imagens e movimentos, organizado por Christine
Greiner, Cristina Espírito Santo e Sonia Sobral (São Paulo: Itaú
Cultural, 2010), p. 18–22.
Filmada pelo marido, o fotógrafo Alexandre Hammid, de relações entre diferentes planos), as tensões
a personagem que subjetivamente habita o corpo entre exterioridade e interioridade que caracterizam
de Maya Deren no clássico Meshes of the Afternoon a arte em geral e o cinema em particular.
(1943) sobe uma escada no interior de uma casa e, Figura central e inspiradora do cinema experimen-
como se perdesse o equilíbrio, tenta se segurar nas tal norte-americano, a russa Eleonora Derenkowsky,
paredes, dobrando em seguida o seu corpo esguio nascida em Kiev em 1917, emigrou com sua família
sobre uma balaustrada, em um belo movimento de para os Estados Unidos em 1922, fugindo dos
quem conhece e pratica muito bem a dança. constantes pogroms na Ucrânia. Lá, precocemente,
Segundos depois caminha, também como se levitas- escreve poesia e se casa com o estudante e ativista
se, até uma janela, onde seu olhar busca uma figura político Gregory Bardacke, em Syracuse. Já na
de preto com rosto espelhado que parece coabitar cidade de Nova York, trabalha como secretária nacio-
aqueles espaços imaginários e oníricos da casa e nal da Liga Socialista da Juventude (Young People
de seu exterior. Em outro movimento do filme, agora Socialist League), separa-se de Bardacke e comple-
descendente, corpo e câmera parecem de tal forma ta sua graduação em artes na New York University,
integrados que literalmente encontram-se em em 1936. Em 1939, termina um mestrado em
suspensão no ar, quase no teto, descendo a mesma Literatura Inglesa e passa a secretariar a coreógrafa
escada e chegando até o pick-up de uma eletrola, afro-americana Katherine Dunham, com quem
levantando a agulha que tocava um disco. Tais trabalha e viaja pelos Estados Unidos. Em Los
imagens projetam uma atmosfera fluida, onírica, em Angeles encontra o já estabelecido cineasta tcheco
suspensão e fortemente hipnótica. Esse filme, Alexander Hammid, com quem se casa e poste-
considerado pioneiro na construção do movimento riormente codirige Meshes of the Afternoon. Também
que ficou conhecido como New American Cinema, nesta época, muda o nome para Maya, palavra
continua até hoje surpreendendo quem o assiste de origem indiana que significa ilusão, e abrevia
— quer pelo contínuo abalo que propõe em nossos seu sobrenome para Deren.
sentidos normais de causalidade espaço-temporal, Artista múltipla que, além da dança e do cinema,
quer pelo fluxo narrativo que constrói diversos também transitou pela literatura e pela fotografia,
enigmas a partir de uma iconografia de objetos relacio- Maya Deren foi pioneira na tentativa de integra-
náveis (flor, chave, espelho, faca), quer, ainda e ção entre diferentes meios de expressão artística.
principalmente, pela experiência radical que envolve Em especial, perseguindo e experimentando,
o espectador, em uma proposta que tematiza, no com frequência, formas possíveis de diálogo entre
próprio processo cinematográfico de filmagem dança, performance e cinema que lidam, cada qual
(registro) e posterior montagem (estabelecimento a sua maneira, com o movimento. Atenta às dificul-
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dades de acesso e divulgação de um desejo de vanguarda europeia dos anos 1920, em especial o
cinema muito diferente daquele construído e dadaísmo e o surrealismo. Essas e outras expres-
consagrado por Hollywood, Deren, junto com outro sões artísticas chamavam atenção pelas qualidades
artista pioneiro, Jonas Mekas, foi responsável pela oníricas e pelos deslocamentos de nosso sentido
criação de uma pequena estrutura de apoio a normal de espaço e tempo, características muito
outros cineastas independentes, a Creative Film bem-vindas para quem intuía e buscava o potencial
Foundation, de onde saíram, entre outros, realizado- poético de um cinema mais livre das amarras
res como Stan Brakhage, Robert Breer e Shirley narrativas tradicionais e lineares. Não por acaso,
Clarke. Deren, no intuito de garantir visibilidade os anos 1940 também estão dominados pela
para seus filmes e os de outros artistas, teve a inicia- popularização da psicanálise, e até Hollywood pisca
tiva de alugar a sala do Provincetown Playhouse, um olho para esse interesse, como no exemplo
no coração do Greenwich Village, em Manhattan, paradigmático de Alfred Hitchcock em Quando fala
para exibição regular de filmes experimentais. o coração (Spellbound), filme que ficou famoso
Tal iniciativa inspirou em seguida outro diretor, menos por tematizar as possibilidades de cura
Amos Vogel, a abrir também mais outra sala pioneira oferecidas pela psicanálise do que por suas sequên-
na programação de filmes alternativos, a Cinema 16, cias oníricas com visual de Salvador Dalí e música
ajudando a ampliar a demanda por essa forma de de Bernard Herrmann. Dois anos antes desse
expressão audiovisual na década de 1950. Este filme noir de Hitchcock, Maya Deren iniciara sua
grupo acreditava na potência de um cinema experi- trajetória no cinema em Los Angeles, ou seja,
mental artisticamente mais elevado por situar-se no coração mesmo da produção mais hegemônica,
fora das exigências ditadas exclusivamente pelo mer- filmando, junto com seu marido, Meshes of the
cado hegemônico. Mais que isso: o formato 16mm, Afternoon, obra seminal que influenciou (e influen-
mais leve e menor, se comparado à parafernália cia ainda) toda uma geração de cineastas.
profissional exigida pela estrutura industrial do cine- Qual o tipo de experiência particular que esse
ma dominante, toda ela centrada no 35mm, tam- filme, assim como os demais realizados por Deren
bém poderia provar que simplicidade era compatível a partir diretamente da dança, propõe para os
com filmes diferentes do padrão e do gosto conven- espectadores? Vendo e revendo Meshes of the
cionais, que fossem igualmente inteligentes, desafia- Afternoon, somos continuamente surpreendidos por
dores e, principalmente, de grande impacto estético. uma sequência de imagens (e sons de uma música
Quando Deren começa a se interessar pelo oriental composta pelo japonês Teiji Ito) que pare-
cinema e se dedicar a ele, no início dos anos 1940, cem expressar continuamente um conflito entre
a década ainda repercutia os movimentos da interioridade e exterioridade, ou melhor, a coexistência
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destas duas esferas, expressas por meio do sonho, que evolui para outro sonho, numa estrutura cir-
da imaginação e também de uma espécie de cular de avanços, recuos e repetições. Literalmente
memória da fantasia sexual em confronto com a como se a câmera recuasse para o interior da
realidade externa. Referindo-se não só ao filme, mas personagem, em uma espécie de percurso dentro
também ao seu desejo de cinema, Deren deixava de um túnel que levasse a esse interior.
claro que queria colocar em seus filmes “a sensação Em princípio, o conteúdo latente desse inespera-
que um ser humano experimenta num incidente do filme parece girar em torno da violência doméstica
qualquer, e não apenas registrar esse incidente”.2 e da ambivalência da sexualidade, ao criar tensões
Desde o início essa proposta fica bastante clara, em uma subjetividade fragmentada. É o que, de forma
pois a primeira imagem já surpreende, com uma muito clara, parece expressar a duplicidade entre
flor que entra em quadro pelo espaço off, de cima figura e sombra desde o início ou, ainda mais óbvio,
para baixo, com sombras contrastadas sob um sol a as mesmas Mayas Derens replicadas em três figuras
pino. A mão que pega essa flor é a da protagonista, semelhantes ao redor de uma mesa. O conflito
Maya Deren em pessoa, de quem só vemos a entre interior e exterior parece muito bem refletido
sombra ainda por diversos instantes. Ato contínuo, também na centralidade de uma ação recorrente
a personagem sobe os degraus externos e tenta nos fragmentos de sonho que envolvem, repetida-
entrar em casa. Experimenta a porta, empurra mente, passagens espaciais do exterior para o interior
a maçaneta, retira uma chave da bolsa. A chave lhe da casa. De forma desconcertante, outro momento
escapa das mãos e cai pelos degraus, no que parece, crucial acontece quando uma das múltiplas perso-
a princípio, ser o registro de um incidente banal, nagens idênticas levanta-se com a faca na mão e se
um gesto corriqueiro de qualquer pessoa que entra aproxima daquela que dorme. Em uma relação de
em casa. Essa aparente normalidade, com o auxílio paralelismo, num primeiro momento a que empunha a
da música e de uma precisa montagem, logo evolui faca está no interior da casa, preparando-se para sair.
para o que parece ser um sonho. Ela senta-se Em um corte seco, ela se encontra já no exterior, e
numa poltrona e fecha os olhos, enquanto sombras uma sucessão de cinco planos marcados por continui-
sutis sobre a pálpebra reforçam essa impressão dade de movimento — uma caminhada com cinco pas-
em close-up. Segue-se uma imagem que literalmen- sadas que evolui do mar para a areia, daí para o
te parece ilustrar um mergulho no seu interior: em mato rasteiro, para uma calçada e, finalmente, para
um movimento de recuo, a imagem se fecha na forma o piso acarpetado de novo do interior da casa — mate-
circular da íris, e a sen- rializa o trânsito fluido entre interior-exterior-interior.
2 Maya Deren, “Writings of Maya
Deren and Ron Rice”, em: Film Culture
sação que se tem é da Como uma artista que procurou compreender de
nº 39 (inverno de 1965), p. 1. dinâmica de um sonho forma bastante particular o potencial dos materiais
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audiovisuais do cinema à sua disposição, Maya giado pelo desejo de cinema que ela praticou.
Deren, seguindo os princípios pelos quais per- Exatamente o que lhe permitiria potencializar a
seguiu seus objetivos enquanto realizadora, acabou construção poética no cinema. Para conseguir
revelando a potência do cinema na expressão da esse objetivo, investiu na montagem a fim de que
dialética entre interioridade e exterioridade. Ela a forma final do filme conseguisse externalizar o
consegue essa articulação a partir mesmo do pró- mundo interior, movediço, deslizante, apto a criar
prio processo cinematográfico de registro de um universo cujas leis de espaço, tempo e causali-
imagens conforme se constituiu até recentemente, dade pudessem se desviar da realidade física
ou seja, do meio fotográfico analógico, da película, do mundo acordado e em alerta, característico
bem antes do aparecimento das imagens de sín- de nossa percepção cotidiana. Meshes of the
tese digitais de hoje. Até bem pouco tempo, os dois Afternoon ainda surpreende e, durante os anos em
princípios constitutivos principais de produção em que mostro esse filme para os alunos de primeiro
cinema, a filmagem e a montagem, já tensiona- semestre no curso de cinema e audiovisual da
vam essa relação exterior/interior. Na primeira etapa, Universidade Federal Fluminense, as reações
prevalecia o registro, a fotografia em sua relação provocadas pelas ambiguidades presentes em sua
mimética e naturalista com o mundo exterior, a estrutura formal variam de encantamento (devido
tomada com sua duração contínua, algo mais ou me- ao preciosismo da montagem) a desconforto e uma
nos semelhante à nossa percepção acordada do certa angústia, especialmente pela substituição
cotidiano. Já o processo de montagem possibilitava da organização tradicional do mundo na relação
(e ainda possibilita) a entrada em um imaginário clara entre causa e efeito e seus desdobramentos
relacional que não tinha, a princípio, nenhum vínculo narrativos lógico-lineares. Muitos elogiam sua
direto com a percepção cotidiana. Aqui prevalece imprevisibilidade e ressaltam que o filme provoca
o campo da imaginação, da criação de uma nova mais perguntas do que respostas. Não são raras as
realidade, mais relacionada ao mundo interior. A par- comparações com boa parte do cinema de David
tir daí poderíamos pensar dois caminhos paralelos, Lynch, e muitos sugerem que a melhor forma de
em que a filmagem seria o local do objetivo (inclu- apreciá-lo é deixar que o filme toque o espectador
indo essa denominação perfeita para a lente da à sua maneira, sem a busca de configurações já
câmera como a objetiva, ao menos em nossa língua), pré-estabelecidas, contribuindo, assim, para um
ao passo que a montagem seria o locus do imaginá- desencadeamento maior de afetos e sensações
rio por excelência, do mundo interior. E para Maya do que de julgamentos. Ou seja, Deren, de certa
Deren é esse segundo espaço interior da imagina- forma, antecipou a exploração de um cinema de
ção que tem precedência e que deve ser privile- dimensões sensoriais que ainda fala a novas
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João Luiz Vieira O visionário cinema de fluxo
de Maya Deren
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gerações, antenadas com um cinema contemporâ- uma geografia que na verdade só existe na realida-
neo e com uma estética do fluxo.3 de interior da imaginação e da fantasia, espécie
A busca de uma expressão poética interiorizada de movimento que não avança linearmente em
a partir do material oferecido pela realidade pró- direção a um espaço também concreto e contínuo.
-fílmica (existente diante da câmera) é suficiente para Aqui, o movimento passa a ser para dentro, em
valorizar a imaginação que sempre se atualiza no outro regime temporal que parece valorizar mais
ato de montagem. Seu terceiro filme, Um estudo de uma fluidez entre os planos editados e uma
coreografia para a câmera (A Study in Choreography relação mais física com a câmera, que tenta
for Camera, 1945), carrega no título certo descom- acompanhar o deslocamento muitas vezes inespe-
promisso com o produto acabado, finalizado, ao rado do corpo no espaço. O movimento de Beatty
tratá-lo como simples anotação de trabalho, expe- vai sendo editado de forma contínua, porém
rimentos relacionados à representação do movi- surgindo em espaços descontínuos, até chegar ao
mento corporal na dança, em diálogo estrito com o met (The Metropolitan Museum of Art, de Nova
registro e as possibilidades infinitas oferecidas pela York). Ao final, acontece um movimento reverso
justaposição de planos no processo de montagem. e o dançarino reaparece na floresta, numa situação
Aqui, o movimento de um dançarino, Talley Beatty, que remete à célebre sequência supracitada dos
atualiza e amplia uma das mais caras lições de cinco passos contínuos/descontínuos de Meshes of
montagem oferecida pelos artistas-pesquisadores the Afternoon. Porém, ao contrário do filme de 1943,
da vanguarda soviética, conhecida como geografia com sua ênfase nos espaços e motivações psico-
criativa.4 Beatty, em uma cena, aparece num gesto lógicas oníricas, Um estudo de coreografia para a
em que levanta sua perna, filmado no espaço câmera ressalta mais a potência da imaginação
exterior de uma floresta em seu poder de alterar a lógica das coordenadas
3 Expressão utilizada pela
crítica francesa Stephane Bouquet para, em perfeita conti- espaço-temporais do mundo exterior concreto
no texto “Plan contre flux”, em: nuidade de movimento, do que o dos sonhos. Deren também afirma, com
Cahiers du Cinéma nº 556 (edição
de março de 2002), p. 46–47. concluir o passo descen- este filme e através da dança, o potencial que o
4 Deren, op. cit., p. 30. Vale a dente já em outro am cinema oferece de romper com os limites e as fron-
pena relembrar as experiências que
dão nome a essa figura de lingua- biente, agora interior. teiras físicas de um palco ou de um espaço unívoco
gem, realizadas por Lev Kuleshov e Deren nomeou esse frag- de representação. Ao final, as transições ofere-
descritas por Pudovkin em “Métodos
de tratamento do material-monta- mento em uma formu- cidas pelos movimentos de Beatty acabam sendo
gem estrutural”, em: Ismail Xavier lação dupla como exten- análogas aos movimentos da consciência, por
(org.), A experiência do cinema
(Rio de Janeiro: Graal/Embrafilme,
são ao ar livre/close-ups meio dos quais, segundo Deren, o indivíduo encon-
2003), p. 69–70. interiores, criando tra-se sempre em trânsito, oscilante entre um
dança em foco
Ensaios contemporâneos
João Luiz Vieira O visionário cinema de fluxo
de Maya Deren
24–25
dE videodança
lugar fixo e outro imaginário, ilusório, porém Silvina Szperling
palpável e “real” em termos de percepção.
O legado e a revisão do conjunto da produção
de Maya Deren — não só cinematográfica, mas
também teórica — apontam para suas atemporais
atualidade e relevância. Entre as várias transfor-
mações radicais que sua obra deixa, apontamos RITUAL IN
(seguindo os passos de Bill Nichols) o impulso
TRANSFIGURED TIME:
1
em transfigurar e alterar as limitações realistas
inerentes ao registro cinematográfico, como uma Narcisa Hirsch.
espécie de ética, responsabilidade e obrigação
do artista.5 Tais objetivos implicam entendimento poesia sufi, danças
profundo dos meios e técnicas que trabalham
na construção de nossa percepção, sensibilidade extáticas E olhar
e concepção do cinema, tanto histórica quanto feminino
culturalmente. Fica também o exemplo em total
ressonância com os tempos que correm, de uma
realizadora cuja prática alternativa envolvia
ações exemplares de autopromoção, distribuição
e exibição, ou seja, o controle total do processo
de criação e de difusão de seus filmes.

Pioneira da videodança na Argentina, é criadora e diretora do Festival


5 Bill Nichols (org.), Maya Deren Internacional de Video-danza de Buenos Aires, membro fundador do Foro
and the American Avant-Garde Latinoamericano de Videodanza. É curadora, realizadora, ensaísta e
(Berkeley / Los Angeles: University organizadora do livro Terpsícore en ceros e unos: Ensayos de Videodanza.
of California Press, 2001), p. 13. Ministra oficinas de videodança em diversos contextos internacionais.

dança em foco
Ensaios contemporâneos
João Luiz Vieira 1 Ritual in Transfigured Time (14 min, EUA, 1946) é o título 26–27
dE videodança de um filme de Maya Deren (Kiev, 1917 – Nova York, 1961).
I say: Eu digo: ponto de chegada, meta. O mundo gira e gira, e
I burn like a moth in the Queimo como uma o bailarino gira da mesma maneira, enquanto a pai-
candle of your face. borboleta na candeia sagem (a natureza em suas formas mais puras
You say: de sua face. e fortes) apresenta linhas horizontais: os cumes da
Die. Você diz: cordilheira, uma sementeira coberta de neve,
Morra. um tropel de vacas avançando em fila. O giro circu-
lar do eterno presente e a linha horizontal do tempo
Jelaluddin Rumi (1207–1273) que avança (as estações se sucedem, o Sol se
dirige para o ocaso, a estrada sustenta uma caminha-
da humana) se encontram na tela de Narcisa,
Vacas que caminham sobre vacas. ao executar imagens poéticas ao calor do fogo que
consagra e consuma a paixão.
Dedos de mulher abrindo pétalas de uma rosa.

Um bailarino-dervixe que gira e gira sob o olhar


dessa mulher.

Imagens que sobrepõem nuvens, plantas, fogo ou


A transposição como
água sobre rostos, arados e palavras escritas na
maneira de olhar o mundo
parede de uma caverna.

Cortinas que se abrem e se deixam ver através


de uma janela e também refletem o outro lado do
espelho.

Rumi (28 min, 16mm e vídeo, Argentina, 1999), de Este filme se baseia na poesia de Jelaluddin Rumi
Narcisa Hirsch, incorpora a dança como uma das (Afeganistão, 1207 –Turquia, 1273), que abandonou
formas de movimento do universo e suas criaturas. uma carreira acadêmica de êxito para seguir seu
Suas metáforas conseguem transformar o mestre Shama e Tabriz no deserto. O encontro com
tempo e o espaço em coordenadas místicas mais Shama foi determinante para que a poesia de
do que cartesianas. Os itinerários assinalados pelo Rumi fluísse com uma temática erótico-mística
movimento são eterno presente. Não há destino, até morrer:
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Silvina Szperling RITUAL IN TRANSFIGURED TIME: Narcisa
Hirsch. poesia sufi, danças extáticas
28–29
dE videodança E olhar feminino
See Veja,
this is love. isto é amor.
Whoever is not killed Quem não for
for love is carrion.2 assassinado por
amor é carne O mito de Narcisa
putrefata.

As palavras do poema aparecem paulatinamente no


filme, inscritas em uma superfície com texturas,
iluminadas, quase se pode dizer descobertas pouco
a pouco por uma luz pontual. A imagem lembra o mito
da caverna de Platão, em que a realidade e a No rumo artístico de Narcisa Hirsch (nascida em
percepção que temos dela são apenas um reflexo 1928), o encontro desta poesia como fonte de
das ideias. Será que para Hirsch o cinema (a arte) inspiração culmina com uma busca iniciada como
é o que permite unir realidade e pensamento? cineasta experimental na Buenos Aires dos anos
Essas palavras que se filtram com grande parcimô- 1970. Dedicada à pintura desde criança, seguindo
nia à medida que o filme avança, sempre iluminadas o exemplo de um pai que quase não conheceu,
por esse foco de luz e percebidas por essa câmera Narcisa percorreu desde adolescente inúmeros
de cinema, assinalam, aludem e ancoram o restante ateliês de pintura de uma cidade, aonde chegara
das imagens que se alternam e sobrepõem corpos vinda da Áustria aos 9 anos, com sincronia a tempo
humanos, animais, elementos naturais, todos consu- de salvar-se milagrosamente da Segunda Guerra
midos pela paixão que se cozinha em fogo lento. Mundial. Berlinense de nascimento, filha única
de uma argentina de origem mista (alemã e criollo)
See… Veja… e de um alemão que as abandonou quando ela tinha
this is the dark one isto é o obscuro 5 anos, Narcisa veio para a América do Sul em 1937,
this is the wedding night esta é a noite de boda quando a mãe lhe propôs viver um ano sabático
a never-ending passion. uma paixão interminável. na casa da avó, para apagar as feridas de um colégio
vienense no qual ela aterrissou aos 8 anos, sem
Become that passion Converta-se nessa paixão qualquer aprendizado prévio, cortando assim pela
And every burden e todo o peso raiz uma infância tirolesa
2 Jelaluddin Rumi, citado no
Will be será filme Rumi, de Narcisa Hirsch.
de vacas, margaridas,
Light.3 leve. 3 Jelaluddin Rumi, op. cit. neve e lagos. Todas estas
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Silvina Szperling RITUAL IN TRANSFIGURED TIME: Narcisa
Hirsch. poesia sufi, danças extáticas
30–31
dE videodança E olhar feminino
imagens voltaram uma ou outra vez ao seu cinema. Maya Deren, e buscando experimentar todas as
E Rumi não é exceção. coisas. Sendo uma artista primordialmente visual
A Argentina se tornou sua pátria adotiva, embora e tendo mergulhado na arte de ação, Narcisa
sempre fosse considerada à margem: alemã para incluiu desde o primeiro minuto de seu cinema o
os argentinos, argentina para os alemães. Nos movimento humano e o corpo em si como um de
anos 1960, dez anos depois de dar à luz e criar qua- seus eixos básicos.
tro crianças, Narcisa Heuser — que adotara o
sobrenome de seu marido, Paul Hirsch — aderiu Parece-me que nosso século xx, ao qual eu perten-
ao movimento que gira em torno do Instituto Di Tela ço, tem muito a ver com movimento, e eu continuo
de Buenos Aires, dirigido por Jorge Romero Brest a sentir que necessito de certa mobilidade, desa-
e que apregoa a morte da pintura de cavalete. marrar certas coisas… A queda dos valores fixos, a
E assim pousou no cenário dos happenings porte- verdade, a realidade, tudo isto que devemos
nhos, exercendo ações de rua juntamente com acolher da modernidade em termos filosóficos da
sua amiga fotógrafa Marie Louise Alemann e o ator metafísica, tudo isto está em ruínas neste momento
colombiano Walter Mejía: repartiam quarteirões (Narcisa Hirsch).4
em pleno centro da cidade. Mais adiante realizaram
outras ações, a de repartir bebês. Isto é: bonecos Suas primeiras obras, sendo quase a única mulher
de bebês. de um grupo integrado por Cláudio Caldini, Juan
O happening culminante do grupo, realizado José Mugni, Juan Villola, Horacio Vallerejo e Marie
em 1967, no salão do Teatro Coliseo, foi Marabunta: Louise Alemann, revelam um grande atrevimento e
uma encenação na qual um gigantesco esqueleto um notável interesse por temas transcendentes
recoberto de comida era devorado pelo público como morte, amor, sexo, tempo. O grupo se reunia
que passava casualmente por ali. Para registrar em forma de militância artística; o que os unia
essa efêmera e imponente ação, Hirsch se associou não era uma estética em comum, mas a ideia de par-
ao cinegrafista, cineasta e militante político Raimun- tilhar total liberdade de expressão e a possibilidade
do Gleizer — que posteriormente desapareceria de se solidarizar em termos de equipamento,
durante a ditadura militar. Ao realizar a montagem habilidade técnica e esforços para provocar um públi-
do material juntamente com ele, descobriu que co reticente, que, normalmente, costumava somar
o cinema era muito atraente. E assim se internou no 4 Ver (se) olhar para a câmera.
uma dezena de pessoas.
mundo do cinema underground, assistindo sessões Entrevista com Narcisa Hirsch. Grandes debates se
Alejandra Torres, Catálogo de obra
no MoMA de Nova York, conhecendo Jonas Mekas (Buenos Aires: Casa del Bicen-
desencadeavam, diante
e o New American Cinema, do qual participava tenario, 2010). da resistência do público
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Silvina Szperling RITUAL IN TRANSFIGURED TIME: Narcisa
Hirsch. poesia sufi, danças extáticas
32–33
dE videodança E olhar feminino
não habituado ao experimental e à total ignorância
da crítica. Nas ocasiões em que partilhavam a
projeção com cineastas principiantes, mas com
evidente intenção de fazer cinema narrativo
ou “comercial” (nos festivais Uncipar — União de Sou corpo, logo existo
Cineastas de Passo Reduzido), travavam-se
grandes batalhas entre ambas as facções — que se
convertiam em mais um esperado happening.
Em 1976, o Instituto Goethe deu hospedagem ao
grupo, proporcionando-lhe uma sala de exibição e
algumas oficinas com cineastas reconhecidos,
sendo que o que mais marcou o grupo foi o alemão Para Hirsch, o corpo é sempre corpo sexuado e
Werner Nekes, com quem conviveram duas corpo mítico ao mesmo tempo. E seu olhar femini-
semanas no mesmo habitat no subúrbio de Buenos no tinge com força a obra inteira.
Aires, produzindo cada um seu próprio filme Em Testamento e vida interior (11 min, 8mm,
em 16mm. Já então, Narcisa se somara à maioria Argentina, 1976) alternam-se imagens de um cortejo
que filmava em Super-8, economicamente viável fúnebre no qual um ataúde percorre a cidade,
e capaz de sustentar a liberdade artística total dos carregado por quatro pessoas, com as de uma mulher
membros do grupo. Eram os anos da ditadura tomando banho no centro de um parque. A noção
militar mais sangrenta sofrida pela Argentina, mas de pudor da pacata sociedade portenha dos anos
o grupo não chamava muito a atenção: era tachado 1970 se sentiu desafiada por este grupo de artis-
de elitista e burguês pelos militantes do cinema tas-companheiros-cúmplices, exatamente no ano
político e de alienado e sem sentido pelos pratican- do golpe de Estado que levou ao poder a última dita-
tes do cinema do establishment. Mais uma vez dura argentina. Mas o filme não permanece fixo
ela era posta de lado por ambas as partes. E assim em uma simples provocação urbana: o cortejo fúne-
conseguiu sobreviver. Porque as coisas aconteciam, bre continua sem caminho pelo campo, por uma
como ela mesma disse, citando ao seu mestre estrada cheia de neve, onde os parentes avançam
Werner Nekes, “entre fotograma e fotograma”.5 vestidos com poncho ao ritmo de uma música
flamenca, e a imagem vai se tornando vermelha
e se dirige até (e se funde com) a luz. Seus atores
— amigos dos diretores — são naturalistas, mas seu
5 Alejandra Torres, op. cit. cinema está bem longe de ser naturalista. Sempre
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Silvina Szperling RITUAL IN TRANSFIGURED TIME: Narcisa
Hirsch. poesia sufi, danças extáticas
34–35
dE videodança E olhar feminino
há uma nota (ou várias) do inconsciente que se dição é ter caído do céu luminoso e se alojado nas
presta a dar asas à narrativa. trevas caóticas do ventre materno (Simone de
Beauvoir, citada em A-deus de Nascisa Hirsch).7
Um filme começa com um pensamento, com uma
imagem que emerge, sai de seu contexto, torna-se O herói sempre tem uma incumbência, e a mulher-
independente, envia sinais. Uma imagem captu- -artista assinala sua falta, ao comentá-lo, ao
rada num instante de abertura e de êxtase do mundo acompanhá-lo em seu dificultoso avançar com
(Narcisa Hirsch).6 as muletas. Este defeito é olhado com comisera-
ção, e esse olhar é dirigido ao guerreiro, até
Em seu filme A-deus (22 min, 8mm, Argentina, mesmo na queda, à maneira de reivindicação:
1982), Hirsch trabalha sobre o mito do herói — seu chegar ao bar com recursos próprios. O guerreiro
tribu­to explícito aos seres humanos (a quem dedica, sempre pode (e deve) cobrar-se. O olhar da
juntamente com Jung). O corpo nu, tanto mas- mulher é compassivo. A própria admiração nasce
­culino como feminino, recebe tratamento escultóri- da compaixão.
co, quase grego. Há algo de descarnado nessas
visões de torsos masculinos que incluem os órgãos
sexuais, mas não os rostos; corpos iluminados e
impressos em preto e branco de maneira clássica,
que os revela como se fossem de mármore. A artista
alterna essas imagens e outras quase heroicas
(atletas em momento de esforço supremo, guerrei- Natureza
ros entrando em massa no mar, explo­sões nuclea-
res, desfiles militares, iconografia nazista) com o
lento avançar de um homem em muletas que, com
dificuldade, progride no caminho até chegar a um
ponto de descanso, num bar da estrada.

6 14o Festival BAFICI A revolta do homem Entre os elementos sempre presentes no cinema
(Buenos Aires Festival de Cine
Independiente), Catálogo
contra sua condição car- de Narcisa Hirsch está a Natureza. A natureza
(2012). nal é ainda mais ampla. como força, como poder, como sinal da passagem
7 Simone de Beauvoir,
O segundo sexo (Buenos Aires:
Considera-se um deus do tempo, quase como sinal do destino trágico do
Editora Sudamericana, 1999). fracassado, e sua mal- ser humano.
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Silvina Szperling RITUAL IN TRANSFIGURED TIME: Narcisa
Hirsch. poesia sufi, danças extáticas
36–37
dE videodança E olhar feminino
Narcisa viaja amiúde à Patagônia, onde há nosso olhar e a paisagem. É a mulher quem des-
decênios passa longas temporadas e, de seu cobre a visão da paisagem. E, na paisagem, um
quarto, recolhe imagens de todas as estações do homem com suas ferramentas avança em direção
ano, imagens que, também, remetem à sua infân- à câmera.
cia alpina. São recorrentes seus generosos enqua- O filme reitera esta descoberta, ao descerrar
dramentos de planícies com neve, cordilheiras, o véu do interior para o exterior. Muitas vezes: nas
estradas infinitas. E ela também se detém em mãos de uma mulher madura, de uma adolescen-
pormenores nos quais a matéria, quase em forma te, de uma jovem. Sempre vemos uma paisagem
abstrata, invade o quadro: águas bem azuis, igual, mas diferente. São os mesmos cumes, mas
pedras rugosas, chamas recortadas contra o céu diferentes. São os mesmos campos, porém ilu-
noturno. E, sobre todas essas imagens, o tempo minados por uma nova luz, vistos de novos ângulos.
vai costurando seu transcorrer, que Narcisa Ou sobrepostos a outra cena, anterior ou posterior.
potencializa mediante a aceleração do movimento O transcorrer do tempo começa a se alterar sob
das nuvens ou mediante a tranquila e quieta este novo olhar múltiplo. O que se passou antes
observação de um pôr do sol. acontece ao mesmo tempo em que o acontecimen-
Enquanto em A-deus a natureza é uma plata- to de agora. Nunca se acabam as maneiras de
forma para o lançamento da força do homem e olhar. E de ver.
da mulher, em Rumi a câmera observa o olhar que
a mulher (ou as mulheres) têm desse homem.

Today Hoje
like any other day como em qualquer
we wake up outro dia
empty and frightened.8 despertamos Projeção binária
vazios e
amedrontados.

As palavras projetadas na caverna dão origem a


visões da natureza e sua imponente amplitude.
Vemos uma mulher de costas que faz subir uma
cortina, e esse movi- Rumi foi filmado em 16mm, mas desde a estreia é
8 Jelaluddin Rumi, op. cit. mento se interpõe entre projetado como filme e vídeo. É uma das obras
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Ensaios contemporâneos
Silvina Szperling RITUAL IN TRANSFIGURED TIME: Narcisa
Hirsch. poesia sufi, danças extáticas
38–39
dE videodança E olhar feminino
dobradiças dos anos 1990, com a qual Hirsch expe- sonora a partir do projetor, simplesmente se instala
rimenta a difícil transição entre o filme e o vídeo. um grau de presença diferente. O som do filme,
por sua vez, é escutado por baixo do som do vídeo,
Nestes processos de cismogênese 9 entre as e a banda sonora sofre defasagens aleatórias
diferentes linguagens tecnológicas é que Narcisa temporais juntamente com as imagens.
se instala, na qualidade de artista experimental, Contemplamos (ou presenciamos) essas ima-
alimentando-se de todas as variáveis tecnológicas. gens que nos dizem que nada está pronto. Nada
Suas ideias tratam de entrecruzar formas e está completamente sob controle nem possui um
conceitos, de gerar o conflito do olhar, de provocar fim definido. Por exemplo, as vacas podem cami-
a reflexão dentro do espaço em que ocorrem nhar sobre outras vacas.
as ações, dentro e fora da tela (Daniela Muttis).10
O ritual proposto por Narcisa é a experiência do
A experiência desta projeção binária como espec- acaso, o mergulho no corpo da imagem em mo-
tador é particularmente comovente. Ao ver ambas vimento, mas também no corpo de cada espectador
as projeções ocorrerem ao mesmo tempo, produz-se que assinala sua viagem pessoal. É a combinação
um efeito de quadro dentro do quadro (à maneira de duas leituras simultâneas que se desfazem
da pintura dentro da pintura), mas que, longe no tempo. O que permanece não são as coincidên-
da sincronização perfeita do digital, permite um cias das formas, mas a possibilidade de pensa-
9 “Como antropólogo na Nova
grau aleatório de defa- mentos simultâneos sobrepostos na busca de rela-
Guiné, em 1927, estudando a tribo sagem entre as duas ções e aspectos conceituais em que ela propõe
iatmul, Bateson cunhou o termo
cismogênese, definido como ‘proces-
tecnologias. Acrescenta ultrapassar os limites das linguagens que se impõem
sos de diferenciação nas normas às já poéticas imagens a partir da tecnologia. […] As imagens de seus
do comportamento individual
resultantes da interação cumulativa
da obra em si um caráter filmes são parte de um espelho que executa a ação
entre os indivíduos’.” Sara B. performático: pelo fato de seu retrato, e a tecnologia é uma ferramenta
Jutoran e Nora Ricardi, Sistemas
familiais (ano 10, nº 1, Buenos Aires:
de ver a própria — e quase que possibilita sua deformação, impelindo o novo,
abril de 1994). mítica — cineasta acio- o não previsível (Daniela Mutti).11
10 Folheto da apresentação de
Rumi no Ciclo de video arte y cine
nar o mecanismo do
experimental do Museu de Arte projetor de 16mm e o de É como se a paisagem se alterasse novamente.
Moderna de Buenos Aires, na
Aliança Francesa de Buenos Aires,
escutar o som do anda- O inverno cru cede lugar à primavera. E muda também
agosto de 2011. mento do filme, que lhe a relação entre mulher e homem.
11 Folheto da apresentação de
Rumi no Museu de Arte Moderna,
empresta um suporte ao
agosto de 2011. som próprio da banda
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Silvina Szperling RITUAL IN TRANSFIGURED TIME: Narcisa
Hirsch. poesia sufi, danças extáticas
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dE videodança E olhar feminino
I say: Eu digo:
I burn like a moth Queimo como uma
in the candle of borboleta na candeia
your face de sua face
Rotações You say: Você diz:
Die Die! 12 Morra Morra!

É neste momento que o homem baila, gira intermi-


navelmente, com o cesto de vime ao redor do corpo,
enquanto a câmera descreve planos horizontais que
o levam (ou nos levam) a novas paisagens: a beira de
O homem deixa então de ser coletor, caçador, exe- um rio, um campo, chamas, montanhas. Sobreposi-
cutor de tarefas necessárias à sobrevivência pri- ções que se somam às das duas tecnologias de proje-
mária e se transforma, surgindo agora com um belo ção, multiplicando assim as leituras quase ao infinito.
corpo nu que desce uma escada em caracol e
observa uma mulher (vestida) recostada em seu
quarto que, por sua vez, o observa.
O homem repete a descida, essa aterrissagem
a partir de um lugar longínquo do inconsciente
ou da divindade, trazendo seu membro viril e a
força de seu olhar. E deixando-se olhar. Transcorrer
A mulher, agora à janela, com vidraças que refle-
tem as plantas de uma natureza que permanece
presente e pujante, tem uma rosa nas mãos. E toca
suas pétalas. E a deflora.
Podemos sentir esse contato táctil, esse des-
folhar da flor que se repete de vez em quando, e
somos atravessados pelas imagens: reflexos vege- Outro tema que Narcisa sempre trata em suas
tais, pupilas que olham para a câmera. As palavras obras é a passagem do tempo — tanto em termos
continuam a desfilar: gerais, em relação à natureza, como em particular,
em termos de enve-
12 Jelaluddin Rumi, op. cit. lhecimento humano —,
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Silvina Szperling RITUAL IN TRANSFIGURED TIME: Narcisa
Hirsch. poesia sufi, danças extáticas
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dE videodança E olhar feminino
o feminino em especial. Assim, em O mito de Narciso 2011, com seu vídeo Este mundo aqui (20 min,
(20 min, 16mm, 8mm e vídeo, Argentina, 2005) Argentina, 2011). Neste vídeo, o transcorrer do tempo
ela trabalha sobre a própria imagem e a possibili- é conduzido pelo próprio movimento, o da câmera,
dade de se reconhecer ou a impossibilidade que percorre de maneira frenética sucessivos
de se conhecer. Para isso, utiliza entrevistas feitas cenários, sem nunca se deter (um prado com pasto,
em determinados momentos com as mesmas a beira do mar). Esse fluir constante do movimento
mulheres, confrontadas com sua própria imagem. remete a um processo de fluir da consciência
É sobre isto que devem falar. bastante habitual em Hirsch, embora com um ritmo
mais acelerado e contemporâneo. Daniela trabalha
Quem sou eu, a que olha ou a que é olhada? Somos com uma forte marca feminina e uma grande
sempre duas, essa é a dialética, e entre as duas clareza conceitual. Sobressai sua obra Resíduo
há um espaço. Por isso me vejo tão estranha como humano (14 min, vídeo, Argentina, 2005), com coreo-
sempre me vi. Essa separação, esse topos, seria grafia e interpretação de Marta Lantermo, na qual
a terra de ninguém, onde poderá surgir a utopia.13 o corpo de uma mulher e a luz definem a imagem
em forma mutante e misteriosa. Aqui o tempo parece
Em Rumi a mulher se modifica, e uma mesma se deter, e nos debruçamos sobre esse corpo-paisa-
personagem é representada por atrizes de diferen- gem em um interior abstrato.14
tes idades. Da mesma maneira podemos dizer Outra possível herdeira (consciente ou não) do
que, embora a obra de Hirsch nos últimos anos legado de Hirsch é Sara Desinano. Artista provenien-
seja admirada e levada em consideração tanto por te da dança contemporânea, mergulhou na produção
homens como por mulheres (La Casa del Bicen- de videodanças com Amarelo (17 min, vídeo, Argen-
tenário, o ciclo da Nave dos Sonhos na Biblioteca tina, 2005), justamente com câmera e edição de
Nacional, o festival BAFICI — Buenos Aires Festival Daniela Muttis. A obra acompanha quatro mulheres
de Cine Independiente), também podemos dizer em um percurso por determinadas paisagens
que seu legado artístico é conduzido com força argentinas, neste caso a província de Buenos Aires,
por mulheres artistas, algumas das quais participan- com seus gigantescos girassóis, seus silos de grãos
tes do movimento de videodança argentino. e suas tranquilas águas de reservatórios. A marca
Em princípio, sua editora e assistente dos últi- do movimento das intérpretes lembra mais a compa-
13 Narcisa Hirsch, em O mito de
mos dez anos, Daniela nhia belga Rosas, dirigida por Anne Teresa De
Narciso. Muttis, compareceu, Keersmaeker, do que as danças extáticas com que
14 Para mais informações sobre
Daniela Muttis, ver <http://daniela
juntamente com ela, ao Hirsch costuma trabalhar, mas o tratamento da ima-
muttis.blogspot.com.ar>. festival VideoDanzaBA gem, seus ritmos lentos e seu amor pela natureza
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Silvina Szperling RITUAL IN TRANSFIGURED TIME: Narcisa
Hirsch. poesia sufi, danças extáticas
44–45
dE videodança E olhar feminino
certamente estabelecem um parentesco entre elas. mente da própria bailarina) que, visto com olhos
Em Antigo, periférico, dança (7min30seg, Argentina, atuais, soa como algo vintage, como recordação de
2008) Desinano trabalha com o grupo de improvisa- vidas passadas, algo parecido com o que acontece
ção Cietecielos, criando uma atmosfera quase ao vermos Study in Choreography for Camera,16 de
lisérgica e com uma noção de acontecimento em Maya Deren, no momento em que o pé do bailarino
que a suspensão é a sensação mais clara. Dentro de Talley Beatty entra no apartamento, vindo do
um galpão abandonado os bailarinos são permanen- bosque. Sabe-se que esse habitat é o dia a dia desse
temente encontrados pela câmera de Sara, passan- corpo, mas não se pode evitar a sensação de que
do a sensação de que jamais tomam consciência de o corpo adentrou outro tempo. Isto é, que o olhar
sua presença, assim como nem a câmera nem a do espectador participa da informação do filme.
edição tomam consciência da presença do público. Graças ao olhar de Narcisa, que alterna as ima-
As imagens não se produzem, mas se encon- gens da dança propriamente dita com a imagem
tram. O movimento não é gerado por alguém, mas do corpo nu de Aída em posição fetal, e graças à edi-
simplesmente está ali para ser (ou não) encontrado. ção de Hirsch com Muttis, que altera os ritmos,
Como se seus 84 anos não significassem carga a ordem sucessiva do movimento, com sobreposição
alguma, Narcisa continua trabalhando e retrabalhando de imagens que apresenta detalhes em momentos
suas imagens, feliz com este presente em contato inesperados, essa dança de Aída se converte em
com a juventude e com a acessibilidade de um dança do olhar, ritual de que participamos pelo sim-
público ávido, que não se aproximou nem se inteirou ples fato de estarmos ali, vendo passar essas imagens
de que algo como o cinema experimental argentino generosas que se deixam atravessar por nossos
existia. Para a retrospectiva de abril de 2002 do sentidos. A empatia cinestésica é total. Ficamos
prestigiado BAFICI (Buenos Aires Festival de Cine unidos com o filme, apesar de nos sabermos outro.
Independiente),15 Hirsch digitalizou e reeditou seu
filme Aída (6min41seg, 8mm e vídeo, Argentina, Criação no espaço, criação na terra de ninguém.
1976– 2012), em que a bailarina Aída Laib mergulha É como no amor: não é fusão, é separação, distân-
numa desenfreada dança que leva um corpo femi- cia, para que o outro exista. (Narcisa Hirsch, em
15 <http://www.bafici.gov.ar/
nino com marcada forma- O mito de Narciso).
home2/web/es/biographies/show/v/ ção de dança moderna
diretor/810.ntml>.
16 Study in Choreography for
em direção a um êxtase Converta-se nessa paixão
Camera (2 min, eua, 1945) é conside- de movimento. O contexto: e todo o peso
rado por muitos acadêmicos o filme
seminal da videodança (ou screen-
a sala de estar de um será
dance) como forma artística. apartamento (provavel- leve.
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Silvina Szperling RITUAL IN TRANSFIGURED TIME: Narcisa
Hirsch. poesia sufi, danças extáticas
46–47
dE videodança E olhar feminino
Em suas obras expõe temas fundamentais como
amor, nascimento e morte, ou interrogações sobre
a condição feminina, recriados em linguagem de ima-
gens particularmente íntimas, com marcada poesia
visual e sonora.
Já realizou mais de trinta filmes em Super-8
e em 16mm, sendo os mais destacados Come out,
A-deus, Ama-zona, Bebés, Mujeres, Homecoming,
Pioneiros, Ana donde estás, La Pasión, Testamento
e vida interior, Rumi, O mito de Narciso, Aleph.
Atualmente prepara um projeto tecnológico na
Informações adicionais Patagônia e um filme documentário.
sobre Rumi e sua autora

Rumi é um filme de Narcisa Hirsch. Créditos com-


pletos: (Câmera) Umberto Navarro, Narcisa Hirsch
/ (Assistência geral) Victória Keledjan / (Roteiro
musical) Cláudio Koremblit / (A mulher) Vanessa
Dee, Paulo Pravaz  e Susana Pravaz, Andrea Hirsch,
Dolores Cardoso, Natacha Pravaz / (O homem):
Julio Galán e Carlos Mallmann, Elías Chesñajovsky,
Carlos Echeverría, Rafael Merino e César Marín,
Avelino Salazar / Agradecimentos a Ricardo Corria
Luna e Cristina González / (Vídeos) Daniela Mutti,
Mariela Gargano / Buenos Aires – Bariloche,
1995–1999.

Nascida em Berlim, em 1928, Narcisa Hirsh é cineas-


ta com grande trajetória em cinema experimental.
Nos anos 1960 e 1970 expandiu sua atividade em
forma de instalações, objetos, performances, grafites
e intervenções urbanas.
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Silvina Szperling RITUAL IN TRANSFIGURED TIME: Narcisa
Hirsch. poesia sufi, danças extáticas
48–49
dE videodança E olhar feminino
Airton Tomazzoni

Um baile mudo: a dança


no cinema pré-sonoro

Doutor em Educação pela ufrgs (Universidade Federal do Rio Grande do


Sul) com a tese Lições de dança no baile da pós-modernidade: corpos (des)
governados na mídia. Mestre em Processos Midiáticos pela Unisinos/rs
com a dissertação No embalo do videoclipe. Diretor do Centro Municipal de
Dança de Porto Alegre. Coordenador do Festival Internacional Dança Ponto
Com. Colunista do site Idança.net (<http://www.idanca.net>).

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dE videodança
O final do século xix nos trouxe a concretização
daquela que se chamaria “a sétima arte”: o cinema.
E com isso, finalmente, a possibilidade de se
capturar a dança em um suporte físico e difundir
de maneira ampla a produção coreográfica. Assim, Dois movimentos silenciosos:
o cinema construiu um novo universo imagético a dança midiatizada na tela
para e com a arte da dança e configurou novas
e fascinantes possibilidades, novas condições
de existência e de expressão no diálogo entre ambas
as artes. Tudo graças a um início um tanto quanto
rudimentar, quando o cinema ainda era mudo,
e a dança acontecia na tela, sem som. Uma condi- Este ensaio parte em duas direções. A primeira,
ção singular para se entender o início de uma no sentido de mapear o registro de dança nos
relação que, até os dias de hoje, estabelece uma primórdios do cinema, transformação determinante
rica e complexa produção. para a popularização da dança além dos palcos
Esse ensaio se propõe a fazer uma análise his- e salões e, consequentemente, para um novo regime
tórica da dança durante o período do cinema mudo, de visibilidade. Afinal, a realidade passava a não de-
rastreando pistas das primeiras produções a pender mais apenas da experiência imediata, valen-
se interessarem e investirem na filmagem de dança, do-se também da experiência mediada, midiatizada.
buscando reconhecer quais danças eram essas e É neste sentido que Muniz Sodré se refere ao
como ganharam visibilidade, bem como mostrar que, fenômeno da midiatização promovida pelo cinema,
ao ganhar visibilidade, a dança transforma também por exemplo, como uma tecnocultura, implicando
o próprio cinema. Desde os primeiros filmes docu- na transformação das formas tradicionais de sociabi-
mentais, de pioneiros como Thomas Edison e os lização a partir de uma “nova tecnologia perceptiva
Irmãos Lumière, às descobertas técnicas e experiên- e mental” (Sodré, 2002, p. 27), que reorganiza as
cias formais de cineastas como D.W. Griffith, Ernst possibilidades de os sujeitos se perceberem, perce-
Lubitsch e Fritz Lang, ou ainda com o vanguardismo berem o mundo e articularem suas relações. O autor
de Fernand Léger, um universo imaginário se postula que a midiatização é uma “tecnologia da
configurou de maneira singular. Portanto, o recorte sociabilidade”, com uma qualificação cultural própria.
escolhido foram os filmes produzidos de 1894 a 1927 — O cinema fez uma verdadeira revolução no modo
quando se dá o marco inicial do cinema sonoro, com de produzir, circular e, consequentemente, se per-
o filme O cantor de Jazz (The jazz singer). ceber a dança e o corpo que dança. O tempo, o
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espaço e o próprio corpo se fragmentam e se re- com o mover-se para a câmera do que em exibir
configuram, em uma complexa mudança de percep- maior domínio técnico. E, então, será a hora e a vez
ção, de apreciação, de validação. Esta ideia está de as danças populares, de salão, folclóricas e de
presente nas proposições de Martín-Barbero, vaudeville aparecerem de maneira privilegiada sob
quando salienta que a transformação promovida a luz dessa nova mídia.
pela mídia O fato é que uma nova cartografia da dança
passa a ser esboçada nas telas, do exótico ao popu-
[…] corresponde não somente a inovações tecnoló- lar, do folclórico ao clássico; um novo imaginário
gicas como a novas formas de sensibilidade que de dança passa a interpelar grandes plateias.
têm, se não a sua origem, ao menos seu correlato Este primeiro movimento pretende, então, revelar
mais decisivo nas novas formas de sociabilidade que imagens de dança eram essas, para assim
com que se enfrenta a heterogeneidade simbólica avaliar o impacto que elas trouxeram no que diz res-
e a inabarcabilidade da cidade. É desde as novas peito a sentidos, valores e significados que passam
maneiras de juntar-se e excluir-se, de desconhecer a ser articulados.
e reconhecer-se, que se adquire relevância social O segundo movimento busca perceber como,
(Martín-Barbero, 2002, p. 217). gradualmente, o cinema avançou para além do
mero registro e difusão de danças e começou a pen-
Um processo que complexificou as relações artís- sar os recursos possíveis da combinação cinema
ticas e culturais, legitimando, autorizando, revelan- e dança, em um profícuo diálogo para as duas artes.
do novas relações para a dança no cenário social. O que a dança podia oferecer ao cinema e o que
Afinal, se em um dado momento o cinema, pelo o cinema podia oferecer à dança? Parece ter sido
simples registro e divulgação de certas danças, pas- essa a indagação de alguns criadores, evidente
sa a torná-las mais conhecidas, por outro lado em suas obras.
também colocava muitas delas sob suspeita. É bom Novas possibilidades passam a ser exploradas,
lembrar que o cinema, no período de seu surgimen- como bailarinas dançando sob diferentes pontos
to, não era tido como arte nem visto com bons de vista, ou assistir apenas a planos fechados, que
olhos pelos “eruditos”. Fruto disso foi, inicialmente, colocavam em evidência parte de seus corpos
ter havido praticamente uma recusa da elite do balé (pés, olhos, quadris, braços, cabeças). Além disso,
a inserir-se nesse circuito. As pequenas cenas que diferentes escalas de corpo convivem na tela, como
há nos primeiros filmes de balés dançados não os filmes nos quais apareciam microbailarinas.
incluem nenhum intérprete de companhias de des- E não apenas o corpo ganha outra possibilidade de
taque, mas bailarinas anônimas, mais preocupadas combinação dançante, mas com os movimentos
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de câmera e a gramática de montagem, o cinema tram-se vários registros de dança. Carmencita,
passa a criar também uma espécie de coreografia de 1894, traz uma dança espanhola estilizada com
paralela, colocando o mundo (com seus objetos e duração de pouco mais de 30 segundos. A dança
imagens) também a dançar. dos indígenas norte-americanos também foi revela-
da em Six Ghosts. Amy Muller, de 1896, apresenta
uma bailarina clássica esforçando-se, sem muito
sucesso, na técnica do balé. Um casal numa jocosa
valsa protagoniza Bowery Waltz, de 1897, e Princess
Ali revela o exotismo das danças orientais. Mas
talvez um de seus mais famosos filmes do período
Os pioneiros e a dança:
seja Butterfly Dance,1 de 1894–1895, que mostra
um cinema documental
um pequeno número de dança com coreografia e
interpretação da bailarina Annabelle Whitford Moore,
com cada fotograma pintado à mão para mudar
as cores de suas saias esvoaçantes.
Thomas Edison tinha conseguido filmar e
reproduzir filmes, mas para apenas uma pessoa por
Essa estreita relação entre dança e cinema se es- vez. Os irmãos Louis e Auguste Lumière, pesquisa-
tabeleceu quase que simultaneamente com o dores franceses, conseguiram projetar imagens
nascimento da sétima arte, ainda no final do século ampliadas em uma tela graças ao cinematógrafo,
xix, em experimentos de Thomas Edison (Estados que era movido à manivela e utilizava negativos
Unidos), dos Irmãos Lumière (França), e dos Irmãos perfurados. Na apresentação pública de 28 de dezem-
Skladanowsky (Alemanha). bro de 1895, no Grand Café, do Boulevard des
Os vários filmes curtos de Edison (dirigidos em Capucines, em Paris, o público viu, pela primeira
sua maioria por William Kennedy Laurie Dickson, vez, filmes com breves testemunhos da vida
seu colaborador) tinham menos de um minuto de cotidiana, como a saída dos operários da fábrica
duração e traziam uma variedade de danças e estilos. Lumière e a chegada de um trem à estação. E a
Eles eram exibidos no cinetoscópio, aparelho que dança não ficou de fora.
ainda não usava a projeção na tela. O aparelho Entre os títulos produzidos pelos Lumière em
consistia em uma caixa de madeira que funcionava que a dança aparece estão Nègres dansant dans la
à base de moedas e permitia a uma pessoa por vez 1 Imagem disponível em <http://
rue, de 1896, performance
assistir aos filmes. Dentro dessa produção encon- thebioscope.net/2008/03/>. de rua na tradição dos
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minstrels 2 americanos, tocando instrumentos e impossível: o movimento capturado e reproduzido.
dançando na Rupert Street, em Londres; Danseuses Uma nova possibilidade perceptiva, e um novo
des rues, de 1896; Danse Japonaise: Gueichas en deleite estético, mesmo que rudimentar. Como a
Jinrikcha, de 1899; Les Danseuses Espagnoles, de antológica exibição L’Arrivée d’un train en gare, dos
1900; e Danseuses Cambodgiennes du roi Norodom, Lumière, quando o trem, chegando à estação,
de 1902. O objetivo desses filmes era registrar fez a plateia abandonar a sala de projeção, acredi-
as danças que apareciam nas ruas das cidades tando que seriam atingidos pela locomotiva que
europeias ou nos seus palcos. Os Lumière também se aproximava. A dança, nesse momento, ganhava
produziram filmes com técnica semelhante à relevo especial por seu efeito de realidade, quase
de Edison, de coloração das películas, como Danse mágico, surpreendente. Um novo regime de
Serpentine,3 de 1896, com a famosa bailarina visibilidade no qual a dança tinha um trunfo maior
americana Loïe Fuller, e Firedance. do que a literatura, a pintura, a música: podia
Os Irmãos Skladanowsky, inventores do Bioscó- revelar o corpo em movimento, em sua delicadeza,
pio (Bioskop) — dispositivo de projeção desenvolvi- seu vigor, sua virtuose, sua sensualidade ou sua
do a partir das lanternas mágicas de dupla lente —, exoticidade. Já era uma transformação e tanto.
realizaram em primeiro de novembro de 1895 A dança passava a ganhar outra significância social.
(quase dois meses antes dos Lumière) a exibição E se engana quem pensa que essas mudanças
de seus filmes, no Berlin Wintergarten. Esta eram exclusividade do primeiro mundo. O site
apresentação não durou mais de 15 minutos e era Mnemocine — Memória e Imagem, por exemplo,
composta por pequenos filmes, mas foi recebida apresenta um rico apanhado de mais de uma cente-
com entusiasmo. Já nesse primeiro ano de produção na de filmes de dança exibidos entre 1986 e 1916
estavam incluídos registros da dança, como Die no Brasil,4 como Dança americana, apresentada em
Serpentintänzerin, na tradição das danças realiza- 1909, no Cinema Odeon, no Rio de Janeiro; e Bebé
2 Espécie de esquete cômico
das por Loïe Fuller, e et la danseuse, apresentado no Iris Theatre,
realizado por negros, ou por as duas meninas que de São Paulo, em 1911. Se o impacto foi grande nos
brancos com o rosto pintado de
se divertem numa dança Estados Unidos e na Europa, podemos facilmente
preto, que se firmou por volta
dos anos 1830 nos Estados Unidos italiana em Italienischer imaginar como se deu no Brasil da virada do
e tornou-se bastante popular no Bauerntanz. século xix para o século xx. A dança, ao ser exi-
século xx.
3 Imagens disponíveis em É um momento de bida pelo cinema, ganha outro status.
<http://wn.com/danse_serpentine_ caráter documental, no
loie_fuller>.
4 Disponível em <http://www.
qual bastava o fascínio
mnemocine.com.br/>. diante de algo até então
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o filme Viagem à Lua (Le voyage dans la lune), de
1902, grande êxito artístico e comercial, que tornou
seu nome mundialmente célebre. Para o filme,
Dança e narrativa ele desenhou os cenários, figurinos e criou os
cinematográfica: efeitos especiais. Inspirado em uma novela de Júlio
uma gênese Verne, a obra narra a história de um grupo de cinco
astrônomos que viajam à Lua em uma cápsula
lançada por um canhão gigante. E não tardou para
ele aplicar sua imaginação à dança, também.
Destaca-se na sua produção Le Cakewalk
Infernal, de 1903. Nele um casal de bailarinos exe-
No mesmo dia da exibição considerada a primeira cuta o cakewalk,5 uma das danças mais populares
sessão pública de cinema em Paris, em 1895, dos Estados Unidos naquele período. De fraque
um dos presentes, George Méliès, teria se dirigido e cartola brancos e bengala, o partner faz evoluções
aos Irmãos Lumière, interessado em comprar o com sua parceira em uma caverna repleta de
invento. O jovem acreditava que ele seria um chamas (que também dançam pelo ar), colocando
grande sucesso, com muitas pessoas pagando para um grupo de coristas e o próprio Lúcifer e seus
se divertir com os filmes. Os Irmãos Lumière riram demônios na dança.6 Em outra produção,
dele e afirmaram que aquilo só despertava inte- La danseuse microscopique,7 de 1902, o criativo
resse pela curiosidade da descoberta, e que se 5 Dança afro-americana, cuja
cineasta coloca em
tratava de um experimento científico sem qualquer origem remonta aos escravos cena uma dançarina em
negros das plantações do sul dos
potencial comercial ou artístico. Os inventores do miniatura, como se
Estados Unidos na qual, segundo
cinematógrafo estavam completamente enganados. alguns historiadores, os participan- pudesse dar vida a uma
Considerado o criador do espetáculo cine- tes que melhor dançavam ganha- daquelas bailarinas
vam um bolo (cake).
matográfico, o francês Georges Méliès foi um dos 6 O filme foi apresentado no de caixinhas de música.
primeiros a experimentar o novo invento com Brasil em duas ocasiões pelo menos: Méliès começava a
em 22 de maio de 1903, no Parque
o intuito da fantasia, transformando as imagens em Fluminense, no Rio de Janeiro; e valer-se de recursos do
movimento em uma forma de expressão artística. em 25 de março de 1905, no Teatro cinema não apenas para
Sant’Ana, em São Paulo.
Méliès utilizou cenários e efeitos especiais em seus 7 Imagem disponível em David registrar a dança como
filmes, até em cinejornais, que reconstituíam Bordwell’s website on cinema. acontecia, mas para criar
<http://www.davidbordwell.net/
eventos importantes com a ajuda de maquetes e blog/wp-content/uploads/danseu-
outras possibilidades
truques óticos. Méliès atingiu seu apogeu com se-300.jpg>. visuais e narrativas.
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Em Barcelona, na Espanha, por sua vez, fôlego, a dança passava a servir para sublinhar
Segundo De Chomón abriu em 1901 um laboratório certos comportamentos, como o de transgressão,
para colorir à mão os filmes lançados pela empresa e delinear certos “tipos”, como a femme fatalle
francesa Pathé Frères. O artista foi um dos pionei- e o latin lover. Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse
ros, que, como Méliès, fez experimentos com truca- (The Four Horsemen of the Apocalypse), de 1921, por
gens óticas como quadro a quadro, fusão, escureci- exemplo, foi decisivo para firmar Rodolfo Valentino
mento e múltipla exposição. Em 1902, já combinava como latin lover, tendo numa cena de tango sua
atores e miniaturas em uma mesma cena. Alguns mais perfeita tradução. Na cena, Julio (Valentino)
historiadores creditam a ele a invenção do traveling e seu avô estão em uma mesa em um cabaré
(movimento de câmera contínuo realizado com da Boca, em Buenos Aires. Eles estão rodeados
a ajuda de trilhos). Mas o fato é que essas inovações de mulheres, bebendo e fumando. Quando um casal
permitiam outras danças possíveis. vai para o centro da pista e começa a dançar
Muitos filmes de Chomón também vão inserir um tango, Julio levanta-se, olha fascinado para a
trechos de dança. É assim em um balé com contor- mulher que dança e se dirige à pista. Ele interrompe
nos orientais no final de El tesoro del rajah, de a dança, logo deixando a bailarina fascinada por
1905,8 e com as animadas coristas em La boite seu arroubo. Quando o homem investe contra Julio,
à cigares, de 1907. Da quase uma centena de filmes ele o lança por sobre as mesas e toma as bailarinas
produzidos por Chomón, outros títulos também em seus braços. O tango que passam a dançar,
apresentam a dança como foco central ou em cenas com certa carga dramática, segue uma estrutura
significativas, como La danse de las mariposas simples. A coreografia é filmada quase toda em plano
e Métempsycose, ambos de 1907, e La danseuse aberto, destacando os deslocamentos do casal.
microscopique, de 1908. Mas, conforme a dança “esquenta”, planos fechados
De cena em cena, os filmes mudos foram sendo revelam a sincronia das pernas, bem como a pro-
povoados por imagens dançantes dos mais varia- ximidade dos rostos e, especialmente, a expressão
dos estilos, inseridas nas mais diversificadas situa- lânguida da bailarina, totalmente entregue aos
ções. Até mesmo em The Great Train Robbery, de comandos de Julio. A coreografia é finalizada com
Edwin Porter, de 1903, um dos precursores dos filmes um intenso beijo do casal. E a febre do tango, que
de western, há uma sequência de dança bastante já conquistara Paris, agora se populariza nas telas
inusitada, promovida por um homem que tenta esca- americanas sob o signo de Valentino.
par dos tiros que são dados na direção de seus pés. As mulheres fascinantes e perigosas também
8 Disponível em <http://www.you
Conforme a indústria tinham na dança uma arma estratégica. Asta Nielsen,
tube.com/watch?v=-zn9oQjee4c>. cinematográfica ganhava nas obras do dinamarquês Urban Gad, foi uma das
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pioneiras a investir no potencial de sedução da criação de uma gramática cinematográfica, de
dança na “grande tela”, de grande carga erótica modo que o cinema não ficasse relegado a filmar
para a época. Isso sem falar nas versões da seduto- uma história que se passasse em frente às câme-
ra dança dos véus em Salomé, de 1918, com Theda ras, de maneira fixa, em apenas um plano fixo.
Bara, e Salomé,9 de 1923, com Alla Nazimova. Ele se valeu de close-ups, da montagem paralela, dos
Em meio ao ideário de sensualidade associado movimentos de câmera, da inserção de detalhes,
à dança, também se delineava a figura das bailari- estabelecendo o que se poderia chamar de uma
nas inocentes, puras, quase etéreas, como as dramaticidade às imagens, ou, melhor ainda, quem
heroínas do balé romântico. Uma das raras estrelas sabe, de uma coreografia das imagens. Recursos
da dança clássica que atuou no cinema neste que passaram a imprimir outros contornos aos
período foi Anna Pavlova, bailarina dos Ballets bailarinos que dançavam, à narrativa à qual a dança
Russes, de Sergei Diaghilev. Mas não seria com seu passava a estar conectada, e mais adiante até
balé virtuoso que ela chegaria às telas. Em The mesmo ao abstracionismo. Ainda que o cineasta
Dumb Girl of Portici, de 1915, ela aparece dançando não tenha utilizado toda essa potência na dança em
em uma praia com um pandeiro na mão, em uma seus filmes, ele filmou uma cena que evidenciava
coreografia festiva, mostrando mais força expressi- essas potencialidades.
va do que técnica clássica. No filme ela interpreta Em Intolerância, a dança tem uma curta, mas
Fennella, uma jovem camponesa muda. suntuosa participação na cena da dança sagrada
Em 1922, a bailarina Ruth Page e o coreógrafo em memória da ressurreição de Tammuz, no segmen-
e bailarino Adolph Bolm, que foi estrela dos Ballets to Babylonian Story. Em um grandioso cenário,
Russes, aparecem em um filme curto intitulado e com dezenas de bailarinas, a cena recupera
Danse Macabre, dirigido por Dudley Murphy. Na vocabulários de danças orientais para traduzir uma
trama, a morte ronda o casal que dramaticamente dança de caráter ritualístico ancestral.
dança e tenta escapar de uma fatalidade. Para o início da cena que revela o palácio monu-
Esse novo momento da dança no cinema abre mental, na qual dezenas de bailarinas estão coloca-
espaço também para pioneiros da dança moderna. das nos degraus da escadaria, Griffith vale-se de
Ruth St. Denis e Ted Shawn, dois ícones da dan- uma inovação: um movimento de câmera que fazia
ça moderna dos Estados Unidos, foram convocados um plano geral superior e lentamente se aproxima,
a participar com sua companhia de Intolerância até revelar as bailarinas com os braços em posições
(Intolerance), de David W. angulares como nas danças egípcias.
9 Imagens disponíveis em <http://
free-classic-movies.com/movies-02
Griffith, filmado em 1916. A próxima sequência fecha o plano, dando
/02-1923-02-15-Salome/index.php>. Ao cineasta é tributada a destaque ao casal que dança em meio ao grupo,
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e afasta-se para revelar as demais bailarinas ao
redor. A câmera se move enquanto filma os corpos
que dançam. Como destacou a pesquisadora Claudia
Rosiny: “Essa colaboração entre câmera e coreogra-
fia era absolutamente nova e resultou em uma Por uma nova condição
intensa experiência de movimento para quem a vê.” 10 para a dança no cinema
Mesmo quando de caráter documental, a dança
passava a ter uma estrutura narrativa mais ela-
borada. Um desses exemplos é o filme The Whirl of
Life (1915), uma biografia do casal de bailarinos
de dança de salão Vernon e Irene Castle, dirigido por
Oliver D. Bailey. Não eram mais apenas as coreo- O cinema mudo, contudo, não tardou a perceber a
grafias a serem mostradas, mas narrativas que potencialidade da dança e passou a utilizá-la de
passavam a ser construídas contando com a dança maneira singular. Artistas europeus, especialmente
como elemento discursivo. os cineastas alemães Ernst Lubitsch e Fritz Lang
A dança nessa, assim digamos, segunda etapa e o pintor francês Fernand Léger, produziram obras
começa a descobrir as possibilidades de aplica- nas quais a dança tem lugar privilegiado, refletindo
ção que pode ganhar com o cinema. Possibilidades e inovando, descobrindo e afirmando um novo
técnicas, mas também ideológicas, ajudando a horizonte para se pensar e fazer dança no cinema,
delinear sentidos sociais, seja na dança viril de tanto no circuito da arte de vanguarda quanto
Valentino, no Le Cakewalk Infernal de Méliès, nas no comercial.
sedutoras figuras femininas, nas lânguidas bailari- A princesa das ostras (Die Austernprinzessin),
nas envolvidas por uma aura de inocência ou de 1919, é uma comédia social alemã no melhor
mesmo na vinculação a um ritual pagão em Griffith. estilo de Lubitsch. A história faz uma crítica mordaz
Isso já demonstrava que a dança no cinema não se ao sistema capitalista americano, a partir do retrato
restringia à documentação e que passava a ter do milionário empresário Quaker (Victor Janson),
papel inegável na configuração dos sentidos pro- magnata que ficou rico vendendo ostras, envolvido
duzidos durante o século xx, com os filmes ficando, no esforço por casar muito bem sua jovem filha
10 Disponível em <http://
gradualmente, mais (Ossi Oswalda).
www.dancefilms.org/dance-on- complexos em termos A dança aparece para ajudar a traduzir a ideolo-
-camera-journal-archives/
dance-on-camera-journal-jan-
narrativos e visuais. gia do cineasta. Os letreiros anunciam: “A foxtrot
-feb-2009-2/>. epidemic suddenly breaks out during the wedding.”
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Durante a festa de casamento, dezenas de pares na sociedade da época acabam (ou podem acabar)
dançam um foxtrot contagiante de maneira aluci- dançando a mesma dança.
nada. Lubitsch constrói excepcionais planos gerais Ballet Mécanique (1924), de Fernand Léger, não
do conjunto de bailarinos sincronizados, em uma se enquadra na produção comercial, mas inaugura
cena potente, embriagante, e já se valendo de uma nova perspectiva e influenciará inúmeros
recursos audaciosos para a época, como quando, cineastas ao longo do século xx. Nele, temos uma
em certo momento, a tela é dividida em três partes, coletânea de cenas. Uma mulher em um balanço
cada uma com diferentes pontos de vista, com movimenta a cabeça, girando-a lentamente. Esferas
detalhes apenas dos pés dos bailarinos marcando balançam. Engrenagens trabalham. Números
o ritmo.11 surgem e desaparecem. Formas se fundem, giram.
O humor e a ironia do diretor transparecem Um homem desce por um escorregador. Carros
até quando o maestro que rege a orquestra requebra passam pela rua, mas filmados de um plano baixo,
os quadris animadamente. Ou ainda quando a como se passassem por cima da câmera. Legendas
noiva, que começa a se empolgar com a dança, logo aparecem de trás para frente.
é repreendida por mover-se de maneira tão desenfrea- Os experimentos que Méliès e Chomón já vinham
da, ato que envergonha sua linhagem familiar. utilizando, como fusão, escurecimento e múltipla
Para completar, o foxtrot que começa no salão de exposição, servem aqui para criar um bailado que
baile gradualmente se estende também para a cozi- mistura pessoas, animais e objetos em insuspeitá-
nha, onde bailam, ao redor dos fogões, cozinheiras, veis movimentações e combinações. E em uma
copeiras e inclusive garçons carregando bandejas. dança que pode ser sutil e fragmentada. Como em
A cena tem duração de pouco mais de três um sorriso que se abre e se fecha, ou em um olho
minutos, mas consegue fazer o registro de uma feminino que pisca. Além disso, cenas se repetem
dança que virava febre nos salões de baile america- ou retornam com variações, como a mulher no
nos no início do século xx, o foxtrot (popularizado balanço que volta a aparecer, mas com o quadro
pelo ator de vaudeville Harry Fox). Ao mesmo invertido, mostrando-a de cabeça para baixo. Ou a
tempo, a cena serve para pontuar o filme com sua mulher que sobe uma escadaria com um pesado
crítica social. A dança não aparece apenas para saco nas costas, que repetida várias vezes parece
ilustrar um estilo coreográfico em voga, mas para impedir a conclusão dessa ação, mecanizando-a.
denunciar a diferenciação de classes ou uma Como resultado tem-se um mosaico quase
possível forma igualitária onírico de imagens caleidoscópicas em movimento,
11 Imagem disponível em <http://
deeperintomovies.net/journal/
de existência, pelo menos nas quais cenas prosaicas e objetos cotidianos,
archives/6520>. dançante. Afinal, todos banais, ganham ritmo. Tudo isso subvertendo a
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narrativa tradicional (não se tem uma comédia ro- “rapsódia futurista”. A cena já seria surpreendente
mântica, um thriller de suspense nem um documen- pelas centenas de bailarinos e bailarinas reunidos
tário), recusando a estruturar uma narrativa. As cenas no salão, dançando convulsivamente, com sutilezas
se sucedem de maneira autônoma. Um delicioso de sombras e luzes. Canhões de luzes também
e inteligente tratado daquilo que poderia haver de bailam pelo salão em um jogo raro de exploração
comum entre o movimento e a dinâmica das formas, dos claros e escuros que o cinema preto e branco
só possível com os recursos que o cinema e a proporciona. A orquestra que toca ao vivo está dispos-
dança vinham a oferecer. ta entre dois pares de pernas femininas cenográfi-
Mas as produções de Hollywood também revelam cas gigantescas. Esses elementos já são suficientes
um aproveitamento inovador da dança nas telas. para o fascínio da cena.
Paris é assim (So this is Paris), de 1926, é uma comé- Mas Lubitsch vai além. Não apenas nos planos
dia de Lubitsch produzida nos Estados Unidos. detalhes, como o da moça que baila sobre uma
Foi adaptada do original francês Réveillon, de Henri das mesas, mas também o dos joelhos que se aproxi-
Leilhac e Ludovic Halévy. O enredo tem início mam e se afastam, ou ainda da bailarina que,
quando Suzanne Giraud (Patsy Ruth Miller) se ao final, exausta, está prostrada em uma poltrona,
escandaliza ao ver pela janela um homem vestido mas seus pés parecem não querer interromper
de xeique, aparentemente despido, e envia o o ritmo da dança. Há ainda o uso de sobreposições
marido, Dr. Paul Giraud (Monte Blue), para tomar de planos distintos e de um mesmo plano que se
satisfações. Paul descobre que se trata de um casal duplica, multiplicando os corpos que se movem
de atores, Maurice (André Béranger) e Georgette no embalo do charleston. Cenas que, por vezes, além
(Lilyan Tashman), ensaiando uma cena de As mil de aparecerem multiplicadas também dançam,
e uma noites. Por ironia, a atriz é sua antiga amante, girando sobre si mesmas, criando uma coreografia
e passa a cortejá-la. Uma série de equívocos acaba das próprias imagens que dançam. O resultado
por dar o tom bem-humorado do filme. Com este é uma sequência frenética, embriagante, que só
enredo, o diretor Ernst Lubitsch construiu uma um mestre da sétima arte poderia produzir.
inspirada encenação de um vaudeville à francesa. Da mesma forma, no limiar da era dos filmes
Para o clímax, Lubitsch providenciou uma mudos, surpreende a dança que aparece em Metró-
sequência de baile considerada por alguns críticos polis, de 1927, de Fritz Lang. Na cena, a androide
como legítimos “arranjos caleidoscópicos cubistas”.12 Maria sai de dentro de uma espécie de enorme
Na cena do concurso caldeirão, sustentado por homens negros. Ao abrir
12 Imagens disponíveis em <http:
//sixmartinis.blogspot.com.br/2008
de charleston, o diretor a parte superior, em meio a uma nuvem de vapor,
/07/charleston-paris.html>. cria praticamente uma ela surge envolta por uma capa transparente, que
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Airton Tomazzoni Um baile mudo: a dança no cinema
pré-sonoro
70–71
dE videodança
logo retira, tendo apenas os seios cobertos, as mais detalhado para o período do cinema pré-
costas de fora e a saia, que não escondia as pernas.13 -sonoro, para poder avançar no entendimento da
Ele começa então uma dança capaz de multiplicar relação entre dança e imagem, num momento em
e embriagar os olhares dos espectadores-persona- que técnica, linguagem e gramáticas começavam
gens e assim desorientá-los. Ela gira, ajoelha-se a ser esboçadas, e sob uma condição singular: a do
no chão, circulando o tronco, dando pequenos som, que vinha em último plano, pois antes a
saltos, ondulando os braços nus. Com uma monta- preocupação era com o corpo, com o movimento e
gem que alterna a dança e a reação da plateia com a imagem. E, desta forma, compreender um
masculina, que arregala os olhos e fica literalmente pouco mais as implicações dessas possibilidades,
boquiaberta, Lang consegue um dos magníficos não apenas restritas às inovações técnicas, mas às
efeitos que o expressionismo alemão vinha explo- suas transformações no modo de nos relacionar-
rando. Rostos perturbados que se agrupam, mos com o mundo que dança, que ainda hoje se
se fundem, se embaralham. Até termos apenas configuram no cenário cultural contemporâneo, seja
detalhes de muitos olhos, que parecem também nos filmes, nos videoclipes, no vasto material que
dançar, girando, como se acompanhassem a se encontra disponível na internet.
dança cineticamente. Dos musicais de Busby Berkeley, na década de
1930, ao cinema experimental da década de 1960,
os filmes mudos deixaram um determinante legado
para a produção de dança no cinema, revelando
o intenso e profícuo diálogo entre as duas artes.
Trafegando entre ciência e arte, tradição e vanguar-
da, democracia e controle, um novo regime de
The End? visibilidade começava a nascer.

Dodds, Sherril. Dance on Screen: Martín-Barbero, Jesús. Oficio


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dança em foco
Ensaios contemporâneos
Airton Tomazzoni Um baile mudo: a dança no cinema
pré-sonoro
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dE videodança
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de Pós-Graduação em Educação.
Porto Alegre, 2009.

Doutor em Poéticas Interdisciplinares no Programa de Pós-Graduação


em Artes Visuais da  UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro ).
Professor dos cursos de Licenciatura e Bacharelado em Dança do ICA/UFC
(Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará ). Possui
mestrado em Comunicação e Semiótica pela PUC–SP (Pontifícia Universi-
dade Católica de São Paulo) e graduação em Arquitetura e Urbanismo
pela UGF (Universidade Gama Filho). Foi coordenador nacional de Dança
da Funarte (Fundação Nacional de Artes ). É um dos diretores fundadores
do dança em foco — Festival Internacional de Vídeo & Dança. Foi diretor
fundador dos festivais Dança Brasil e Dança Criança. Possui livros e textos
publicados sobre dança, história da dança e videodança.

dança em foco
Ensaios contemporâneos
Airton Tomazzoni
74–75
dE videodança
Nas últimas décadas, houve um aumento significa- (1919–2009).5 Uma cena já esboçada desde os anos
tivo nas produções criadas a partir da convergência 1940, quando foram realizados os experimentos
entre dança e audiovisual, mais conhecida pelas seminais de Maya Deren (1917–1961).6
rubricas videodança e cinedança.1 Os primeiros No Brasil, os primeiros textos que problematizam
trabalhos começaram a surgir na década de 1970, em o tema começaram a ser publicados a partir do final
especial nos Estados Unidos, onde foi desenvolvida da década de 1990; e no que se refere à formação
uma intensa produção.2 Em meio a essa efer- de artistas neste campo, são recentes os primeiros
vescência, foi criado em 1972 o Dance on Camera cursos de dança que incluem disciplinas específicas
Festival,3 uma tentativa de lidar com a difusão da área. Trata-se de uma cena que emerge da
daquela produção que emergia no contexto artístico aproximação de artistas do audiovisual e da dança
1 Neste texto, ambos os termos
norte-americano. Em que, juntos, encontram no vídeo um manancial
serão adotados — videodança e 1975, foi publicado pelo repleto de novos recursos para realizar suas ideias.
cinedança —, de acordo com as
circunstâncias.
jornal nova-iorquino Uma demanda que vem redimensionando de modo
2 Segundo Douglas Rosenberg, Dance Scope um impor- intenso o contexto da produção e circulação de
houve uma enxurrada de atividades
de videodança nos Estados Unidos
tante texto de referência, obras, mas que infelizmente não está sendo acom-
no final dos anos 1970, que con- Videodance, de autoria panhada pela produção teórica.
taram com fontes de financiamento
tais como o National Endowment
de Jeffrey Bush e Peter Z. Este texto procura identificar algumas das
for the Arts, agências estatais, Grossman, que já aborda- transformações mais importantes que contribuíram
entre outras (Rosenberg, 2000,
p. 275).
va diversas questões para a construção da cena da videodança, desde
3 Primeiro festival norte-ameri- importantes, presentes até seus antecedentes cinematográficos: começando
cano dedicado à dança na tela.
Disponível em <http://www.dance
hoje nas pesquisas sobre pelas pesquisas de movimento realizadas no
films.org/festival/>. Acesso em o tema. Foi nesse mesmo pré-cinema e pelas primeiras experimentações
12.mar.2012.
4 “Uma experiência seminal para
período que a cena de do cinema, passando pelos grandes musicais
a dança contemporânea aconteceu videodança começou a se hollywoodianos e pelas vanguardas cinematográfi-
com o Judson Dance Theater, no
início da década de 1960, um coleti-
estabelecer, influenciada 5 Foi um dos pioneiros da video-
cas, até o surgimento
vo de coreógrafos livremente organiza- por obras de artistas dança. Desenvolveu diversas experi- da videodança no Brasil.
do, que acolhia também artistas mentações de dança com vídeo.
de outras linguagens. Instalados no
pós-modernos oriundos 6 Na década de 1940, a bailarina
Entenda-se cena como
salão da Judson Memorial Church, do movimento da Judson e cineasta ucraniana Maya Deren um conjunto de aspectos
os artistas se dedicaram a experi- se destacou ao dirigir filmes em
mentações unindo a dança a outras
Dance Theater 4 e por 16mm como A Study in Choreography
relacionados às lingua-
linguagens. Dentre eles estavam coreógrafos consagrados, for Camera (1945), no qual deu gens, às técnicas e
Yvonne Rainer, Trisha Brown, Steve ênfase aos elementos fundamen-
Paxton, Deborah Hay e Lucinda
como o norte-americano tais e comuns ao cinema e à dança:
às estéticas de criação.
Childs.” (Bardawil 2011, s/p). Merce Cunningham movimento, espaço e tempo. O objetivo é entender a
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Leonel Brum Videodança: Uma Arte do Devir
76–77
dE videodança
organização do contexto da videodança a partir de uma maneira que revolucionou nossa capacidade
de um olhar sobre as invenções, procedimentos, de compreender o movimento em si. Em resumo,
transgressões e derivas que atravessaram a história cada um, a seu modo, antecipou a invenção do cine-
das aproximações e distanciamentos entre dança, ma e suas relações com o movimento.
cinema e vídeo. Também não foi mera coincidência quando,
em 1888, Muybridge teve um encontro com Thomas
Edison (1847–1931) para apresentar uma proposta
de colaboração entre seus estudos do movimento e
as invenções de Edison para gravação de som. Infeliz-
mente, a tecnologia não chegou a ser aperfeiçoada
e a colaboração nunca ocorreu.
“… de um rastro de luz
Menos coincidência ainda foi quando, a partir
nasceu o cinema” 7
de 1894, Edison se aproximou das artes do movimen-
to para fazer registros de dança em seu estúdio
7 Spanghero, 2003, p. 30.
Black Maria, um pequeno
8 “O belga Frédéric Flamand barracão localizado em
trabalhou diretamente com
o tema das imagens na dança nos
Nova Jersey, Estados
espetáculos EJM1 e EJM2, monta- Unidos (Rosenberg, 2000,
dos na Ópera de Lyon, durante
Não foi por acaso que o fisiologista Étienne-Jules a Bienal de Dança de 1998, na
p. 280). Mais conhecidos
Marey (1830–1904) e o fotógrafo Eadweard James França. O primeiro foi inspirado no como Serpentine Dances,9
trabalho de Muybridge, e o segundo,
Muybridge (1830–1904) iniciaram quase que simul- nos estudos de Marey. Em cena,
estes filmes curtos, alguns
taneamente suas pesquisas sobre o movimento. imagens eram projetadas em deles coloridos direta-
molduras de forma a parecer refle-
O primeiro, de origem francesa, e o segundo, inglês xos dos bailarinos em espelhos.”
mente sobre a película,
radicado nos Estados Unidos, compartilharam (Oliveira, 2001, p. 63). mostravam a bailarina
9 Disponível em <http://www.
o mesmo período de vida e as mesmas iniciais.8 youtube.com/watch?v=sNXNfcEo
Annabelle Whitford Moore
Marey produziu a cronofotografia, uma sucessão de 5dQ>. Acesso em 18.mar.2012. (1878–1961), assim como
10 Notabilizada no Folies Bergère,
imagens em uma única placa. Muybridge criou uma em Paris, como a “bailarina
outras imitadoras da
bateria de câmeras que reproduziam imagens elétrica” ou “La Loïe”, Fuller, época, reproduzindo coreo-
envolvida em longos trajes, cujos
sucessivas de cavalos ou figuras humanas em movi- braços cobertos escondiam
grafias inspiradas na
mento. De acordo com Rosenberg (2000), Muybridge extensões em bambu, inventou Serpentine Dance, de
um modo especial de dançar que
criou uma espécie de desdobramento do movimento criava uma profusão de imagens
Loïe Fuller (1862–1928).10
cinematográfico de indivíduos humanos e animais em movimento. Segundo a pesquisadora
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Leonel Brum Videodança: Uma Arte do Devir
78–79
dE videodança
Virginia Brooks (2006), Edison filmou outras artis- Os movimentos de câmera em filmes com dança
tas renomadas, como Ruth St. Denis (1879–1968),11 começaram a ser introduzidos somente no início
que dançava uma “dança da saia” composta de gran- do século XX com a aproximação da dança moderna
des saltos ao ar livre; e a não tão famosa dançarina em filmes como Intolerance (1916),13 de D.W. Griffith
de vaudeville, Catherina Bartho (1870–1943), dançan- (1875–1948),14 coreografado por Ruth St. Denis.
do, em Princesa Rajah (1904),12 uma espécie de dança No filme, o diretor utilizou uma técnica inédita para
do ventre segurando uma cadeira entre os dentes. movimentar a câmera através de um elevador
Esses registros de movimento se estabeleceram que deslizava sobre trilhos, seja em deslocamento
a partir de uma lógica de câmera fixa que procurava vertical ou horizontal. Virginia Brooks (2006) enfa-
enquadrar todo o corpo das bailarinas, dos pés tiza que este procedimento alterou a qualidade
11 Uma das pioneiras da dança
à cabeça, pois eram elas, estética e o impacto cinético do corpo em movimen-
moderna, baseou-se nas danças as bailarinas, que se to na tela, influenciando realizações cinematográ-
rituais do Oriente para a liberação
da dança dos moldes clássicos.
movimentavam, não a câ- ficas posteriores.
Fundou em 1915 a Denishawn School mera. O pesquisador João Apesar de seu trabalho incansável, Edison não
of Dance, juntamente com o então
marido Ted Shawn (1891–1972).
Luiz Vieira (2007, p. 53) foi o único a investigar as possibilidades de captar
12 Disponível em <http://www. acrescenta que “a filma- e reproduzir o movimento. A pesquisadora Antonieta
youtube.com/watch?v=RcOvl0
h5Za8>. Acesso em 22.mar.2012.
gem começava e termi- Acosta (2011) observa, em sua dissertação de
13 Disponível em <http://www. nava em um único plano, mestrado, que Émile Cohl (1857–1938), Georges
youtube.com/watch?v=AV67tf4
JYRI>. Acesso em 20.mar.2012.
em uma única extensão Méliès (1861–1938) e os irmãos Lumière15 tam-
14 Um dos fundadores do cinema de imagem contínua que bém foram responsáveis pela invenção de diversos
narrativo clássico norte-americano,
realizou mais de 400 obras entre
não conhecia ainda a dispositivos importantes que deram origem à cinema-
curtas e longas-metragens, desta- edição com outras ima- tografia. No mesmo período, na Alemanha, os
cando-se Birth of a Nation (1914/1915)
e Intolerance (1915/1916).
gens combinadas”. Moore, irmãos Skladanowsky16 exibiam Sicilian Peasant
15 Auguste Marie Louis Nicholas no entanto, aparentava ter Dance, que marcou o pioneirismo do cinema alemão.
Lumière (1862–1954) e Louis
Jean Lumière (1864–1948) foram
consciência da lente ci- Vale ressaltar que as primeiras aproximações entre
responsáveis pela primeira sessão nematográfica e, ao dançar o cinema e a dança não foram fáceis. Por teme-
de cinema, ocorrida em 28 de
dezembro de 1895, no Grand Café,
para o olhar imóvel da rem perder a autenticidade de sua arte, os bailarinos
do Boulevard des Capucines, câmera, talvez já soubes- da dança clássica inicialmente se mostraram
em Paris.
16 Max Skladanowsky (1863–1939)
se que estava dançando resistentes às filmagens, permitindo somente
e Emil Skladanowsky (1866–1945). para milhares de outros alguns poucos registros — A Morte do Cisne (1925),17
17 Disponível em <http://www.
youtube.com/watch?V=qmebfhvmz
olhos, inscritos naquela com a renomada Anna Pavlova (1881–1931), foi um
pu>. Acesso em 18.mar.2012. lente que a registrava. deles. Os diretores recorreram então aos artistas
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Leonel Brum Videodança: Uma Arte do Devir
80–81
dE videodança
populares: “Nos primeiros filmes, as dançarinas conhecimento, mas a possibilidade de realizar
eram amadoras, ou ainda crianças se exibindo com nelas alguma espécie de regressão, de reconciliar-se
graça, logo substituídas por profissionais de vaude- com os fantasmas interiores e de colocar em
ville, cabarés ou teatro musical.” (Nunes, 2009, p. 52). operação a máquina do imaginário. Perspectivas,
Contudo, outros diretores, assim como Edison, nem é preciso dizer, inteiramente descabidas
tiveram o privilégio de encontrar na dança moderna dentro dos propósitos de homens de ciência como
— que despontava no mesmo período — uma Marey e seus colegas (Machado, 1997, p. 19).
coincidência de projetos comuns voltados para o
estudo do movimento e para a investigação de A localização dos espectadores, assim como o hábito
novas tecnologias possíveis a partir da utilização da de utilizar a câmera fixa, reproduzia uma dramatur-
eletricidade. As experimentações de Loïe Fuller para gia confusa de uma espécie de teatro-filmado.
criação dos efeitos de iluminação sobre as suas Os cineastas soviéticos, por exemplo, se preocupa-
vestimentas, por exemplo, foram fundamentais para vam com este fato. Vsevolod Pudovkin (1893–1953)
o emprego mais artístico da luz elétrica nos palcos. afirmou que “no período inicial do cinema os filmes,
A natureza da plateia e a sua localização diante em sua grande maioria, eram considerados sim-
da tela consistiram outro fator importante para ples repetições fotográficas de peças teatrais,
o estudo da cena. De acordo com Ana Paula Nunes e as cenas não duravam mais que cinco minutos”.
(2009, p. 29), a origem do cinema esteve relacionada (Pudovkin apud Acosta, 2011, p. 19). Sergei Eisenstein
às classes populares, principalmente aos espaços (1898–1948) enfrentava um problema semelhante
de entretenimento de trabalhadores imigrantes, no teatro do início dos anos 1920, quando se viu envol-
tais como as feiras de variedades, vaudevilles, circos vido em uma guerra entre uma instituição teatral de
e parques de diversão. As primeiras salas de exibição Moscou, bastião do naturalismo no teatro, e os
receberam nomes exóticos18 e eram dirigidas por movimentos teatrais de vanguarda dos quais partici-
toda a sorte de “artistas”, como “mágicos, videntes, pava: “O Teatro de Arte de Moscou é meu inimigo
18 As primeiras salas de cinema
místicos e charlatães”. mortal”, disse, em razão de sua preocupação
eram conhecidas como Phantasma- Nas palavras do pesqui- com a réplica fiel da realidade (Andrew, 2002, p. 48).
goria, Lampascope, Panorama,
Betamiorama, Cyclorama, Cosmora-
sador Arlindo Machado, Este fato também repercutiu nos filmes de dança —
ma, Giorama, Pleorama, Kineo- as primeiras filmagens foram realizadas seguindo
rama, Kalorama, Poccilorama,
Neorama, Eidophusikon, Nausora-
[…] certamente, o que a mesma lógica espacial do palco.
ma, Physiorama, Typorama, Udora- atraía essas massas Edison, os irmãos Lumière e os Skladanowsky
ma, Uranorama, Octorama, Diapha-
norama e a Diorama, de Louis
às salas escuras não era seguiram criando suas obras durante o período do
Lumière (Machado, 1997, p. 19). qualquer promessa de cinema pré-sonoro. A dança, aos poucos, foi
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Leonel Brum Videodança: Uma Arte do Devir
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dE videodança
perdendo o seu protagonismo, muitas vezes Fernand Léger (1881–1955), ambos de 1924, repre-
servindo como interlúdio ou pano de fundo para a sentam, segundo a pesquisadora Claudia Rosiny,
cinematografia que ainda estava sendo esboçada. “realizações do cinema abstrato que tangenciam a
O surgimento do filme sonoro19 permitiu sincro- dança”. Entr’acte, originalmente utilizado como
nizar dança com música, porém restringiu a mobili- interlúdio para o balé dadaísta Relâche, de Francis
dade da câmera nas primeiras produções. Quando Picabia, é considerado também como um exemplo
as sequências de dança eram tomadas, a câmera de “cinema expandido”, uma tentativa de rom-
voltava para a perspectiva estática dos filmes per os limites da tela do cinema (Rosiny, 2007).
mudos. Apesar de contar com um dos componentes Na obra, assiste-se
fundamentais para as composições coreográficas
daquela época — o som —, a dança continuava em […] em meio a uma profusão de imagens que
segundo plano. Na prática, perpetuavam o formato propõem uma lógica que escapa ao modelo narrati-
das produções do cinema pré-sonoro, produzindo vo que se tornaria hegemônico, uma imagem
filmes com ou sobre e não de dança. Um dos primei- recorrente: em câmera lenta, uma bailarina —
ros registros sonorizados com dança foi o Air for sapatilha e tutu romântico — gira e salta sobre uma
G string, de Doris Humprey (1895–1958), gravado superfície transparente através da qual é filmada
nos Estados Unidos, em 1934. em contra-plongé. Seu enquadramento e sua lenti-
Caracterizada pelo rompimento da estrutura dão já nos informavam naquele momento, bela
clássica narrativa, a primeira vanguarda cinemato- e sinteticamente, sobre os novos espaços e tempos
gráfica, imersa no contexto modernista das décadas que a dança passou a experimentar em sua asso-
de 1910 e 1920, se caracterizou por tentar cons- ciação com o cinema (Caldas, 2009, p. 29).
tituir uma cena distinta no processo de composição
coreográfica para tela. As realizações vanguardistas Ballet Mécanique, de Dudley Murphy (1897–1968),
pretendiam revelar os dispositivos da construção constitui uma radical experimentação cubista, um
19 The Jazz Singer (1927),
cinematográfica, provo- filme de 13 minutos composto pela alternância
dirigido por Alan Crosland (1894– cando um distanciamento rítmica de imagens contrastantes em que convivem,
1936), foi um dos primeiros
filmes sonoros produzidos nos
crítico do espectador. muitas vezes em sobreposição, objetos, animais
Estados Unidos. Dentre os filmes deste pe- e pessoas em uma dança frenética constituída
20 Disponível em <http://www.
youtube.com/watch?v=UnXdYxvB
ríodo, os curta-metragens pela própria edição da obra. Ainda no mesmo ano,
Hf8>. Acesso em 10.mar.2012. franceses Entr’acte,20 outra criação que deve ser destacada, sobretudo
21 Disponível em <http://www.
youtube.com/watch?v=H_bbo-
de René Clair (1898–1981), por sua importância coreográfica, é Le Train Bleu,
H9p1Ys>. Acesso em 10.mar.2012. e Ballet Mécanique,21 de criação de Bronislava Nijinska (1891–1972),
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Leonel Brum Videodança: Uma Arte do Devir
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concebida para os Ballets Russes de Diaghilev.22 Deste modo, o coreógrafo mantinha, em longos
Nela, “os bailarinos moviam-se em câmera lenta, planos-sequência, praticamente sem a utilização
mostrando assim uma sofisticada compreensão de efeitos especiais, a integridade daquilo que
do uso fílmico do tempo” (Rosiny, 2007, p. 19). ele considerava como a dança “original”.24 Em seus
As radicais experimentações da vanguarda filmes, assim como na maioria dos musicais holly-
cinematográfica do início do século XX não afetaram woodianos, é curioso observar também como
a situação da localização dos espectadores, se dava o procedimento de “edição de dramaturgia”
tampouco as relações de enquadramento total dos antes do início e após o fim de cada coreografia.
corpos dançantes empregadas incessantemente João Luiz Vieira observa que
ao longo da chamada “Era de Ouro” de Hollywood,
um período caracterizado, sobretudo, pela pro- […] como a dança é uma força de expansão que se
dução massiva dos grandes musicais, muitos deles anuncia antes de acontecer e que permanece depois
coreografados pelo bailarino e coreógrafo Fred de seu eclipse, uma pergunta que nos auxilia na análise
Astaire (1899–1987).23 Seu biógrafo, Bill Adler, fílmica da dança no cinema diz respeito à forma
assegura que o coreógrafo sempre interferia nas em que o filme constrói a imanência da dança, ou
22 O diretor Sergei Diaghilev
filmagens das coreogra- seja, quais são os “pré-movimentos” que deslancham,
(1872–1929) fundou a companhia fias em que dançava. acendem o impulso para a dança. Observar a transfi-
com o seu nome, em 1909, que Para Astaire, nada pode- guração do movimento como um dos sintomas da
existiu até 1929, ano da sua morte.
23 “Grande referência do cinema ria interromper o fluxo da dança — observar o gesto intensificado, em especial
musical, o coreógrafo, dançarino ação, caso contrário isso logo que o passo se transforma em dança, ou seja,
e cineasta norte-americano Fred
Astaire criou aproximadamente 150 destruiria o conceito de no momento mesmo da conversão do gesto natural
números de dança, entre os anos dança como fio contínuo, em forma plástica — pode ser um pouco do trabalho
de 1933 e 1957. Fred Astaire marcou
presença em diversos filmes ininterrupto. Nas pala- do analista. Assim a dança pode surgir do nada,
do gênero musical, dividindo a cena vras do próprio dançarino, do movimento simples que se desdobra naquele
com grandes estrelas da dança e
do teatro daquela época, a exemplo “a dança era o corpo instante privilegiado de toda a dança, que pode, por
de sua duradoura parceria com inteiro ou não era nada… exemplo, ser uma leve inclinação da cabeça, ou a
a dançarina e atriz Ginger Rogers
(1911–1995).” (Acosta, 2011, p. 27). Ou a câmera dança, ou simples respiração, ou um suave girar do pé num pas-
24 Astaire desenvolveu uma eu danço… A audiência so anterior imediatamente normal (Vieira, 2007, p. 52).
plataforma sobre rodas que permi-
tia a câmera acompanhar os
não pode ficar mais cons-
deslocamentos da dança. “A câmera ciente da câmera do que Em termos de perspectiva, a localização dos espec-
fluía através de uma técnica tão
bem executada que se tornava invi-
da dança” (Astaire apud tadores era idêntica, tanto para aqueles que testemu-
sível.” (Souza, 2005, p. 45). Gualter, 2003, p. 9). nhavam a apresentação de uma dança no palco,
dança em foco
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quanto para os que a assistiam na tela do cinema. coreografias em seus filmes (Rosiny, 2007, p. 23).
A (im)posição de uma apreciação distanciada em Em seu livro Dance with camera, Jenelle Porter (2009)
relação ao objeto fílmico resultou no distanciamento afirma que Berkeley não era um coreógrafo, apenas
natural imposto pela arquitetura da sala teatral (Acosta, organizava os bailarinos criando padrões de movimen-
2011). É provável que vários cineastas de musicais to e efeitos ópticos projetados especificamente para
norte-americanos tenham refletido sobre este fato a câmera, “a fotografia era a coreografia”. Ele criou
quando começaram a inserir espectadores nas cenas uma dança para a câmera a partir de movimentos
de seus filmes, uma forma subjetiva de transportar sofisticados e mergulhos vertiginosos — sua principal
o público para dentro da narrativa. Vieira (2007) assinatura estética. O cineasta se valia de mecanis-
enfatiza que o filme musical é capaz de provocar uma mos especiais de gravação e edição para criar efeitos
identificação dupla em seus espectadores ao com- caleidoscópicos que transformavam as bailarinas em
partilhar os pontos de vista da plateia que se encon- meros elementos decorativos. No filme Footlight
tra dentro da narrativa, assim como os pontos Parade, de Lloyd Bacon (1889–1955), ele “coreogra-
de vista dos próprios atores, “logrando fundir o espaço fou” o trecho By a Waterfall,26 onde se viam mulheres
teatral com o espaço cinematográfico”. A dança no nadando e mergulhando em gigantescas piscinas com
cinema ganha uma cumplicidade essencial ao esta- tomadas panorâmicas de vários ângulos, inclusive
belecer uma intimidade com o público. Com a “plateia- submersos. Berkeley rompeu com as coreografias de
-dentro-do-filme” abriu-se a possibilidade de criação palco, liberando a dança das perspectivas frontais
de um espectador imaginário dentro de uma plateia do cinema, além de explorar planos incomuns e mani-
diegética.25 Um tipo de estratégia que poderia pulações de espaço e tempo (Rosiny, 2007, p. 23).
amenizar a tensão clássica entre o cinema e o teatro.
Seguindo este modelo de produção, o cineasta
norte-americano Busby Berkeley (1895–1976) desen-
volveu um ponto de vista
25 Diegético: termo utilizado
pelo cinema para definir o que faz bastante distinto para
parte da materialidade da cena, filmar a dança: enquanto
seja áudio ou visual.
26 Disponível em <http://www. para Astaire “a câmera Subversões cronotópicas…27
youtube.com/watch?v=6I3yAeyDsV devia estar a serviço da
Q&feature=related>. Acesso em
12.mar.2012. dança; de modo oposto,
27 Cronotopo: composto pelas para Berkeley, a dança ser-
palavras gregas cronos (tempo) e
topos (lugar). Trata-se da indissocia-
via à câmera”, com a qual
bilidade do binômio espaço-tempo. executava verdadeiras
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Leonel Brum Videodança: Uma Arte do Devir
88–89
dE videodança
De fato, construir uma cena coreográfica contamina- naturalizada norte-americana Maya Deren (1917–
da pela linguagem cinematográfica implica um 1961).28 Lançando mão deste novo recurso tecnoló-
investimento relevado sobre dois registros: tempo e gico, ela foi uma das primeiras a criar um modo
espaço. É também (talvez, sobretudo) por consta- diferente de pensar e agir na convergência entre o
tar a potência de descontinuá-los e redimensioná-los cinema e a dança. Em seu artigo “Choreography for
que tantos coreógrafos se orientem para a tela, the Camera”, publicado na Dance Magazine em
onde o impossível é possível (Caldas, 2009, p. 32). outubro de 1945 (Deren apud Siebens, 1998, p. 1), ela
afirmou que o bailarino e o cineasta deveriam saber
A procura por essa dança impossível citada por um pouco do ofício um do outro para que o filme se
Caldas, associada a uma espécie de reação ao tornasse uma obra híbrida. A diretora não acreditava
mainstream da Era de Ouro hollywoodiana, pode ter em uma criação onde o bailarino estivesse preocu-
sido determinante para o surgimento do cinema expe- pado somente com a própria composição coreográfi-
rimental da vanguarda norte-americana da década ca e o cineasta com os efeitos pictóricos da fotogra-
de 1940. Este cinema alternativo foi influenciado, fia. Seu legado de experimentações e reflexões
de um lado, pelos movimentos da vanguarda euro- continua sendo uma importante fonte para pesqui-
peia da década de 1920, como o dadaísmo e o sas tanto na área do cinema como na da videodança.
surrealismo, “que com suas qualidades oníricas Em suas anotações sobre seu próprio filme A Study
e deslocamentos do nosso sentido normal de espaço in Choreography for Camera (1945),29 escreveu que
e tempo, enfatizavam e buscavam o potencial poético
de um cinema mais livre das amarras narrativas […] neste filme, através da exploração de técnicas
tradicionais e lineares” (Vieira, 2010, p. 20); e cinematográficas, o espaço passa a ser um partici-
de outro pelas novas tecnologias então inseridas no pante dinâmico da coreografia. Este filme é, em
mercado. O fato é que, a partir desse período, 28 Os filmes mais conhecidos
certo sentido, um dueto
muitos artistas da dança, do cinema e, mais tarde, da cineasta foram: Meshes of the entre o espaço e o
Afternoon (1943); A Study in Choreo-
do vídeo, passaram a realizar investigações procu- graphy for Camera (1945), Ritual
bailarino, um dueto em
rando subverter o espaço-tempo do cinema in Transfigured Time (1945/6); e The que a câmera não é
Very Eye of Night (1952/59). Em
clássico para “dançar o impossível” (Kraus, 2005). 2002, por meio de uma parceria entre
apenas o olho do obser-
O advento da câmera portátil de 16mm — muito a Áustria e a República Tcheca, vador sensível, mas é ela
foi produzido o documentário In
mais leve que as grandes câmeras utilizadas para o the Mirror of Maya Deren, de Martina
própria criativamente
cinema — provocou um impacto estético substancial Kudlacek, sobre a vida da artista. responsável pela perfor-
29 Disponível em <http://www.
na produção artística dos anos 1940, inclusive no youtube.com/watch?v=xyp2qbfa3
mance. (Deren apud
trabalho da cineasta, coreógrafa e bailarina ucraniana pE>. Acesso em 15.mar.2012. deLahunta, 1998, s/p.).
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Leonel Brum Videodança: Uma Arte do Devir
90–91
dE videodança
Este “dueto” cuidadosamente proposto pela Harris (1929–1999), foi outra experiência signifi-
cineasta se realiza durante este filme mudo de cativa, na área da cinedança, a influenciar a cena da
três minutos, em que o bailarino Talley Beatty videodança, que começava a despontar com as
(1923–1995), sem interromper sua sequência coreo- experimentações radicais dos artistas da Judson
gráfica, se desloca de uma locação para outra — Church. Nine Variations é um curta-metragem de 12
uma floresta, uma sala de jantar, um pátio de museu minutos, que repete nove vezes a mesma variação
etc. — em curtíssimos espaços de tempo, pos- coreográfica de 50 segundos dançada pela bailarina
síveis somente com os recursos da edição cinema- Bettie De Jong (1933). Há uma variação de ângulos
tográfica. Assim, “o corpo em movimento acaba e movimentos de câmera em cada uma das sequên-
fazendo ligações improváveis entre geografias cias, porém seguindo a continuidade do tempo,
distintas, ocupando uma dimensão espacial que está quebrado apenas na última variação. Os movimentos
além de sua realidade física” (Acosta, 2011). de câmera se tornam mais dinâmicos e se aproximam
Nas palavras de Deren, o filme “se move no mundo pouco a pouco da bailarina a cada variação, criando
da imaginação, no qual, como nos nossos sonhos um ambiente de intimidade e de fluxo cinestésico
diurnos e noturnos, alguém se encontra, primeiro, entre a câmera e a intérprete, simulando um duo.
em um lugar e então, subitamente, em outro, A cineasta Amy Greenfield (2002), em seu artigo
sem ter que percorrer pelo espaço intermediário” “The kinesthectics of avant-garde dance film:
(Deren apud Rosiny, 2007, p. 22). Ao incorporar Deren and Harris”, publicado no livro Envisioning
à coreografia um recurso específico da linguagem dance, propõe uma comparação entre A Study, de
do audiovisual — continuidade de movimento Deren, e Nine Variations, de Harris. Greenfield des-
com descontinuidade espacial —, a cineasta cria uma taca que em A Study os movimentos foram filmados
sequência até então inédita no cinema, uma dança em cenas separadas, alocadas em planos pré-
tão relacionada com a câmera e com a edição que -concebidos e, posteriormente, editadas em conjun-
não poderia ser realizada em qualquer outro lugar a to para criar a noção de continuidade. Já em Nine
não ser naquele filme em particular. Para Rosiny Variations, pelo contrário, todas as variações foram
(2007), com esta concepção inovadora de espaço e integralmente captadas em tempo real em uma
tempo, A Study pode ser considerado “um marco da mesma locação: um estúdio de dança. A cada repe-
gênese da videodança no mundo” — uma afirmação tição, a câmera invade mais e mais a cena, circuns-
que pode parecer estranha à primeira vista, já crevendo-a e transformando-a cinética e cines-
que o vídeo surgiu apenas duas décadas mais tarde. tesicamente, dando
30 Disponível em <http://www.
Alguns anos depois, ainda nos Estados Unidos, youtube.com/watch?v=03Qa3
a ilusão de terem sido
Nine Variations on a Dance Theme (1966),30 de Hilary KMxXWc>. Acesso em 15.mar.2012. adicionados novos
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Leonel Brum Videodança: Uma Arte do Devir
92–93
dE videodança
movimentos à frase original. Greenfield acredita que A pesquisadora Andrea Bardawil afirma que foi a
este filme foi um dos precursores da steadicam.31 partir das investigações realizadas durante este
Neste caso, inversamente ao que se sucedeu com o movimento que surgiram as primeiras rejeições à
surgimento da câmera 16mm — que provocou um espetacularidade. Os gestos cotidianos e a imo-
impacto no cinema da época, a produção artística bilidade foram incorporados à dança e ganharam
antecipou a criação de um equipamento que desse status de composição. “A antiga definição de
conta de uma nova demanda estética. coreografia — uma sequência de passos organizados
Em suma, ambos os cineastas utilizaram seus e executados harmoniosamente dentro de uma
truques com equipamentos de gravação e edição música — definitivamente não daria mais conta da
para criarem distintas composições de movimento composição coreográfica.” (Bardawil, 2011). As inves-
no espaço e no tempo. A diferença fundamental tigações de movimento promovidas pelos primei-
entre elas é que A Study simula o movimento fictício ros artistas pós-modernos da Judson Church
da câmera e Nine Variations cria a ilusão de movi- tornaram o conceito de dança totalmente indefiní-
mento na coreografia. Seja qual for o procedimento vel. Já que um gesto comum pode ser dança, então
adotado para manipulação dos corpos em movimen- parece que qualquer tipo de movimento pode
to, estes filmes se tornaram obras seminais para ser dança.
se pensar e criar cinedança de uma maneira, consi- Em seu artigo “Audiovisual, videodança e dança:
derada aqui, cinematocoreografada,32 ou seja, en- conceitos e devoramentos”, os pesquisadores
trelaçando recursos e procedimentos específicos Beatriz Cerbino e Leandro Mendonça (2011) obser-
das duas linguagens, esses diretores criaram co- vam que, naquele contexto artístico da década
reografias que se tornaram possíveis somente na tela. de 1960, surgiu uma proposta de arte interdiscipli-
Outro marco importante a ser observado foi o nar e coletiva em que as fronteiras entre as áreas
surgimento da dança pós-moderna norte-america- tornaram-se mais fluidas a partir da aproximação
na, que se desenvolveu de artistas de segmentos distintos. E é nesse
31 A steadicam foi criada pelo
cineasta norte-americano Gatte
durante a década de 1960, “alargamento de percepção do tempo e do espaço
Brown em 1973. Trata-se de uma no Judson Dance Theater, que a relação entre vídeo e dança se insere”.
câmera acoplada a um estabi-
lizador apoiado no corpo do camera-
localizado no Greenwich Mais pelo pensamento transversal entre linguagens —
man. Este acessório diminui Village, em Nova York. afinal, ali estavam reunidos artistas visuais, baila-
o impacto na imagem durante os
deslocamentos de gravação.
Trata-se de um momento rinos, músicos, coreógrafos, filmmakers, arquitetos,
32 Cinematocoreográfico: termo em que houve um grande pintores, escultores, escritores, entre outros — e
criado neste artigo associando
os vocábulos cinematográfico e
intercâmbio entre artistas menos pela produção efetiva de obras de video-
coreográfico. de várias linguagens. dança, já que a maioria produziu somente registros
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Leonel Brum Videodança: Uma Arte do Devir
94–95
dE videodança
de seus trabalhos. Uma das exceções desse especial, sob a liderança de George Maciunas
período é um vídeo de seis minutos intitulado Hand (1931–1978), agregou artistas de diversas áreas,
Movie (1966),33 dirigido por William Davis e coreo- como o músico John Cage e o artista visual Joseph
grafado por Yvonne Rainer. Uma câmera fixa registra Beuys (1921–1986). De acordo com a pesquisadora
as diversas variações de movimento de uma das Lucia Santaella, “foi um movimento (anti) arte,
mãos da coreógrafa. na medida em que renunciou às convenções do
Em 1965, a Sony introduziu uma espécie de objeto artístico, ironizou o alto modernismo, esten-
revolução tecnológica no mercado: o primeiro deu as manifestações artísticas para espaços
equipamento portátil de vídeo, o Portapak. Apesar públicos, integrou objetos e situações cotidianas ao
de ser um pouco pesado em comparação às câme- ambiente artístico” (2003, p. 255). Seus integrantes
ras atuais, era o que havia disponível naquela época realizaram experiências estéticas subvertendo
para a gravação de cenas em tempo real. Por ser a utilização do vídeo. O sul-coreano conhecido
relativamente fácil de gravar e editar, aquela nova mundialmente como o pioneiro da videoarte, Nam
tecnologia do vídeo permitiu, no primeiro momento, June Paik (1932–2006) e o alemão Wolf Vostell
a documentação de coreografias de dança. Porém, (1932–1998), por exemplo, foram alguns dos que
mais adiante, Rosenberg (2000) ressalta que investigaram relações de cruzamento entre o vídeo
os coreógrafos e videomakers reconheceram o e as diversas artes.
potencial para a criação de dança especificamente Foi nesse contexto artístico que Cunningham,
para este tipo de câmera. Rapidamente ela se junto com o músico e também componente do
tornou uma alternativa mais viável e econômica que Fluxus, John Cage, começou a compor inúmeras
as montagens para o palco, provocando grande obras de dança e vídeo, muitas delas experimen-
impacto nos trabalhos de muitos coreógrafos, tais. Suas maiores contribuições para a videodan-
sobretudo aqueles que se aproximaram da dança ça foram criadas para o programa Camera 3,
pós-moderna. dirigido por Merrill Brockway, pertencente à rede
O coreógrafo norte-americano Merce Cunningham norte-americana de televisão Public Broadcasting
foi um dos mais atuantes pioneiros a investigar System/PBS. Juntamente com Paik, Cunningham
as relações entre dança e vídeo no início da década também desenvolveu experimentos audiovisuais
de 1970, período ainda atravessado pelas realiza- como Merce by Merce by Paik — parte I, também conhe-
ções multimídia das performances, dos happenings, cido como Blue Studio: Five Segments, em 1976;
da dança pós-moderna e e parte II, Merce and Marcel, em 1978. Esta última,
33 Disponível em <http://www.
youtube.com/watch?v=RK_4xoW
do movimento Fluxus. que contou ainda com a parceria da artista japonesa
NtZA>. Acesso em 15.mar.2012. Este movimento em Shigeko Kubota, foi uma homenagem ao artista
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Leonel Brum Videodança: Uma Arte do Devir
96–97
dE videodança
plástico Marcel Duchamp (1887–1968). Entre as podia oferecer. Em Blue Studio: Five Segments,
obras mais significativas destacam-se Westbeth por exemplo, o coreógrafo lançou mão do chroma
(1974) — considerada por alguns especialistas como key 36 para fazer sua própria imagem ser transpor-
a sua primeira videodança — e Channels/Inserts tada entre diferentes paisagens enquanto se
(1982),34 todas em parceria com o filmmaker “deslocava” no mesmo lugar. Trata-se de uma espécie
Charles Atlas (1949). Points in space (1986) 35 e Beach de citação/homenagem do coreógrafo ao filme A Study,
Birds for Camera (1991), uma adaptação do espetá- de Deren. Channels/Inserts e Points in Space têm
culo realizado um ano antes, contaram com a em comum propostas de redimensionamento
participação de outro cineasta, Elliot Kaplan. do espaço e do tempo, porém com procedimentos
Rosenberg afirma que Cunningham tinha uma distintos. Na primeira, a câmera se move violenta e
compreensão instintiva em relação à linguagem vertiginosamente através dos espaços à procura
do vídeo, isto é, de que era muito diferente da dos bailarinos que aparecem e desaparecem o tempo
do palco. O coreógrafo percebeu que poderia tratar todo; na segunda, os escassos movimentos de
o tempo elipticamente, já que o espectador absorve câmera procuram descentralizar os pontos de vista
informações muito mais rápido do que no teatro, das coreografias que são dançadas em um único
e que o espaço parece alargar-se a partir da aber- cenário de fundo. Em ambos os vídeos pode ser
tura proporcionada pela tela, “dando uma ilusão notado o cuidado de Cunningham em explorar
de maior profundidade do que de fato existe” (2000, as inúmeras possibilidades da perspectiva propor-
p. 280). As experimentações de Cunningham cionada pelos três principais planos da câmera
34 Disponível em <http://www.you
mostraram aspectos iné- de vídeo.
tube.com/watch?v=35kPfQbn7IU>. ditos na relação entre Pode-se notar que o trabalho deste artista sempre
Acesso em 20.mar.2012.
dança e vídeo — uma cena esteve voltado para o desenvolvimento e a inves-
35 Disponível em <http://www.you
tube.com/watch?v=qf_kLcdijz8>. ainda esboçada naquela tigação entre dança e tecnologia em diversos
Acesso em 20.mar.2012. época, mas que já mos- aspectos. É dele, por exemplo, a criação, em 1990,
36 Trata-se de uma técnica de
efeito visual que tem como resultado trava sua potência inova- do software LifeForms, atualmente chamado de
o anulamento do fundo de uma dora. Suas investigações DanceForms,37 um programa que permite mover,
figura através da utilização de uma
cor padrão, como o azul ou o verde. pareciam já saber aonde de diversas maneiras, figuras humanas “tridimensio-
Desta maneira, pode-se substituir o chegar. Havia clareza nais” para criar sequências coreográficas na tela
fundo por qualquer outra imagem,
seja ela estática ou em movimento. nas articulações entre do computador. Apesar das dificuldades iniciais de
37 Este software foi criado em par- movimento, espaço transpor estas coreografias para os corpos dos
ceria com o pesquisador Thomas
Calvert, do Departamento de Dança
e tempo e dos recursos bailarinos de sua companhia, o software é utilizado
e Ciência da Simon Fraser University. plásticos que o vídeo até hoje por diversos coreógrafos.38
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Leonel Brum Videodança: Uma Arte do Devir
98–99
dE videodança
Cunningham seguiu atuante artisticamente até Tais questões podem ser facilmente deslocadas
sua morte, em 2009, deixando um importante para a videodança brasileira. Quais criações e
legado de produções não somente de videodanças, criadores seriam necessários para entendermos o
mas também de espetáculos e inúmeras investiga- contexto desta produção hoje no país? Quais seriam
ções com diversas mídias tecnológicas. O coreógra- os “clássicos” produzidos aqui? Como revisitá-los?
fo reinventou, no vídeo, as relações nascidas Ainda nas palavras de Launay, “cada obra inventa
anteriormente entre a dança e o cinema. Em outras os seus antecessores, inventa o seu passado, a
palavras, este criador multimídia foi um dos respon- sua origem”. E a origem, neste texto, se referencia
sáveis por realizar, com absoluta competência, em sua principal pioneira Analívia Cordeiro,40 não
a transição dos pensamentos de dança no cinema como uma predileção, mas como um meio de com-
para a tela do vídeo; mas, inquieto, foi ainda mais preender os contextos que principiaram o movi-
longe com suas ousadas propostas artísticas. mento da videodança no Brasil.
A entrada, mesmo que ainda restrita, de equi-
pamentos de vídeo no país pouco depois de seu
lançamento nos Estados Unidos, em 1965, desper-
tou a curiosidade dos artistas que ansiavam por
“romper com os esquemas estéticos e mercadológi-
cos da pintura de cavalete, buscando materiais
Uma trajetória pioneira mais dinâmicos para realizar suas ideias plásticas”
38 O software encontra-se à
(Machado, 2007, p. 17).
venda no site http://www.merce. O vídeo fora do contexto
org/media/danceforms.php
televisivo,41 por ser
39 Palestra proferida nos Coló-
quios em dança: carne.da.memória. um equipamento de baixo
da.carne — repertórios, corporei- custo de produção, foi rapi-
dades, subjetividades, na cidade
de Fortaleza, em 2011. damente adotado como
Em sua palestra intitulada “Sobre o devir das obras 40 Disponível em <http://www. uma das tecnologias mais
analivia.com.br/>. Acesso em
em dança contemporânea”, proferida nos Colóquios 25.mar.2012. utilizadas pelos artistas
em dança: carne.da.memória.da.carne, no Ceará, 41 Segundo Christine Mello que tinham a experi-
(2006, p. 82), a primeira interven-
a pesquisadora francesa Isabelle Launay (2011) ção artística com vídeo no Brasil mentação com o audiovi-
indaga: “De quais obras ou de quais gestos dança- ocorreu em 1956, por intermédio sual como foco principal
de uma performance midiática do
dos do passado nós temos necessidade hoje? artista plástico modernista Flávio
de seus trabalhos, mas
Quais são os nossos clássicos? Como fazê-los viver?” 39 de Carvalho (1899–1973). não possuíam condições
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Leonel Brum Videodança: Uma Arte do Devir
100–101
dE videodança
financeiras de utilizar recursos cinematográficos. as artes sustentadas pelo computador e redes de
De fato, o contexto parecia propício: informação.47
Foi neste contexto artístico — e um ano antes
As artes plásticas no Brasil, fortemente vinculadas de Cunningham lançar Westbeth, sua primeira
à cena internacional, viviam um momento muito videodança —, que a bailarina e coreógrafa Analívia
rico, com os desdobramentos de problemas que pas- Cordeiro deu início às experimentações multimídia
savam das condições espaciais da percepção às utilizando os equipamentos herdados de seu pai,
suas bases corpóreas. […] Hélio Oiticica (1937–1980) Waldemar Cordeiro, incluindo um computador —
e Lygia Clark (1920–1988) radicalizaram essa transfor- dispositivo raro para os
43 Segundo a pesquisadora Katia
mação ao promover o corpo como lugar, meio e Maciel, trata-se de uma espécie criadores brasileiros
suporte de suas expressões artísticas em trabalhos de cinema sensorial, pautado na daquele período. Descon-
relação do espectador (tornado
sensoriais (Costa, 2007, s/p). participador) com o espaço imersi- siderando a participação
vo da projeção, produzindo uma do artista paraibano
situação não narrativa, com ima-
Oiticica e o cineasta Neville de Almeida criavam, gens que não representavam, mas Antonio Dias com o vídeo
com suas situações instalativas subversivas, experiências que sensibilizavam Music Piece (1971), na
corporalmente os participantes de
Cosmococas (1973),42 o conceito de quase cinema.43 cada sessão (Maciel, 2009, p. 281). exposição italiana The
Artistas plásticos, entre eles Anna Bella Geiger, 44 “Diferentemente de Analívia Illustration of Art-Music
Cordeiro, a maior parte dos artistas
Fernando Cocchiarale, Ivens Machado, Sonia Andra- pioneiros da videoarte no Brasil Piece (1971), por ser um
de, Antonio Dias, mesmo sem possuírem uma ilha conseguiu acesso apenas a equipa- evento realizado fora
mentos de captação de imagem
de edição,44 já começavam a tomar contato com os e som, sem, contudo, conseguir do Brasil, Cordeiro é reco-
equipamentos Portapack, com os quais criaram acesso a equipamentos de edição.”
nhecida como uma das
(Mello, 2008, p. 86).
um conjunto de trabalhos que se tornaria a primeira 45 Este contexto se deu no Rio precursoras tanto da
de Janeiro, quando esses artistas
42 Oiticica projetou nove ex-
geração da videoarte no foram convidados para participar
videoarte quanto da video-
periências Cosmococa, todas Brasil.45 Além deles, de uma exposição de videoarte na dança brasileira. Como
abreviadas da seguinte forma: Filadélfia, Estados Unidos, em 1975.
CC + número de identificação.
havia Waldemar Cordeiro Mais tarde, outros criadores de
afirma Arlindo Machado
As CC1 até CC5 foram inventadas (1925–1973),46 que, São Paulo agregaram-se à primeira (2007, p. 13), “a verdade
com Neville D’Almeida; CC6 geração da videoarte brasileira.
com Thomas Valentin; CC7, em
de acordo com a pesqui- 46 Pintor, escultor, paisagista,
é que, até prova ou
Londres, para Guy Brett; CC8, sadora Christine Mello designer, crítico de arte e um dos interpretação em contrá-
para Silviano Santiago; e CC9 pioneiros da computer art no Brasil.
para Carlos Vergara (Alves, 2009,
(2009), postulava uma 47 Em 1971, Waldemar Cordeiro
rio, o mais antigo teipe
p. 12). Disponível em <http:// arte interdisciplinar, realizou a primeira exposição de admitido como perten-
www.faap.br/revista_faap/revis- arte por computador no país,
ta_facom/facom_21/caue.pdf>.
instigava e problematiza- intitulada “Arteônica: o uso criativo
cente à história do nosso
Acesso em 12.mar.2012. va novos circuitos para de meios eletrônicos nas artes”. vídeo, conservado e
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Leonel Brum Videodança: Uma Arte do Devir
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acessível para exibição até hoje, é M3x3 ”.48 Atual- movimento. Logo após a exibição na televisão, um
mente compreendida como videodança, a obra artigo na revista Veja destacou que
foi gravada em tempo real pela TV Cultura, em São
Paulo, para participar de um festival de Edimburgo, […] os movimentos dançados não surgiram de um
na Escócia,49 em 1973. Neste vídeo pode ser obser- maître-de-ballet. Foram programados e processados
vado um procedimento que seria adotado como por um computador de terceira geração, que os
prática em todos os trabalhos posteriores da coreó- determinou em linguagem binária, armazenou-os em
grafa: a investigação dos movimentos nos corpos sua memória e por fim os liberou em uma listagem
dançantes. No cenário, nove quadrados pintados no com a mesma desenvoltura e rapidez com que
chão e duas grossas barras pretas, dividindo em resolve problemas científicos ou fornece extratos de
três partes a superfície da parede de fundo, transfor- contas bancárias. […] Da concepção teórica aos
mam a tela em uma malha composta de eixos trabalhos práticos de gravação, o grupo gastou nove
horizontais e verticais. As bailarinas, entre elas a meses. A maior parte consumiu-se na programação
própria Analívia e sua irmã, Fabiana, são apresenta- do computador feita por Analívia e seu colega
das na primeira cena com trajes comuns do dia a de faculdade Sílvio Mendes Zanchetti. Primeiro, eles
dia. No restante do vídeo, vestindo malhas pretas com estudaram as possibilidades de movimento do corpo
barras brancas — todas as cores foram abolidas, já humano, através de desenhos. Depois elas foram
que as transmissões na época ainda eram em preto relacionadas e numeradas e passadas para o
48 Disponível em <http://www.
e branco —, as bailarinas, computador. Que forneceu, enfim, aleatoriamente,
analivia.com.br/>. Acesso em dispostas igualmente, diversas combinações a serem executadas por cada
12.mar.2012.
49 Em 1973, M3X3 foi apresen-
uma em cada quadrado, uma das nove bailarinas.” (Veja, 1973).
tada também na exposição “Arte realizaram movimentos
de Sistemas na América Latina”,
no International Cultureel
retilíneos com seus braços Os objetivos de Cordeiro não se restringiam à obra
Centrum, na Antuérpia, e no e pernas, em sequências em si; de maneira ampla, focavam a continuidade
“Latin American Films and Video
Tapes”, no Media Study of The
que acompanhavam do estudo das composições de movimento. Não foi
State University of New York. as batidas secas de um por coincidência que a artista desenvolveu e criou,
Ainda no mesmo ano, Cordeiro
participou do The Bat-Sheva
metrônomo. A câmera 21 anos depois, o software de análise de movimento
Seminar on Interaction of Art and sempre fixa, hora em chamado nota-anna (1994), que permite também a
Science, em Jerusalém, da XII
Bienal de Arte de São Paulo e da
plongé, hora em enquadra- criação de coreografias. Enquanto “os primeiros artis-
mostra Jovem Arte Contem- mento frontal, registrava tas que utilizaram o vídeo no Brasil concentraram-
porânea, realizada pelo Museu
de Arte Contemporânea de São
as composições daque- -se mais em capturar as nuances expressivas do gesto
Paulo (Acosta, 2011, p. 136). les corpos anônimos em performático frente à câmera” (Acosta, 2011, p. 58),
dança em foco
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Leonel Brum Videodança: Uma Arte do Devir
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Cordeiro seguiu investigando a convergência entre Dando a ideia de “um bordado”, “uma renda” de
dança e vídeo em todas as suas criações, tais como imagens, “a edição do vídeo remete aos princípios
Slow-Billie Scan (1977), Trajetórias (1984), 0°=45 visuais da arte concreta e do cubismo” (Cordeiro
(1974/1989), Ar (1985), Striptease (1997), Choice apud Acosta, 2011, p. 109). Destaque para os ruídos
(2006), homo habilis I/II/II (2007), entre outras.50 produzidos pela respiração de Brandini que com-
Cordeiro estabeleceu dois termos para nomear põem, junto ao seu corpo em movimento, a organi-
suas realizações: videocoreografias e coreovideo- cidade estética do trabalho.
grafias, dependendo das especificidades de cada Desde 2007, Cordeiro participa como autora e/ou
uma. Em suas videocoreografias intituladas Carne I colaboradora de diversas pesquisas envolvendo
e II (2005), a coreógrafa procurou estabelecer uma dança e mídias digitais, entre elas, Coreografismos —
relação de extrema proximidade entre o corpo Sistema cenográfico generativo para dança contem-
e a câmera. Na realidade, ambos estão intimamente porânea,53 resultado de uma parceria com a designer
interligados no vídeo, já que a câmera foi acoplada Alice Bodanzky, orientada por Silvia Steinberg e
ao corpo da bailarina Cristina Brandini — que havia coorientada pelo pesquisador Luiz Velho. Pode-se
50 Todos os vídeos de Analívia
participado da obra Equi- notar que toda a trajetória da coreógrafa é marcada
Cordeiro e uma demonstração líbrios (1991),51 realizada por permanentes aproximações e fricções entre a
do software nota-anna estão dispo-
níveis em <http://www.analivia.
na XXI Bienal de Arte de dança e as diversas mídias tecnológicas.
com.br/>. São Paulo,52 ocasião
51 Equilíbrios é o resultado do
entrelaçamento de três lingua-
em que já explorava as
gens: dança, vídeo e fotografia. relações de seu corpo com
Vídeo do artista plástico
Fernando Heckman, exposição
objetos — naquele caso
de fotos, de Eduardo Simões específico, grandes bolas
e o espetáculo, dirigido e apresen-
tado pela própria intérprete. Mais
plásticas de diferentes
informações no catálogo da tamanhos. Carne exibe Considerações finais
Bienal de Arte de São Paulo.
Disponível em <http://issuu.com/
uma textura especial,
bienal/docs/name8b3384? produzida pela sobreposi-
mode=window&pageNumber=1>,
p. 348. Acesso em 12.mar.2012.
ção de sete camadas
52 Realizada em 1991, com cura- de imagens que misturam
doria de João Candido Galvão.
53 Disponível em <http://www.
fragmentos do corpo
visgraf.impa.br/e-trajectories/ da bailarina, sob um tule
choreographisms/coreografis
mos_apresentacao.pdf>. Acesso
branco, se deslocando Segundo a pesquisadora Denise Oliveira (2001, p. 75),
em 12.mar.2012. em micromovimentos. a videodança liberou a dança do palco e deu a ela
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Leonel Brum Videodança: Uma Arte do Devir
106–107
dE videodança
uma nova cena. Esta liberação, naturalmente, Acredito que a vídeo-dança não seja uma linguagem
vem acompanhada de um novo léxico de termos com específica e nem um novo gênero. Trata-se, sim,
linguagem distinta fundamentada na mediação. da invenção de um espaço de pesquisa que explora
Apesar de contar com uma produção expressiva, não diversas relações possíveis entre a coreografia,
há consenso sequer sobre sua grafia: “videodança”, como um pensamento dos corpos no espaço e o
“vídeo dança” ou “video-dança”; ou outras expres- audiovisual, como um dispositivo de modulação de
sões que tentam referi-la como “dança para tela”, variações espaço-temporais. (Veras, 2007, p. 15).
“dança para o vídeo” etc. Acreditava-se que o termo
tivesse sido utilizado pela primeira vez, em 1988, Segundo Caldas, é comum tomar a videodança como
em um catálogo de vídeo do centro Georges Pompi- um híbrido, nascido de um diálogo entre a dança e o
dou,54 em Paris, quando a curadora francesa Michele vídeo, no qual essas “linguagens” se tornam indissoci-
Bargues precisou identificar uma certa programa- áveis, como uma obra coreográfica que existe apenas
ção que não cabia na categoria “vídeos de dança”.55 no vídeo e para o vídeo. Mesmo considerá-la um
Porém, foi encontrado recentemente um texto norte- produto híbrido implicaria a afirmação de pressupos-
americano intitulado “Videodance”, escrito no ano de tos questionáveis, já que ainda não foram elaborados
1975, fato que remonta a criação do termo ao período estudos tanto na dança quanto no vídeo (ou cinema)
das primeiras aproximações entre estas duas artes. que deem conta da diversidade e multiplicidade de
As várias questões em torno deste novo meio não manifestações deste tipo de obra (Caldas, 2009, p. 32).
se detêm apenas na sua nomenclatura. Com poucos Rodrigo Alonso observa que, assim como o
estudos e reflexões específicas sobre o tema, não vídeo, a videodança também possui a qualidade de
se pode afirmar ainda se a videodança se caracteriza experimentar diversos gêneros narrativos. Podendo
54 Disponível em <http://www.cen
como uma categoria. trabalhar histórias, explorar acontecimentos ou
trepompidou.fr/>. Acesso em De fato, a cada nova obra refletir sobre a realidade social, política e cultural.
15.mar.2012. realizada, surgem novas Comenta que, sob um aspecto contemporâneo, ela
55 “O exato momento em que a
dança atinge a tela de vídeo é ainda possibilidades de defi- também pode encorajar uma abordagem conceitu-
um objeto de discussão. Em sua nição para o termo e para al, ou seja, pode não seguir uma linha narrativa
edição de agosto de 1997, Elisa Vacca-
rino, em seu artigo para a revista as novas práticas de clara, mas explorar as sensações de um determina-
alemã Ballet Tanz, focalizando as criação. Em seu artigo do tema. Como afirma Alonso, “a videodança se
relações entre a dança e tecnologia,
cuidadosamente sugere que o nome “Kino-coreografias — entre desenvolveu a partir da própria prática, alheia
‘videodança’ tenha sido cunhado o vídeo e a dança”, o pes- às definições e normas”. O pesquisador acrescenta
em 1988, em relação a uma perfor-
mance no Centro Georges Pompidou,
quisador e professor ainda que, embora pareça um contrassenso, existe
na França.” (Miranda, 2000, p. 118). Alexandre Veras afirma: videodança “sem vídeo” e “sem dança”.
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Leonel Brum Videodança: Uma Arte do Devir
108–109
dE videodança
Muitas peças são filmadas com apoio cinema- recebeu o prêmio de melhor videodança, mesmo
tográfico, ou são realizadas em vídeo, mas com um tendo em seu elenco apenas pássaros. Com efeito,
idioma estritamente fílmico. Em outras, ninguém a videodança também pode prescindir do corpo do
“dança”, e não existe nenhum movimento que possa- bailarino e nem precisa se parecer com aquilo que
mos identificar como sendo “dança”. Às vezes, é é mais facilmente reconhecível como dança, porém
a edição o que gera uma coreografia a partir de deve ter “impacto cinestésico e significados da
imagens estáticas; em outros casos, é o foco no olhar dança” (Greenfield apud Kappenberg, 2008, s/p).
em determinados movimentos o que os transforma Nunes (2009, p. 14) afirma que a videodança
em “dança” (Alonso, 2007, p. 48). “ainda está procurando seu ‘lugar de fala’, pois ainda
Alonso provavelmente inclui em suas referências habita um ‘não lugar’, um entrecampos, um entre-
Birds (2000), uma das obras mais famosas de David linguagens”. Trata-se de um “objeto em trânsito”,
Hinton. O material bruto escolhido pelo diretor é segundo a pesquisadora chilena Brisa Muñoz (2006).
oriundo de arquivos cinematográficos sobre a Se fosse possível elaborar-lhe um conceito, ele
criação, alimentação e o comportamento social de deveria comportar um tipo de complexidade rizomá-
pássaros, que o cineasta reconstrói com uma tica 57 que considerasse em sua estrutura dinâmicas
partitura de som original para criar textura e padrões de atualização e reatualização permanentes. Pensar
visuais e sonoros distintos. Em muitos pontos, as em conceito para videodança equivale a pensar
imagens escolhidas são editadas de maneira um conceito para a arte contemporânea com suas
a conter certo antropomorfismo, isto é, utiliza-se da múltiplas hibridações e seu caráter de constante
repetição para desenvolver diálogos entre diferentes transformação.
pássaros ou grupos de pássaros. Esta técnica
de compor cenas dialógicas entre animais, apesar
de ser muito utilizada em filmes de animação e progra-
mas de televisão sobre vida selvagem, até então Acosta, Antonieta Eloísa Kehrig. Alves, Cauê. Hélio Oiticica:
Imagem do corpo em movimento cinema e filosofia. São Paulo: Revis-
56 Disponível em <http://www.
nunca tinha sido aplicada na tela. Dissertação (mestrado em ta Facom, nº 21, 2009.
sk-kultur.de/videotanz/english/ na videodança. O trabalho Teoria da Arte). Pós-Graduação em Andrew, James Dudley. As prin-
dsontour_e/ds_epro01.htm>. Ciência da Arte da UFF (Universi- cipais teorias do cinema: uma intro-
Acesso em 20.mar.2012.
gerou grande polêmica dade Federal Fluminense). Niterói, dução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
57 Em um rizoma entra-se entre os componentes da 2009. Editor, 2002.
por qualquer lado, cada ponto se Alonso, Rodrigo. “Videoarte e Bardawil, Andrea. “Corpo, Dança
conecta com qualquer outro,
comissão julgadora do videodança em uma (in)certa Améri- e Performance, uma breve reflexão”.
não há um centro, nem uma Festival Dance Screen ca Latina”. In: Bonito, Eduardo; Revista Reticências… Crítica de Arte,
unidade presumida — em suma, Brum, Leonel; Caldas, Paulo (org.). nº 3. Fortaleza: Secultfor, 2011.
o rizoma é uma multiplicidade
de 2000,56 em Mônaco, Dança em foco vol. 2: Videodança. Bodanzky, Alice Motta Maia.
(Pelbart, 1997). mas o fato é que Birds Rio de Janeiro: Oi Futuro, 2007. Coreografismos: Sistema cenográfico

dança em foco
Ensaios contemporâneos
Leonel Brum Videodança: Uma Arte do Devir
110–111
dE videodança
generativo para dança contemporâ- technology”. Conferência apresen- Maciel, Katia. “O cinema tem Santaella, Lucia. Culturas e
nea. Projeto de conclusão do curso tada no Art Crash Symposium. que virar instrumento. As experiên- artes do pós-humano: da cultura
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dança em foco
Ensaios contemporâneos
Leonel Brum Videodança: Uma Arte do Devir
112–113
dE videodança
Claudia Rosiny

Videodança: história,
estética e estrutura
narrativa de uma forma
de arte intermidiática

Estudou Teatro, Cinema e Televisão em Colônia e Amsterdã. Foi diretora


artística do Festival de Dança Berner Tanztage de 1991 a 2007. Em 1997,
concluiu seu doutorado sobre videodança na University of Bern’s Institute
for Theatre Sciences. Depois de trabalhar para o Arquivo de Dança de
2009 a 2012, passou a atuar no Escritório Federal de Cultura da Suíça
como gestora de dança e teatro.

dança em foco
Ensaios contemporâneos
114–115
dE videodança
Bernard Noël resumiu a questão, no Ballet Interna-
tional Yearbook, de 1991, da seguinte forma:

I. Intermidialidade,
2 Ver Dietmar Kamper e O cerne do problema hoje
Christoph Wulf (org.): Die Wieder-
formas de arte fronteiriças kehr des Körpers (Frankfurt a. M., é que talvez nosso ponto
e a mudança de percepção
1982); Dietmar Kamper e Chris- de vista tenha mudado
toph Wulf (org.): Das Schwinden
da arte no século xx der Sinne (Frankfurt a. M., 1984), da mesma maneira como,
ou Dietmar Kamper e Johannes certa vez, a descoberta
Odenthal: “Das Theater kehrt in
die Körper zurück. Dietmar da perspectiva transfor-
Kamper und Johannes Odenthal in mou o ponto de vista no
einem Gespräch über Bilder,
Körper, Geist”, em: Ballett interna- Renascimento. É preciso
tional / Tanz aktuell (nº 8–9, ago/ aprender a ver as coisas
set.1994, p. 24–28); Inge Baxmann:
A videodança desenvolveu-se paralelamente ao in- “Tanztheater. Rebellion des Körpers,
de outra forma.1
teresse crescente pela dança cênica, com novas Bildertheater und die Frage nach
dem Sinn der Sinne”, em: Zeit-
variantes no teatro-dança e na dança pós-moderna. geist — Jahrbuch Ballett internatio-
Além disso, a videodança
Aqui há — numa visão superficial — uma contradição. nal (ano 13, nº 1, jan.1990), p. 55–61; refere-se sintomatica-
Eva-Elisabeth Fischer: “Der Körper
Todas as artes cênicas contemporâneas transmitem zwischen Natur und Zivilisation.
mente a um discurso do
implicações emocionais significativas, além de Eva-Elisabeth Fischer nimmt das corpo e de suas imagens,2
Festival ‘Dance’95’ in München
uma objetividade física que se dirige a todos os senti- zum Anlass, den Wandel der
e é paradigmática para
dos, ao passo que as imagens de filme e vídeo conse- Körperbilder im Tanz zu beschrei- a discussão de um gênero
ben”, em: Ballett international /
guem produzir um efeito basicamente visual e Tanz aktuell (nº 8–9, ago/set.1995,
particular no entrelugar
acústico, em uma direção unidimensional de comu- p. 66–67. do discurso sobre a inter-
3 Ver Joachim Paech (org.):
nicação. Esse possível antagonismo, entretanto, Film, Fernsehen, Video und die
midialidade.3 O diretor
transformou-se durante a história em uma interes- Künste. Strategien der Intermediali- britânico Bob Bentley des-
tät (Stuttgart, 1994), ou Jürgen E.
sante influência mútua. Hoje em dia, nos palcos con- Müller: Intermedialität. Formen
creveu a videodança em
temporâneos, vemos muitos movimentos que — a moderner kultureller Kommunikati- 1991, com as seguintes
on (Münster, 1996). Müller investiga
1 Bernard Noël, “Le lieu des
exemplo das fragmenta- alguns “casos intermediais”, entre
perguntas e declarações:
Signes” apud Jean-Marc Adolphe, ções — são influenciados os quais Top Hat como exemplo
“Von Quellen und Bestimmungen. de filme musical hollywoodiano.
Konzepte von Gedächtnis, Bewe-
pela estética do cinema, Mas sua análise refere-se menos ao
O que é dança e o que é
gung und Wahrnehmung im Tanz resultado de estruturas efeito do componente intermidiá- televisão? E o que é video-
Frankreichs”, em: Zeitgeist — Jahr- tico único que a sua interferência,
buch Ballett international (ano 14,
de percepção que muda- sem analisar as estruturas em
dança? O que me en-
nº 1, jan.1991), p. 22–29, p. 23. ram no século xx. detalhe. Ver p. 180–187. canta no trabalho com
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Claudia Rosiny Videodança: história, estética e
estrutura narrativa de uma forma
116–117
dE videodança de arte intermidiática
a dança é que ainda há a possibilidade de se criar atonal de Arnold Schoenberg para um novo entendi-
novas ideias para novos públicos. O formato ainda mento musical.5 A dança, nessa engrenagem de artes,
não está cristalizado, estabelecido.4 adquiriu um significado especial:

Essa flexibilidade no formato pode ser vista não Por um lado, a produção em massa, a preocupação
só no gênero videodança, como também em outras com o tempo, o taylorismo etc. fizeram com que o
possíveis interações com outras manifestações corpo humano tivesse de adaptar seu ritmo
intermidiáticas como videoarte, clipes musicais e de movimento àquele determinado pela máquina.
filmes publicitários. De outro, membros do movimento jovem Wandervogel,
do Movimento Garden City, da Educação Física
Formas de Arte Fronteiriças — e do Movimento Life Reform proclamaram a liber-
Mudança de Percepção tação do corpo das obrigações tradicionais, em
relação às quais havia, por um lado, um errôneo sen-
A videodança não é em si uma forma de arte nova, timento de pudor. Mas, por outro lado, essas mesmas
mas sua estética e seus mecanismos de percepção condições de vida foram criadas pela urbanização
podem ser rastreados a precedentes históricos e industrialização.6
de outras formas de arte. Seja como for, ela é parte
de uma evolução geral em direção à intermidialidade No teatro e na dança de vanguarda, esses novos
e à mistura de diferentes formas de arte, como se conceitos espaciais, que rompem com o palco italia-
tornou aparente desde o começo do século xx. no e buscam novos espaços teatrais constituem
Erika Fischer-Lichte, professora de teatro alemã e um avanço importante em direção à fusão das formas
conferencista da Universidade de Berlim, descreve artísticas. Além disso, práticas corporais, como
essa transformação, na introdução de seu livro a “biomecânica” de Meyerhold e a tão propagada
sobre teatro de vanguarda, como uma mudança em “desliteralização” do teatro podem ser entendi-
direção a novos padrões de recepção como, por das como exemplos do fortalecido papel da dança
exemplo, a influência do nessa abertura dos conceitos teatrais.
4 Bob Bentley, “Creating New
Audiences”, em: Chris de Marigny,
cubismo para redefinir Por outro lado, é possível ver o rápido desenvol-
Dance Theatre Journal (ano 9, nº 2, o palco teatral, fortemen- vimento da mídia audiovisual e sua influência sobre
outono de 1991), p. 34–35, p. 34.
5 Ver Erika Fischer-Lichte (org.):
te estruturado sob padrões as outras artes. Hans Scheugl, que juntamente com
TheaterAvantgarde. Wahrnehmung de perspectiva. Outro Ernst Schmidt, escreveu um dicionário de cinema
— Körper — Sprache (Tübingen,
1995), p. 2f.
exemplo dessa mudança de vanguarda, experimental e underground, mencio-
6 Ibid., p. 2f. é a influência da música na o filme Le Raid Paris-Monte Carlo en 2 heures,
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Claudia Rosiny Videodança: história, estética e
estrutura narrativa de uma forma
118–119
dE videodança de arte intermidiática
produzido por Georges Méliès em 1904–1905, como e das cores permitiu relações específicas entre
tendo ligação com o espetáculo de mesmo nome, movimento e espaço —, emergiram de uma estética
encenado no Folies Bergère.7 É curioso que o título influenciada pelo cinema. Outro ponto culminante
do filme também corresponda a uma recepção pode ser observado pela junção de diferentes
alterada de tempo dentro do filme. Meyerhold tam- formas artísticas na dança, nas obras dos Ballets
bém recorreu a uma cinematização do teatro, próxi- Russes, de Sergei Diaghilev. Cenário e figurino eram
ma às tentativas mais conhecidas de Erwin Piscator, feitos por artistas de vanguarda da época — em Le
que usou registros de filmes documentários para Train Bleu (1924), por exemplo, os bailarinos
comentar a ação transcorrida no palco. “Vamos moviam-se em câmera lenta, revelando uma
empregar técnicas de cinema no palco (mas não no compreensão sofisticada de uso cinematográfico
sentido de pendurar apenas uma tela no teatro).” 8 do tempo, em vez de celebrarem apenas a velocida-
Piscator, no decorrer de sua discussão sobre de aumentada. Sob a direção de Rolf de Maré,
7 Ver Hans Scheugl and Ernst
cinema sonoro, menciona que adotou as ideias de Diaghilev para seus Ballets
Schmidt Jr., Eine Subgeschichte des possibilidades intermi- Suédois, René Clair filmou Entr’acte, exibido como
Films. Lexikon des Avantgarde-,
Experimental- und Underground-
diáticas: “Com frequência interlúdio no balé dadaísta Relâche. Até hoje,
films, (vol. 1 e 2, Frankfurt a. M., digo que não existem prin- esse filme é considerado um dos exemplos mais
1974), p. 891.
8 Wsewolod E. Meyerhold,
cípios artísticos no sen- importantes do cinema de vanguarda. Além disso,
“Rekonstruktion des Theaters”, tido estético, muito menos Entr’acte é um expoente do chamado “cinema
em: Manfred Brauneck, Theater im
20. Jahrhundert. Programmschrif-
hoje, porque as margens, expandido”, uma tentativa “de romper os limites da
ten, Stilperioden, Reformmodelle as interseções são fluidas tela de cinema e devolver ao filme seu valor como
(Reinbek: 1982; edição atualizada
em 1986), p. 252–260, p. 254.
e têm formas diversas.” 9 meio”.10 No final de Entr’acte, o maestro sai da tela,
9 Erwin Piscator, “Tonfilm Fora isso, suas reflexões toma lugar no pódio e começa a reger de lá. Ed
Freund und Feind”, em: Theater
Film Politik (Berlim: 1980), p. 82,
faziam parte de um Emshwiller, que realizou vários filmes com a Alwin
apud Rolf M. Bäumer, “Rettung plano para um teatro total, Nikolais Dance Company, próximos à sua produção
des Theaters im Film — Zerstörung
des Theaters im Fernsehen?”, em:
em que o cinema também experimental, também produziu filmes que eram
Rolf Bolwin and Peter Seibert teria seu lugar, compa- projetados sobre os bailarinos e em telas móveis
(org.), Theater und Fernsehen.
Bilanz einer Beziehung (Opladen:
rável às considerações carregadas por eles.11
1996), p. 113–126, p. 120. do grupo Bauhaus, na A partir daí, as práticas intermidiáticas permea-
10 Ver Gene Youngblood, Expan-
ded Cinema (Nova York: 1970) e
década de 1920. ram os movimentos do happening e do Fluxus, na
Scheugl e Schmidt, Eine Subge- Na dança, já as Serpen- década de 1960 — sob cuja influência foram criados
schichte des Films, p. 253.
11 Ver Scheugl e Schmidt, Eine
tine Dances, de Loïe Fuller também os espetáculos de Merce Cunningham
Subgeschichte des Films, p. 257. — nas quais o papel da luz e John Cage, por exemplo —, além do Criss-Cross
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Claudia Rosiny Videodança: história, estética e
estrutura narrativa de uma forma
120–121
dE videodança de arte intermidiática
até a cultura da performance, partes importantes depois de breves estudos em cinema, atuou nos
da história das artes cênicas. Esses projetos primeiros trabalhos de Fabre; ou Frédéric Flamand
multimídia foram concebidos, da década de 1960 e sua companhia Charleroi/Danses — Plan K, atual
em diante, especialmente pela dança — por aqueles diretor do Ballet National de Marseille, que também
representantes da dança pós-moderna influencia- não veio do campo da dança, e trabalha como
dos por Merce Cunningham: Meredith Monk e, coreógrafo juntamente com videoartistas ou arqui-
sobretudo, os fundadores da Judson Church como tetos para produzir seus espetáculos multimídia.13
Yvone Rainer e Trisha Brown, assim como Twyla Annie Bozzini resume a situação da França no
Tharp. Lucinda Childs, foi outra a trabalhar com começo dos anos 1990; no entanto, considerando os
Rainer, e contribuiu para alguns dos trabalhos de desenvolvimentos históricos há pouco mencionados,
12 Ver as biografias correspon-
Robert Wilson.12 O inter- não se pode avaliá-la como sendo nova:
dentes: Sally Banes, “Terpsichore câmbio entre criadores
in Sneakers” e Don McDonagh,
“Meredith Monk: Mixed-media Kid”,
de dança e de cinema Essa nova dança […] busca […] uma nova lingua-
em: The Rise and Fall and Rise of torna-se tão intenso que gem, que integre não só arte e música, mas
Modern Dance (Nova York: 1970),
p. 174–189. Ver também Barbara
as próprias profissões também cinema e vídeo. De seu significado como
Büscher, “Theater und Video — parecem permutáveis. uma ferramenta, o vídeo rapidamente se desenvol-
jenseits des Fernsehens? Intermedi-
ale Praktiken in den achtziger
Lembremos do belga Jan veu como um modo de produção artística. Ao
Jahren”, em: Bolwin e Seibert (org.), Fabre, originalmente um mesmo tempo, é muito comum que os espetáculos
Theater und Fernsehen, p. 145–168,
p. 162.
artista visual que, como incluam trechos de filmes ou gravações de vídeo,
13 Para esta situação na Bélgica coreógrafo, trabalha transmitidas diretamente a partir do que está
com limites borrados entre “teatro
dançado”, “teatro gestual” ou
frequentemente com ima- acontecendo ao vivo, no palco.14
“teatro de corpo”, ver Alex Mallems, gens de movimento em
“Der Boom des belgischen Tanzes
in den achtziger Jahren”, em:
câmera lenta. E também Um exemplo precoce e, em sua intensidade, quase
Ballett international (nº 2, fev. 1991), de Wim Vandekeybus, nunca alcançado de tal interação direta entre dança
p. 18–27, p. 21, e Marianne van
Kerkhoven, “Die Grenzen ver-
que usa filmes em quase e imagens de vídeo em um palco é a produção Live,
schwimmen. Zur Autonomie der todos os seus trabalhos de 1979, de Hans van Manen, que teve uma adap-
Tanzkunst”, em: Ballett internatio-
nal (ano 12, nº 1, 1989), p. 13–19.
de palco e que, de forma tação para televisão produzida em 1986 e que
14 Annie Bozzini, “Sie filmen wie oposta a Fabre, tem um alguns anos mais tarde foi novamente apresentada
sie tanzen”, em: Tanz international
(ano 2, nº 1, jan 1991), p. 36–41, p. 39.
estilo de movimento pelo Het Nationale Ballett. O que foi constantemen-
15 Ver Elisabeth Jappe, Perfor- estabelecido a partir da te experimentado e improvisado na cultura da
mance-Ritual-Prozess. Handbuch der
Aktionskunst in Europa (Munique:
velocidade; não é um performance15 torna-se aqui elemento constitutivo
1993), p. 48ff. bailarino treinado, mas de um trabalho de palco: o diálogo entre dançarino
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Claudia Rosiny Videodança: história, estética e
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dE videodança de arte intermidiática
e cinegrafista, entre o corpo em performance e a dupli- uma delas é baseada nos próprios antecedentes téc-
cação simultânea ou substituição no enquadramen- nicos e, hoje, as diferentes manifestações midiáticas
to, quando as imagens de vídeo são ao mesmo coexistem ou se sobrepõem umas às outras.
tempo projetadas em uma grande tela e em cenas
adicionais do trabalho — o encontro do bailarino Pioneiros do Cinema
com um partner no foyer do teatro, como também
o seu desaparecimento no canal de Amsterdã —, só As primeiras tentativas de registrar a dança em
pode ser visto no teatro se for assistido na tela.16 imagens em movimento já haviam sido feitas pelos
pioneiros do cinema, antes da virada do século.
A dança incorporou o movimento como tal e atestou
o fato de que pudesse ser representado em filme.
Naquele momento, a câmera tinha, exclusivamente,
um ponto de vista fixo, não se movendo em panorâ-
micas ou traveling, e somente lentes fixas. Estes
ii. Antecedentes na
primeiros filmes de dança eram reproduções curtas
História do Cinema
de danças simples realizadas no espaço de um
metro quadrado.
Em 1894, Thomas Edison, por exemplo, filmou
uma dança de dois minutos de Ruth Denis. Citemos
também a Sicilian Peasant Dance, que os Irmãos
Skladanowski exibiram em 1895, no “Wintergarten”,
Os esboços a seguir tentam dar uma pequena visão em Berlim. Os registros das Serpentine Dances, de
geral do percurso histórico da interferência da dança Loïe Fuller, eram familiares a Skladanowski, Edison,
no cinema. Com isso, os opostos da reconstrução e Méliès, Nadar e a uma das primeiras diretoras de
da criação representam uma dicotomia — por assim cinema, Alice Guy — embora a maioria destes filmes
dizer, duas linhas por entre a história do cinema mostrem apenas interpretações de suas imitadoras.
que, ao não se pretenderem limites estritos, permi- Os movimentos de câmera só passaram a ser usa-
tem também alianças. Assim como a sucessão dos mais tarde — por exemplo, no filme Intolerance,
16 Ver uma análise detalhada:
histórica de diferentes mí- em 1916, de D.W. Griffith, no qual Ruth Denis reapa-
Claudia Rosiny, “Tanz und Video. dias — cinema, televisão e rece dançando sob o pseudônimo de Ruth St. Dennis.
Die schwierige Kooperation zweier
Medien”, em: Tanzdrama (nº 5, 4º
vídeo — não pode ser vista Supostamente, Georges Méliès também filmou
trimestre, 1988), p. 29–32, p. 31f. como linear, já que cada a dança, entre as quais as do Folies Bergère e
dança em foco
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da bailarina italiana Pierina Legnani. Méliès — transmitem um efeito de suspensão. Em contraste,
como também Emile Cohl — já naquela época testou Ed Emshwiller, em Totem, filme realizado em
técnicas de animação para trazer objetos e figuras 1963 com a Alwin Nikolais Dance Company, usou
para a dança. Por isto, são predecessores de uma montagem acelerada para expressar movimen-
cineastas experimentais como Fernand Léger, Maya tos de dança apenas por meio de cortes. Hilary
Deren, Ed Emshwiller, Norman McLaren ou Hilary Harris, em 1966, dirigiu um filme de dança, chama-
Harris. Como em boa parte da videodança, hoje, do Nine Variations on a Dance Theme, no qual
os conceitos de muitos destes filmes eram, todavia, um solo de 50 segundos foi interpretado nove vezes
pouco comparáveis entre si. pela dançarina e mostrado em diferentes usos de
câmera e edição, que iam de um simples movimen-
Cinema de Vanguarda — to da câmera em torno da dançarina, passando
Cinema Experimental por close-ups e sequências de visão parcial, até
contramovimentos da câmera. “O filme pode partir
Entr’acte, de René Clair, e Ballet Mécanique, de Fer- da dança, acrescentar-lhe algo, enriquecê-la;
nand Léger, feitos por artistas visuais, são exemplos mas nunca deve destruir o que o dançarino está
de realizações cinematográficas de filmes abstratos. expressando”, disse Harris, em 1967, numa edição
Outros podem ser mencionados: as obras de Walter especial sobre cinema da revista americana
Ruttmann, Oskar Fischinger e Viktor Eggeling. Dance Perspectives.
A obra de Maya Deren, A Study in Choreography Como último exemplo dos antecessores do filme
for Camera, de 1945 — com sua concepção de espaço- experimental, gostaria de mencionar o trabalho
-tempo —, poderia ser descrita como um marco de Norman McLaren que, desde 1933, inclui incon-
da gênese da videodança. “Ele se move no mundo da táveis filmes que utilizam diferentes técnicas.
imaginação, no qual, como em nossos sonhos Com seus filmes desenhados à mão, influenciados
diurnos e noturnos, alguém se encontra, primeiro, pela obra de Oskar Fischinger, as figuras executam
em um lugar e então, subitamente, em outro, sem movimentos como os de uma dança. Em Pas de
ter que percorrer o espaço intermediário.” deux, de 1968, um casal de dançarinos, com malhas
A edição de elementos de espaço e tempo em brancas, foi filmado em tempo real, mas editado
longas tomadas é característica nos filmes mudos em câmera lenta e duplicado 11 vezes em mudanças
de Deren. Em parte, eram filmados ao contrário, graduais, de uma cena para outra. Esse efeito
produzindo uma série artificial de imagens em estroboscópico, que deixava aparente cada etapa
que frequentemente se perde a referência cinestési- do movimento, pode ser obtido hoje com vídeo e
ca para a gravidade, de modo que as imagens técnicas digitais.
dança em foco
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Apesar da simplicidade da câmera e da edição,
Filme Musical Astaire utilizava efeitos especiais. Não eram efeitos
cinematográficos, mas cenográficos. Até mesmo
Com o desenvolvimento do filme sonoro, a música seu solo em Núpcias Reais, no qual dança subindo
pôde ser sincronizada em fins da década de 1920 por paredes e teto, foi filmado em uma sequência ape-
e tornou-se muito importante para a dança. O mais nas, apesar do giro de câmera e de todo o cenário.
notável foi que, nos seus primórdios, a câmera era Suas reformulações influenciaram não só os
pouco movimentada, e mais uma vez tomou um musicais de fins da década de 1950, em especial os
lugar fixo no auditório. As cenas de dança eram de Gene Kelly, mas o cinema musical como um todo,
apenas interlúdios na narrativa. Filmes com longos que criou princípios gerais para a reprodução da
trechos de dança tornaram-se populares no cinema dança em filme, como se pode constatar nas sequên-
musical norte-americano com Fred Astaire. Entre cias e temas de dança presentes nos filmes de
1933 e 1957, ele criou aproximadamente 150 nú- Hollywood desde 1945 aos nossos dias. Para citar
meros de dança. Ele deu forma a um estilo conser- alguns, vale a pena mencionar Os sapatinhos verme-
vador de registrar a dança: não só a câmera devia lhos (1948), Um americano em Paris (1951), Amor,
permanecer inerte, mantendo o corpo inteiro Sublime Amor (1961), Os embalos de sábado à
enquadrado todo o tempo, como também não era noite (1977), Nos tempos da brilhantina (1978), Fama
permitido que os cortes perturbassem a integridade (1987), Salsa (1988) ou, mais recentemente, Vem
da coreografia; de qualquer maneira, quando eram dançar comigo (1992).
usados, eram dificilmente perceptíveis. John Mueller O ponto de vista oposto aos registros da forma de
descreve o “estilo Astaire de filmagem” na Dance dançar de Astaire foi desenvolvido nos filmes musicais
Magazine nº 5, de 1984: de Busby Berkeley. Enquanto no caso de Astaire
a câmera tinha de estar a serviço da dança, para
A grande maioria dos cortes não passa de despre- Berkeley era o contrário: a dança servia à câmera.
tensiosas mudanças de perspectiva, a fim de seguir As dançarinas formavam parte de suas imagens orna-
os dançarinos enquanto se movem, para mostrá-los, mentais. Era a câmera que criava a coreografia.
ou a coreografia, de forma ligeiramente mais van- As “garotas”, uniformizadas, eram dispostas em filei-
tajosa. […] Os cortes ocorrem em geral quando a ras, rosetas ou outro padrão geométrico qualquer —
coreografia encontra-se em transição, ou durante um 17 John Mueller, “Astaire-
movimentos e danças
padrão da dança que se repete, e não quando um -Style Film: Watching an american corais, que alcançariam
screen original”, em: Dance
movimento distinto ou especial está em curso. Eles Magazine (nº 5 1984), p. 131–135,
novos patamares logo
nunca são previsíveis e nem muito perceptíveis.17 p. 132. depois, no filme de revista
dança em foco
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alemão. Era possível ver esses princípios até pouco um enredo, ambos os elementos encontravam-se
tempo atrás em certas coreografias de companhias separados um do outro, ao passo que Astaire e
de balé da televisão. Foi creditada a Berkeley, pela outros diretores mais recentes de filmes musicais,
filmagem destes ornamentos — que só eram vistos como Vincent Minelli, Stanley Donen ou Gene Kelly,
efetivamente de cima —, a invenção do top-shot. buscavam uma unidade de enredo e coreografia,
Com isto, historicamente, ele liberou a dança das tratando-a, em parte, de forma irônica. A direção de
perspectivas frontais. Além disso, usou outras possi- Berkeley limitada até mesmo às cenas de dança,
bilidades dos meios cinematográficos, tais como enquanto as de enredo eram dirigidas por outros
trucagens com distorção das lentes e efeitos de espe- diretores de Hollywood.
lho, rastreamento expansivo e tomadas panorâmicas,
um tipo de edição que ia diretamente contra as A Dança na Televisão
regras estabelecidas por Hollywood, perspectivas
incomuns e manipulações de tempo e espaço. A bbc já difundia a dança antes da Segunda
Douglas Blair Turnbaugh descreve os princípios de Guerra Mundial. Um desses programas era,
Berkeley em Filmmaker’s Newsletter, nº 1, de 1970: na verdade, um filme de demonstração para atrair
compradores de televisão. Nele, a bailarina Mar-
Os “mosaicos” eram cinematográficos. […] A foto- got Fonteyn fazia um solo de dois minutos.
grafia de Berkeley era a coreografia. […] Sua genia- Depois da guerra e do estabelecimento de esta-
lidade consistia em ignorar o conceito de coreo- ções, a dança recebeu a mediação direta de cinco
grafia de palco e em coreografar utilizando elemen- programas ao vivo de tv, como em Londres,
tos cinematográficos — existe movimento no zoom “Live from Covent Garden”, e em Nova York,
e no fade. Berkeley estava trabalhando com lentes “Live from the Met” e “Live from Lincoln Center”.
e filme, mas não na linha do Roxy ou dos dançari- Hoje em dia, existem programas semelhantes
nos dos Ballets Russes. Seus “mosaicos” tinham na maioria das estações públicas de tv, mas
relação com a cinedança, como a concebemos registros e adaptações substituem a maior parte
hoje, e esses fragmentos inigualáveis (de onde viria dos programas ao vivo, embora não subsistam
orçamento?) são tesouros de um material que é, muitos nas grades de programação.
em geral, banal.18 As primeiras tentativas de coreografar a dança
para a televisão também foram realizadas pela
18 Douglas Blair Turnbaugh, Embora os números de bbc. Em 1937, Antony Tudor fez Fugue for Four
“Cinema, Dance, and Cine-dance”,
em: Filmmaker’s Newsletter (ano 4,
dança de Berkeley Cameras, com quatro imagens do mesmo dançarino
nº 1, nov.1970), p. 13–24, p. 21. estivessem baseados em — artifício usado de forma semelhante por Merce
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Cunningham tempos depois. A dançarina Maude Birgit Cullberg. Já em fins da década de 1960,
Lloyd fala sobre esse evento para Bob Lockyer: ela usou propositalmente o pequeno monitor de
televisão como uma espécie de minipalco. Seus
Fugue foi uma experiência com trabalho de câ- dançarinos moviam-se em frente a uma câmera
mera, e não com coreografia. E quando (Stephen) fixa, como explicou na época:
Thomas, o diretor, escolheu o tema de uma fuga
para ilustrar suas ideias, escolheu Tudor e a mim Hoje o movimento da câmera é muitas vezes visto
porque já tinha trabalhado muito conosco e admi- com mais admiração que o do ator. […] Na época
rava o trabalho de Tudor. A coreografia era total- dos antigos filmes mudos, era um espanto ver
mente clássica, com passos terre à terre — nenhum pessoas mexendo-se na tela. […] Descobre-se que
salto de que me lembre, certamente, nenhum os movimentos das figuras na tela são muito mais
grande salto — executados em um espaço extrema- eficazes quando a câmera está imóvel.20
mente limitado. Por conta de aspectos técnicos,
dos ângulos e da aproximação das quatro câmeras, Ela também usou, frequentemente, efeitos blue-box
enquanto o tema da fuga se desenrolava, o espaço como, por exemplo, em Red Wine in Green Glasses
que tínhamos para trabalhar devia medir três (1969). “Todo tipo de experimento com técnicas ele-
metros por dois. trônicas pode proporcionar efeitos artísticos novos”,21
A música era a “Fuga em Ré Menor”, de dizia ela. Entretanto, essa forma de trabalhar com
A arte da fuga, de Bach, e a solista foi Lloyd. Era cenários eletrônicos limitou-se às décadas de 1960
vista dançando no centro da tela. Depois, quando e 1970 e obteve, no máximo, uma continuidade
o segundo tema da música era introduzido, seus na inundação de imagens sintéticas do videoclipe.
movimentos a levavam para um lado, e a ela Merce Cunningham também experimentou em
juntava-se uma réplica de si mesma, e assim por Merce by Merce by Paik (parte I, 1976; parte II,
diante, até que estivesse dançando quadruplicada. 1978), juntamente com
19 Bob Lockyer, “Is Video Dance
Era altamente original e impressionante, sob an Art Form?”, em: Catalogue Dance o pioneiro da videoarte
o ponto de vista de como o balé e a televisão Screen (1992), p. 4–8. Ver também Nam June Paik, algumas
Janet Rowson Davis, “Ballet on
podiam combinar-se.19 British Television, 1933–1939”, em: possibilidades eletrôni-
Dance Chronicle (ano 5, nº 3, 1983), cas. Porém, em sua
p. 245–304, p. 279ff.
Como pioneiros na arte de coreografar diretamen- 20 Birgit Cullberg: “Television cooperação com Charles
te para a câmera, podemos considerar tanto o Ballet”, em: Walter Sorell, The Dance Atlas, descobriu as
has Many Faces (Nova York: 1992),
protagonista da dança pós-moderna americana, p. 137–143, p. 138.
características do espaço
Merce Cunningham, como a coreógrafa sueca 21 Ibid., p. 142. fílmico, a começar com
dança em foco
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Westbeth, de 1975, depois em Fractions I (1978),
Locale (1980) e Channels/Inserts (1982).

A Videodança Hoje iii. Quinze teses


para a fenomenologia
No âmbito dos vídeos de dança, produzidos da videodança
independentemente da televisão, a dicotomia entre
a reprodução do meio e da forma de arte aparece
com muita clareza. O aperfeiçoamento técnico
e a rápida disseminação do vídeo, desde a década
de 1970, tornaram possível em muito pouco tempo
registros flexíveis e econômicos, além de repro- As 15 teses a seguir são um resumo da análise
duções de dança. As variações surgidas no vídeo, que fiz em meu projeto de dissertação sobre
nesse ínterim, representaram para todas as videodança. Utilizei dois métodos para chegar a
companhias de dança um suporte indispensável, conclusões formais e estéticas em relação à video-
embora simples, para seu trabalho. Registros de dança. As primeiras cinco teses referem-se a essa
ensaios servem como controle visual da qualidade análise formal; o restante, a uma abordagem
dos movimentos, ou como ferramenta para encon- estética. Em meu livro, analisei 47 exemplos com
trar ideias se, por exemplo, as improvisações mais profundidade.
e os próprios ensaios são gravados. Registros de
espetáculos tornam mais fácil repetir coreografias 1 A videodança, em seus primórdios, nas décadas
com um elenco novo. Os registros em vídeo de 1980 e 1990, concentrava-se em certos
substituem descrições, material fotográfico e sis- países, especialmente os do Reino Unido,
temas de notação. Na área de marketing, produto- Bélgica, França, Estados Unidos, com apenas
res exigem registros como apoio visual aos pro- alguns projetos em outros países.
jetos. Hoje, a arte da dança é a que dispõe de mais
documentação visual. O mercado exige das com- 2 A videodança favorece formas curtas, com
panhias nova visibilidade e cooperação com poucos participantes, juntamente com exemplos
peritos. Essa disposição seria um estímulo para mais longos, em certas recriações para câmera
o desenvolvimento da videodança. de coreografias já existentes.

3 Nas estruturas de produção da videodança,


dança em foco
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parcerias estão sendo forjadas entre coreógra- 7 A videodança joga com níveis diferentes de reali-
fos, diretores e autores especializados, capazes dade, com o retrato do corpo em níveis diferentes
de dar conta de ambas as partes, além de de representações midiáticas.
observar o desenvolvimento de práticas conjun-
tas de produção e distribuição. Câmera

4 A videodança recebeu ocasionalmente o apoio 8 Na videodança, a câmera está se tornando ele-


de emissoras de tv para a produção de séries mento importante do movimento. Pode intensifi-
de coreografias para câmeras. Ademais, re- cá-lo ou anulá-lo, variá-lo e torná-lo estranho em
criações para câmera parecem estar sendo reali- sua tridimensionalidade. A câmera pode obser-
zadas de forma mais deliberada, afastando-se var à distância ou dançar ela própria, produzindo
da coreografia original para palco. desse modo uma reação cinestésica.

5 A videodança vem sendo produzida cada vez Espaço


mais em filme, embora o dinheiro para esse custo
mais alto seja gasto principalmente por estações 9 Da mesma forma que as novas formas de teatro
de tv e, a maioria, para categorias reproduti- e dança, a videodança está procurando por espa-
vas. Isso não é videodança, no sentido de se ços fora dos palcos: prédios vazios ou notáveis,
criar coreografia para a câmera, mas adaptações paisagens e cenários realistas.
de obras de palco que já foram sucesso, visando
um público televisivo maior. 10 Na videodança, o espaço escolhido pode suportar
um eventual motivo narrativo. A transição desses
Aspectos de corpo e dança espaços e os cortes de edição abrem possibilida-
des midiáticas que podem estimular a percepção.
6 Na videodança, diferentes modos de expressão
são vistos, tais como movimentos cotidianos e Tempo
elementos estilísticos do teatro-dança e danças
de orientação mais física, como o contato- 11 A videodança baseia-se em estruturas tempo-
-improvisação. Essas formas de dança podem rais que formam ilusões e camadas de imagens
ser caracterizadas por fenômenos de repetição associativas. Em virtude disso, dramaturgias
e interrupção, que são também expressivos fechadas são, com frequência, usadas sem se
em filme. resolver em uma linha narrativa.
dança em foco
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12 Na videodança, formas de eliminar o tempo coreografia para o palco ou se foram desenvolvi-
estão sendo usadas: câmera lenta, fast-motion e dos diretamente para a câmera, já que a partir
frames congelados podem construir um tempo do produto, o próprio filme, essa diferenciação
de movimento próprio dos quadros. não pode ser feita.

Som

13 Na videodança, o som é — se aquele original, dos


dançarinos, não estiver completamente ausente —
como a trilha sonora de um filme. Ocasionalmen-
iv. A Narrativa na
te, conceitos separados resultam do contraste
Videodança e no Cinema
entre imagem e som.

Estruturas eletrônicas

14 Na videodança, estruturas de moldura eletrônica


são às vezes usadas no sentido de uma edição
interna da estrutura narrativa. Se o aspecto visual É notável que alguns exemplos da videodança
for o dominante, a expressão física dos corpos mostrem um modo singular de narrativa. Entretanto,
desaparece num enquadramento dissolvido. não é o texto nem a fala o que determina um enredo,
mas os elementos dessa narrativa e o enredo estão
Narrativa sendo expressos através de movimentos e gestos.
E, além disso, espaços diferentes e estruturas do
15 A videodança utiliza formas narrativas cinema- tempo cinematográfico ajudam a transportar essas
tográficas, nas quais modos de expressão do histórias. Todos os movimentos de câmera, pontos
corpo e do movimento podem motivar a história. de vista e enquadramento podem funcionar como
Dentro desse conceito, todos os aspectos do parâmetros para que uma narrativa crie qualquer
uso de corpo, câmera, espaço, tempo, som e possibilidade de ilusão. O nível da música e do som
manipulação de moldura eletrônica são combi- ajuda a construir ilusões ou enredos.
nados em uma obra de arte intermidiática e, ao Creio que uma das coisas mais difíceis com
mesmo tempo, original. Com isso, não é impor- relação à narrativa nos filmes de dança ou na video-
tante se ideias e materiais provêm de uma dança é que qualquer análise de uma dança já é
dança em foco
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em si um árduo desafio. Como interpretar a transfor- é contada, presumindo-se o que o teria levado
mação da dança em linguagem escrita? É o mesmo àquele salto. Relata-se o encontro entre Nijinsky e
problema que se encontra em todas as teorias Serge Lifar, que é baseado em indícios biográficos.
sobre cinema. Primeiro, é preciso aceitar que o Sabe-se que Nijinsky, a partir de 1916, passou a
cinema “fala” em uma outra linguagem, mais dilata- sofrer de um declínio mental e que, depois de 1919,
da que a nossa. Depois, há que se transferirem todos não dançou mais em público. Serge Lifar, nascido
os diferentes níveis de linguagem para a outra, que em 1905, substituiu-o, depois de 1923, como solista
é falada ou escrita. Ao entremearem-se dança dos Ballets Russes, e recebeu grande atenção do
e cinema, é necessário lidar com um desafio muito público, antes de passar a diretor, entre 1929 e 1945,
mais complexo. A escolha dos três exemplos a do balé da Ópera da Paris. Os dois conheceram-se
seguir tenta apontar abordagens diferentes e varie- — como indica um letreiro no início do filme —
dades de narrativa, através do movimento, em uma em 1939, em Kreuzlingen, na Suíça, onde Nijinsky
linguagem corporal e cinematográfica. permaneceu por 20 anos em um hospital psiquiátri-
co. Ele aparece como necessitando de cuidados,
Final juntamente com a esposa. Ambos estão indo para
uma academia de balé. Todos os comentários bio-
O primeiro exemplo é uma videodança intitulada gráficos são feitos por uma voz em off, em um francês
Final, produzida na França em 1990. A coreografia com sotaque russo, que acaba revelando-se ser
de Serge Lifar é dançada por Philippe Anota; Alex a da esposa. Ao chegar à academia, vê-se Lifar fazen-
Ursuliak faz o papel de Nijinsky, e Veronique Silver do aquecimento, ao som de études clássicos de um
o de sua esposa. No começo desse projeto, havia piano, e um fotógrafo prepara-se uma seção de fotos.
uma fotografia. Mostrava um homem na casa dos Mais adiante, no filme, Lifar dança para Nijinsky —
50 anos, calvo, vestindo um terno justo, que parece que é colocado numa cadeira — várias passagens
estar subindo no ar; os braços bem abertos, o rosto de coreografias do próprio, até a exaustão. A cadeira
sem nenhuma expressão. Parece estar levitando. que estava colocada em um lado do estúdio, sobre
A fotografia que dá início a Final — l’ultime a qual ele sentava-se imóvel é, a certa altura, trans-
rencontre de Nijinsky et Lifar foi tirada pelo jovem portada até o meio do espaço para dançar, e Lifar
fotógrafo Jean Mazon, em 1939, para o jornal dança em torno dele, enquanto a câmera move-se em
Paris Soir. Ela mostra Vaslav Nijinsky, aos 50 anos, direção contrária. Após parecer ter adormecido,
dando um salto, que viria a ser o último salto docu- ele move de repente as mãos. Ao que Lifar começa
mentado daquele que foi considerado o “deus da a dançar e saltar alguns entrechats, por cuja per-
dança”. A partir dessa foto, uma história ficcional formance Nijinsky era famoso, fazendo sua pose em
dança em foco
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L’après-midi d’un faune. O rosto do “deus da dança” carreira chegou ao fim. O filme foi produzido em
ilumina-se, e ele levanta-se da cadeira, colocando- 1990, no Reino Unido, coreografado e dirigido por
-se em posição para um salto, que é congelado quando Darshan Singh Buller.
está no ar, como na fotografia.22 Após fazer o filme, Celeste Dandeker fundou sua
A narrativa em Final é um exemplo de mescla própria companhia de dança contemporânea — a
de ocorrências históricas, com uma história ficcio- CanDoCo, na qual portadores de deficiência e não por-
nal em torno da lenda e das fantasias sobre tadores dançavam juntos. Foi o começo de todo
Nijinsky. Para contar isso, artifícios cinematográfi- um movimento de grupos e espetáculos nessa área
cos são combinados. Para enfatizar o relaciona- de dança comunitária, que existe até hoje. O filme
mento entre Nijinsky e Lifar, ou Nijinsky e a esposa, começa com imagens coloridas de Dandeker, senta-
mudanças de tomadas de detalhes clássicas da em sua cadeira de rodas, que cai para trás de
são colocadas junto. O fato de que o filme tenha sido repente. Ela grita, ao que um homem na cozinha
realizado em preto e branco suporta a visão históri- berra “Não” e vem correndo, mas em câmera lenta.
ca. Todos os ângulos e enquadramentos de câmera Enquanto ela está caída no chão, alguns flash-
são usados no sentido cinematográfico clássico, backs em preto e branco, como num lapso de tempo,
a fim de enfatizar a narrativa, colocando os diferen- mostram as lembranças da mulher. Primeiro,
tes personagens em suas relações uns com os antes do acidente, sua infância e juventude; depois,
outros. Final estava no vasto campo de exemplos duas outras cenas, suas primeiras tentativas de
que observei quando fazia minha pesquisa sobre dançar com um parceiro, tendo as pernas paralisa-
vídeodança uma exceção. Mas acho que fornece das. No final, o homem que veio correndo da
uma boa indicação de que mesmo uma fotografia cozinha levanta-a, juntamente com a cadeira de
pode dar a ideia de uma narrativa. rodas, e a câmera termina mostrando uma foto em
22 Uma exibição de Art Brut,
preto e branco de
The Fall realizada no começo de 1997, na Dandeker, dançando no
Biblioteca Nacional Suíça, em
Berna, mostrou uma série de fotos
palco antes do acidente.
Enquanto no último exemplo o tempo aparecia de Nijinsky e Lifar, inclusive Numa narrativa tipica-
a fotografia do salto. A legenda
ligado de forma linear até o final, com a fotografia confirma o nome do fotógrafo,
mente cinematográfica,
congelada, o exemplo seguinte, The Fall, reflete a como mencionado em Final, Jean em The Fall os níveis de
Mazon, embora, para a revista
história de um acidente que ocorreu de fato. O filme parisiense Match, o encontro venha
realidade são mesclados:
é inspirado na vida da dançarina inglesa Celeste datado de 9 de junho de 1939, lembranças em preto e
e o local é dado como o hospital
Dandeker, que teve as pernas paralisadas após um psiquiátrico de Muensingen, onde
branco, em cenas diferen-
acidente no palco, em consequência do qual sua Lifar teria visitado Nijinsky. tes, com peças musicais
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Claudia Rosiny Videodança: história, estética e
estrutura narrativa de uma forma
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dE videodança de arte intermidiática
distintas, são todas filmadas no mesmo espaço de grafia mantêm-se mais ou menos no mesmo nível,
dança. Algumas em câmera lenta e em ângulos mas o todo é transportado para espaços reais e
extremos como, por exemplo, tomadas do alto, para filmado de forma cinematográfica. O filme tem uma
mostrar a dança feito um carrossel. As inserções hora a menos que a produção teatral, o que é típico
coloridas exibem, na maior parte, tomadas a curta de espetáculos transpostos para cinema. O tempo
distância do rosto de Dandeker, que parecem um é reduzido para que o filme caiba na programação
vislumbre de suas lembranças. Uma voz radiofônica de televisão.
em off explica algumas delas, num nível adicional. Diferente de outros filmes da DV8, como Dead
The Fall lida com memórias, como o cérebro parece Dreams of Monochrome Men ou Never Again,
às vezes juntar seus fragmentos. Tudo isso aconte- para Strange Fish foi escolhida uma narrativa emo-
ce como se fosse um longo período de tempo, mas cional muito complexa, na qual Newson faz pergun-
na verdade não passa de uns poucos segundos tas como: “A dança pode ser cômica? Só através
após a queda e a chegada do parceiro. O filme, de movimentos é possível fazer teatro tragicômi-
assim como Final, é outro exemplo simples de uma co?”.23 A esse respeito, a obra teatral já tinha uma
história contada com sucesso em videodança. Além estrutura narrativa. Em Strange Fish, além da
de alguns comentários textuais em Final e a voz 23 Josephine Leask, “Das
conversação parcialmen-
radiofônica em The Fall, nenhuma linguagem é Schweigen der Männer. Essay zum te não compreensível
‘Physical Theatre’ des Lloyd
usada em nenhum dos dois filmes, nem para contar Newson”, em: Ballett international /
do protagonista Nigel
a história nem para a comunicação entre as pesso- Tanz aktuell (nº 8–9, ago/set.1995), Charnock, toda a narrati-
p. 48–53, p. 50. Judith Mackrell
as. Tudo é narrado por meio de imagens e pela va é expressa por meio
descreve, em uma recapitulação
forma como estas foram filmadas. Em The Fall, de uma conversa com o coreógrafo da comunicação pelo
observa-se uma estrutura muito clara de diferentes Newson, o funcionamento dos movimento. Em um nível
personagens nas obras da DV8 pelo
níveis de tempo. movimento em Enter Achilles, que formal, o filme possui
é o último trabalho filmado do uma estrutura fechada.
grupo: “A dificuldade surge em
Strange Fish parte porque as pessoas não estão Começa e acaba na
acostumadas a ver caracterização mesma sala, de aspecto
via movimento. […] É o movimento
O terceiro exemplo de videodança é uma narrativa o responsável pelo grosso da sacro, com uma cruz e as
muito complexa. Trata-se de Strange Fish, do caracterização e pela maior parte mesmas duas mulheres,
do enunciado.” Judith Mackrell,
coreógrafo Lloyd Newson e do diretor David Hinton, “Truly, Badly, but Terribly Manly”,
uma das quais canta.
com a companhia britânica DV8, produzido em em: Catalogue TTVV Videofestival Porém, nesse parêntese
(Riccione: 1996), p. 128–129.
1992. É uma interpretação cinematográfica de uma Reedição de um artigo publicado no
do enredo, a principal
peça para teatro. Estrutura, personagens e coreo- jornal The Guardian, 3.set.1995. personagem feminina
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Claudia Rosiny Videodança: história, estética e
estrutura narrativa de uma forma
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dE videodança de arte intermidiática
passa por uma mudança. Na primeira cena, a Todos os oito, mais a cantora, numa função de
mulher pendurada como um Cristo feminino entoa comentadora, desempenham seus papéis com
cânticos numa sala que parece uma igreja, decora- gestos individuais e repertório de movimentos. Por
da com inúmeras velas. A protagonista, Wendy meio do casal protagonista, com seus movimentos
Houston, olha para ela. Na última cena do filme, cômicos, semelhantes aos de um palhaço, con-
praticamente no mesmo cenário, sem as velas e trastando com os outros personagens, certos temas
com a cantora pendurada outra vez na cruz, Wendy são percebidos, e uma espécie de aproximação e
Houston sobe até ela, tira vinho de um cálice resistência, de buscar sem encontrar, entre os dois,
e borrifa-o em seu rosto, quando exala o último pode ser acompanhada. A maioria das mudanças
suspiro, e deixa a sala, purificada. de perspectiva de câmera está ligada por meio de
Strange Fish lida com temas emocionais dife- um movimento de entrada e saída de um quadro, ou
rentes: fé, busca de autoconhecimento, solidão e é indicada pela visão de um personagem. Além disso,
mecanismos de exclusão grupal. Tratam-se de tenta- muitas das perspectivas de câmera são pontos
tivas desesperadas de encontrar reconhecimento de vista subjetivos, que remetem aos acontecimen-
num grupo, entrar em contato com outros, fazer tos e ajudam o espectador a se identificar com
amizades — o que nenhuma das duas protagonistas os personagens. Os protagonistas são marginais e
consegue. As linhas narrativas lidam com paixão, perdedores. Ela perde a companheira para um
desejos não realizados, conflitos, sofrimento, sexo homem e sofre novo trauma quando é explorada em
e religião. Esses temas são explorados em cenas e uma relação sexual mecânica. Ele tenta de forma
cenários diferentes, apresentados no filme em desesperada e irritante ser amado pelos outros,
ambientes distintos: um bar, um salão de festas, mas falha e, no final, vê-se abandonado por todos.
um aposento com três portas de cada lado, uma Strange Fish, na área da videodança, é um
sala na qual, sob o piso de madeira, há uma piscina modelo para motivos narrativos que são transporta-
com água suja, além da sala semelhante a uma dos por meio de personagens e suas constelações.
igreja, do início ao fim. Veem-se alusões a várias Esses motivos narrativos são realçados por espaços
imagens freudianas e símbolos conhecidos. Alguns cinematográficos estilizados, que são avermelhados
cenários remetem a ícones cristãos, à mitologia ou azulados. Uma câmera em movimento propor-
ou a citações de história da arte, como as imagens ciona uma proximidade aos acontecimentos,
de crucificação de Caravaggio. juntamente com a trilha sonora e um fluxo contínuo
Além das transições lógicas em uma linha de de ocorrências, por meio da concatenação de
tempo linear e para diante, em Strange Fish os perso- quadros e sequências. Em Strange Fish, o absurdo
nagens acrescentam aspectos narrativos ao filme. e o engraçado encontram-se reunidos em uma
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Claudia Rosiny Videodança: história, estética e
estrutura narrativa de uma forma
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dE videodança de arte intermidiática
narrativa de movimentos. Por meio de uma conste- diferentes, estrutura de tempo, escolha de perspec-
lação de personagens afinada e combativa, emo- tivas para a câmera, acréscimo de trilha sonora e,
ções, conflitos e sequências diferentes de ação são às vezes, de alguns efeitos eletrônicos, obtidos na
transpostas. Diferentes leituras são possíveis maioria das vezes com movimentos corporais e
durante a curva narrativa apresentada: assim como ação de dança. Embora essas estruturas narrativas
o desdobramento da relação de Wendy Houston conscientemente calculadas possam ser interpreta-
com sexualidade, formação de grupos em geral ou das como concessão ao gosto do grande público,
discussões sobre religião. É claro que a interpreta- fica claro que o movimento fala uma “linguagem”
ção de todos esses motivos narrativos indicados aberta. Isso fica menos determinado que os diálo-
depende de como cada um dos espectadores recebe gos falados das obras cinematográficas e teatrais,
um trabalho desses. abrindo, portanto, nossa recepção. Creio que
Com a discussão desses exemplos, pode-se nessa abertura, com sugestões possíveis de signifi-
afirmar sobre a narrativa na videodança que ela é cado, encontra-se uma chance para a videodança
baseada, fundamentalmente, em convenções cinema- e também, possivelmente, para a narrativa na
tográficas como transparência e construção da dança, porque uma conscientização nova e indivi-
realidade. Todos eles mostram modelos tradicionais dual pode ter início.
de uma dramaturgia fechada. Certos temas, confli-
tos e questões básicas podem ser filtrados, mas
falta em geral uma história ou enredo, de fato, com
um conflito que chegue a um clímax, ou um proble-
ma a uma solução. Em vez de uma dramaturgia
com enredo, uma constelação de personagens
definidos e a condensação através de omissões
e excertos, o que se vê é na maior parte uma suces-
são episódica de quadros e sequências que levam
a associações. Na videodança, uma história
surge apenas em um efeito cognitivo, semelhante
ao da dança ou dança teatral, no palco, quando
os membros da plateia constroem individualmente
uma história e um significado. Entretanto, esses Este artigo é um resumo de capítulos e conclusões
dados narrativos aparecem próximos a parâmetros: de minha pesquisa sobre videodança, publicada
com a ajuda de espaços cinematográficos com o título em alemão de: Videotanz. Panorama
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Claudia Rosiny Videodança: história, estética e
estrutura narrativa de uma forma
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dE videodança de arte intermidiática
einer intermedialen Kunstform (Zurique: Chronos, Beatriz Cerbino e
1999). Foi traduzido e revisado para a versão de 2009 Leandro Mendonça
do dança em foco — Festival Internacional de Vídeo
& Dança. Estou preparando outro livro em alemão
sobre dança e cinema a ser publicado em breve.
Nessa pesquisa, ampliei o campo a fim de dar mais
exemplos de encontros intermidiáticos entre dança
e cinema, além de videodança, como o uso de proje- Coreografia, corpo
ções no palco, o papel da dança no cinema e nos
vídeos musicais, ou de aspectos novos como o uso e vídeo: Apontamentos
de meios digitais na dança ou dança no YouTube. para uma discussão

Beatriz Cerbino é doutora em História pela uff (Universidade Federal Flumi-


nense). Professora adjunta do curso de graduação de Produção Cultural e
do ppgca (Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das
Artes) da uff.
Leandro Mendonça é doutor em Comunicação pela eca/usp (Escola
de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo), professor adjunto
do Programa de Pós-Graduação em Estudos Contemporâneos das Artes da
uff (Universidade Federal Fluminense) e professor do pped (Programa
de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento)
da ufrj (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

dança em foco
Ensaios contemporâneos
Claudia Rosiny
150–151
dE videodança
No final de 2010 e nos primeiros meses de 2011, sobre as fronteiras e significados de citação, influ-
um vídeo postado no YouTube causou sensação, ência, homenagem e apropriação: o videoclipe
espalhando-se rapidamente pela rede: John Lennon da música Countdown, de Beyoncé, com referências
da Silva dançando sua versão de O Cisne, 13º an- diretas aos trabalhos de videodança Rosas danst
damento de O Carnaval dos Animais, de 1886, do Rosas1 e Achterland,2 ambos da coreógrafa belga
compositor francês Camille Saint-Saëns. A peça Anne Teresa De Keersmaeker. Trechos das coreogra-
alcançou notoriedade em 1907, quando Michel Fokine fias, bem como dos cenários, figurinos e o uso
(1880–1942) utilizou-a para o solo que coreografou da câmera foram apropriados sem que houvesse,
para Anna Pavlova (1881–1931), com o título de inicialmente, menção às obras que serviram de
A Morte do Cisne, tornando-se mais tarde a marca inspiração. Existem outras alusões em Countdown,
registrada da bailarina. Todo dançado nas pontas, como a trabalhos de Andy Warhol, Richard Avedon
durante cerca de três minutos, esse balé é hoje e à figura de Audrey Hepburn, mas é em relação
uma importante referência da fusão entre técnica a estas duas obras de Keersmaeker que as referên-
e emoção na dança cênica. cias são mais evidentes.
Sem possuir formação clássica, John releu a obra Estes dois exemplos, apesar de distantes em
a partir do popping, técnica de dança de rua em que suas motivações, são interessantes ao colocar no
se ondula o corpo por meio de contrações muscula- centro do debate determinados aspectos de temas
res, realizando movimentos que lembram, alterna- como coreografia, autoria e obra, assim como
damente, os de um robô e os das ondas, de acordo de corpo e videodança: como uma coreografia opera
com a marcação da música. Coreograficamente o no processo de construção do movimento do corpo?
trabalho do jovem dançarino em nada lembra o de A implementação desse tipo de informação pode
Fokine/Pavlova, a não ser o uso da música. Trata-se, ser percebida do ponto de vista da autoria? Há uma
de fato, de outra obra, mas que se inspira no original oposição entre o movimento do corpo no palco e
de 1907 para apresentar aquele feito para a tela? Estas são algumas ques-
1 Coreografia de Anne Teresa De
Keersmaeker, com música de Thierry as possibilidades de tões que ajudam a refletir acerca destes campos,
De Mey, estreou nos palcos em 1983. desconstrução e desarti- estabelecer relações e contribuir para seu processo
Em 1997, a videodança da obra
foi lançada, com direção de De Mey. culação do corpo humano. de amadurecimento. Para isso, é preciso visitar
2 Coreografia de Anne Teresa De No mesmo ano de alguns aspectos do que é conhecido como coreo-
Keersmaeker, com música de Eugene
Ysaye e Gyorgy Ligeti, estreou 2011, outro vídeo chamou grafia e videodança, assim como do pensamento
nos palcos em 1990. O trabalho de atenção, embora de manei- sobre autoria e obra.
videodança, com o mesmo nome, foi
lançado em 1994, com direção de
ra oposta, ao suscitar
Keersmaeker e Herman Van Eyken. uma intensa discussão

dança em foco
Ensaios contemporâneos
Beatriz Cerbino e
Leandro Mendonça
Coreografia, corpo e vídeo:
Apontamentos para uma discussão
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dE videodança
e sobre o uso de leques, lenços e espadas. A nota-
ção proposta por Arbeau era simples, mas atendia
às necessidades da época: imprimiu verticalmen-
te no papel a frase musical e ao lado de cada nota
Coreografia, autoria e obra o passo correspondente.
Os estudos sobre as relações entre movimento
corporal, música, espaço e lugar tornaram-se,
a partir dos estudos de Arbeau, cada vez mais apro-
fundados. O desafio era encontrar maneiras e
formas de representar em uma superfície bidimen-
sional, o papel, a tridimensionalidade dos movimen-
O termo coreografia deriva de duas palavras gregas: tos executados. Algo que só viria a ocorrer 111
choreia, síntese de dança, ritmo e voz, encontrada anos depois.
no coro grego; e graphein, ato de escrever. Há ainda No dicionário Houaiss são apresentados três
duas outras raízes para o termo: orches, que iden- significados para a palavra coreografia: “a arte de
tifica o espaço entre palco e plateia, espaço ocupa- conceber os movimentos e passos que vêm compor
do pelo coro; e chora, que traz uma noção geral determinada dança; os movimentos e passos
de lugar. Não à toa, um dos primeiros tratados sobre criados pelo coreógrafo; e qualquer sequência de
dança, publicado na França renascentista em 1589 movimentos que lembram uma dança.” Tais defini-
por Thoinot Arbeau3 (1519–1595), intitulava-se ções, que aproximam o ato de dançar do ato de
Orchésographie. O livro de Arbeau, além de listar criar uma dança, deixam de lado o sentido primeiro
músicas e apresentar uma série de passos, descre- da palavra, e hoje em desuso: a arte de escrever
via com palavras como estes deveriam ser exe- danças no papel. É a partir deste ato de escrita que
cutados, informando sobre Susan Leigh Foster4 situa o surgimento da noção
3 Anagrama de Jehan Tabourot,
cônego da Catedral de Langres, tempo e estilo, e correla- de autoria na dança, com a publicação do tratado
na França. O livro parte de um diá- cionando-os com a Chorégraphie, ou l’art de décrire la danse, de Raoul-
logo entre dois personagens, um
mestre e seu discípulo, Capriol, que música. Outro aspecto Auger Feuillet (1653–1709), em 1700.
conversam sobre a necessidade de que chama atenção está Feuillet não foi o primeiro a buscar uma forma
escrever danças para que estas
não se perdessem. no fato de oferecer de anotar dança. Antes dele, outros mestres de
4 Susan Leigh Foster, “Choreo- conselhos sobre a etique- balé já haviam publicado tratados e compêndios
graphy”, em: Choreographing em-
pathy: kinesthesia in performance
ta de dança da época, sobre o tema — como o supracitado Arbeau, os
(New York: Routledge, 2011), p. 1–72. como realizar reverências, italianos Fabrizio Caroso (c.1526–1605) e Cesare
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Beatriz Cerbino e
Leandro Mendonça
Coreografia, corpo e vídeo:
Apontamentos para uma discussão
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dE videodança
Negri (c. 1535–1604),5 e os franceses Jean Favier e ilustrações de homens e mulheres seguindo a
André Lorin6 —, mas Feuillet foi o primeiro a apre- escrita da dança no chão, é possível perceber como
sentar símbolos gráficos e a estabelecer uma esta se preocupava com o deslocamento espacial
relação destes com espaço e movimento do corpo, do corpo, evidenciado pela centralidade das figuras.
criando assim uma maneira inteiramente nova para O posicionamento das pernas e dos pés também
se pensar o deslocamento do corpo no espaço. é um aspecto importante do trabalho de Feuillet,
Os passos e sequências de movimentos apresenta- o que pode ser visto especialmente na figura mascu-
dos por Feuillet, mais sofisticados do que os mostra- lina. Além disso, chama atenção na imagem a
5 Em 1581, Caroso publicou Il
dos nos tratados anterio- partitura musical na parte de cima da página, a ser
ballarino e, nove anos depois, Nobilità res, eram utilizados seguida pela partitura de movimentos.8
de dame, em 1600. Já Cesare Negri
lançou seu livro Le gratie d’amore em
tanto nas danças sociais Neste início do século xviii, importantes mudan-
1602, reeditado em 1604 com o título quanto nos palcos dos ças ocorreram não apenas em relação aos passos
de Nuvone inventioni di balli. Estes
tratados possuem formato parecido,
teatros, embora os mais e sequências — cada vez mais intricados e exigindo
com textos explicando os passos complexos tenham sido mais habilidade para sua execução —, mas também,
e suas relações com as sequências
musicais. (<http://memory.loc.gov/
executados apenas por e principalmente, em relação à própria noção de
ammem/dihtml/diessay2.html>). bailarinos profissionais.7 corpo. Segundo Susan Foster, “the notation bound
6 Em 1688, Jean Favier divulgou
seu sistema de notação de dança
Dominar esta nova dança the dancing to the ground on which it occurred,
com a peça Le marriage de La grosse tornou-se um símbolo not to its indigenous location, but rather to an abstract
Cathos. André Lorin, em c. 1685 e em
1688, publicou, respectivamente,
de status social e artístico. and unmarked ground ”.9 Ao reorganizar o espaço
Livre de contredance presente au Roy Uma demonstração de em que a dança ocorria, Feuillet, por meio de sua no-
e Livre de La contredance du Roy,
seus manuscritos com notações de
virtuosidade que distin- tação, proporcionou uma reestruturação da corpora-
danças camponesas inglesas. guia não apenas amado- lidade: as noções de centro e periferia, tanto do
7 O tratado de Feuillet foi traduzi-
do, seis anos depois, para a língua
res e profissionais, mas espaço quanto do corpo, passaram a fazer parte da
inglesa por John Weaver (1673–1760), também classes sociais. criação e da execução daquelas danças.
com o título de Orchesography.
Além dessa tradução, Weaver publi-
Nas imagens do ma- Uma transformação tão profunda que perma-
cou dois livros, também em 1706: nual The art of dancing neceu em voga até a década de 1920 do século
A Small Treatise of Time and Cadence
in Dancing e A collection of ball-
explained by reading and seguinte, quando o italiano Carlo Blasis (c. 1797–
-dances performed at court. Em figures, de Kellom Tom- 1878) publicou seus dois primeiros e mais importan-
1721, lançou Anatomical and Mechan-
ical Lectures upon Dancing.
linson, de 1735, nota-se tes livros: Traîté élémentaire, théorique et pratique
8 Disponível em <http://www. esta mudança. Ao com- de l’art de la danse, em 1820, e The Code of Terpsi-
minuetcompany.org/otherimages/
kellom1.jpg>.
binar o sistema de notação chore, em 1828. É certo que, na segunda metade
9 Susan Leigh Foster, Ibid, p. 26. de Raoul Feuillet com do século xviii, Jean-Georges Noverre (1727–1810)
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Beatriz Cerbino e
Leandro Mendonça
Coreografia, corpo e vídeo:
Apontamentos para uma discussão
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dE videodança
já havia apontado a necessidade da dança barroca importância, a criatividade. Um lento e persistente
se transformar, tornando-se expressiva e não desenvolvimento da estrutura da expressão da
apenas virtuosística,10 mas é com Blasis que essa dança é claramente observável durante este grande
modificação ocorre de maneira mais profunda em intervalo de tempo. No período entre a proposição
termos de técnica e percepção espacial. As ques- de Thoinot Arbeau e os cinco princípios de Fokine
tões deixadas por Noverre — como tornar o corpo existe um duplo movimento. Primeiro, o progresso
10 Mariana Monteiro, Noverre:
expressivo e como se da codificação da arte da dança, essencial para
cartas sobre a dança (São Paulo: conta uma história apenas a história da dança, em que o surgimento do Traîté
EdUSP/Fapesp, 1998).
11 Dicionário Aurélio Eletrônico,
com o movimento do élémentaire pode servir de marco temporal. Junto
verbete “estrutura”. corpo? — remetem à pos- a isso, temos a projeção de novos espaços expressi-
12 Balé em um ato, músicas
de Frédéric Chopin, cenário
sibilidade mesma da cria- vos que aparecem, justamente, tomando como
e figurinos de Alexandre Benois, ção de uma escrita da ponto de partida o esgotamento desta codificação
estreou no Teatro Chatelet,
em Paris, em 2 de junho de 1909.
dança. Devemos explici- mais rígida.
Debra Craine e Judith Mackrell, tar que a criação de Em carta publicada no jornal londrino The Times,
Oxford dictionary of dance (Oxford:
Oxford University Press, 2000),
uma escrita é, em si, atra- em 6 de julho de 1914, Michel Fokine, coreógrafo e
p. 459–460. vessada pela construção bailarino dos Ballets Russes de Diaghilev de 1909 a
13 Balé em um ato, música
de Igor Stravinsky, libreto de Michel
de linguagem e, neste 1913, companhia em que criou suas principais obras,
Fokine, cenários e figurinos de sentido, cria um “sistema como Les Sylphides12 (1909), Pássaro de Fogo13 (1910),
Alexander Golovin, e figurinos
adicionais de Leon Bakst, estreou
de relações abstratas que Petrouchka14 (1911), e O espectro da rosa 15 (1911),
na Ópera de Paris, em 25 de junho formam um todo coerente, expôs ao público da Europa ocidental o que chama-
de 1910. Ibid., p. 183.
14 Balé em um ato, música de
que subjaz à variedade va de “novo balé” e os cinco princípios que o regiam:
Igor Stravinsky, cenários e figurinos e variabilidade dos primeiro, não formar combinações previamente
de Alexandre Benois, libreto de
Benois e Stravinsky, estreou no
fenômenos empíricos”.11 conhecidas e passos pré-estabelecidos; segundo,
Teatro Chatelet, em Paris, em 13 Na mesma direção, o gesto mimético só deveria ser utilizado se servisse
de junho de 1911. Ibid., p. 371.
15 Balé em um ato, libreto de
podemos observar um como expressão para a ação dramática; terceiro,
J. L. Vaudoyer, música de Karl-Maria deslocamento do espaço todo o corpo deveria ser expressivo, e não apenas
von Weber, cenários e figurinos
de Leon Bakst, estreou no Teatro
da execução e do execu- as mãos; quarto, todos que participam do balé
de Monte Carlo, em 19 de abril tante. Esses são, gra- deveriam ser expressivos, ou seja, os grupos forma-
de 1911. Ibid., p. 446.
16 Michel Fokine, “Letter to
dativamente, empurrados dos em cena não deveriam ser utilizados apenas com
The Times”, em: R. Copeland, para o espaço do vir- objetivo ornamental; e, por último, a dança deveria
e M. Cohen, (org.). What is dance?
(Oxford: Oxford University Press,
tuosismo, onde o domínio dialogar com as outras artes.16 Longe de regras
1983), p. 259. técnico supera, em rígidas a serem seguidas, tais preceitos foram apre-
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Beatriz Cerbino e
Leandro Mendonça
Coreografia, corpo e vídeo:
Apontamentos para uma discussão
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dE videodança
sentados como uma proposta de (re)formulação coreográfica. Compreende, sim, uma mudança da
para tornar o balé, segundo seus ideais, uma arte em função autoral operada pela nova démarche presen-
consonância com o século que se iniciava. te na complementaridade entre corpo e obra.
Fokine afastou-se da estrutura coreográfica A percepção de uma ruptura também pode ser
estabelecida pelo francês Marius Petipa (1818–1910) vista como uma contínua revalorização do bailarino
na segunda metade do século xix, em São Peters- e da execução, que suporta um tipo de expressi-
burgo, criando obras curtas, apresentadas em vidade e narratividade só possível onde novas e
um só ato, em contraste aos longos balés de três antigas funções criativas são deslocadas, de forma
ou quatro atos que vigoravam absolutos até os a borrar o espaço da autoria.
primeiros anos de 1900. Basta observar um exem-
plo de notação Stepanov do balé La bayadère, de
Petipa, para vermos a rigidez e, por outro lado, a
complexidade atingida pela notação coreográfica.17
Os cinco princípios listados por Fokine ajudam a
refletir sobre como a ideia de coreografia se trans-
formou na virada do século xix para o xx, e como VIDEODANÇA E AUTORIA
o entendimento de movimento é transformado
na direção de uma nova posição ontológica. Como
que em um movimento circular histórico, a dança
retoma a importância do ato de dançar em si e
o recoloca em um patamar bem mais próximo do da
escrita coreográfica. Com a diminuição do imagina-
17 A notação Stepanov foi
do e a valorização do A aproximação entre cinema e dança, e mais tarde
criada por Vladimir Ivanovich específico de cada corpo vídeo, não é recente. Os cruzamentos do que agora
Stepanov (1866–1896), que
elaborou o L’álphabet des move-
executante, o ato de é nomeado, dentre outros vários nomes, como video-
ments du corps humain. Atual- dançar torna-se autoral dança têm início ao final do século xix. Em 1895,
mente, os três métodos mais
utilizados de escrita coreológica
em um sentido completo. um filme de Thomas Edison, Annabelle’s Butterfly
são o Labanotation, o Benesh Não restringe nossa Dance, já mostrava esses primeiros experimentos e
Movement Notation e o Sutton
Movement Shorthand. Disponível
proposição a exploração tentativas de aproximação destas formas artísticas.
em <http://en.wikipedia.org à existência de uma maior Neste breve filme, a dançarina Annabelle Moore
/wiki/File:Bayadere_- Stepanov_
horeographic_Notation_-circa
restritividade sistêmica (1878–1961) aparece envolvida por um longo tecido
_1900.jpg>. implicada pela escrita branco, contando com o recurso de varinhas,
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Beatriz Cerbino e
Leandro Mendonça
Coreografia, corpo e vídeo:
Apontamentos para uma discussão
160–161
dE videodança
escondidas sob o pano, que prolongavam o movi- maneira de perceber o corpo, a imagem e o movi-
mento de seus braços, produzindo ondulações no mento. Nos filmes ou vídeos de dança é possível
tecido que a envolvia. A dançarina permanece todo observar imagens de dança que não podem ser vis-
o tempo em cena, dominando com seus movimen- tas no palco, redimensionando espaço e tempo,
tos os limites da tela. Corpo e tecido, em constante assim como apresentando uma nova narrativa, agora
movimento, esculpem o espaço, criando um fragmentada e não mais linear. Estabelece-se com
lugar onde pode se observar a interseção entre dança isso o que o bailarino e coreógrafo Paulo Caldas
e cinema. Nas décadas seguintes, especialmente chama de “dançar o impossível”.20
a partir de meados do século xx, essa imbricação Esta ressignificação do corpo e do movimento
se aprofunda ainda mais, em especial com o desen- gera outro lugar, em que os fazeres — dança e vídeo —
volvimento tecnológico e o invento das câmeras não são mais pensados em separado, mas como
portáteis. Um pas de deux, como defende Jenelle um processo de criação em conjunto. Mais do que
Porter, em que a câmera, mais do que um dispositi- a transposição da dança para vídeo e/ou cinema,
vo de gravação, dá suporte ao corpo e é, simul- pode-se pensar em uma hibridação, e, por isso
taneamente, palco e audiência.18 mesmo, um trânsito entre identidades flutuantes e
Trata-se não apenas de somar essas duas áreas, imprecisas. Uma instabilidade que, longe de gerar
mas de entender a videodança como meio e pro- indefinições estéreis, leva a uma escritura do
duto artístico, isto é, percebê-la como uma “arena movimento mais ampla e não normatizada, em que
de reflexão e construção da própria identidade”.19 o corpo transborda sua própria imagem e redimen-
Identidade que não deixa de lado os aspectos siona a relação espaço-tempo linear encontrada
narrativos do vídeo e, ao mesmo tempo, investiga no palco. Cria-se, com isso, uma dramaturgia das
e questiona o corpo como imagens e nas imagens, em que o que pode ser
18 Jenelle Porter (org.), Dance
with camera (Philadelphia: University suporte da dança, já que chamado de efeito dança surge não como objetivo
of Pennsylvania, 2009), p. 11. a câmera também pode a ser alcançado, mas como consequência.21
19 Rodrigo Alonso. “Videoarte,
e videodança em uma (in)certa ser apontada como Se as fronteiras entre dança e vídeo apresentam-
América Latina”, em: Eduardo produtora de dança. -se cada vez mais diluídas e misturadas em termos
Bonito, Leonel Brum, Paulo Caldas
e Regina Levy, Dança em foco, É a partir das diferenças de criação artística, em relação aos espaços
vol. 2: Videodança (Rio de Janeiro: que vídeo e dança dia- autorais não se pode pensar de maneira diferente.
Oi Futuro, 2007), p. 50.
20 Paulo Caldas, “Poéticas do logam, elaborando uma Isto é, já não é possível utilizar as noções clássicas
movimento: interfaces”, em: Dança relação corpo-câmera de autoria para se refletir sobre essa produção,
em foco, vol. 4: Dança na tela (Rio de
Janeiro: Oi Futuro, 2009), p. 29.
que não é o simples regis- pois há de fato a dissolução da capacidade de dizer
21 Ibid., p. 32. tro, mas uma outra quem é o autor de uma obra. A ideia de criação
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Beatriz Cerbino e
Leandro Mendonça
Coreografia, corpo e vídeo:
Apontamentos para uma discussão
162–163
dE videodança
coreográfica, e sua respectiva autoria, construída das contribuições de cada uma das funções auto-
tão clara e firmemente a partir do século xviii, rais envolvidas temos, enfim, de necessariamente
passa a transitar no campo da indefinição. Uma reconsruir também a própria noção de autor.
diluição da noção de autoria que parece gerar, entre
outras coisas, processos de apropriação mais
profundos do que a simples citação, como o segun- Alonso, Rodrigo. “Videoarte, Craine, Debra; Mackrell, Judith.
e videodança em uma (in)certa Oxford dictionary of dance. Oxford:
do caso exposto na abertura deste texto. A própria América Latina”. In: Bonito, Eduardo; Oxford University Press, 2000.
noção de obra, com isso ou por isso, entra igual- Brum, Leonel; Caldas, Paulo; Levy, Dodds, Sherril. Dance on screen:
Regina. Dança em foco, vol. 2: Video- genres and media from Hollywood
mente em discussão. dança. Rio de Janeiro: Oi Futuro, to experimental art. London: Palgrave,
Todo um novo campo pode ser vislumbrado 2007, p. 50. 2004.
Bannes, Sally. Terpsichore in Fokine, Michel. “Letter to The
apenas nesta interseção real entre o caminho do cor- sneakers. Midlletown: Wesleyan Times”. In: Copeland, R.; Cohen,
po, imaginado na escrita coreográfica, e a escrita University Press, 1987. M. (org.). What is dance? Oxford:
Bonito, Eduardo; Brum, Leonel; Oxford University Press, 1983.
real feita pela câmera ao transitar e se relacionar Caldas, Paulo; Levy, Regina. Dança Foster, Susan Leigh. Choreo-
com o corpo que dança. O conceito de obra na video- em foco, vol. 2: Videodança. Rio de graphing empathy: Kinesthesia in
Janeiro: Oi Futuro, 2007. performance. New York: Routledge,
dança deve operar, portanto, não somente no Brannigan, Erin. Dance film: 2011.
processo de construção de sua própria identidade, choreography and the moving image. ————. Choreography & Narra-
Oxford: Orford University Press, 2011. tive: Ballet’s staging of story and
mas também em uma profunda exploração teórica Caldas, Paulo. “Poéticas do desire. Bloomington: Indiana Univer-
da viabilidade de articular três elementos cons- movimento: interfaces”. In: Dança sity Press, 1998.
em foco, vol. 4: Dança na tela. Rio Foucault, Michel. “O que é um
titutivos de si: a escrita coreográfica, a escrita da de Janeiro: Oi Futuro, 2009. autor?”. In: Ditos e escritos sobre
câmera e o corpo, não mais como executor e sim Cerbino, Beatriz. “Dança e estética: literatura e pintura, música
memória: usos que o presente faz e cinema, vol. III. Rio de Janeiro:
com autor de uma escrita também original. do passado”. In: Bogéa, Inês (org.). Forense Universitária, 2001.
Objetivamente, isso inaugura um processo que, Primeira estação: ensaios sobre Kappenberg, Claudia. Does
a São Paulo Companhia de Dança. screendance need to look like dance?
ao ultrapassar a ideia de soma de expressões, expres- São Paulo: Imprensa Oficial do Disponível em <http://www.dvpg.
so mesmo na designação assumida, expõe um Estado de São Paulo / São Paulo net/docs/CKpaper_DanceasFilm_
Companhia de Dança, 2009, 19May09.pdf>.
resultado significativamente maior na entrega esté- p. 33–47. Lepecki, André. “Choreo-
tica, na mesma direção que os procedimentos de Cerbino, Beatriz; Mendonça, graphy as apparatus of capture”.
Leandro. “Considerações sobre as TDR: The Drama Review 51, nº 2
construção artística (sejam da dança ou do cinema) relações entre autoria, cinema, (T194), 2007, p. 119–23.
têm de ser ativados de maneira totalmente diferen- dança e videodança”. In: Liinc em ————. Exhausting dance: perfor-
revista. v. 7, nº 2, 2011, p. 348–357. mance and the politics of movement.
te. Devemos evitar pensar em uma pura adição, ————. “Audiovisual, videodança Nova York: Routledge, 2006.
pois isso nos levaria a pensar no predomínio de uma e dança: conceitos e devoramentos”. ———— (org.). “Inscribing
Anpap, 2011. Disponível em <http:// dance”. In: Of the presence of the
expressão sobre outra. Com essa obra construída/ www.anpap.org.br/anais/2011/pdf/ body: essays on dance and perfor-
instaurada a partir de uma igualdade de tratamento cpa/beatriz_cerbino.pdf>. mance theory. Middletown:

dança em foco
Ensaios contemporâneos
Beatriz Cerbino e
Leandro Mendonça
Coreografia, corpo e vídeo:
Apontamentos para uma discussão
164–165
dE videodança
Wesleyan University Press, 2004, Cristiane Bouger
p. 124–139.
Monteiro, Mariana. Noverre:
cartas sobre a dança. São Paulo:
EdUSP/Fapesp, 1998.
Noland, Carrie. Agency and
embodiment: performing gestures/
producing culture. Cambridge:

A discussão entre
Harvard University Press, 2009.
Porter, Jenelle (org.). Dance
with camera. Philadelphia: Univer-
sity of Pennsylvania, 2009.
Rosiny, Claudia. “Videodança”.
Marinetti e Ungari
reimaginada
In: Bonito, Eduardo; Brum, Leonel;
Caldas, Paulo; Levy, Regina. Dança
em foco, vol. 2: Videodança. Rio
de Janeiro: Oi Futuro, 2007, p. 18.
Suquet, Annie. “O corpo
por chameckilerner
dançante: um laboratório da percep-
ção”. In: Courtine, Jean-Jac­ques
(org). História do corpo: as muta-
ções do olhar: O século xx. Petrópo-
lis: Vozes, 2009.
Trindade, Ana Lígia; Valle,
Flavia Pilla. “A escrita da dança:
um histórico da notação do movi-
mento”. In: Revista Movimento,
publicação da Escola de Educação
Física da ufrgs. Porto Alegre,
vol. 13, nº 3, setembro/dezembro
de 2007, p. 201–223.

Cristiane Bouger desenvolve trabalhos nos campos de performance,


instalação, teatro experimental, texto, vídeo e escrita crítica, propondo
um discurso relacionando corpo, biografia, cultura e política. Na última
década, publicou artigos e entrevistas em livros, revistas, periódicos
e jornais no Brasil, Estados Unidos, Portugal e Inglaterra. Em 2012,
foi nomeada na categoria Emerging Critic para o prêmio Alice Awards —
Artistic Landmarks in Contemporary Experience (Bélgica).

dança em foco
Ensaios contemporâneos
Beatriz Cerbino e
Leandro Mendonça
166–167
dE videodança
O artigo a seguir analisa o curta-metragem Conversa o diretor de fotografia Phil Harder. Seus trabalhos
com Luvas de Boxe entre Chamecki e Lerner,1 situam-se na interseção da dança com o cinema,
das coreógrafas e videoartistas brasileiras Rosane vídeo, live art e artes visuais.
Chamecki e Andrea Lerner. O filme digital foi origi- Futurist Life Redux foi inspirado em Vita Futurista,
nalmente concebido em resposta ao convite dos filmado por Arnaldo Ginna, em 1916. O projeto foi
curadores Lana Wilson e Andrew Lampert para ser concebido para 11 cineastas e videoartistas, aos quais
1 Um filme de Rosane Chamecki,
um dos segmentos do foi proposta a tarefa de (re)imaginar um dos
Andrea Lerner e Phil Harder. filme Futurist Life Redux, segmentos do único filme realizado pelos futuristas.
Coreografia e performance: Rosane
Chamecki e Andrea Lerner. Produ-
apresentado no Anthology A chameckilerner coube reimaginar o segmento
ção: Tanja Meding. Diretor de Film Archives em 16 de Discussão com Luvas de Boxe entre Marinetti e Ungari.
Fotografia: Theo Standley. Câmera
adicional: Matt Porwoll. Editor:
novembro de 2009, como Conversa com Luvas de Boxe entre Chamecki
Patrick Pierson. Correção de cor: parte da programação e Lerner foi comissionado pela Performa 09 e pelo
Patrick Pierson. Design de som:
Josephine Wiggs. Projeto solicitado
da Performa 09 — Tercei- Museu de Arte Moderna de São Francisco, o
pela Performa e The San Francisco ra Bienal de Novas Artes SFMoMA (San Francisco Modern Art Museum).
Museum of Modern Art para
Performa 09. 2009, 5 min, hd.
Visuais Performáticas
2 A dança downtown de Nova de Nova York.
York refere-se à cena experimental
de teatro, performance ou dança
Chamecki e Lerner de-
produzida fora do circuito das senvolveram uma carreira
grandes companhias com uma
linguagem estética já estabelecida/
de aproximadamente
reconhecida, sejam estas de teatro, 15 anos na cena da dança
dança clássica ou àquelas vincula-
das à estética dos musicais da
downtown2 nova-iorquina, 100 anos de futurismo
Broadway. Originalmente, o termo projetando seu trabalho
fazia menção geográfica ao Baixo
Manhattan (Lower Manhattan),
com espetáculos como An-
região na qual se concentravam tonio Caído (1996), Please,
muitos do teatros, estúdios e
instituições vinculadas a esta cena e
Don’t Leave Me (1998)
a estes trabalhos. Na dança, esta e Hidden Form (2001).
cena foi fortemente influenciada pela
Judson Dance Theater (1962–1964)
Após o espetáculo-suicídio
e pela dança pós-moderna america- Exit (2007), o duo de Com a publicação do Manifesto Futurista, escrito
na (Trisha Brown, Yvonne Rainer,
Deborah Hay, Steve Paxton e
coreógrafas começou a pelo poeta italiano Filippo Tommaso Marinetti, a
Lucinda Childs entre outros nomes transição da dança para a Europa viu surgir um dos mais inflamados e contro-
significativos). Atualmente, grande
parte da cena experimental de Nova
direção de curta-metra- versos movimentos artísticos já realizados. Escrito
York se desenvolve no Brooklyn. gens, em parceria com em Milão e publicado em Paris na primeira página
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Cristiane Bouger A discussão entre Marinetti e Ungari
reimaginada por chameckilerner
168–169
dE videodança
do jornal Le Figaro, no dia 20 de fevereiro de 1909,3 pelas quais vale a pena morrer, e o escárnio pelas
o influente texto apresentava o discurso radical que mulheres.
lideraria as práticas futuristas nas décadas que
se seguiriam. Seminal para o desenvolvimento Marinetti foi um apoiador convicto do regime
da performance e das vanguardas que se originariam fascista que assolou a Itália entre 1922 e 1943 sob o
no decorrer do século xx, o futurismo foi premedi- comando do ditador Benito Mussolini.4 A extensão
tadamente polêmico e extravagante, e fez uso de tal apoio culmina no Manifesto Fascista, escrito
exponencial do formato de manifestos como meio de por Marinetti em coautoria com o sindicalista
propaganda de seus ideais político-estéticos. Tanto Alceste De Ambris em 1919, assim como na presta-
o Manifesto Futurista quanto o movimento artístico ção do serviço militar voluntário durante a Segunda
foram polêmicos não apenas pela passionalidade Guerra Mundial. Como Marinetti, Nino Za, Paolo
iconoclasta e a completa rejeição ao passado, mas, Ganetto, Mario Barberis, Gerardo Dottori, Alessan-
sobretudo, pela perspectiva fascista de Marinetti, dro Bruschetti — entre vários outros futuristas —
por meio da qual o poeta exaltava a higienização do exaltaram Mussolini, especialmente através de
mundo através da guerra. (Marinetti, 1909). pinturas e retratos.5
A glorificação do vigor, da coragem e da violên- O futurismo influenciou significativamente a
cia foi disseminada por muitos dos manifestos Rússia. Contudo, diferentemente dos artistas italia-
escritos pelos futuristas na Europa, tanto naqueles nos, os futuristas russos alinharam-se aos ideais
lançados poucos anos antes da Primeira Guerra esquerdistas, aderindo à Revolução Russa de 1917.
3 Algumas fontes apontam
Mundial ser deflagrada, O ímpeto avassalador dos futuristas, embora
que a publicação original do Mani- quanto nos manifestos do mais bem-sucedido nos seus manifestos do que
festo Futurista data de 5 de fevereiro
período entreguerras. na execução de suas ideias, os fez vislumbrar novas
de 1909, no jornal La gazzetta
dell’Emilia, em Bolonha, Itália. Em Guerra, a Única Higie- direções para as artes, a literatura, a arquitetura
4 Compreende-se que o Fascis- ne do Mundo (1911–1915), e o design gráfico do século xx. O entusiasmo com
mo na Itália (Reino da Itália) se
estendeu de 1922 a 1943, sob a lide- Marinetti afirma: a beleza da velocidade e a completa rejeição ao
rança de Benito Mussolini. Entre passado os faziam se referir com escárnio a todas
1943 e 1945, a República Social
da Itália foi liderada pelo Partido Iremos glorificar a guerra — as estruturas tradicionais e clássicas, incluindo
Republicano Fascista. a única higiene do mundo bibliotecas, museus e instituições acadêmicas. Com
5 Para um panorama da arte
fascista produzida pelos pintores —, o militarismo, o seus manifestos, refletiram sobre as mais diversas
e cartazistas futuristas, visite I patriotismo, o gesto des- artes ou aspectos da vida que desejaram con-
Futuristi e Mussolini <http://www.
collezioni-f.it/militaria_f/fut_mus.
trutivo dos que trazem frontar. Sua influência inclui contribuições na tipo-
html>. a liberdade, belas ideias grafia (Zang Tumb Tumb, escrito por Marinetti em
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Cristiane Bouger A discussão entre Marinetti e Ungari
reimaginada por chameckilerner
170–171
dE videodança
1914 e definido pelo poeta como sua “artilharia imediatas na plateia, que, não raramente, atirava
onomatopoética”), no design, na arquitetura, nos artistas o que encontrasse ao seu alcance.
na música (a criação da orquestra de barulho e dos Com o objetivo de celebrar o centenário do
intonarumori, por Luigi Russolo), no teatro (o Teatro movimento, a terceira edição da Performa — Bienal
Sintético), na literatura (a destruição da sintaxe, de Novas Artes Visuais Performáticas de Nova York,6
substituição de pontuação por símbolos musicais dirigida pela crítica de arte e historiadora RoseLee
ou numéricos e “palavras em liberdade”, de Goldberg, dedicou parte de sua programação a
Marinetti) e na culinária (La Cucina Futurista, reflexões sobre o legado do futurismo e sua influên-
1932), entre outros. cia nas artes. Goldberg afirma: “Os manifestos
Embora marcadamente sexista, o movimento futuristas não deixaram nenhuma parte da vida
contou com a presença de artistas mulheres, como moderna intacta, explorando e provocando, inven-
Valentine de Saint-Point (Manifesto Futurista tando e desafiando, e propondo e projetando novas
da Luxúria), a pintora e piloto Olga Biglieri-Scurto e formas de comer, dormir, voar e sonhar.”7
Maria Ginanni, que entre os anos de 1916 e 1918, A visão romântica de Goldberg encontra resso-
durante a guerra, assumiu o jornal L’Italia Futurista, nância no legado multidisciplinar do futurismo, que
e a pintora Benedetta Cappa Marinetti. teve seu período marcado entre 1909 e 1944 (ano
Buscando o gesto artístico que prezasse a da morte de F.T. Marinetti) e influenciou movimen-
velocidade e tivesse a dinâmica e a violência tos como Dadaísmo, Surrealismo, Art Déco e, mais
da guerra, os futuristas se inspiraram nos avanços diretamente, o sugirmento do Vorticismo, na Ingla-
mecânicos e tecnológicos da industrialização. terra, e do Construtivismo e do Raionismo, na
Influenciados pela mecânica automobilística, pelos Rússia. No entanto, as ideias contidas nos manifes-
aviões, pelo som das máquinas, assim como pelo tos permanecem controversas. Ao mesmo tempo
cinema — a nova arte surgida no fim do século xix—, 6 Um trabalho apresentado pela
em que Marinetti exaltava
os futuristas refletiram sobre todos os aspectos Performa em parceria com SFMoMA a liberdade, referia-se à
e Portland Green Cultural Projects.
da vida que supuseram guiar “as gerações futuris- 7 Introdução de RoseLee
liberdade nacionalista
tas”. A exaltação à juventude e a tudo que era Goldberg nas Notas de Programa submetida à supremacia
de “Music For 16 Futurist Noise
novo representava, por assim dizer, o desejo pelo Intoners”. Performa 09 Commis-
italiana. Apesar de
rejuvenescimento e pela modernização dos valores sion, 12 de novembro de 2009. antiacadêmico, em 1929
Na fonte em inglês lê-se: “Futurist
culturais na Itália. Manifestos left no part of modern
Marinetti aceita tornar-se
Os futuristas trafegaram pelas mais diversas life untouched, probing and provok- membro da Accademia
ing, inventing and challenging,
artes e encontraram na performance a forma mais and proposing and projecting new
d’Italia, defendendo que
eficaz de testar suas ideias, provocando reações ways to eat, sleep, fly and dream.” o futurismo precisava
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Cristiane Bouger A discussão entre Marinetti e Ungari
reimaginada por chameckilerner
172–173
dE videodança
ser representado na academia. Nacionalista O Manifesto do Cinema Futurista, escrito por F.T.
convicto, fora, no entanto, educado no Egito e Marinetti, Bruno Corra, Emilio Settimelli, Arnaldo
na França. Ginna, Giacomo Balla e Remo Chiti em 1916.
No texto, os artistas declaravam que o cinema
era “a mídia expressiva mais adaptada à complexa
sensibilidade do artista futurista”.11 Embora vis-
sem o cinema como uma arte que nascera “pratica-
mente futurista”, por se encontrar livre de tradições
e de um passado, os futuristas julgavam que todo
O cinema futurista o cinema produzido até então havia herdado as carac-
terísticas mais tradicionais dos dramas teatrais.
Consideravam, portanto, que tudo o que havia sido
dito por eles sobre o teatro em O Teatro Sintético
Futurista aplicava-se igualmente ao cinema. Julga-
8 De acordo com o programa
vam sua ação necessária,
de Futurist Life Redux, “O filme pois viam no cinema a pos-
de 40 minutos Vita Futurista estreou
Futurist Life Redux, com curadoria de Lana Wilson no Niccolini Theatre, em Florença em
sibilidade de “uma arte
e Andrew Lampert foi um dos trabalhos integrantes 1917”. Na fonte em inglês lê-se: “The eminentemente futurista”.
40-minute Vita Futurista premiered
do programa em celebração ao centenário do at the Niccolini Theatre in Florence in
Segundo textos do
futurismo, durante a Performa 09. 1917.” Performa 09 Commission escritor e roteirista Bruno
Program, 16 de novembro de 2009.
O projeto inspirado no filme Vita Futurista (A Vida 9 Futurist Life Redux foi
Corra para o jornal L’Italia
Futurista, de 1916), filmado e editado por Arnaldo composto de trabalhos realizados Futurista, o filme Vita
por Aida Ruilova, Lynn Hershman
Ginna,8 contou com 11 cineastas e videoartistas.9 Leeson, Michael Smith com Bill
Futurista foi escrito, dirigi-
A cada um deles foi dada, de forma aleatória, a Haddad, Shannon Plumb, George do e, por vezes, perfor-
Kuchar, Shana Moulton, chamecki-
tarefa de (re)criar um dos segmentos do filme origi- lerner (com Phil Harder), Ben
mado pelos próprios artis-
nal de 40 minutos,10 cuja existência é conhecida Coonley, Trisha Baga, Matthew tas. Arnaldo Ginna afirma
Silver e Shoval Zohar (The Future)
através de stills e de textos, em sua maioria datados e Martha Colburn.
que no filme os artistas
da época do lançamento do filme no Teatro Niccolini, 10 No Brasil, um filme de 40 mi- futuristas adotaram a
nutos seria compreendido como
em Florença, em 1917. média-metragem, mas esta classifi-
improvisação como méto-
Vita Futurista foi o único filme declarado “ofici- cação não é valida para os padrões do para suas atuações.
internacionais.
almente futurista” e apresentava muitas das ideias 11 Manifesto do Cinema Futuris-
Alguns destes segmen-
propostas por outro manifesto do movimento, ta, 1916. tos, incluindo “Como o
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Cristiane Bouger A discussão entre Marinetti e Ungari
reimaginada por chameckilerner
174–175
dE videodança
Futurista Caminha” e “Como o Futurista Dorme” incluindo artigos genéricos em Nuovo Giornale
contrastavam o espírito e o estilo de vida dos e La Nazione, descrições de Emilio Settimelli,
futuristas com os do homem comum, a quem deno- Pavolini e Ginna, entre outros, além dos stills de
minavam “neutralista passivo”. Outros segmentos alguns segmentos do longa-metragem.
davam maior ênfase às técnicas de filmagem e
pós-produção propostas pelo manifesto, que incluí-
am coloração manual, dupla exposição dos fotogra-
mas, distorções na imagem a partir do uso de
espelhos côncavos e convexos, cenas simultâneas,
completa ausência de drama, humanização de
Conversa Com Luvas De Boxe
objetos, dissonâncias musicais e “sinfonia de
Entre Chamecki E LerneR
gestos”. Alguns filmes buscavam exprimir simulta-
neidade cinemática e estados mentais abstratos.
A dramaticidade presente nos palcos italianos — e
que em muito influenciou o cinema italiano da época
— era absolutamente rejeitada pelos futuristas.
Embora existam diversas contradições nas
fontes relacionadas ao filme, os curadores de Futurist As coreógrafas Rosane Chamecki e Andrea Lerner
Life Redux afirmam que o original era composto iniciaram sua transição da dança para a direção de
de “pelo menos 11 segmentos independentes, conce- curta-metragens em cinema digital com Flying Lesson,
bidos e escritos por diferentes artistas futuristas”.12 de 2007. Utilizando a técnica stop motion,13 as artis-
Acredita-se que a última cópia conhecida de tas voam pelas ruas do Brooklyn, em Nova York.
12 Na fonte em ingles lê-se:
Vita Futurista tenha sido Gravado no barracão de uma escola de samba
“of at least eleven independent seg- perdida em 1960, quando do Rio de Janeiro, em Samba, do mesmo ano,
ments conceived and written by
different futurist artists.” Performa
emprestada a um amigo vemos uma mulher sambando em câmera lenta ao
09 Commission Program, 16 de de Arnaldo Ginna para som de uma caixa de música tocando Für Elise, de
novembro de 2009
13 Stop motion é uma técnica
uma exibição do filme. Beethoven. O prêmio Guggenheim Fellowship,
de animação que utiliza a disposi- Sobre este, restam regis- recebido pelas artistas em 2008, lhes permitiu traba-
ção sequencial de fotografias para
criar a ilusão de movimento. The
tros da revista L’Italia lhar nas suas produções seguintes, intituladas The
“Teddy” Bears (1907), de Edwin Futurista, de Bruno Corra, Collection (2011) e The Line (previsto para 2012).
Porter, foi um dos primeiros curta-
-metragens a serem integralmente
e escritos realizados na Em 2009, o curta Conversa com Luvas de Boxe
realizados com esta técnica. época do lançamento, entre Chamecki e Lerner reimaginou o segmento
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Cristiane Bouger A discussão entre Marinetti e Ungari
reimaginada por chameckilerner
176–177
dE videodança
Discussão com Luvas de Boxe entre Marinetti e Ungari, A partir desta perspectiva, as artistas decidiram
a partir de um still do filme Vita Futurista, no qual utilizar características que eram apreciadas pelos
Marinetti e Paolo Ungari aparecem ao ar livre, vesti- futuristas, como velocidade, ausência de drama, simul-
dos com ternos e luvas de boxe. A imagem sugere taneidade, dinamismo e violência. Elas se apropria-
que Marinetti acabou de deferir um soco em Ungari, ram de tais atributos sutilmente — e não obstante
enquanto este aparece de costas para a câmera. eficientemente —, subvertendo o significado da luta
Com aproximadamente seis semanas para a re- de boxe e a relação entre presente e passado.
alização de Conversa com Luvas de Boxe, Chamecki Em Conversa com Luvas de Boxe, Chamecki e
e Lerner — que já haviam criado um curta inspi- Lerner olham para a câmera e, por extensão, para o
rado em uma luta de boxe em 2007 14 — precisaram espectador. Suas imagens aparecem sobrepostas,
repensar sua relação com a mesma imagética confundindo a identidade/individualidade das
e ação. No entanto, paradoxos e contradições subs- lutadoras. Tal efeito cria uma constante tensão entre
tanciais suscitaram as reflexões iniciais do trabalho. dualidade e unidade, enquanto a temporalidade
Criar um trabalho inspirado em um movimento revertida do filme revela o aspecto crucial do traba-
artístico pelo qual elas nutriam claras discordâncias lho: filmado com as artistas inicialmente dançando,
éticas — seja por seu aspecto político ou sexista — para somente então seus movimentos evoluírem
era uma questão a ser resolvida. até uma luta de boxe, o curta-metragem foi editado
Para Andrea Lerner,15 outra preocupação central mostrando a gravação de trás para frente. Como
estava relacionada com o paradoxo da proposição resultado, o movimento do soco é revertido, puxado
mesma: como voltar-se ao futurismo, se olhar para o em direção à lutadora que o deferiu, em vez de ser
passado significaria trair o próprio movimento ao qual lançado em direção a sua oponente.
se desejava referenciar? As reflexões que antecede- Ao mostrar o ataque puxado de volta pela própria
ram a concepção do filme levaram Chamecki e agressora, chameckilerner subverte a violência
Lerner a encontrar maiores entusiasmo e coerência futurista, transformando sua dinâmica em dança.
14 O curta integrou o trabalho
para a realização do seu
de dança Exit, apresentado no segmento, ao imagina- um filme cinestésico
The Kitchen, em 2007.
15 Entrevista conduzida por
rem-se como artistas futu-
Cristiane Bouger com Andrea Ler- ristas atuando no presen- Ao nomear seu trabalho Conversa com Luvas de
ner, em dezembro de 2009, para
o artigo publicado no Idança.net,
te, em vez de referenciar Boxe, em vez de adotar o título Discussão com
em 2010. o passado futurista e Luvas de Boxe, chameckilerner estabelece, a prin-
16 Note-se, contudo, que regis-
tros escritos sobre o filme Vita
suas qualidades estéticas cípio, uma abordagem diferenciada do confronto
Futurista referem-se ao uso de mais aparentes. sugerido pelo filme original.16
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Cristiane Bouger A discussão entre Marinetti e Ungari
reimaginada por chameckilerner
178–179
dE videodança
Dois aspectos principais marcam a estrutura das artistas se amalgamam, diluindo a materia-
do vídeo: a sobreposição das artistas olhando para lidade de uma na outra. Resultante da manipulação
a câmera e a temporalidade revertida do vídeo. temporal, a dinâmica do ataque puxado para a
O vídeo, de 4min21seg de duração, foi filmado própria lutadora causa estranhamento, como se
por Phil Harder em hd, com um fundo negro, mos- a justaposição das artistas levasse à compreensão
trando Chamecki e Lerner centralizadas no enqua- de que o confronto é com o observador. A ação
dramento. Harder filmou quatro tomadas de da luta é desenvolvida até o ponto em que as
quatro minutos, sem cortes, de cada artista, totali- posições de combate se transformam em movimen-
zando oito tomadas. No trabalho de pós-produção, tos de dança. Há feminilidade e leveza nos movi-
Chamecki e Lerner sobrepuseram as diferentes mentos, que passam a refutar a postura confronta-
combinações do material filmado e selecionaram a cional marcada no início do filme. A trilha sonora
fusão que julgaram mais apropriada para a edição de Wiggs evolui, tornando-se mais tensa e rítmi-
final do curta-metragem. ca com o soar do ringue, enquanto o som amorteci-
O filme começa com as lutadoras posicionadas do de socos com as luvas de boxe passa a ser
em relação direta à câmera/espectador. Elas vestem cada vez mais presente na trilha, até o momento
camiseta branca, têm o cabelo preso e, embora em que passa a ser acompanhado por uma marca-
sustentem as posições de ataque e defesa de uma ção seca e isolada da bateria.
luta de boxe, não usam Sobre a evolução no vídeo, Ara H. Merjian afirma
humor no filme, sem fazer referên-
cia a nenhum segmento especifico.
luvas. A trilha musical em crítica escrita para a revista Artforum:
Não há como sabermos se o eletrônica, assinada por
segmento Discussão com Luvas de
Boxe exaltava, de fato, a violência
Josephine Wiggs, cria ten- A combinação das duas lutas de boxe reaviva um
ou se era apenas irreverente. são e expectativa e marca deleite Futurista tanto por “simultaneidade” quanto
A noção de agressividade e violên-
cia faz-se, no entanto, explícita nos
o soar do ringue em pela forma visual pura. Mas enquanto a agressivi-
manifestos que as exaltam como tempos alternados. A luta dade da luta evolui em uma espécie de dança
qualidades dinâmicas.
17 Na fonte em inglês lê-se:
tem início. As imagens de Dionisíaca, o vídeo mina a virilidade intempestiva
“The conflation of the two boxing Chamecki e Lerner da cena original (e, subitamente, aquela do Futuris-
matches revivifies a Futurist delight
in ‘simultaneity’, as well as pure
sobrepõem-se umas às mo de forma mais ampla).17 (Merjian, 2009,
visual form. But as the aggressive- outras. Por vezes, a fusão tradução minha).
ness of their fight evolves into a kind
of Dionysian dance, the video
ressalta a presença
undermines the brash virility of the de Lerner; outras, a de A posição das performers em frente à câmera
original scene (and, subtly, that of
Futurism more broadly).” (Merjian,
Chamecki. Em certos permite que o espectador seja envolvido na ação,
2009). momentos, as imagens no sentido em que o mesmo está encarando as
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Cristiane Bouger A discussão entre Marinetti e Ungari
reimaginada por chameckilerner
180–181
dE videodança
lutadoras e os movimentos desfocados de suas unidade difusas podem ecoar significados rema-
imagens dissolvidas e sobrepostas. Por vezes, isso nescentes de outros trabalhos. Em 2007, com
nos leva a sentir que nós, observadores, é que fomos o espetáculo-suicídio Exit, apresentado no The
surpreendidos pelo soco, vendo uma oponente Kitchen, em Nova York, o duo de coreógrafas
dissolver-se no corpo da outra. declarou o fim de suas carreiras e da parceria na
Esta impressão não acontece por acaso. dança.18 Exit começara, na realidade, algumas
De acordo com Lerner, elas buscaram provocar não semanas antes de sua estreia no teatro, com uma
apenas um estranhamento perceptivo com relação carta-suicídio em dvd enviada a amigos, colabo-
ao movimento expressado no vídeo, mas tam- radores, curadores, críticos e programadores
bém despertar certa fisicalidade em quem assiste da cena nova-iorquina. Estas pessoas foram pos-
ao trabalho, colocando o espectador na perspectiva teriormente entrevistadas sobre as possíveis
do adversário, de forma a evitar que esse assista causas que levaram a chameckilerner a cometer
à ação passivamente. Neste sentido, as artistas ali- suicídio, e trechos das entrevistas em vídeo foram
nham-se ao desejo futurista de não deixar os projetados durante o espetáculo-funeral, com-
espectadores isentos de reação. posto de uma partitura de sequências coreográfi-
A ação e a estrutura de Conversa com Luvas cas de diversos trabalhos das artistas.
de Boxe são incrivelmente simples. Ainda assim, Mais do que o fim, no entanto, Exit marcou a
o trabalho reverbera uma resposta conceitual transição das artistas da criação coreográfica para
e física à questão inicial das artistas sobre como a criação fílmica. Em parte, esta transição foi
remeter ao futurismo: a velocidade, tão apreciada enfatizada pela trajetória do curta-metragem Flying
pelos futuristas, é utilizada para reverter o passa- Lesson, um dos filmes integrantes do espetáculo
do em presente, celebrando o legado do movi- Exit. O curta foi apresentado no 36o Dance on
mento. Esta ação contém, em si, uma declaração Camera Festival, no Lincoln Center, em Nova York,
sobre a impossibilidade de destruir o passado: e recebeu o Prêmio do Júri. O trabalho passou a
ao trazerem o futurismo ao presente, as artistas ser exibido em diversos países e integrou o acervo
celebram o movimento e confrontam-no, de colecionadores de arte.
simultaneamente. Neste contexto, observar a luta de boxe que
A fusão da luta de boxe entre Rosane Chamecki amalgama a identidade e subverte a agressão
e Andrea Lerner cria, pela semelhança física 18 Embora a chameckilerner tenha
implícita na ação das
entre as artistas, uma constante tensão entre dua- apresentado o trabalho coreográfi- boxeadoras pode também
co Borbulho (Brasil, 2009) como um
lidade e unidade. Para aqueles que acompanha- projeto especial, seus planos não
sugerir que, para ambas
ram a trajetória de chameckilerner, dualidade e preveem o retorno à coreografia. as artistas, uma luta
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Cristiane Bouger A discussão entre Marinetti e Ungari
reimaginada por chameckilerner
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contra a outra equivale a lutar com sua própria Lerner e Chamecki consideram que, diferente-
identidade artística.19 mente da videodança, que sugere a criação de uma
Ao considerar que elas não criaram uma coreo- dança — coreográfica ou não — para a câmera, seus
grafia para a câmera, mas um filme baseado em filmes não partem da criação de uma dança,
uma ação real, Lerner situa a criação de Conversa embora sejam informados por sua prática relaciona-
com Luvas de Boxe mais próxima da live art do que da ao movimento. Seus interesses concentram-se
da videodança. Em entrevista concedida em 2010, em ações e em tarefas que são estipuladas previamen-
Lerner afirma: te e roteirizadas — quando assim necessário — com
descrições precisas para os performers. Os roteiros
Trabalhar com filme está sendo uma extensão do de seus curta-metragens enfatizam este aspecto
que estávamos fazendo [na dança], mas estamos específico do trabalho, sobrepondo a ação ao movi-
nos questionando sobre qual direção tomar. mento de câmera, fotografia ou diálogos. As artistas
Nós sabemos que há uma relação cinestésica que reforçam ainda que, assim como nos seus trabalhos
é inevitável para nós porque é assim que vemos o para o palco, buscam em seus filmes uma ver-
mundo. Corpo e movimento são o foco dos nossos dade física/sensorial na realização das ações que
filmes até aqui. […] Muitas pessoas nos questionam os guiam. Neste sentido, Chamecki e Lerner prefe-
se estamos fazendo videodança. Nós não temos rem denominar seus curta-metragens como
o mínimo interesse em fazer videodança. Estamos “filmes cinestésicos”.
fazendo filmes (Lerner apud Bouger, 2009).20 Considerando que um dos fatores cruciais para
a performance e para trabalhos de live art com-
19 É curioso notar que em Exit, Lerner esclarece que seu preende um estado diferenciado de presença do
um vídeo de uma luta de boxe entre
as duas coreógrafas fazia parte do trabalho com Rosane performer, Rosane Chamecki21 expande a questão,
espetáculo. As artistas realizaram Chamecki sempre evoluiu apontando que em seus trabalhos de dança a
o simulacro de uma luta em
um ringue e com luvas. O vídeo de uma ação, e não de uma chameckilerner sempre buscou reviver em frente ao
termina com o nocaute das duas coreografia ou narrativa. público o momentum no qual, em seus ensaios, este
coreógrafas, sem vencedora,
novamente remetendo a um estado Mesmo na trajetória inicial estado de presença se fazia potente ou “inques-
de equivalência entre as artistas. de chameckilerner, suas tionável”. Contudo, reincorporar esta presença não
20 Entrevista conduzida por Cris-
tiane Bouger com Andrea Lerner em coreografias eram criadas é algo facilmente conquistado, e em certos casos,
dezembro de 2009, para o artigo
publicado no Idança.net, em 2010.
a partir de uma ação este estado muito raramente ressurgirá nas reapre-
21 Conversa por telefone com específica, à qual impunha sentações de um trabalho. A partir deste ponto
Rosane Chamecki realizada em 17
de abril de 2010, para o artigo
o desenvolvimento da de vista, ela compreende que criar para filmes lhes
publicado no Idança.net, em 2010. partitura coreográfica. permite capturar esses momentos específicos, que
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Cristiane Bouger A discussão entre Marinetti e Ungari
reimaginada por chameckilerner
184–185
dE videodança
de outra forma se esvaneceriam sem serem teste- discursos, envolvendo, de alguma maneira, corpo,
munhados. Neste sentido, Chamecki pondera que espaço e tempo. Falar de Live Art é falar de uma
uma performance para vídeo pode, em alguns pletora de formas de tratar as questões da condição
casos, conter mais presença viva do que uma de estar vivo e sua expressão corpórea, algumas das
performance realizada na frente dos espectadores. quais ainda nem mesmo existem. (Keidan, 2007).
Tal percepção lhe foi instigada pelo coreógrafo e
performer Levi Gonzalez durante o processo de Live art, com sua definição nada rígida, é um termo
filmagem do curta-metragem The Collection. Gon- mais utilizado para abarcar trabalhos que trafegam
zales, que performou neste trabalho com Hristoula entre territórios distintos, negando encerrar-se
Harakas, refletiu sobre o estado de presença do em categorias e nomenclaturas específicas. O termo
performer e a similaridade — da perspectiva do per- pode também ser compreendido como uma continua-
former — existente em sua fixação na memória da ção/derivação terminológica do termo performance
audiência ao vivo, comparada à fixação na memória art, esteticamente mais vinculado a trabalhos da
digital da câmera. Durante as gravações, Gonzalez década de 1970. Subtende-se, no entanto, que traba-
sentiu, pela especificidade de cada tomada, lhos que denominam-se live art buscam uma
que precisava ter sua presença mais afinada para relação diferenciada no que se refere a sua presen-
a captura de sua performance para a câmera do ça viva (ou ao vivo) e o observador ou participante.22
que quando apresentando-se ao público em uma Buscando explorar as possibilidades de sua expe-
performance ao vivo. riência, as artistas produziram em 2011 uma segun-
Ao citar a proximidade de seus filmes cinestési- da versão do vídeo Conversa com Luvas de Boxe,
cos com a live art, Chamecki faz referência ao para uma mostra de três dos seus curta-metragens
conceito definido no início da década de 1980, na no New York Live Arts.23 Nomeado Conversa
Inglaterra. O termo, que surgiu para abarcar formas 22 Para mais informações sobre
com Luvas de Boxe entre
e estratégias artísticas que não se encaixavam esta prática, leia o meu artigo Chamecki & Lerner, Toma-
“Performance e a Reconstrução do
na rigidez das nomenclaturas específicas das artes Efêmero”, publicado no Idanca.txt,
da 2, o novo vídeo mostra
e em seus programas de patrocínio, é utilizado vol. 3, em 2010. <http://cristiane- a mesma concepção
bougerbr.wordpress.com/2012/02/
amplamente na produção interdisciplinar contem- 16/performance-e-a-reconstrucao-
da primeira versão, mas
porânea. Na abertura de seu texto sobre o tema, do-efemero/>. desta vez as artistas o
23 Conversation with Boxing
Lois Keidan, define: Gloves between Chamecki & Lerner,
apresentam como um
Take 2; The Collection; e Flying díptico, com duas fusões
Lesson foram exibidos entre outubro
Live Art constitui-se essencialmente de obras artís- de 2011 e janeiro de 2012 na
aparecendo lado a lado,
ticas temporárias que cobrem diversas áreas e New York Live Arts — Live Gallery. no mesmo filme.
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Cristiane Bouger A discussão entre Marinetti e Ungari
reimaginada por chameckilerner
186–187
dE videodança
As artistas definem o trabalho como “a duplicação
da duplicação, mas com ligeiras variações”.24
Tomada 2 explora a duplicação do simultâneo e
abre outras percepções ao acompanharmos as
lutadoras lado a lado, igualmente sobrepostas nos considerações finais
dois quadros. Para a criação deste curta, as artistas
retomaram as possíveis recombinações das oito
tomadas gravadas por Phil Harder, em 2009.
Em Tomada 2, o espectador passa a testemu-
nhar a transformação das lutadoras, retendo
ficcionalmente a possibilidade de presenciar duas
perspectivas paralelas e simultâneas. Contudo, Talvez o paradoxo final na equação futurista deli-
a segunda versão do curta-metragem se evade do neada por Marinetti, e que ainda nos incita a uma
potencial sígnico da sua versão original. A potência continua reflexão, esteja centrado na contradição
conquistada com relação à artista encarando entre duas afirmações constantemente aceitas ao
a câmera/espectador é aqui enfraquecida pela nos referirmos à arte: se a arte é, em si, um ato
imagem duplicada. Na duplicação, a relação imedia- politico, pode esta mesma arte ser também amoral?
ta se estabelece entre o próprio díptico, não entre Embora tardio para uma associação com o
a ação das artistas e o observador. Este, que contexto fascista do futurismo, talvez, ainda assim
antes era colocado em relação direta à ação e convi- seja apropriado nos remetermos a Susan Sontag, em
dado a confrontá-la, assumindo a perspectiva do seu ensaio “Fascinante Fascismo”, publicado em 1975:
adversário, passa agora a ser apenas um espectdor
de dois acontecimentos paralelos. Se antes o A arte que evoca os temas da estética fascista é
espectador se encontrava no “ringue”, este passa popular nos dias de hoje, e para a maioria das pes-
agora a observar a luta com maior distancimento soas é provavelmente não mais do que uma vari-
analítico. ação de campo. O Fascismo pode estar meramente
O duplo simultâneo, no entanto, seria provavel- na moda, e talvez a moda, com sua irrepreensível
mente celebrado por Marinetti e Arnaldo Ginna. promiscuidade de gosto, acabe por nos salvar. Mas
os legitimadores do gosto, estes parecem menos
inocentes. A arte que parecia eminentemente válida
24 Entrevista realizada por
e-mail com Andrea Lerner e Rosane
de se defender dez anos atrás, como minoria ou
Chamecki, em março de 2012. gosto adversário, não mais parece defensável nos
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Cristiane Bouger A discussão entre Marinetti e Ungari
reimaginada por chameckilerner
188–189
dE videodança
dias de hoje, porque questões culturais e éticas que Chameckilerner ecoa esta perspectiva ao ir
ela levanta têm se tornado sérias, até mesmo peri- além da apreensão estética do movimento ao qual
gosas, de uma forma que não eram antes. A dura as artistas fizeram referência. Com suas investiga-
verdade é que o que pode ser aceitável em uma cul- ções para a realização de Conversa com Luvas
tura elitizada pode não ser aceitável em uma cultura de Boxe, Rosane Chamecki e Andrea Lerner cria-
de massa, que gostos que apresentam somente ram uma reinterpretação concisa e eficaz. Intercam-
questões éticas inócuas enquanto propriedade de biando difusão e definição de territórios para falar
uma minoria tornam-se corruptos quando se tornam da sua prática, as artistas subverteram e recriaram
mais estabelecidos. Gosto é contexto, e o contexto significados a partir de uma mesma referência
se transformou.25 (Sontag, 1975, tradução minha). imagética. Informadas por sua própria época,
as artistas explicitaram tanto a fragilidade quanto
Ao nos debruçarmos sobre a fascinante e irrefutá- a força dos conceitos enaltecidos pelos futuristas
vel quebra de convenções instaurada pelo futurismo frente a um novo século, no qual violência, velocida-
no início do século xx, encontraremos entre suas de, dinâmica e simultaneidade conquistaram,
25 Na fonte em inglês lê-se:
contribuições a genealo- novamente, dimensões surpreendentes na vida e
“Art which evokes the themes of gia da performance art na arte contemporâneas.
fascist aesthetic is popular now, and
for most people it is probably no
e o estágio embrionário
more than a variant of camp. Fascism da música industrial. Futurist Life Redux foi visto em 16 de novembro de
may be merely fashionable, and
perhaps fashion with its irrepressible
No entanto, a história 2009 no Anthology Film Archives, em Nova York,
promiscuity of taste will save us. de um determinado movi- como parte da Performa 09.
But the judgments of taste them-
selves seem less innocent. Art that
mento artístico nunca
seemed eminently worth defending está isolada de seu
ten years ago, as a minority or
adversary taste, no longer seems
contexto sociopolítico, e Blum, Cinzia Sartini. The other turista-entre-chameki-e-lerner/
defensible today, because the ethical reverbera com (ou contra) modernism: F.T. Marinetti’s futurist 14779>. Acesso em mar.2012.
and cultural issues it raises have fiction of power. Califórnia: Univer- Goldberg, RoseLee. Perfor-
become serious, even dangerous,
e para além dele. Não sity of California Press, 1996. mance Art — From Futurism to the
in a way they were not then. cabe, aqui, julgarmos os Disponível em <http://books.google. Present. Nova York: Harry N.
The hard truth is that what may be com/books?id=XYIv4O2N98sC&pri Abrams Incorporated, 1988.
acceptable in elite culture may not
ideais políticos dos ntsec=frontcover&source=gbs_ge_ ————. Performa 09 — Back to
be acceptable in mass culture, that futuristas (especialmente summary_r&cad=0#v=onepage&q&f Futurism. Nova York: Performa
tastes which pose only innocuous =false>. Acesso em mar.2012. Publications, 2011.
ethical issues as the property of a
em seu contexto poli- Bouger, Cristiane. “Conversa Keidan, Lois. Live Art. O que é
minority become corrupting when ticamente complexo), Futurista entre Chamecki e Live Art? Disponível em <http://
they become more established. Lerner”. Idanca.net, 22.abr.2010. forumpermanente.incubadora.fa
Taste is context, and the context has
mas faz-se prudente não Disponível em <http://idanca.net/ pesp.br/portal/.painel/museumun-
changed.” (Sontag, 1975). ignorá-los. lang/pt-br/2010/04/22/conversa-fu do/liveart/>. Acesso em 12.out.2010.

dança em foco
Ensaios contemporâneos
Cristiane Bouger A discussão entre Marinetti e Ungari
reimaginada por chameckilerner
190–191
dE videodança
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collezioni-f.it/fut_pr.html>. Acesso
em mar.2012.
Merjian, Ara H. “Futurist
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Acesso em mar.2012.
Russo, Anna Carla. Vita
Futurista: Un Film Fantasma. Tesi
online, sem data. Disponível em
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e a Dança
<http://www.tesionline.it/v2/ 1
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Acesso em mar.2012.
Sica, Paola. “Maria Ginanni.
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d=2&uid=70&uid=4&sid=5588335
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Sontag, Susan. “Fascinating
Fascism”. New York Review of
Books, Nova York, 6 de fevereiro,
1975. Disponível em <http://www.
history.ucsb.edu/faculty/marcuse/
classes/33d/33dTexts/Sontag
FascinFascism75.htm>. Acesso em
12.mar.2010.

Diretor da ong Alpendre, espaço de pesquisa, formação e produção


voltado para a arte contemporânea, onde coordena o Núcleo de Vídeo-
-Dança. Vem atuando como professor desde 1993, ministrando oficinas
técnicas e de linguagem e participando da implantação de processos
continuados de formação. Realizou várias obras em vídeo explorando a
linguagem do documentário e da videoarte, na fronteira com a litera-
tura, as artes visuais, a dança, a filosofia e a música.

dança em foco
Ensaios contemporâneos
Cristiane Bouger 1 Nesses últimos sete anos, nós, que fazemos o Alpendre, 192–193
dE videodança produzimos várias vídeo-danças e, principalmente, conver-
samos bastante e assistimos a muita coisa. A alegria desses
encontros foi marcada por descobertas compartilhadas.
Esse texto tenta resgatar, como um bloco de notas, algumas
dessas conversas.
Um primeiro ponto: ignoraremos aqui as diferenças bailarinos. A segunda surgiu mais recentemente, em
entre trabalhos feitos em suporte químico ou ele- um curso com alunos de audiovisual que não tinham
trônico. Fazemos isso para contornar problemas de nenhuma relação com a dança cênica. Ela parte
outro espaço de tensão, ou seja, as relações entre do olhar de um realizador preocupado em constituir
cinema e vídeo. Acreditamos que os problemas que outras temporalidades, outras formas de decupagem,
construiremos aqui podem ser elaborados, mesmo outras maneiras de construir a cena, que tensionem
que com alguma imprecisão, sem nos determos com a linguagem hegemônica de matriz hollywoo-
nessa distinção. diana excessivamente subordinada ao naturalismo da
representação e à imagem-movimento. Essa pergun-
ta funcionará como um horizonte de reflexão, pois não
teremos tempo de desenvolvê-la com mais detalhes
neste texto. Acompanhemos, então, estas duas per-
guntas e, ao problematizá-las, vamos traçar alguns
comentários sobre a linguagem da vídeo-dança.
Enquadrando o problema
O que distingue a vídeo-dança do registro
de dança? O que distingue uma vídeo-dança de
um filme de ação?

Duas perguntas que modulam a variação constitutiva


das obras de vídeo-dança sobre duas perspectivas.
Duas perguntas emolduram este trabalho. Duas per A primeira pergunta propõe uma discussão sobre
guntas que buscam compreender o campo de tensio- a constituição de uma forma audiovisual específica,
namento que cerca a produção de vídeo-dança, mas que parte da dança, mas que não se contenta em
que evitam a armadilha essencialista de perguntar servi-la como um suporte por meio do qual ela possa
sempre pelo que é, numa tentativa de homogeneizar permanecer. O crítico de cinema francês André
o campo em torno de uma definição. A primeira, Bazin já apontava, em seu texto “Ontologia da ima-
mais comum, surge recorrentemente em discus- gem fotográfica”, que alguns regimes de imagem
sões, conversas e oficinas toda vez que nos depara- podiam ser catalogados dentro das técnicas de embal-
mos com trabalhos em que o uso da linguagem samamento. Para esse autor, a técnica fotográfica
audiovisual parece se recolher, para dar ênfase ao garante um tipo de conservação que pode ser asso-
continuum espaço-temporal da performance dos ciado ao instinto humano de preservação presente
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Alexandre
Veras Costa
Kino-Coreografias —
Entre o Vídeo e a Dança
194–195
dE videodança
já nas técnicas de mumificação no Egito Antigo. O cinema, nos seus primórdios, já enfrentou essa
Esse poder de duplo do mundo e de resistência ao questão. Na época, o problema não era o registro.
tempo que passa sempre marcou nossa relação Registro, aqui, é a capacidade da câmera de criar uma
com as imagens. A questão é como a construção de espécie de efeito de real. A câmera teria a capacidade
uma linguagem vai além dessa função, buscando, de captar as coisas como elas eram e, ao serem
através das possibilidades audiovisuais, construir exibidas, essas imagens provocariam uma impressão
outra forma de se experienciar a dança. Por trás de realidade sem igual. Um dos grandes responsáveis
desta primeira pergunta, existe outra. Todo registro por esse efeito era o movimento, reproduzido de
implica uma transposição de linguagem, mas qual forma jamais vista. “Olhem, até as folhas se mexem.”
o limiar em que essa transposição começa a apare- Acostumados com os cenários pintados das encena-
cer como outra coisa? O vídeo e a dança são duas ções teatrais, os espectadores ficavam pasmos com
pontas que serpenteiam, constituindo linhas de uma cena onde até os detalhes menos evidentes
afirmação que dialogam em cada trabalho a partir 2 Grande parte da renovação
ganhavam vida por meio
de suas diferenças. Ainda faz sentido, num mundo dos estudos cinematográficos se do movimento. Esse
construiu numa relativização dessa
de hibridações, tentar costurar essas duas pontas associação imediata entre a
encanto logo não seria
como forma de estabelecer uma identidade? construção da linguagem cinemato- suficiente, e o cinema teria
gráfica e o desenvolvimento da decu-
Será que pensar em termos de distância em relação pagem clássica. Nesses estudos,
que buscar novas formas
ao registro resolve nosso problema de criação o primeiro cinema surge como de registrar e de apresen-
um lugar de pura invenção, onde
de um campo próprio de investigações? as técnicas de representação ainda
tar o mundo. É esse o
não estavam domesticadas momento que convencio-
num tipo de espetáculo que pudes-
se atrair o público burguês. Esses
namos apontar como o
primeiros anos do cinema aponta- surgimento da linguagem
riam várias possibilidades
de desenvolvimento que ficaram
cinematográfica. Aqui,
abafadas nessa época. Hoje, várias tem início o afastamento
experiências que têm o dispositivo
As aventuras do registro, como lugar de pesquisa e in-
do dito teatro-filmado e
do teatro-filmado venção voltam-se para os primeiros as primeiras experiências
inventos que deram origem ao
à dança-filmada cinema, como forma de construir
de formação de uma
2
novos agenciamentos entre espaço/ linguagem específica.
corpo/percepção. Cinema ex-
pandido, cinema do dispositivo, video-
Normalmente, esse movi-
instalações são alguns dos campos mento é considerado
atravessados por essa pesquisa.
Como o encanto dessas
a partir do momento em
primeiras imagens era com o próprio que a câmera sai da

dança em foco
Ensaios contemporâneos
Alexandre
Veras Costa
Kino-Coreografias —
Entre o Vídeo e a Dança
196–197
dE videodança
posição de um ponto de vista único e frontal e começa O primeiro ponto é a retomada da tese de que o
a variar seu comportamento em relação à cena. registro frontal e imóvel da câmera impossibilita
No entanto, um aspecto anterior a esse deve ser obser- a constituição de uma linguagem própria. O segundo
vado: as diferenças de tratamento entre cenas implica uma tendência de se explorar os exteriores
gravadas à maneira teatral num espaço fechado sobre como forma de fugir do espaço cênico, o que recoloca-
si mesmo e as cenas gravadas no exterior (as tomadas ria o problema do teatro-filmado, agora como dança-
de vista e outras cenas urbanas). Na primeira, -filmada. Acompanhando a relação entre câmera/
todos os códigos da representação teatral deviam corpo/espaço, podemos observar como uma série de
ser seguidos, inclusive as entradas dos personagens trabalhos — que reproduzem uma relação de espaço e
pela lateral, a manutenção de seu corpo inteiro movimento, profundamente marcada pela caixa teatral
enquadrado e a disposição do cenário e da cena como e cujo diálogo com as possibilidades de interferência
um todo, que devia estar organizada em relação a nessas relações por parte da linguagem audiovisual
uma ação central. Nas tomadas externas, ao contrário, são mínimas — evitam o fantasma do registro, pois
o mundo transbordava pelas bordas do quadro, as carregam as marcas da filmagem em locação. Simpli-
movimentações em perspectiva explodiam as conven- ficando, uma mesma coreografia, com um mesmo tra-
ções da quarta parede, os personagens e passantes se tamento de câmera, pode ser facilmente aceita como
aproximavam da câmera, saindo ou entrando em sua vídeo-dança ao ser realizada numa locação, e sofrer
direção. Como nos diz Ismail Xavier, isso sugeria uma grandes dificuldades de legitimidade se for feita num
abertura que incluía o espaço atrás e ao redor da palco. Essa dificuldade de legitimação aponta para
câmera, ganhando mais força a noção de que o espaço uma convenção, mas não pode ser resumida a ela.
visado é um recorte extraído de um mundo e que “ten-
de a sugerir sua própria extensão para fora dos limites
do quadro”.3 Nessas imagens, mesmo com um ponto
de vista fixo e imóvel, o
movimento e não com as histórias,
é curioso acompanhar o uso da conceito de teatro-filmado
dança nessas primeiras experiências. parecia já não dar conta da
O resultado visual de alguns
filmes com as Serpentine Dances representação. Dois possí- Exteriores/Interiores e
nos colocam, já nos primórdios veis paralelos com a vídeo- as convenções de decupagem
do cinema, as dificuldades de pensar
a filmagem como um mero registro. dança podem ser traçados
3 Ismail Xavier, O Discurso a partir desses aspectos
Cinematográfico — Opacidade
e Transparência (São Paulo: Paz e
de formação da linguagem
Terra, 2005), p. 20. cinematográfica.
dança em foco
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Kino-Coreografias —
Entre o Vídeo e a Dança
198–199
dE videodança
O que nos interessa aqui não é tanto questionar a Cunningham, feito num espaço que guarda seme-
legitimidade desses trabalhos feitos em locação, lhanças com um palco, fica difícil operar com essas
mas problematizar as variáveis que colocam o palco pré-concepções de decupagem. Nesse trabalho, a
como um espaço de maior dificuldade. Seria economia de movimentos da câmera e o uso regular
preciso analisar um conjunto de trabalhos e obser- do plano aberto estão perfeitamente sincronizados
var que marcas cada concepção de espaço imprime com a não hierarquização da relação dos corpos no
neles. Parece que o medo de ser considerado um espaço que a coreografia propõe. A linearização
registro faz com que nos apoiemos nas locações e, do significante icônico,4 em cortes e planos suces-
às vezes, esqueçamos de uma questão maior, que é sivos, que já foi apontada como uma das caracterís-
a relação da câmera com o corpo no espaço, seja ticas da estruturação do espaço narrativo da decu-
ele um palco ou uma locação interior ou exterior. pagem clássica, operaria, em relação a esse traba-
Como no início do cinema, é claro que a construção lho, uma violência de linguagem que implicaria uma
da cena em exteriores implica, muitas vezes, uma mudança radical na linguagem coreográfica, alte-
maior entrada do mundo, o que desestabiliza o rando sua concepção de espaço/corpo/movimento.
espaço autocentrado da caixa teatral. A incorpora- Quando o diretor pergunta ao coreógrafo o que
ção de elementos naturais, a tensão nas bordas do é mais importante numa ação, está preocupado em
quadro, a relação com o extracampo e a profundi- como usar a decupagem como aliada da composição
dade de campo são elementos que acabam sugerin- coreográfica, mas seu raciocínio pressupõe uma
do uma consciência do espaço na filmagem e lógica de enquadramento das ações que carrega uma
que possibilitam outra relação entre corpo/câmera / necessidade de dividir uma ação corporal complexa
espaço. Isso, em si, não garante que o trabalho e integrada em momentos sucessivos. Toda vez
consiga propor uma relação consistente entre esses que decupamos uma ação complexa em planos, colo-
termos, mas deixa uma maior evidência quando ca-se a questão de como arrumar esses fragmentos
isso não acontece. numa sequência. Essa disposição implica uma
Fica muitas vezes a impressão de que uma boa linearização de planos e ações, que antes eram simul-
parte dos trabalhos se permite um relaxamento tâneas, numa ordem sequencial sucessiva. A per-
maior na duração dos planos e na variação dos pon- cepção sucessiva de partes de um movimento
tos de vista quando em locações externas. Um plano não restitui esse movimento integralmente. Essa
longo e sem variações em um trabalho de palco assertiva não deve implicar um a menos em relação
parece levantar imediatamente o fantasma do ao movimento. Devemos
4 Arlindo Machado, Pré-cinemas,
registro. No entanto, quando pensamos em um tra- Pós-Cinemas (Campinas: Papirus,
compreender que um
balho como Beach Birds for Camera (1993), de 1997), p. 102. movimento no vídeo tem
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Entre o Vídeo e a Dança
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dE videodança
uma natureza diferente de um movimento no espaço gráfica. Uma coreografia que privilegia a relação
real. O que assistimos em um vídeo é sempre, por do corpo com o lugar implica um tipo de variação
natureza, diferente do que vemos no palco, por totalmente diferente de uma coreografia que tem
mais que tentemos apenas registrar um espetáculo. a modulação do espaço como variante das relações
Essa diferença só precisa ser encarada como uma entre os corpos como perspectiva do movimento.
degradação se assumirmos os valores da repre- Qualquer relação da câmera com essa variação
sentação e considerarmos a imagem numa relação corpo/espaço pressupõe a compreensão de uma
de subordinação com uma forma primeira que certa lógica coreográfica.
seria a dança autêntica. Como na filosofia platônica,
criaríamos uma seleção ascendente de cópias mais
ou menos fieis de uma forma ideal considerada como
origem. A vídeo-dança não precisa entrar nesse jogo
para fundamentar suas possibilidades. É bem
melhor pensar que um movimento no vídeo só existe Desnaturalizando o registro:
ali, na superfície luminosa da tela, e que quanto mais presença cênica e presença
compreendermos as peculiaridades espaço-tempo- audiovisual
rais dessas linguagens, mais poderemos produzir
nesse entrelugar. As marcas do referente na ima-
gem não precisam estabelecer um critério de fideli-
dade; elas funcionam muito mais como uma possibi-
lidade de manter a imagem como um lugar onde
o mundo pode ser reinventado. Talvez pudéssemos Para estabelecer parâmetros de avaliação e fruição
utilizar algumas teorias da tradução como transcria- mais efetivos em relação à vídeo-dança, é preciso
ção para compreender como é possível transpor, desnaturalizar, para complexificar, o uso da noção
não o movimento em si, mas uma lógica coreográfi- de registro como limiar a ser ultrapassado quando
ca de uma linguagem para outra. Traduzir como queremos trabalhar com vídeo-dança. Faz parte
trair, mas não uma traição como trapaça, uma traição da natureza fotográfica do dispositivo de captação
assumida que parte de uma proposição para inventar de imagens, no vídeo ou no cinema, trabalhar
algo novo, que pode ser pensado a partir do que foi com o registro da variação luminosa do que está
proposto, mas não se resume a uma cópia degradada. frente à câmera. Assim sendo, tudo o que é filmado
A relação corpo/câmera pressupõe um pensa- é registro. A ponto de alguns autores apontarem
mento do espaço que orientará a composição coreo- que o isto esteve aí define grande parte de nossa
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Entre o Vídeo e a Dança
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dE videodança
relação com a imagem enquanto duplo. Seria performance dos bailarinos na coreografia, interage
mais importante, no efeito/imagem, o aspecto no campo de forças traçado pela apresentação.
indicial enquanto marca ou vestígio do referente na
imagem do que seu aspecto icônico ou de seme-
lhança figurativa. Todo o registro implica uma
técnica, um suporte e uma linguagem; no caso da
vídeo-dança, esses elementos funcionam de forma
diferenciada em cada linguagem isolada, o que
A câmera e o espaço
implica uma série de peculiaridades na constru-
da representação
ção de uma forma híbrida, que tensiona suas
diferenças.
A dança, como manifestação cênica, acontece
em um espaço tridimensional e tem na continuidade
a base de sua constituição espaço-temporal.
Apesar de o espaço cênico apresentar peculiarida-
des em relação ao espaço físico comum, podemos A partir dessa intensidade que o espaço cênico
dizer que existem certas constantes que perma- presencial permite, podemos arriscar uma hipótese
necem como referência de contiguidade entre o lugar sobre alguns problemas da filmagem de uma cena
onde se dança e o lugar de onde se assiste. Isso coreográfica. A possibilidade de variação do ponto
é um dos fatores responsáveis pela importância de vista e da escala de representação do corpo
atribuída à presença do bailarino. Essa presença, humano coloca a câmera como um forte aliado do
articulada com a qualidade de movimento, são trabalho coreográfico. No entanto, outro aspecto
as bases nas quais podemos compreender a troca dessa nova presença precisa ser considerado.
que se estabelece entre os bailarinos-intérpretes Quando a câmera entra “em cena”, ela realiza três
e o público. Partilhar o mesmo espaço abre possibi- operações essenciais no espaço de representação;
lidades imensas de compartilhamento das forças essas operações são coextensivas ao dispositivo
em ação numa espécie de curto-circuito com e não podem ser eliminadas por escolha do operador.
feedback imediato. Quando isso funciona bem, e A primeira é a introdução da bidimensionalidade.
não é comum essa intensidade nos encontros, O espaço onde o corpo do bailarino realiza o
tudo o que acontece pode agir em mão dupla. Aqui, movimento se apresenta em uma tridimensionalida-
não é só a capacidade fabulativa do espectador de que incorpora o espaço de presença do especta-
que é ativada; sua própria presença, ativada pela dor. A câmera, ao produzir uma imagem, organiza
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Kino-Coreografias —
Entre o Vídeo e a Dança
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esse espaço numa superfície bidimensional, que numa duração concreta que restitui toda a descon-
estabelece uma quebra de natureza entre o espaço tinuidade vivida no filme à continuidade da experi-
da representação e o espaço do público. Essa quebra ência de assistir ao próprio filme.
é uma primeira descontinuidade introduzida pelo Uma terceira operação é a transformação do
dispositivo, que é seguida por outra. olhar estereoscópico, que nos é natural, num olhar
Nossa vivência do espaço-tempo é marcada monoscópico. A lente da câmera capta uma ima-
por uma continuidade que muda radicalmente gem que segue as leis de construção da perspectiva
no trabalho da câmera, desde a forma como o movi- renascentista, baseada no funcionamento da
mento é reproduzido através de instantes fixos nos câmara escura, técnica de figuração que põe a visão
fotogramas5 até as possibilidades de articulação do monocular como modelo de representação, criando
espaço-tempo introduzidas pelo enquadramento e um espaço hierarquizado em função de um ponto
pelo corte. Na linguagem audiovisual, podemos expe- de vista central. Muito já se discutiu sobre as
rimentar diversas relações entre espaço e tempo. implicações da transformação dessa visão de
Saltos no espaço com con- mundo no modelo hegemônico de imagem-verdade,
5 Vale a pena lembrar aqui a
dificuldade, apontada por Henri
tinuidade temporal, saltos mas gostaríamos de chamar a atenção para um
Bergson, na reprodução do contí- no tempo com continui- aspecto residual dessa operação técnica. Normalmen-
nuo pelo descontínuo. Segundo
Bergson, o movimento não pode ser
dade espacial, um “mes- te, quando falamos de cinema, sempre comenta-
reduzido nem ao espaço percorrido mo” movimento aconte- mos a mobilidade que o olhar ganhou com a varia-
nem aos instantes fixos. Toda vez
que fixamos uma imagem do
cendo a cada momento ção dos pontos de vista e dos enquadramentos;
movimento ele já não está presen- num espaço descontínuo.6 no entanto, quando vê a imagem bidimensional
te, porque o movimento é o eterno
devir, e se o dividirmos em dois
Todas essas variações construída por essa perspectiva monocular, nosso
instantes, por menores que estes criam uma experiência olho parece ter uma estabilidade perceptiva muito
sejam, ele ocorrerá sempre na
passagem, no entre. A duração
profundamente descontí- maior do que quando olhamos uma cena normal.
concreta não pode ser espacializa- nua da representação É como se, na imagem bidimensional do cinema,
da. Essa impossibilidade foi a base
da critica de Bergson à ilusão do
do espaço-tempo. A per- o olho fosse menos solicitado a percorrer o quadro
movimento no cinema. Remetemos cepção dessa desconti- e sofresse uma pressão muito maior do efeito-
aqui ao livro de Gilles Deleuze,
Imagem-Movimento, onde o filósofo
nuidade muitas vezes -composição. Essas características da imagem
apoia-se em Bergson e rediscute é suavizada pelo uso de no cinema não passaram despercebidas por aqueles
essa impossibilidade.
6 Um dos aspectos mais
uma série de procedimen- que levaram a sério a tarefa de pensar a relação
interessantes de Maya Deren é a tos de linguagem e pela corpo/câmera/espaço.
forma como ela utilizou com plena
consciência construtiva essas
experiência do próprio
possibilidades em seus filmes. espectador, mergulhado
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Entre o Vídeo e a Dança
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os quadros. Os interstícios são os ossos, a carne e
o sangue do filme, enquanto o que está em cada foto-
grama é meramente a roupa (Norman McLaren).7

O intervalo: continuidade Os intervalos (passagens de um movimento a outro),


e descontinuidade e de modo algum os movimentos mesmos, consti-
tuem o material (elementos da arte do movimento).
São eles (os intervalos) que levam a ação até o
desenlace cinemático. A organização do movimento
é a organização de seus elementos, quer dizer,
dos intervalos na frase. Em cada frase se distinguem
As relações entre continuidade e descontinuidade a ascensão, o ponto culminante e a queda do
marcam a reflexão sobre o cinema nas várias lingua- movimento (que se manifesta em graus distintos).
gens. A impossibilidade de reprodução do movi- Uma obra é feita de frases, do mesmo modo
mento em seu devir próprio colocou para os cineas- que uma frase é feita de intervalos do movimento
tas e teóricos do cinema a necessidade de pensar (Dziga Vertov).8
o intervalo como elemento constitutivo da linguagem
cinematográfica. Se o movimento no cinema Essa compreensão do intervalo como elemento estru-
é um agenciamento entre os fotogramas congelados, turante do fenômeno fílmico pressupõe a inclusão
o movimento do aparelho e a percepção do espec- do espectador no dispositivo. Sem ele, o filme não
tador, o intervalo entre esses fotogramas que o dispo- se efetiva, pois o invisível que o intervalo modula só
sitivo cinematográfico transforma em movimento aparece como filme para um espectador que o
deve ter um papel essencial. Vejamos dois realiza- assiste. Isso não quer dizer que o diretor não possa
dores fundamentais da História do Cinema que manipulá-lo na feitura do filme (vide as citações),
exploraram as implicações dessa noção de intervalo: mas que o filme enquanto fenômeno estético só
se dá para um espectador concreto. O uso superfi-
A animação não é a arte dos DESENHOS-que-se- cial da persistência retiniana como forma de explicar
movem, mas a arte dos MOVIMENTOS-que-são- o movimento aparente
7 Apud Marina Estela Graça,
desenhados. O que acontece entre cada fotograma Entre o olhar e o gesto (São Paulo: no cinema nos afasta
é bem mais importante do que aquilo que existe em Ed. Senac, 2006) p. 190–191. da compreensão do filme
8 Apud Ismail Xavier, A experiên-
cada um deles. A animação é, portanto, a arte de cia do cinema (Ed. Graal, 1983),
como um fenômeno
manipular os interstícios invisíveis que jazem entre p. 250. mental. A analogia entre
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Kino-Coreografias —
Entre o Vídeo e a Dança
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fisiologia do olho e câmara escura nos faz esquecer vídeo-dança é a não problematização dessa relação.
uma série de outras funções que são acionadas Se compreendermos as peculiaridades do espaço-
para que o estímulo da retina pela luz forme uma -tempo na dança cênica e suas peculiaridades no
imagem em nossa mente. Para que a sucessão des- audiovisual, percebemos todo um campo de investi-
ses estímulos provoque a percepção de um movi- gações onde cada trabalho de vídeo-dança modula
mento aparente são necessárias operações ainda um espaço de possibilidades. Não devemos temer
mais complexas. o registro enquanto base da relação da câmera
com o mundo.
Nesse sentido, o mundo deixa suas marcas em
cada imagem numa relação indicial. Essa dimensão
do registro, isto esteve aí, é uma das bases da
relação do espectador com a imagem. Essa relação
é complexa e não pode ser resumida aos limites
As marcas do mundo da representação. Que a imagem tenha as marcas
do mundo não quer dizer que ela tenha que repetir
o mundo como semelhança. Toda repetição, na
medida em que afirma o que repete, está profunda-
mente marcada pelas artimanhas da diferença
que teima em se afirmar no mundo. O que não pode-
mos deixar de perceber é que todo registro pressu-
Essas observações problematizam nossa relação põe um suporte, e que esse suporte, no caso do
com o registro como limiar de legitimidade da dispositivo audiovisual, opera uma série de trans-
vídeo-dança. De forma bem simplificada, podemos formações na relação corpo/espaço/movimento.
dizer que o problema do registro em relação à Não considerar e nem aproveitar essas variações
construção de uma linguagem ou de um espaço de condena a câmera a operar uma redução da presen-
pesquisa entre o vídeo e a dança é a não problema- ça cênica sem recolocar novas possibilidades
tização do próprio registro como linguagem. abertas pela presença audiovisual. Nesse sentido,
O dispositivo fílmico está envolvido na construção Maya Deren desenvolve um trabalho e um pensa-
de qualquer imagem, esteja ela atrelada à busca de mento radicais:
uma linguagem própria ou subordinada a uma
lógica da documentação. O que interdita as possibi- Destruir as figuras coreográficas cuidadosamente
lidades de um mero registro como um trabalho de concebidas para o espaço de um palco teatral e uma
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Entre o Vídeo e a Dança
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audiência frontal fixa. […] O espaço cinematográfico diferença se afirma na centralidade que a relação do
— o mundo inteiro — transforma-se num elemento corpo com o movimento no espaço-tempo ganha na
ativo da dança em vez de ser um espaço no qual a concepção do trabalho.
dança tem lugar. E o bailarino partilha com a câmera Quando falamos de corpos no espaço estamos
e com a montagem uma responsabilidade parti- falando em um sentido amplo, e não reduzindo esse
lhada pelos próprios movimentos. O resultado é corpo ao corpo de um bailarino. Voltamos a afirmar
uma dança fílmica que apenas pode ser executada que o mais importante é um pensamento coreográ-
no cinema. fico que organize as várias etapas do trabalho.
Voltemos a Maya Deren:
E ainda:
A Study in Choreography for Camera foi um esforço
A coreografia não consiste apenas no desenho dos para deslocar o bailarino do espaço estático da
movimentos individuais dos bailarinos, mas igual- cena teatral para um espaço que fosse tão móvel e
mente na criação de padrões que estes e os seus volátil quanto os seus movimentos. […] Ritual in
movimentos estabelecem enquanto unidade espacial. Transfigured Time desenvolve esse conceito a partir
[…] Pretendo que este filme seja uma amostra de elementos não coreográficos. […] O que faz deles
do filme-dança, ou seja, uma dança tão relacionada filmes-dança ou uma dança fílmica é que todos
com a câmera e com a montagem que não possa os movimentos — estilizados ou acidentais, corpo
ser interpretada enquanto unidade noutro meio que inteiro ou em detalhe — estão ligados uns aos outros,
não o filme.9 por um lado, no imediato e, por outro, na totali-
dade do filme, segundo um conceito coreográfico.10
Acredito que a vídeo-dança não é uma linguagem
específica nem um novo gênero. Trata-se, sim, da E ainda:
invenção de um espaço de pesquisa que explora diver-
sas relações possíveis entre a coreografia, como um Apercebo-me que penso cada vez mais em termos
pensamento dos corpos no espaço e o audiovisual, de movimentos naturais não adquiridos — os
como um dispositivo de modulação das variações movimentos das crianças quando implicadas nos
espaço-temporais. seus jogos, dos adultos quando se deslocam na noite —
9 Excertos de Dialogues Théori-
ques avec Maya Deren — Du cinéma Nesse sentido, uma vídeo- como elementos que, manipulados ritmicamente
expérimental au cinéma ethnogra- dança não difere em na rodagem e na montagem, podem ser relaciona-
phique, de Alain-Alcide Sudre
(Harmattan, Centre Pompidou, 1996).
natureza de outros traba- dos numa estilização de dança. É uma espécie
10 Idem. lhos audiovisuais; sua de extensão da teoria do filme-dança… a utilização
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Kino-Coreografias —
Entre o Vídeo e a Dança
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de movimentos informais, de tipo espontâneo, para e decupagem que segue uma lógica de ficção.
criar um todo formalizado. Existe uma quantidade Trabalha-se a coreografia como uma ação dentro de
infinita de possibilidades, e estou muito impaciente uma cena que deve ser decupada. Define-se uma
para terminar este filme em curso para poder me locação, os atores bailarinos, juntamente com o
concentrar no desenvolvimento desta nova aborda- coreógrafo, montam a cena coreográfica com mais
gem, na qual conto poder utilizar o som.11 ou menos ensaio, dependendo da produção. O diretor
de vídeo e o coreógrafo (quando não são a mesma
pessoa), ou este com o diretor de fotografia, fazem
a decupagem da cena, organiza-se a produção,
posiciona-se o aparato de imagem e… ação! Começa
a rodagem do filme. Esse é um procedimento muito
comum nos filmes de ficção e me parece ser uma
Além do registro,
lógica muito marcante em relação ao que tem se
entre ficção e documentário
produzido em vídeo-dança. O movimento é sempre
pensado em função da câmera, tudo existe em
função do vídeo. Tudo deve der planejado de ante-
mão. Há pouco espaço para o acaso e o improviso,
os movimentos já nascem pensados coreografica-
mente. Tudo parece dado de antemão e, no entanto,
Vários trabalhos têm seguido essa linha e começam o movimento da vida parece transbordar todo esse
a estabelecer outra forma de perceber o movimento controle. Penso que o documentário possa nos
cotidiano. É nessa perspectiva que propomos também ensinar a olhar para o movimento de outra forma,
o interesse de pensar a vídeo-dança a partir de encontrá-lo de outras maneiras. Uma pesquisa
duas lógicas operacionais: a ficção e o documentá- não anula a outra, mas acredito nas possibilidades
rio, considerados como duas estratégias de abertas para um olhar que quer o movimento,
ação frente ao referente. Acreditamos que a confu- que quer pensar a relação desses corpos no espaço,
são em torno da noção de registro tem dificultado mas que também quer ser surpreendido, quer
um pensamento das possibilidades de fazer trabalhos incorporar o acaso e o improviso no trabalho do
de vídeo-dança usando estratégias do documentá- vídeo, tanto quanto as artes cênicas souberam
rio. Na busca de uma linguagem específica, os incorporá-los no trabalho de preparação. Quando o
trabalhos assumem uma registro do movimento deixa de ser um problema
11 Ibidem. perspectiva de construção que impossibilita a pesquisa e passa a ser um
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Kino-Coreografias —
Entre o Vídeo e a Dança
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dE videodança
objeto de investigação, não há mais por que ignorar Karen Pearlman
todas as possibilidades abertas pelo documentário.
Começam a aparecer nos festivais e nas mostras
abertura para documentários que trabalhem proces-
sos coreográficos e problematizem o movimento.
Acreditamos que uma vídeo-dança também pode
ser o resultado de um encontro não marcado entre A edição como
a câmera e o corpo.
coreografia
1

Bergson, Henri. O Pensamento


e o Movente. São Paulo: Martins
Fontes, 2006
Burch, Noël. Práxis do Cinema.
São Paulo: Perspectiva, 1992.
Deleuze, Gilles. Imagem-Movi-
mento. São Paulo: Brasiliense, 1985.
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Paulo: Brasiliense, 1990.
Graça, Marina Estela. Entre
o olhar e o gesto. São Paulo: Ed.
Senac, 2006.
Granja, Vasco. Dziga Vertov.
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Machado, Arlindo. Pré-Cinemas,
Pós-Cinemas. Campinas: Papirus,
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Parente, André. Narrativa e
Modernidade. Campinas: Papirus,
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Xavier, Ismail. A experiência
do cinema. Rio de Janeiro: Graal,
1983.
————. O Discurso Cinemato-
gráfico. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
————. O Cinema no Século.
Karen Pearlman tem trabalhado como ensaísta e jornalista em diversas
Rio de Janeiro: Imago, 1996.
publicações internacionais. Completou o doutorado em Creative Arts com a
tese Cutting Rhythms: Shamping the Film Edit, um profundo estudo sobre o
ritmo na edição de filmes publicado pela Focal Press, nos Estados Unidos,
em 2009. Ensina História e Teoria da Edição, assim como Técnicas de
Criação em Cinema em universidades na Austrália. Atualmente, é diretora
de Screen Studies na Australian Film, Television and Radio School.

dança em foco
Ensaios contemporâneos
Alexandre
Veras Costa
1 Este artigo foi extraído do livro Cutting Rhythms, 216–217
dE videodança
Shaping the Film Edit e foi republicado com permissão da
autora e do editor.
A coreografia é a arte de manipular os movimen-
tos: reelaborando tempo, espaço e energia em
formas e estruturas afetivas. Em seu trabalho
com ritmo, os editores fazem algo semelhante.
Esse artigo compara a montagem à coreografia, mudando A discussão
com o propósito de revelar alguns princípios de música para movimento
usados por coreógrafos também aplicáveis ao
trabalho do editor quando dá forma a um filme.
Começaremos examinando os usos daquela que é
a metáfora mais comum na edição: a música.
Sugere-se então que, embora a palavra “ritmo”
seja normalmente ligada a ideias sobre música, Editar é frequentemente comparado com fazer
os verdadeiros materiais a que os editores dão música. Muitas pessoas entendem o uso da palavra
forma no tempo são movimento e energia. O pulso, “ritmo” no cinema como sendo uma metáfora musi-
que é a menor unidade expressiva de movimento cal. A discussão sobre ritmo em, por exemplo,
do tempo e da energia, é discutido antes de The eye is quicker, livro de 2004 sobre a arte da
examinarem-se os processos coreográficos de edição, inicia-se com a seguinte citação: “Todas
transformação dos pulsos em frases. As formas as artes aspiram constantemente à condição
como os coreógrafos constroem frases de movi- de música.” (Walter Pater apud Pepperman, 2004,
mento comparam-se às formas nas quais um p. 207). Outro exemplo é a citação do diretor Martin
editor agrega movimento em frases e sequências Scorsese: “Para mim, o montador é como um
quando cria ritmos. Por fim, as questões que músico e, muitas vezes, um compositor.” E “Eisen-
os coreógrafos podem colocar-se ao dar forma stein […] com frequência faz apelos implícitos às
ao movimento são reformuladas como questões analogias musicais, daí o recurso frequente a
que os editores podem colocar-se ao moldar conceitos musicais como métrica, harmonia, domi-
o ritmo de um filme. nante, ritmo, polifonia e contraponto” (Stam, 2000,
p. 43). A música é uma fonte muito rica de lingua-
gens e ideias para se considerar ao pensar o ritmo;
entretanto, às vezes seus termos são usados
de forma muito vaga ou geral. Essa seção examina-
rá de perto algumas das palavras específicas
usadas quando se compara a edição à música,
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Karen Pearlman A edição como coreografia
218–219
dE videodança
a fim de descobrir as formas pelas quais elas são ou devida consideração em relação às outras. Porém,
não úteis. orquestração é mais a distribuição de tarefas a
Por meio do uso da metáfora musical, o processo vários instrumentos que a junção de sequências, por
de compor, orquestrar e reger é muitas vezes meio da qual os “instrumentos”, ou partes constitu-
comparado ao processo de montagem, particular- tivas de uma sequência (como enquadramento,
mente o processo criativo de edição em que se desenho, desempenho e iluminação), já foram
molda o ritmo do filme. Cada uma dessas atividades orquestrados em relação um ao outro. O que Theo
é análoga, de algum modo, à edição de um filme; Van Leeuwen chama de “iniciar os ritmos”, em seu
mas, por diferentes razões, nenhuma delas suporta ensaio “Rhythmic Structure of the Film Text”,
uma comparação precisa. talvez seja mais útil que o termo “orquestrar”, para
Compor, em geral, é mais parecido com escrever descrever o que um editor faz. Van Leeuwen sugere
do que com editar. Um compositor delineia a forma que pode haver, e geralmente há, várias coisas
e a estrutura sobre as quais os músicos baseiam que atraem a atenção, dão ênfase ou moldam o tempo
a execução de sua arte. Um roteirista faz o mesmo no material bruto. Assim, os “editores se veem às
para o elenco e a equipe de um filme. O compositor voltas com o problema da sincronização” dos vários
cria a música e seus ritmos, ao passo que um elementos em uma experiência rítmica coerente.
editor não inventa exatamente alguma coisa. Para fazer isso, ele escolhe uma das linhas de
Ele arranja os ritmos da mesma maneira que alguém movimento, energia ou ênfase, “como um ritmo de
monta um arranjo de flores: sem criar as flores iniciação, e subordina a esse ritmo os outros ritmos
ou, nesse caso, as sequências, mas escolhendo pró-filmicos” (Van Leeuwen, 1985, p. 218). “Moldar
as seleções, a ordem e a duração delas. 2 Eisenstein também usa o
os ritmos de iniciação” é
O uso da palavra “orquestrar” vem da ideia de termo “orquestração” em uma uma descrição mais exata
discussão a respeito do relaciona-
que existem muitos elementos diferentes que um mento entre som e imagem.
do processo de tomada
editor coordena dentro das sequências e entre Esse é um uso mais preciso do de decisões do editor que
termo no sentido de distribuir
elas. Esses podem incluir desempenho, composição, funções — o som desempenha
“orquestração”.
textura, cor, forma, tamanho da sequência, movi- um papel de criar o efeito; as Reger 3 é talvez uma
imagens, outro; e Eisenstein et al.
mento, energia, direção e muito mais. Eisenstein exorta-nos a usar essas funções
metáfora musical mais
chamava esses elementos de “atrações”, referindo-se como contraponto, e não de forma apropriada, pois, como o
redundante (Ver Eisenstein, 1977,
às diferentes partes dentro das sequências e p. 257–260).
maestro, o editor decide
dos filmes que poderiam atrair a atenção do espec- 3 N. do R.: No original em quais serão o compasso,
inglês, conduct — conduzir (com
tador.2 Nesse caso, a palavra orquestração é uma o sentido tanto de conduzir algo
o tempo e a ênfase apre-
metáfora para dar a cada grupo de atrações a quanto de reger uma orquestra). sentados na composição
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Karen Pearlman A edição como coreografia
220–221
dE videodança
final. Contudo, em música reger também sugere ideias opostas no sentido estético e de procedimen-
que uma composição acabada já foi submetida ao to, sobre a natureza e o propósito do processo
maestro e ele a interpreta, o que não acontece de edição, essa mudança de música para movimento
exatamente na edição. também tem precedentes nos escritos de Eisenstein.
Existe um significado não musical da palavra Quando este escreve que “na montagem rítmica, é
“reger” que poderia ser mais útil para descrever o que o movimento dentro do enquadramento o que propicia
um editor faz. Está relacionado a conduzir, no sentido o movimento da montagem, fotograma a foto-
de facilitar o fluxo do ritmo, do mesmo modo grama” (Eisenstein, 1977, p. 75), está resumindo
que os fios conduzem a eletricidade ou, como sugere sucintamente o princípio básico do que chama de
o diretor Andrei Tarkovsky, os canos conduzem o “montagem rítmica”, um de seus Cinco Métodos
fluxo de água: de Edição, descritos de forma completa em A forma
do filme. O ritmo não é definido de forma categórica
O tempo, impresso no enquadramento, dita ou completa na discussão sobre “montagem rítmi-
o princípio básico da edição; e as partes que “não se ca”. Entretanto, para nosso propósito, aqui, ela
editam” — que não podem ser reunidas de forma transfere o foco do debate sobre ritmo da música
adequada — são aquelas que registram uma espécie para o movimento.
de tempo radicalmente diferente. Não se pode, Assim, a questão que se segue é: o que pode ser
por exemplo, pôr o tempo verdadeiro junto ao tempo dito sobre a arte de dar forma ao movimento que
conceitual, da mesma forma que não se podem consiga desenvolver nossa intuição para a moldagem
encaixar canos d’água de diâmetros diferentes. do ritmo na edição cinematográfica? Para uma
A consistência do tempo que decorre durante a análise desse tema, volto-me a estudos sobre a arte
sequência, sua intensidade ou “morosidade”, pode da coreografia, que, naturalmente, é a arte de dar
ser chamada de pressão do tempo: assim, a forma aos movimentos.
montagem pode ser vista como a reunião das par- Uma equipe de pesquisadores australianos,
tes com base na pressão de tempo dentro delas incluindo psicólogos, cientistas e coreógrafos, forne-
(Tarkovsky, 1986, p. 117). ce um ponto de partida para que se encare a edição
como uma forma de coreografia. Seu estudo,
A comparação feita por Tarkovsky entre sequências Choreographic Cognitions, fala sobre como a dança
e canos d’água afasta da música a discussão sobre é feita, percebida e compreendida pelos espectado-
ritmo, levando-a para o âmbito, mais visível, do res. Defendo que essa cognição da dança é
movimento do tempo “impresso nas sequências”. semelhante à do ritmo nos filmes. A equipe respon-
Embora Eisenstein e Tarkovsky tenham, em geral, sável por Choreographic Cognitions explica que o
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Karen Pearlman A edição como coreografia
222–223
dE videodança
tempo é o meio artístico e expressivo da dança Os editores atribuem com menos frequência a base
contemporânea. Assim, quando assistimos a uma da cognição ao ritmo e ao tempo. Porém, creio que,
dança, vemos movimento, mas entendemos o que em certo sentido, eles o são. Como se verá na
ele significa por meio de como expressa os elemen- discussão sobre pulso e fraseado, o ritmo é como
tos invisíveis do tempo e da energia. Nas palavras entendemos o significado de informação, intercâm-
da equipe de Choreographic Cognitions, bios e imagens em relação uns com os outros.
O ritmo faz parte da experiência sensorial do filme
[...] a arte do movimento encontra-se nas trajetó- e é parte essencial da interpretação e da compreen-
rias, transições e nas configurações temporais são do que vemos e ouvimos. Assim, as “mudanças
e espaciais, nas quais movimentos, membros e dinâmicas no tempo” (Stevens et al., 2000, p. 4),
corpos relacionam-se uns com os outros. […] que são o cerne da arte da coreografia, são também
A mudança de um único componente pode afetar o cerne da arte de moldar o ritmo na montagem.
toda a rede de interação dos elementos. Num sistema A próxima seção examinará o pulso — a menor
dinâmico, o tempo não é apenas uma dimensão unidade de movimento transformada por coreógra-
na qual ocorrem cognição e conduta; em vez disso, fos e editores em ritmo — e seu papel na definição
o tempo (ou, mais corretamente, as mudanças das mudanças dinâmicas no tempo.
dinâmicas no tempo) é a própria base da cognição
(Stevens et al., 2000, p. 4).

Ao se aplicar este raciocínio à edição, é possível


dizer que, como os coreógrafos, os editores dão
forma à trajetória dos movimentos em fotogramas,
cenas e sequências, ou seja, as transições do pulso
movimento entre os fotogramas. Como os coreó-
grafos, os editores trabalham com a dinâmica
temporal e espacial do movimento, a fim de criar
um fluxo de imagens em movimento que transmita
significado. Além disso, da mesma forma como
os coreógrafos, os editores descrevem muitas vezes
a forma mencionando como a “mudança de um O pulso é a menor, mais constante e talvez mais
único componente pode afetar toda a rede de inte- inefável unidade de ritmo nos filmes. Está sempre
ração dos elementos” (Stevens et al., 2000, p. 4). presente, da mesma forma que nos corpos; e não
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Karen Pearlman A edição como coreografia
224–225
dE videodança
é notado, exatamente como em nosso corpo. O pulso escolhas em relação a sustentar, mudar e coordenar
nos filmes possui muitas outras características em pulsos, transformando-os em frases. Essas esco-
comum com o corpo: tende a permanecer dentro lhas são feitas por meio da seleção de tomadas
de certa velocidade, organiza a percepção do rápido (o pulso pode ser diferente a cada duas tomadas da
e do lento e mantém o filme vivo. Do mesmo modo mesma ação) e de pontos a serem cortados. Os acen-
que no corpo, se o pulso de um filme para, diminui tos de pulso podem também ser realçados, atenua-
ou acelera demais, o resultado pode ser desastroso dos ou até alterados pelos cortes.
para o ritmo, a história ou a experiência desse filme. Os pulsos em movimento são transformados
O pulso define e demarca o que Tarkovsky em frases por coreógrafos e editores. A próxima
chama de “consistência do tempo” ou “pressão do seção desse artigo descreve dois métodos coreográ-
tempo” (Tarkovsky, 1986, p. 117) nas sequências. ficos para formar frases e compara-os a dois dos
Uma única pulsação é a ênfase adicional conferida vários tipos de desafios da edição. Depois, examina
a uma parte do movimento, em comparação às como uma abordagem coreográfica pode ser
outras, menos energéticas em intensidade. Assim aplicada à moldagem de movimentos não dançan-
sendo, exatamente como nas batidas do coração, tes, dentro do contexto de um drama narrativo.
há uma alternância contínua de on /off de pontos
enfáticos, de acentuação de palavras, gestos, movi-
mentos de câmera, cores ou qualquer outro evento
pró-fílmico. Os atores podem construir seus
personagens, em parte, através da criação de um
pulso diferente; isto é, a energia e a velocidade com
as quais enfatizam palavras, gestos etc. Os pulsos frases de movimento
são moldados pela energia ou pela intenção por
trás do movimento e da fala, tornando essa energia
e essa intenção perceptíveis ao espectador.
O professor Theo Van Leeuwen escreve:
“O pulso desempenha papel chave na articulação
do significado porque enfatiza os sons e movimen-
tos que transportam a informação chave.” (Van Frases de movimento, na dança e na edição de
Leeuwen, 2005, p. 183). O editor do filme não esta- filmes, são composições de movimento transfor-
belece necessariamente o pulso de uma sequên- madas em sequências ritmicamente expressivas,
cia — isso cabe mais a diretor e atores —, mas faz de forma perceptível e intencional. Uma frase
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Karen Pearlman A edição como coreografia
226–227
dE videodança
coregráfica é diferente de uma frase linguística, Outra abordagem de que o coreógrafo poderia
na medida em que pode ter qualquer comprimento lançar mão é dar a seus dançarinos “problemas
e conter mais do que um único “pensamento” de movimento” para resolver, tais como “descubra
coreográfico. Uma frase coreográfica é uma cinco gestos de frustração e raiva impotente”.
série de movimentos relacionados e pontos de Os cinco gestos seriam fragmentos, como uma série
ênfase reunidos. de pequenos fotogramas. O coreógrafo conecta
Há um vasto espectro de abordagens que um esses fragmentos, transformando-os em frases e,
coreógrafo pode lançar mão para transformar frases ao fazê-lo, projeta fluxo temporal, organização
de movimento em dança. A seguir são descritos espacial e ênfase. Nos filmes, a ligação e a molda-
dois pontos desse espectro, a fim de ilustrar os gem de fragmentos em ritmos são feitas pelo editor.
aspectos comuns da coreografia e da edição quando Essa abordagem possui mais afinidade com o
se trata de moldar frases de movimento. sentido de montagem de Eisenstein do que com
Uma abordagem coreográfica ocorre quando o de Tarkovsky. A ideia que este último tem de ritmo
o coreógrafo cria uma sequência de movimentos considera o tempo pré-existente nas sequências,
com tempo inerente e organização espacial, e impondo assim ao editor a tarefa de montar o filme
depois ensina a frase aos dançarinos. Essa abor- de maneira que o tempo flua de modo efetivo, apesar
dagem da coreografia assemelha-se aos canos dos cortes. Na opinião de Eisenstein, a passagem
d’água de Tarkovsky. Se um diretor de cinema do tempo é criada durante a edição. O processo
trabalha dessa forma, entrega ao editor copiões de montagem coreografa de forma ativa os ritmos;
que contêm frases de movimento imutáveis e ou seja, a edição junta pedaços de movimento
autônomas. Assim, o trabalho do editor não é criar no filme a fim de criar a sensação de decurso do
o ritmo da frase, mas percebê-lo e respeitá-lo. tempo. De acordo com essa abordagem, o editor
Nessa abordagem, a contribuição coreográfica do pega fragmentos de movimento e transforma-os em
editor inclui a necessidade de estender esses frases. Aumentos e diminuições de ênfase, mudan-
ritmos até a construção de sequências maiores. ças de direção e velocidade, tamanho, forma e
Ele faz isso moldando a junção das frases. Tem de desempenho são todos transformados no fluxo de
lidar com a moldagem de “trajetórias, transições dinâmica que é o significado das “cinefrases”.
[…] e configurações, tanto temporais quanto Os coreógrafos trabalham muitas vezes com o
espaciais” do movimento, mas a menor unidade movimento abstrato ou artificial, enquanto os edito-
para se fazer transições ou configurações não res trabalham com o movimento natural dos atores
é o pulso, nem o simples gesto ou fragmento de ou dos temas, embora princípios coreográficos
movimento, mas a frase. possam ser aplicados. Uma frase de movimento
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Ensaios contemporâneos
Karen Pearlman A edição como coreografia
228–229
dE videodança
não é apenas uma unidade de ritmo no movimento antes de soltar as chaves, e depois insere uma
abstrato. O movimento natural de um personagem tomada ou duas de sua caminhada cautelosa até
no drama narrativo também é coreograficamente a geladeira.
transformado em frases. Por exemplo, a ação num Uma vez fraseado, o movimento torna-se o
determinado roteiro exige que um personagem conteúdo emocional da história. Se o personagem
entre numa sala, ponha as chaves na mesa e abra de um drama doméstico chega em casa muito tarde
a geladeira. Essa é uma série de movimentos que e entra correndo pela porta, sua hesitação antes
pode ser entregue ao montador com o fraseado de soltar as chaves poderia ser um questionamento:
intacto, em uma sequência, ou pode ser uma série “Estarão todos dormindo?” Ou de forma mais
de gestos descrita numa variedade de fotogramas, melodramática: “A casa parece deserta; terá minha
a partir da qual o montador tem que selecionar e mulher me deixado?” A caminhada cautelosa até
transformar fragmentos em frases. Nos dois casos, a geladeira torna-se então algo pensativo, talvez até
o fraseado do ritmo do movimento transmitirá ansioso, dependendo do contexto da história.
e comunicará uma expressiva parcela do significado O contexto da narrativa identifica o foco do conteú-
desse movimento. do emocional — para onde está direcionado o
Um coreógrafo que tenta extrair o fraseado questionamento e a ansiedade —, mas é a hesitação
afetivo de um intérprete ao vivo diria apenas, por e a caminhada cautelosa que transmitem a sensação
exemplo: “Entre rápido, hesite e depois ande com de questionamento e ansiedade. Isso é importante
cautela.” Um editor pode ter uma tomada na qual o porque não passamos por um processo consciente
artista faça tudo isso — passe rápido pela porta, para compreender a sensação que estamos vendo.
hesite antes de soltar as chaves e depois caminhe É com ela que sentimos; usamos os neurônios-
com cautela até a geladeira. Dentro dessa única -espelho e a capacidade de empatia cinestésica para
tomada, cada um dos movimentos contém um ou entender diretamente a pulsação do movimento.
mais pulsos que, juntos, constituem uma frase. Quando uma frase de movimento é coreografada de
Inversamente, o editor precisa construir essa modo satisfatório por um editor, ela nos passa
nuance relacional dos movimentos rápido, hesitado a informação cinestésica que a história requer.
e cauteloso com três tomadas ou até mais, se Faz isso sem nos confundir ou nos fazer parar de
for esse o fraseado rítmico que deseja. Se ele tem sentir e começa a fazer perguntas sobre o que devería-
uma sequência que contenha uma mescla de foto- mos estar sentindo, e o faz de imediato — ao
gramas amplos, médios e próximos, fraseia essa nos permitir sentir e nos movermos para o que vai
série de movimentos, escolhendo a entrada acontecer depois.
mais rápida do ator, cortando para sua hesitação,
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Karen Pearlman A edição como coreografia
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dE videodança
o editor em seus esforços para fazer um filme
parecer correto.
A dançarina e coreógrafa americana Doris Hum-
phrey escreveu sobre a arte da coreografia em seu
considerações sobre livro The Art of Making Dances. A obra está dividida
O fraseado em capítulos sobre algumas das diversas consi-
derações que surgem quando se transforma movi-
mento em dança. Ao tomar o sumário de The Art
of Making Dances e recompor seus tópicos na forma
de questões para a construção de qualquer movi-
mento, não somente de dança, levantamos uma série
Uma das razões para se comparar a edição à coreo- de questões que editores podem fazer a si mes-
grafia é criar a possibilidade de usar o conhecimento mos. Os tópicos a seguir são subtítulos de capítulos
sobre a arte da coreografia a fim de ampliar os do livro de Humphrey; as questões que levantam são
conceitos da arte de moldar o ritmo na edição. Se a minhas, apesar de representarem uma simples
construção do ritmo na montagem cinematográfica amostra dessa linha de questionamento quando se
é compreendida como um processo coreográfico, trata de fazer uma abordagem coreográfica do ritmo
então questões diante das quais os coreógrafos se na edição cinematográfica (Humphrey, 1959, p. 11).
veem podem ser as mesmas impostas aos editores
ao moldarem o ritmo de um filme. Simetria e Assimetria
As ideias a seguir, sobre métodos de criação
de uma dança, são apresentadas como perguntas Da mesma forma que a tensão entre simetria e assi-
que os editores podem fazer a si mesmos, por metria pode ser usada de forma expressiva por um
duas razões. Primeiro, porque não são regras. coreógrafo, pode também ser manipulada por um
Esses conceitos são apenas questões enfrentadas editor que esteja considerando a edição de um filme
por coreógrafos ao moldar as qualidades afetivas e os ritmos criados por ela. Um estilo fluente e
do movimento. Segundo, são perguntas que clássico tende a enfatizar a simetria tanto na compo-
não têm intenção de serem prescritivas. São formas sição dos quadros como na regularidade do pulso.
alternativas de se olhar para o fluxo do movimento O rompimento da simetria torna-se então uma
através do material. Seu valor prático torna-se ruptura dramática importante. Para o editor, as ques-
manifesto quando os conceitos mais comuns de tões abrangentes de um filme podem ser: o ritmo e
construção de uma história estão frustrando o fraseado do movimento deveriam enfatizar o
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Karen Pearlman A edição como coreografia
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dE videodança
equilíbrio ou o desequilíbrio? Padrões regulares ou As questões a serem trabalhadas no formação
irregulares? Movimento uniforme ou “esquizofrêni- rítmica de frases na edição incluem: qual é a
co”? Essas perguntas também se podem aplicar cadência desse ritmo? A velocidade e a força desse
a uma ruptura específica de um padrão de ritmo, pulso? Onde estão seus pontos de descanso e de
como na questão de quando passar de regular para clímax? Onde estão as respirações e as mudanças
irregular, ou de uniforme para “esquizofrênico”. de ênfase? O pulso apresenta variações de acento
constantes ou dinâmicas sob pressão? E quanto
Um ou Mais Corpos ao acento na duração?

Para um editor, a questão de um ou mais corpos O Espaço Cênico


está ligada à escolha de sequências e à concentração
de movimento que elas contêm. Na elaboração de Nessa seção de The Art of Making Dances, Humphrey
um momento expressivo, um editor pode, por pede aos coreógrafos que considerem o uso do
exemplo, fazer escolhas entre indivíduos enquadra- espaço como ferramenta efetiva. A mesma questão
dos com rigidez ou enquadramentos mais soltos aplica-se a um editor confrontado com o enqua-
de grupos. Ou pode ter opções no que se refere dramento, trabalhando para determinar o ritmo
à concentração de movimento dentro de tomadas através do uso de vários fotogramas. É claro que o
diferentes. Suas dúvidas sobre um determinado realizador e o diretor de fotografia já devem ter consi-
momento ou um filme por inteiro podem ser: a con- derado, em profundidade, enquadramento e movi-
centração de movimento está alta ou baixa? mento dentro do quadro antes de o material chegar
Dispersa ou unificada? Movendo-se em direção ao ao editor. Assim, sua preocupação é com a com-
caos ou à ordem? Para ajustar essas variações den- posição coreográfica na junção dos quadros, e com o
tro de um fluxo sensível, o editor pode considerar impacto que o material produz quando visto no
a distribuição de movimento em um dado momento, fluxo de sequências, não em sequências individu-
e amplificar o movimento ou personalizá-lo, enfa- ais. As perguntas são: as tomadas são agrupadas
tizando um grupo ou um indivíduo. de modo a progredir suavemente do plano geral
para o próximo, do plano próximo para o geral, ou
A Frase para alternar bruscamente o tamanho dos planos?
O movimento flui numa direção constante ou em
Como discutido anteriormente, a frase é a transfor- direções alternadas? Vêm de todos os cantos da
mação do movimento em sequência ritmicamente tela ou alternam padrões diferentes em momentos
expressiva, formada perceptível e intencionalmente. diferentes? E os ângulos? Que tipo de efeito foi
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Karen Pearlman A edição como coreografia
234–235
dE videodança
aplicado? Deveria estar sendo usado de maneira da história e a informação. O movimento no tempo
econômica ou exaustiva? e a energia de todas as imagens filmadas, em um
As ideias de Humphrey sobre a arte de criar danças determinado projeto, são coreograficamente trans-
são úteis ao demonstrar os princípios em ação formados em frases de movimentos relacionados e
no ritmo — e podem ser úteis também para um editor, pontos de ênfase agrupados. Essas frases são
quando está confuso. Essas questões não precisam depois modificadas, justapostas, entremeadas em
necessariamente ser articuladas de forma verbal si mesmas e em relação umas às outras para criar a
para que estejam presentes. Há outras formas experiência integral de tempo, energia e movimento
de resolver problemas sem articulá-los. Quando o em um filme, o que chamamos ritmo.
editor está trabalhando com o movimento do tempo
e da energia num filme, está trabalhando com os
princípios de distribuição, concentração e fraseado
do movimento, esteja ele consciente disso ou
não. Essas questões podem ser úteis quando o editor
sabe que está trabalhando com movimento para
criar ritmo e deseja saber como empregar os prin- conclusão
cípios da composição coreográfica.
Um coreógrafo vai criar frases de movimentos
de dança, variá-las, justapô-las, entremeá-las e
manipulá-las de outra forma, transformando-lhes o
interior e em relação umas às outras, a fim de criar
uma experiência integral de tempo, energia e
movimento, chamada dança. Na edição cinemato- Nesse artigo, o tema da montagem de ritmos foi
gráfica, o editor raramente está apenas criando uma transferido da música para o movimento, criando
experiência de tempo, energia e movimento; está assim a possibilidade de se contemplar a edição
também dando forma à história, aos relacionamen- como um processo coreográfico. A unidade básica
tos entre os personagens e outros tipos de informa- de movimento, tempo e energia que editores e
ção. Além disso, é raro que os editores de filmes coreógrafos manipulam foi descrita como o pulso.
trabalhem exclusivamente com movimentos huma- Os métodos coreográficos de moldagem das frases
nos. Entretanto, tempo, energia e movimento de movimento foram explorados em busca de
são os fatores mais importantes ao se dar ritmo a informações sobre as semelhanças da criação de
um filme; eles moldam a experiência qualitativa uma dança e da criação dos ritmos em filmes.
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Karen Pearlman A edição como coreografia
236–237
dE videodança
Em particular, as frases de movimento foram exa- Paulo Caldas
minadas como uma construção coreográfica, encon-
trada tanto no interior de uma tomada, quanto
através da justaposição de tomadas, ou em ambas.
Se a frase de movimento encontra-se ou não
dentro de uma tomada, ou entre elas, ela está expres-
sando tempo e mudança durante o passar do tempo. Poéticas do Movimento:
O movimento constante e inexorável de um estra-
nho passando pela porta de um quarto expressa Interfaces
um tipo de tempo. Vislumbres rápidos de aço,
sangue, água e cortinas de chuveiro criam outros.
O movimento é a ação ou a imagem do tempo
e da energia; é o material com o qual o editor traba-
lha para criar ritmo. A edição envolve o fraseado
do movimento, ou a transformação estética desse
movimento, no aspecto do envolvimento empático
com o filme, a que chamamos ritmo.

Eisenstein, Sergei. A forma do Stevens, Kate et al. “Choreogra-


filme. Rio de Janeiro: Jorge Zahar phic cognition: composing time and
Editor, 2003. space”. In: Proceedings of the 6th
Humphrey, Doris. The Art of International Conference on Music
Making Dances. New York: Grove Perception & Cognition. Keele: Keele
Press, 1959. University, 2000.
Motion Picture Editors Guild Tarkovsky, Andrei. Sculpting in
Newsletter. Disponível em <http:// Time. Austin: University of Texas,
www.editorsguild.com/newsletter/ 1986.
specialjun97/directors.html>. Van Leeuwen, Theo. “Rhythmic
Pepperman, Richard. The Eye structure of the film text”. In: Discourse
is Quicker, Film Editing: Making a and Communication: New Approaches
Good Film Better. Califórnia: Michael to the Analysis of Mass Media Discourse
Weise Productions, Studio City, an Communication. Berlim: Walter de Paulo Caldas é bailarino, coreógrafo e professor dos cursos de graduação
2004. Gruyter, 1985. em dança da Universidade Federal do Ceará. Idealizou e dirige o dança em
Stam, Robert. Film Theory: ————. Introducing Social Semio- foco — Festival Internacional de Vídeo & Dança, realizado desde 2003. Dirige
an Introduction. Oxford: Blackwell, tics. Nova York: Routledge, 2005. a companhia de dança Staccato | Paulo Caldas, sediada no Rio de Janeiro,
Malden, 2000. desde sua criação, em 1993.

dança em foco
Ensaios contemporâneos
Karen Pearlman
238–239
dE videodança
“Dançar o impossível” 1 foi uma expressão já usada Fuller. A artista americana — pioneira da dança
para fazer referência àquilo que a tela autoriza moderna — se notabilizou, no final do século xix, no
à dança: espaços impossíveis, trânsitos impossíveis Folies Bergère, em Paris, menos pela invenção
entre espaços, a matéria escapa de sua física, de um novo universo gestual do que pelo desenvolvi-
o corpo de sua anatomia, o tempo confunde suas mento de dispositivos baseados numa composição
dimensões e sentidos. O cinema, desde sempre, que fundia corpo, tecidos, luz e cores em uma imagem
produziu efeitos sobre a dança; o vídeo os prolonga em constante movimento: “O corpo encantava
e — no instante em que a imagem se torna digital — não se deixando encontrar”, relata um comentarista
os extrema. As novas tecnologias não param de da época.2 Mais tarde, o interesse de Fuller pelas
tensionar a dança na direção de uma reinvenção. novas tecnologias irá levá-la, previsivelmente, ao
cinema. De fato, seus traços quase abstratos já nos
fazem assistir, para além de uma dança de corpos em
movimento, uma coreografia de formas em movimen-
to. Ao evocar menos os corpos do que seus traços,
Fuller inscreve-se numa linhagem que — inaugurada
por J.-E. Marey, cuja cronofotografia é matriz e
O palco cinematográfico condição para a invenção do cinema — prolonga-se
até os Synchronous Objects, de William Forsythe.
Os efeitos recíprocos entre cinema/vídeo e a
dança atravessaram o século xx, o que é constatado
tanto na tridimensionalidade da cena quanto na
bidimensionalidade da tela: desde cedo, o cinema foi
frequentado em sua materialidade — o uso de pro-
O cinema, desde sempre, ocupou-se de registrar a jeções integradas às obras cênicas, aos espetáculos,
dança tanto em seu contexto social quanto cênico: data do início do século: como interlúdio para o balé
a dança dos índios Sioux e também as Serpentine dadaísta Relâche, de Francis Picabia, foi produ-
Dances, com Annabelle Moore, foram objetos fílmicos zido, em 1924, o Entr’acte, de René Clair. Nele, assis-
documentais para Thomas timos — em meio a uma profusão de imagens que pro-
1 “Dancing the Impossible: Cho-
reography for the Camera” foi o título Edison já em 1894 e põem uma lógica que escapa ao modelo narrativo
de um artigo publicado por Lisa Kraus 1896, respectivamente. que se tornaria hegemônico — a uma imagem recor-
na Dance Magazine, em jan.2005.
2 Citado por Annie Suquet (2009,
As formas das Serpentine rente: em câmera lenta, uma bailarina de sapatilha
p. 510). Dances repetem Loïe e tutu romântico gira e salta sobre uma superfície
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Paulo Caldas Poéticas do Movimento: Interfaces
240–241
dE videodança
transparente, através da qual é filmada em contra- cinema, com a câmera rápida e o fade ou a câmera
-plongé. Seu enquadramento e sua lentidão já lenta. É ao evocar esses dois tipos de desenrolar
nos informavam, naquele momento, bela e sintetica- do filme que o mímico melhor saberá executar seu
mente, sobre os novos espaços e tempos que a dança gesto, e é o hábito de percebê-los realizados na tela
passou a experimentar em sua associação com o que inspirará seu gestual. As noções de close ou
cinema. O filme materializa essa dimensão de uma de montagem encontram um equivalente gestual
impossibilidade tornada possível: aqui, são simulta- na noção de mobilização /imobilização de uma parte
neamente o tempo e o espaço da dança que se redi- do corpo e na de fragmentação do corpo em que cada
mensionam. Trata-se já aí de dançar o impossível. segmento é utilizado por vez (Pavis, 2005, p. 43).
Durante o século, o uso cênico das imagens
virtuais multiplicar-se-á: elas terão tratamentos ceno- Contudo, nas primeiras páginas de Cinema —
gráficos, coreográficos e dramatúrgicos diversos, A imagem movimento, será em outro sentido que
poderão ser interativas, imersivas até, e comporão Gilles Deleuze irá se referir a uma “conspiração”
jogos mais ou menos complexos com o presencial. da dança e da mímica com o cinema: “a partir de
Mas o cinema foi frequentado também em seus uma ‘constatação bergsoniana’, ele dirá que:
procedimentos: por exemplo, em Le Train Bleu, a obra ‘Quer se trate de pensar o devir, ou de o exprimir
de Bronislava Nijinska criada para os Ballets Russes ou até de o percepcionar, o que fazemos é apenas
de Diaghilev, também em 1924, “os bailarinos moviam- acionar uma espécie de cinematógrafo interior’”
-se em câmera lenta, mostrando uma sofisticada (Deleuze, 1985, p. 10). Naquele momento, diante do
compreensão do uso fílmico do tempo” (Rosiny, 2007, cinema recém-inventado, Bergson reconhece
p. 19). Seria preciso investigar, mesmo no teatro o que chamará de “ilusão cinematográfica”: a ilusão
de Meyerhold — isento do uso de tela e projeções de produzir movimento através de uma sucessão
e pleno de fisicalidade —, como “a encenação e a repre- de imobilidades. E distinguirá duas maneiras de
sentação do ator utilizam técnicas de montagem cine- fazê-lo: de um lado, a maneira antiga, ligada à ideia
matográfica, sobretudo a ‘montagem de atrações’ ”. de pose que insiste, de certo modo, no balé clássico
(sobretudo no século xix), em que o movimento
Étienne Decroux […] não se vale do cinema mudo, é uma síntese de pontos culminantes (os instantes
mas se refere explicitamente em Palavras sobre a privilegiados); de outro, a maneira moderna, que
Mímica aos “dois movimentos contrários” do saccadé extrai, a partir de uma análise, ou seja, de uma
(“pontuado”) e fondu (“fluente”), que caracterizam decomposição do movimento, instantes quaisquer
duas maneiras de se mover para o mímico. Ora, esses que mais tarde será preciso sintetizar (é exemplar
são termos e técnicas que têm melhor ilustração no aqui o procedimento do cinema: afinal, os foto-
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Paulo Caldas Poéticas do Movimento: Interfaces
242–243
dE videodança
gramas que desfilam em velocidade diante de Hoje, mais do que nunca, reconhecemos o efeito
nós — e que nos dão a ver movimento — são apenas cinema na dança, nas cenas que estabelecem
imagens imóveis do movimento). dramaturgias do fragmento e que se constroem a
Então, numa rara referência à dança, Deleuze partir de procedimentos de edição; reconhecemo-lo
dizia: “A dança, o balé, a mímica abandonavam as também nos corpos que multiplicam seus focos
figuras e as poses para liberar valores não posados, (como em obras recentes de William Forsythe,
não pulsados, que reportavam o movimento ao especialmente em seu Solo, onde vemos, no corpo,
instante qualquer. […] Tudo isso conspirava com uma atomização dos acontecimentos comparável
o cinema.” (Deleuze, 1985, p. 10). àquela que Cunningham inaugurou no palco), ou
E, de fato, essa “conspiração” tem uma história nos corpos que materializam velocidades alteradas
ao longo do século xx. Desconfio que, quando (desde a agora banal câmera lenta à quase impossí-
Rudolf Laban libera tantos verbos no infinitivo vel câmera acelerada que assistimos na versão
(deslizar, torcer, flutuar etc.) como ações básicas cênica de Amelia, do La La La Human Steps, e
de esforço e que contrastam com os substantivos, exacerbada em sua versão videográfica, de 2002,
adjetivos e verbos no particípio que nomeiam dirigida pelo próprio coreógrafo Édouard Lock).
passos clássicos (jeté, tombé, assemblé etc.), é Mesmo numa coreógrafa que não listaríamos,
porque algo se passou. As danças moderna e con- a princípio, entre as ligadas a novas tecnologias,
temporânea investiram profundamente em outra como Pina Bausch, reconhecemos o efeito cinema
maneira de pensar o movimento, maneira afetiva- não apenas na dramaturgia de fragmentos que
mente cinematográfica. atravessa seu Teatro-Dança (impressa também
em seu único filme, O Lamento da Imperatriz), mas
também naquelas repetições e reversões de tempo
delicadamente presentes numa obra como Café
Muller. É como se “coreografar passasse por um
olhar midiado pela câmera ou a mesa de montagem
do cinema ou do vídeo” (Pavis, 2005, p. 44).
Efeito cinema Os correlatos de procedimentos cinematográfi-
cos se multiplicam no corpo e na dramaturgia, mas
também no próprio roteiro proposto ao olhar na
cena: neste sentido, o movimento e a luz (ou seja,
aquilo para o que sabemos tender nossa percepção)
são objeto de um tratamento paracinematográfico.
dança em foco
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O percurso do olho no palco — mesmo num palco gotável. Perseguir essas tendências na cena parece
hierarquizado como o italiano — é, evidentemente, ser, aliás, uma ocupação necessária àqueles que
uma construção singular de cada espectador. se propõem a registrar espetáculos: todo o esforço
Mas a composição coreográfica poderá construir, do que chamaríamos registro documental tende a
como proposta, as tendências desse percurso: a ser o de resgatar a experiência que o espectador tem
ocupação variada do palco, por exemplo (especial- na performance ao vivo, donde há ênfase nos en-
mente em sua profundidade, distinguindo o próximo quadramentos frontais ou diagonais, nos planos gerais
e o distante), convida o olhar com apelos distintos; ou médios, nos movimentos e nas transições lentas
mas nossa tendência para determo-nos no que e na manutenção de uma linearidade temporal. Quando
está mais próximo pode desaparecer se aquilo que, se deseja registro, o vídeo recusa-se a declarar sua
distante, se move mais intensamente ou é ilumina- existência; ele quer apenas desaparecer. (O registro
do mais intensamente. Uma câmera que escolhesse de Café Muller, neste sentido, é exemplar).
seu foco num corpo imóvel, em primeiro plano, e
captasse, ao fundo, um corpo em movimento desfo-
cado, poderia nos sugerir uma tensão semelhante.
Então, por conta de nossas tendências percep-
tivas, está quase implicado na composição coreo-
gráfica — mesmo que para ser subvertido — também
um quase design de luz, como correlato de um design A tela coreográfica
do foco ou do enquadramento, como um design
primário do que se vê. Um coreógrafo sabe que tudo
o que se move na cena (corpos, luzes ou objetos)
há que ser parte de sua composição; mas também
sabe que a arquitetura móvel da cena é uma edição.
Ele desenha, ou pode desenhar, na cena, como
proposta, o que captar e como editar. Em cena, repito, Na tela, o corpo pode ter suas dimensões alteradas:
são principalmente o movimento e a luz os instru- a imagem do corpo distante informa, sobretudo,
mentos para a produção de novas espacialidades, sua composição com o espaço, as linhas de força
construídas por um olho tornado câmera. Em tal que compõem a arquitetura da imagem e se prolon-
abordagem, o coreográfico e o fílmico se tocam. gam para além dela. A ideia de um extracampo
Reconhecidas algumas tendências perceptivas, insiste na imagem de uma maneira quase impensável
o jogo a ser proposto na cena ou no quadro é ines- no palco. Nele, a moldura é experimentada como
dança em foco
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limite do acontecimento. Para além daquilo que e espaço. É também (talvez, sobretudo) por cons-
se vê não há nenhuma cena a ser vista. A imagem tatar a potência de descontinuá-los e redimen-
na tela, ao contrário, tende a insinuar um trans- sioná-los que tantos coreógrafos se orientem para
bordamento em que aquilo que se vê se liga virtual- a tela, onde o impossível é possível. Ali, o coreó-
mente àquilo que não se vê. grafo vê a oportunidade de abandonar a quase
Planos próximos podem isolar o corpo do espaço, incontornável tendência de continuidade espaço-
fragmentá-lo, dar proporções monumentais a suas -temporal do palco.
menores porções (a “tragédia é anatômica”, diria Sabemos o notável domínio da escala do tempo
Jean Epstein) — pernas, pés, rostos, olhos, braços, realizado no cinema. Como disse Epstein, “o cinema
mãos —, dando ocasião de produzir aí coreografias tem o poder de transmutações universais, mas
improváveis: a frequência com que as mãos, por esse segredo é extraordinariamente simples: toda
exemplo, protagonizam planos, cenas ou peças intei- essa magia reduz-se à capacidade de fazer com
ras evidencia o quanto o cinema e o vídeo potencia- que a dimensão e a orientação temporais variem”
lizam o fato de que, na contemporaneidade, um (apud Betton, 1987, p. 17). O cinema é arte do tempo,
movimento qualquer de um corpo qualquer num é “esculpir o tempo”. Câmera lenta, interrupção,
espaço qualquer pode ser dança. inversão da escala do tempo, montagem, todos
O que constatamos, aqui, é que, de um lado, a esses procedimentos se ligam mesmo ao cinema
cena moderna nasce ligada ao nascimento de novas como arte e técnica.
tecnologias da luz (a iluminação elétrica terá um Do mesmo modo, ele é arte do espaço; um espaço
papel fundamental nas experiências cênicas do que se pode descontinuado, “imaginário, estrutura-
início do século xx) e, de outro, que a dança moder- do, artificial, deformado, um universo fílmico
na ligar-se-á insistentemente ao então recém- onde há condensações, fragmentações e junções
-inventado cinema. A dança frequentará o cinema, espaciais (a imagem é um transporte no tempo, mas
tanto quanto o cinema frequentará a dança. Des- também um transporte no espaço)” (Betton, 1987,
necessário lembrar que a palavra grega kínesis é p. 28). O primeiro plano, os movimentos de câmera,
base etimológica de cinético, e também de cinema. os ângulos de enquadramento, promovem uma
A cinese é, de fato, o traço comum que vincula nova experiência do espaço, experiência moderna
coreografia e cinematografia como escrituras e essencialmente cinematográfica.
de movimento. Durante todo o século xx, também, percebemos
De fato, construir uma cena coreográfica conta- a insistência da dança ou de uma dimensão coreo-
minada pela linguagem cinematográfica implica um gráfica qualquer no cinema: desde os citados
investimento relevado sobre dois registros: tempo exemplos do início do século, passando pelas mais
dança em foco
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diversas soluções do musical (pensemos na con- relacionada à câmera e à montagem que não possa
servadora câmera imóvel em Fred Astaire, opos- ser realizada como uma unidade noutro lugar senão
ta à revolucionária câmera em movimentos inéditos neste filme em particular. No curto espaço do
de Busby Berkeley), pelo chamado cinema expe- filme, pude apenas sugerir as potencialidades de
rimental (e a seminal obra de Maya Deren) e pelas tal forma. É minha mais sincera esperança que o
cenas de dança (ou, mesmo, de artes marciais) filme-dança seja rapidamente desenvolvido e
inseridas nos mais diversos filmes no decorrer de que, em interesse de tal desenvolvimento, uma nova
toda a história. era de colaboração entre dançarinos e cineastas
Nas imagens caleidoscópicas quase abstratas abrir-se-á — uma na qual ambos reuniriam suas
a que assistimos no cinema de Berkeley, aliás, energias criativas e talentos rumo a uma expressão
reconhecemos algo impossível de ser produzido ou de arte integrada. (Deren, 2008, p. 222)
reproduzido no palco. Nele, a coreografia dos
corpos e das formas composta para a câmera, Para além do que se passa diante da câmera, im-
de alguma maneira, converge com o projeto de Deren porta, então, sublinhar o quanto uma dimensão
de estabelecer um fazer/saber comum, simulta- coreográfica poderia ou deveria ser reconhecida nos
neamente cinematográfico e coreográfico, e que tem procedimentos da câmera e/ou da edição: talvez
em Study in Choreography for Camera um verdadei- aí, sobretudo, se dê a passagem que, afetivamente,
ro manifesto. faça surgir na dramaturgia das imagens um efeito
Isso que se passa entre a dança e o cinema dança. Pois aí, na cinedança ou na videodança, vemos
(ou o vídeo) promove uma nova experiência. As ideias problematizadas as diversas dimensões coreo-
de impureza (menos frequente) ou de hibridez se gráficas possíveis: a do corpo filmado, da câmera
repetem aqui. É comum tomar a videodança como que filma, da edição que compõe.
um híbrido, nascido de um diálogo entre a dança Exemplar, neste sentido, além da mencionada
e o vídeo, no qual essas linguagens se tornam indis- obra de Maya Deren, é o curta Nine Variations
sociáveis, como uma obra coreográfica que existe on a Dance Theme, de Hilary Harris, de 1966, em
apenas no vídeo e para o vídeo. De alguma maneira, que a bailarina Bettie de Jong dança uma sequência
nesta precária perspectiva ressoam aquelas moti- de movimentos que dura não mais do que 50 segun-
vações de Deren, que dizia, a respeito de seu Study dos. Visitada, nas nove vezes em que se repete,
in Choreography for Camera: por uma câmera que propõe diferentes enquadramen-
tos e percursos, editados ora com planos-sequência,
Pretendo que este filme seja, essencialmente, uma ora com cortes mais ou menos frequentes, a bailari-
amostra de filme-dança, ou seja, uma dança tão na repete movimentos que, a nós espectadores, são
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experimentados sempre como novos. Sobre um reúne, como dissemos, dança e cinema /vídeo,
mesmo, câmera e edição nos atualizam alteridades talvez seja exatamente por conta dessas estratégias
virtuais: na tela, as nove variações são nove coreo- com que nos esforçamos para instituir esteticamen-
grafias distintas. te esta dimensão do qualquer no movimento, no
E exemplar extremo, é o vídeo Birds, de David corpo e no espaço, que podemos prolongar, para a
Hinton, de 2000, carente inclusive da figura huma- tela, um tratamento coreográfico e dar à videodança
na. Premiado como Best Screen Choreography o alcance que ela tem hoje.
no importante festival imz Dance Screen, do Se a videodança extrema e complexifica questões
mesmo ano, Birds pede que nosso olhar se radicali- da própria dança contemporânea, ainda tratar-se-á
ze e reconheça na manipulação das imagens de reconhecer nela uma dimensão coreográfica
documentais de pássaros uma lógica coreográfica. qualquer, algo que afirme uma lógica cinética como
Em certo sentido, a videodança prolonga — porque poética: uma dramaturgia de movimento. Mas agora
arrasta para si — as próprias indefinições da dança já não se trata mais necessariamente de reconhecer
contemporânea. Lugar da diferença, a dança no corpo tal dimensão. Ela já não pode se deter
contemporânea é frequentada por regimes expres- aí: a cinese como interface vai autorizar o trânsito
sivos diversos; oscilando entre poéticas visuais, inquieto entre cinema/vídeo e a dança. Compreendi-
plásticas, performáticas, teatrais e musicais, a cena das como poéticas do movimento, coreografia,
da dança contemporânea nem chega a implicar, cinematografia e videografia se confundem como cine-
por vezes, qualquer ascendência de regimes grafia, como escritura de movimento; e talvez seja
cinéticos ou cinestésicos. Mas, se acolhemos tal cena esse o modo de produzir nas imagens sobre a tela
como própria e nossa — falo como bailarino —, uma dimensão cinestésica que, como na dança,
é porque reconhecemos nela pelo menos os vestí- prolongue a experiência do ver para além dos olhos.
gios de um regime cinestésico inerente à dança Donde a afirmação de que também uma coreogra-
(uma danceidade, se for possível dizê-lo) ou vis- fia da câmera ou da edição não seja absolutamente
lumbramos espasmos de coreografia. metafórica. “Camera choreography” será apenas
Fundidos ou confundidos, os elementos de uma uma das expressões que a língua inglesa produziu
lógica da dança emergem, na cena, com novos status ao tentar nomear isso que é realizado entre o vídeo
e estatutos: a arte do século xx se viu atraves- e a dança. Aliás, um inventário da variedade de
sada por questões que nos levaram — no limite — a nomeações disso que se passa entre cinema/vídeo
erigir uma dança contemporânea feita de movimen- e a dança (variedade especialmente reconhecível
tos quaisquer de corpos quaisquer em espaços na língua inglesa, onde “cine dance”, “coreocinema”
quaisquer. Para além da reconhecida cinese que e, mais recentemente, “screen dance”, “screen
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dE videodança
choreography”, “dance for the camera”, “video- Carolina Natal
dance”, por exemplo, nomeiam práticas e eventos)
poderia eventualmente ensinar algo sobre as muitas
nuances poéticas e estéticas que atravessam
esta produção.
A videodança se liga à constatação de que a
dança, a exemplo de outras artes, encontra na tecno- Dancine:
logia da imagem a possibilidade de criação de novas
experiências estéticas. Quando corpo e imagem inter-relação
são insistentemente capturados pela banalidade de espaços
do consumo, deixar que uma experiência de dança
mova os corpos e motive as imagens nos palcos e
telas é também uma prática política, é arte.

Betton, Gérard. Estética do Suquet, Annie. “O corpo


Cinema. São Paulo: Martins Fontes, dançante: um laboratório da
1987. percepção”. In: Corbin, Alain et al.
Braga, Robson Aurélio Adelino. História do Corpo. Rio de Janeiro:
Roland Barthes e a escritura: um Vozes, 2009.
olhar poético sobre o signo fotográ-
fico. Disponível em <http://www.
studium.iar.unicamp.br/19/04.html?
studium=3.html>. Acesso em
11.abr.2009.
Deleuze, Gilles. Cinema: a ima-
gem-movimento. São Paulo: Brasi-
liense, 1985.
Deren, Maya. Essential Deren:
Collected Writings on Film. Nova Carolina Natal é bailarina e pesquisadora em dança. É doutora em Multimeios
York: Documentext, 2008. na Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) com estágio doutoral de
Pavis, Patrice. A Análise dos um ano na Paris viii — Vincennes-Saint Dennis, França. Sua pesquisa é
Espetáculos. São Paulo: Perspectiva, voltada para a percepção da dança na imagem em movimento e sua relação
2005. com a linguagem cinematográfica, a dancine. Produziu vídeos de dança que
Rosiny, Claudia. “Videodança”. foram projetados em festivais nacionais e internacionais, na categoria
In: Caldas, Paulo et al. Dança em experimental ou videodança. Foi professora substituta no curso de Dança da
Foco: Videodança. Rio de Janeiro: ufrj (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e atualmente é coreógrafa
Oi Futuro, 2007. de dança contemporânea da Cia. Jovem de Dança de São José dos Campos.

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dE videodança
tilhada com as fronteiras que a tocam ou a inter-
ferem, provocando outras estéticas. Essa linha de
reflexão converge com a discussão que Mello (2008)
propõe para o vídeo através de suas extremidades,
I. A criação do espaço-trio priorizando os modos como a estética contemporâ-
designado na imagem nea se apropria dele. Assim, Mello (idem, p. 25)
justifica a opção:

Como uma estratégia híbrida de construção de


sentidos, o vídeo é considerado aqui, em suas
situações fronteiriças, como um desvio ou estra-
Um lugar é também uma experiência de corpo nhamento, como um processo descentralizado
(Julie Perrin, 2006, p. 4). 1 de linguagem, como um meio que expande as suas
próprias especificidades. Trata-se de conhecer
Discorrer sobre a dança na imagem em movimento o vídeo interligado a variadas manifestações
é arriscar-se em um campo de tensão, em parâ- expressivas, ou o vídeo nas extremidades. […]
metros não definidos e ainda experimentais. Nesse Aborda os deslocamentos, as infiltrações e os
âmbito, trata-se muito mais de compreender as desvios proporcionados pelo vídeo nos trânsitos e
múltiplas relações estabelecidas pela dança com os questionamentos do espaço-tempo midiático.
diversos fatores que a inserem na imagem do que
insistir em sua especificidade ou praticamente em Ao se pensar em extremidade, atribui-se importância
sua definição. Aliás, pensar em definição é sis- também aos elementos que tocam a extremidade do
tematizar e aniquilar a emergência de elementos que campo da dança na imagem em movimento, os quais
impulsionam e interferem no fazer artístico da desviam a dança do seu eixo comum, ampliando e
dança. São elementos que agem como interlocuto- transformando seu processo de criação a partir das
res diferenciados que ampliam as funções, contri- infiltrações e interferências das outras extremidades.
buindo para uma relação interdisciplinar que obriga Assim, conectando a dança à imagem, não para
a não se pensar a dança isoladamente, mas como fins de registro nem de análises do movimento,
parte de um contexto, de um fluir de relações. mas para se compor uma nova identidade, uma nova
Disto, segue-se que o foco da análise da dança possibilidade, colocam-se, em paralelo, duas pers-
1 “Un lieu est aussi une expé-
neste texto não se dá de pectivas que obrigatoriamente se relacionam: o
rience de corps.” (Tradução livre). forma pura, mas compar- espaço da tela-imagem e o espaço físico-geográfico.
dança em foco
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Ao sugerir a transposição da dança na imagem, Esta constatação é preciosa, pois, quando se dife-
surgem novas proposições intrínsecas a essa renciam os espaços considerando-os como duas
composição, uma vez que se exige do próprio corpo aberturas — o espaço da tela e o espaço físico —,
adequar-se a corporeidades distintas, específicas registra-se que ambos possuem a capacidade de
ao olhar da câmera, que modificam a relação do promover contribuições para o corpo coreográfico
corpo com a dança. Nesta adequação, Debat em cena, acrescentando ao exercício da dança
(2009) interroga sobre os inversos: o que a imagem hipóteses inventivas que, devido a estas especifici-
faz à dança e o que a dança faz à imagem. A essa dades da imagem, seriam impossíveis de ser
questão somam-se necessariamente as diferentes concebidas a olho nu.
perspectivas espaciais que são imprescindíveis Correspondente à questão da tatilidade do espa-
para o discernimento das devidas apropriações ao ço, Aumont (idem, p. 15) propõe ainda outra relação,
corpo: do campo da dança e do campo da imagem. anterior, ao afirmar: “A visão é um sentido espacial.” 3
Que tipo de estética da dança se constrói a partir Retomando esta perspectiva, ao se analisar e
do olhar que é intermediado pela imagem? Como encadear esta ideia fundamental deste autor, têm-se
a dança e o espaço corporal se relacionam cercados primeiramente a noção da visão, que é um senso
destas duas outras perspectivas de espaço: da espacial, e, além de visual, é também tátil e cinética.
imagem-tela e do físico-geográfico? Sugere-se que A partir desta constatação, ao sintonizar essas
nessa inter-relação é pressuposto um local emer- apreensões com o corpo em cena que dança, veri-
gente de indagações, transfigurações e, sobretudo, fica-se que este corpo também é dotado de uma
de um corpo quase plástico, modificado e recriado origem tanto cinética, que pressupõe o movimento
para o exercício da percepção. e o gestual, quanto tátil, pois o espectador, ao
Aumont (2011, p. 19), ao discutir a percepção do perceber o corpo em cena, é capaz de perceber as
espaço, afirma: 2 “L’idée d’espace est fondamen-
noções sensoriais do
talement liée au corps et à son deslocamento sugerido
déplacement; en particulier, la
A ideia do espaço é fundamentalmente ligada ao verticalité est une donnée immé-
pelo corpo, ou mesmo a
corpo e ao seu deslocamento; em particular, a diate de notre expérience, via la noção da própria dificul-
gravitation: nous voyons les objes
verticalidade é um dado imediato de nossa expe- tomber verticalement, mais nous
dade da ação corporal
riência, pela gravidade: nós vemos os objetos cair sentons aussi la gravité passer que se sugere. Tal percep-
par notre corps. Le concept d’es-
verticalmente, mas nós sentimos também a gravi- pace est donc autant d’origine
ção é inerente ao corpo,
dade passar pelo nosso corpo. O conceito de tactile et kinésique que visuelle.” pois o sistema perceptivo
(Tradução livre).
espaço não é só visual, ele é também de origem 3 “La vision est un sens spacial.”
reconhece no outro o que
tátil e cinética.2 (Tradução livre). é semelhante ao seu.
dança em foco
Ensaios contemporâneos
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Verificam-se então dois espaços distintos: o exercício do entendimento desta mobilidade exige
espaço da tela e o espaço físico. Junto a esses dois flexibilidade diante das relações que derivam e
espaços se reconhece também outro, que habita se ressignificam, propondo novos vínculos e novas
a interseção desses, onde existe algo em comum representações para o campo da dança.
que se partilha e se faz onipresente, frequentemen- Ao pensar no espaço-trio como um todo de espa-
te, em ambas as instâncias: o espaço do corpo. ços, inicia-se a discussão a partir deste espaço que
Este corpo é o próprio objeto cênico, normalmente compõe o todo. Perrin (2006) afirma que o espaço
representado pelo corpo físico através da dança, não se define por ele mesmo, mas em contato
do gestual, alguma figuração que sugira o movimen- com outras noções e definições, sejam filosóficas,
to, que transmita a sensação da dança, que trans- geométricas, geográficas, literárias, enfim, que dis-
borde alusões que permitam ao espectador sentir tinguem a polissemia imaginária de um espaço
o movimento, ou a ausência dele, mas dentro extremamente rico em qualidades. A autora lembra
do contexto de determinada lógica dramatúrgica. ainda que a dança não impôs um lugar específico
Visualiza-se então, a partir desta reflexão, a como a única condição de sê-la. O balé clássico
composição do espaço-trio sugerido nesta análise. firmou o teatro italiano como sua referência, diferen-
Ao determinar e analisar o aspecto trio — espaço temente da dança moderna e da dança contempo-
da tela, espaço do corpo e espaço físico —, opera-se rânea, as quais ousaram experimentar também
lógicas de naturezas diferentes. No entanto, o que outros espaços externos, inserindo novas possibili-
estes espaços têm como denominador comum, dades corporais estimuladas pelo espaço físico.
além do corpo, é também o que foi atribuído anteri- Da mesma forma, vê-se essa congruência de rela-
ormente, o aspecto tátil, considerando a reflexão ções na própria compreensão da arquitetura, que é
de Aumont (2011) da visão como sentido espacial preocupada com a interação do corpo em relação
e o espaço com sentido tátil e cinético. Sendo assim, ao espaço para a criação de seus projetos. A noção
é a partir desta referência que a dança na imagem de apropriação do espaço se torna fundamental não
em movimento está sendo considerada não como só para a reflexão deste projeto, a dança na ima-
uma expressão distante do espectador, pelo fato gem, como também para os arquitetos, que devem
de ela não ser realizada ao vivo, mas como uma captar e compreender o uso dos espaços pelos indi-
experiência semelhante à sensação tátil. víduos. Neste sentido, Debat (2009, p. 93) ressalta:
Ocorre que tudo o que funda este trio se trans-
forma, interligando-se, ao ser deslocado para a O mundo da arquitetura foi o primeiro a ter feito do
imagem. Isto significa, portanto, que todas as refe- espaço e de suas múltiplas ocorrências seu campo
rências também mudam, concomitantemente, e o de pesquisa e, certamente, o arquiteto Le Corbusier,
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mas outros “construtores” do espaço antes dele, sentações do espaço que atravessam as obras,
são apaixonados por esta exploração de interação interessando-se em organizar o bailarino no seu pró-
do corpo e do espaço, por esta abertura possível prio espaço; e, por fim, escala da obra, que reconfi-
em um lugar dedicado principalmente ao movimen- gura a geografia da cena.
to e, portanto, ao pensamento através da visão, Esta última escala abrange o espaço da obra, ex-
e mais exatamente do olhar.4 trapolando o espaço físico enquanto geografia. No
entanto, a concepção geográfica do espaço é dotada
Interrogar sobre o espaço físico, que constitui pra- também de luz, de formas, de distâncias, perfeita-
ticamente a cenografia da obra artística, segundo a mente concebíveis como apropriações deste espaço,
autora, é ter consciência de que a estruturação do que o moldam e o constituem, qualificando-o.
espaço é ancorada no corpo e na percepção. Perrin Perrin (idem, p. 6) explica:
(2006, p. 4) ressalta: “É privilegiar as circulações, as
modalidades perceptivas e as sensações visuais, Todos os elementos de um espetáculo contribuem
sonoras e cinestésicas.” 5 Trata-se de organizar para a produção das espacialidades da obra:
as espacialidades corporais paralelamente à espa- a cenografia, a criação de luz, o acompanhamento
cialidade arquitetônica, geográfica. sonoro da dança e o dispositivo de difusão do som
Perrin (idem) discute o espaço como dotado inventam outros tipos de fronteiras, de formas,
de diversas instâncias de escala, como: escala do de direções, de distâncias que não coincidem neces-
lugar, discutindo os lugares próprios para a dança; 6 “Tous les éléments d’un
sariamente com a na-
4 “Le monde de l’architecture a
escala do corpo, discutin- spectacle concourent à la fabrica- tureza do lugar, nem
tion des spatialités de l’oeuvre: la
été ainsi le premier à voir fait de do a perspectiva da refe- scénographie, la création lumi-
mesmo com as espaci-
l’espace et de ses multiples occur-
rência corporal como neuse, l’accompagnement sonore alidades corporais ou os
rences, son terrain de recherche et
de la danse et le dispositif de
Le Corbusier bien sûr, mais d’autres organizadora do movi- diffusion du son inventent d’autres
trajetos coreográficos,
‘constructeurs’ d’espace avant lui, mento, em detrimento types de frontières, de formes, de mas revelam outros
se sont passionnés pour cette explo- directions, de distances qui ne
ration de l’interaction du corps et do ponto de vista exterior coincident pas nécessairement
espaços, em uma estrati-
de l’espace, pour cette ouverture que concentra apenas avec la nature du lieu, ni même ficação às vezes contra-
des possibles dans un lieu dévolu en avec les spatialités corporelles ou
premier au mouvement et donc à la uma perspectiva centrali- les trajets chorégraphiques, mais
ditória. O intérprete sabe
pensée par l’intermédiaire de la vue, zadora; escala da página, dévoilent d’autres natures d’es- reconhecer a natureza
et plus exactement du regard.” paces, en une stratification parfois
(Tradução livre). referindo-se à notação contradictoire. L’interprète sait
de uma obra coreográfica
5 “C’est favoriser des circula- do movimento inventado reconnaître la nature d’une oeuvre com a sutileza de suas
tions, des modalités perceptives et chorégraphique à la subtilité de
des sensations visuelles, sonores,
pelo coreógrafo Rudolf ces combinaisons particulières
combinações particulares
kinesthésiques.” (Tradução livre). Laban, que são repre- d’espaces.” (Tradução livre). dos espaços.6
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A revelação destes espaços conectados entre si, portanto, sem transformação, sem apropriação do
configurando, portanto, outros espaços é o que nos que a ação do deslocar instiga, propicia. Neste caso,
interessa e é o eixo da discussão, que compõe torna-se uma obra claramente transposta para a
a relação da dança na imagem e será discutido imagem para fins de registro ou de análise e estudo
durante a análise das obras. As combinações par- de determinada dança, perdendo todo o ensejo de
ticulares dos espaços, tanto em relação à apropria- transfiguração a partir das múltiplas possibilidades
ção do espaço quanto ao movimento do bailarino, apresentadas pelos elementos do espaço-trio em
conferem grande contribuição destes dedicados à relação, como uma mimese com novos dispositivos
discussão do espaço-trio. que não acionam suas funções próprias.
É possível traçar caminhos com rupturas, ver as Não se trata, portanto, de definir os espaços
descontinuidades como uma via de opção, de estéti- de cada um, mas de permitir que cada território seja
ca, impulsionando também a percepção de uma reorganizado, reordenado quando estiver sob as
dança que se faz não só pelos movimentos do corpo, influências das ações deste espaço-trio. Absorver
mas também pela conjugação deste, atrelado justa- que eles são responsáveis pela direção de uma nova
mente à configuração da percepção do espaço-trio. estratégia coreográfica.
Convergindo com a mesma estratégia sensível Esta experiência que une o corpo da dança ao
de construção ou organização de um espaço em espaço cinematográfico, pela tela, e ao espaço físico
colaboração com a obra de dança, Mira (2006, p. 23), da arquitetura do local, é o reflexo das frontei-
ao propor uma plataforma perceptiva como espaço ras que se tocam, que dialogam, que se fundem, que
da obra — as estruturas infláveis — comenta: provocam a sensação do “tatear” a obra em todos
“Eu considero o espaço como um componente da seus componentes, seja pelo corpo, pelo espaço
peça coreográfica e não somente como um quadro ou pela estratégia do enquadramento. São as inter-
congelado, um recipiente a preencher que seria ferências destes campos que promovem a mobili-
unicamente ‘a serviço de’.” dade do espaço-trio, que é remodelado a cada nova
O espaço-trio adquire uma função à composição determinação, seja pela ação do corpo, pela ação
da obra que não é aleatória: o afinamento desses da câmera ou pela ação do espaço.
espaços que produzirão a transformação da obra É através da análise do espaço-trio que podemos
artística. Quando esses elementos não possuem perceber como o cinema se insere no corpo e como
suas devidas funções, a dança na imagem se torna o corpo habita o cinema, e como este corpo gesticu-
meramente uma reprodução da mesma, sem a la com a dança.
interface da tela, de um deslocamento apenas de
espaços, mas sem a relação com os mesmos;
dança em foco
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para compor a obra. É necessário estabelecer uma
correlação entre o corpo e o espaço, entre suas
ações, entre seus deslocamentos, ser movido por
um desejo que lance luz a estas apropriações, pois
ii. As heterotopias e sua a transformação destas ações na imagem só se
relação com o espaço-trio efetuará se houver a incitação para esta (de) com-
posição, que gera novos estados para a obra.
Foucault (2009) diz que o corpo é o grande ator
utópico: para que haja utopia basta haver um corpo.
Ao afirmar isso, Foucault cita o exemplo do corpo
tatuado, maquiado, mascarado. Tais ações e
inserções criadas e reinventadas sobre o corpo não
Ao tratar esta pesquisa da imagem na dança atre- significam adquirir outro corpo, mas constituir uma
lada ao espaço-trio, vê-se a importância de focalizar linguagem ou um código que se comunica com
um percurso estrutural para trazer identidades este espaço “sagrado” ou diferenciado que se preten-
a estes espaços. Assim, recorre-se a um conceito de alcançar. Constituem uma linguagem enigmática
de espaço estudado por Foucault, tanto do espaço e secreta, que nos conduz a um espaço imaginá-
do corpo quanto do espaço geográfico, do qual rio e, segundo Foucault (2009, p. 16), “o corpo é arran-
se tomam emprestadas suas definições e intenções cado e projetado a outro espaço”.7 Neste sentido,
para a compreensão destes espaços e suas fortes compreende-se que o corpo, como protagonista
representações. da criação de utopias, é capaz de criar e conduzir o
Busca-se entender por que ou como este espaço- transporte dele mesmo para o espaço imaginário.
-trio, que compõe a imagem, pode transformar a É através desta transformação que o corpo pode
própria obra, provocando um acontecimento visual. transitar em outros espaços, cujo lugar talvez não
Tal acontecimento só será possível quando a ação seja diretamente ligado ao mundo. E que espaços
de cada componente do espaço-trio lançar suas seriam esses?
intensidades, extrapolando a necessidade decorati- São corpos que produzem fragmentos de es-
va da obra e se afinando com seus respectivos paços imaginários, que possibilitam acesso ao
desejos de relações, de composição, que sinalizam espaço divino ou a um espaço outro, como Foucault
um compromisso de tensão criativa entre eles. (2009, p. 18) afirma: “Meu
7 “Le corps est arraché à son
Não basta escolher um espaço ou uma paisagem espace propre et projeté dans une
corpo é como a cidade
que seja bonita, esteticamente, como pressuposto autre espace.” (Tradução livre). do sol, ele não tem lugar,
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mas é dele que saem e que irradiam todos os lugares incompatíveis. O teatro, que é uma heterotopia,
possíveis, reais ou utópicos.” 8 faz suceder sobre o retângulo da cena toda uma
No entanto, o autor designa espaços reais para série de lugares estrangeiros. O cinema é uma
a utopia, cria utopias situadas, utopias palpáveis, grande cena retangular, e ao seu fundo, sobre um
lugares reais fora de todos os outros lugares, espaço a duas dimensões, projeta-se um espaço
os quais ele batiza de contraespaços. Na verdade, novo a três dimensões.10
o autor, ao promover a possibilidade destes outros
espaços, acende a chama de um território que se Se as heterotopias se manifestam pela coexistência
opõe aos outros. Neste sentido, Foucault (2009, de diferentes espaços reais justapostos em um
p. 24) afirma “que são destinados de alguma forma só local, pode-se atribuir à organização do conjunto
a apagá-los, a neutralizá-los ou a purificá-los”,9 espaço-trio uma forma de heterotopia?
criando-se um lugar próprio. Portanto, este espaço Em que medida a escolha de um espaço, ou de
vai deixar de ser utópico, pois utopia implica seguir uma heterotopia, vem contribuir com seus referen-
a direção que não aponta verdadeiramente a ciais, compartilhando-os com as relações da obra
um lugar, e vai se tornar real. É a utopia do real que coreográfica? Como estes espaços podem transfor-
Foucault nomeia heterotopias ou espaços outros. mar a obra e serem modificados por ela?
Mas como considerar este aparente paradoxo da Ancorado na própria definição de Foucault,
utopia real? O que iden- inicia-se a análise da dança na imagem, tendo como
8 “Mon corps est comme la Cité
du Soleil, il n’a pas de lieu, mais c’est
tifica o espaço como uma pressuposto que o cinema por si só representa uma
de lui que sortent et que rayonnent heterotopia? E o que heterotopia, pois compõe espaços diferentes:
tous les lieux possibles, réels ou
utopiques.” (Tradução livre).
este pode haver de simili- trata-se do espaço da tela, bidimensional, que retra-
9 “[...] qui son destinés en quelque tude ou de analogias em ta um espaço real, tridimensional. Tal acoplamento
sorte à les effacer, à les neutraliser ou
à les purifier. ” (Tradução livre).
relação aos espaços já denota um espaço outro.
10 “Em general, l’hétérotopie a sugeridos da dança ou Assim, o espaço-trio pode ser analisado e visto
pour règle de juxtaposer en un lieu
réel plusieurs espaces qui, norma-
ao espaço-trio? Foucault como uma heterotopia em sua própria gênese ao
lement, seraient, devraient être (2009, p. 29) explica: considerar o corpo dançante habitando um espaço
incompatibles. Le théâtre, qui est
un hétérotopie, fait succéder sur le
real, tridimensional, aplicado no formato da ima-
rectangle de la scène toute une Em geral, a heterotopia gem. Vê-se a dança apropriando-se de arquiteturas
série de lieux étrangers. Le cinéma
est une grande scène rectangulaire,
tem por regra justapor distintas e, através da relação corpo-espaço, favore-
au fond de laquelle, sur un espace em um lugar real espaços cendo a percepção e a criação de espaços outros.
á deux dimensions, l’on projette un
espace à nouveau à trois dimen-
que, normalmente, Outro exemplo de heterotopia ilustrado por
sions.” (Tradução livre). seriam, deveriam ser Foucault é sinalizado pelo espelho. Seus reflexos
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simbolizam lugares que indicam a presença sem Um dos princípios da heterotopia é o sistema de
necessariamente estar, criando estes espaços abertura e fechamento que elas possuem. Existem
outros. As imagens virtuais do espelho, inclusive, os lugares aos quais o público externo não pode
podem atravessar diferentes espaços e coabitar ter acesso justamente por não ser iniciado em deter-
estes, fundando espaços outros. minada exigência estabelecida. Normalmente, estão
Estes espaços representam lugares que são relacionados à cultura religiosa do local. Existem
atravessados por significados. Foucault cita outros que são simplesmente abertos, mas a sensa-
as heterotopias relacionadas ao tempo, que são ção que se tem quando se entra é a ilusão do próprio
os espaços dedicados à acumulação do tempo, lugar. É o vazio, e é a presença deste vazio que
como por exemplo as bibliotecas, os museus, conduz as pessoas para fora. É um lugar neutro.
que transportam o espectador para outra circuns- Ou é um lugar que representa a passagem para
tância pela força da memória. Figura um espaço o mundo interno.
cheio de referências, que constitui um espaço Essas sensações, aparentes ou não, de abertura
de todos os tempos. e fechamento das heterotopias também sinalizam
Outra heterotopia relacionada ao tempo é a certa ambiguidade, um convite a adentrar, mas ao
que não representa a eternidade, mas o tempo mesmo tempo um ritual a se compreender. Significa
festivo. São espaços que denotam as aglomerações que é preciso compreender as lógicas internas
como as férias, o centro da cidade, as cidades de de funcionamento deste local para que se possa, de
férias. Cada um deles apresenta um espaço dotado fato, penetrá-lo. É neste sentido que um espaço esco-
de significados que serão modulados pela inter- lhido para uma cena de dança também se conjuga
ferência de um corpo em cena. com as supostas “regras” do local. Estas “regras”
É diante da possibilidade desta modulação que não precisam ter o peso que esta palavra exige, mas
se pode assinalar as heterotopias, quando transfor- podem se expressar como adaptações ou como com-
madas pelo corpo em cena que se apropria deste preensão do espaço para suas devidas apropriações.
espaço, como um espaço dentro de outro espaço, Esta relação que se estabelece entre o espaço e
criando espaços imaginários ou míticos. o corpo é que promove a possibilidade de se
Existe outra classificação de heterotopia para produzir os espaços outros, que, metaforicamente,
os lugares que não são representativos das festas, é um palco aguardando as intensidades das trans-
porém considerados lugares da passagem, da trans- formações a que o corpo em cena se submete.
formação, seja pela purificação, pelo ritual, seja A partir das múltiplas percepções espaciais, en-
pelo comportamento traduzido pelas escolas, pelos contra-se a subjetividade instalada no próprio espaço
quartéis, pelas prisões. do corpo, pois o espaço também é uma experiência
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de corpo. Assim, vê-se também o corpo como um Keersmaeker e do compositor e cineasta Thierry
lugar possível de construção de uma heterotopia. De Mey, em parceria com Peter Vermeersch, composi-
É através da imagem e do espaço físico, aliados tor e improvisador. O trabalho original não era em
ao espaço-trio, que o corpo percorre estes espaços, vídeo, sendo estruturado inicialmente com a finali-
construindo espaços outros e percepções inusi- dade de ser apresentado no formato tradicional, no
tadas, deslocando-se para lugares ainda não identifi- palco. No decorrer do tempo, foi feita a adaptação
cáveis, não tão explorados. A facilidade do corpo coreográfica para apresentação em forma de filme.
se mover na imagem e a proximidade da câmera O local escolhido como locação para a inserção
sobre este provocam novas sensibilidades e reflexões coreográfica foi uma antiga escola, que estava
acerca deste corpo. desocupada de suas funções, construída em 1936
pelo renomado arquiteto belga Henri Van de Velde.
O princípio de seus trabalhos era marcado mais
pela funcionalidade do objeto do que pelo aspecto
iii. Anne Teresa De Keersmaeker decorativo.
— Rosas danst Rosas — Nesta linha, Keersmaeker fez uma ótima escolha
os vidros transparentes, ao assumir o espaço desta escola como parceira
os reflexos e a formação de sua obra coreográfica, transformando-a através
das heterotopias da inserção de novas composições em função da
relação do espaço físico com o espaço da imagem e
do corpo. Assim como o estilo da coreógrafa, a peça
se firma nos princípios minimalistas, não só na
música como também na dança. Aliás, Keersmaeker
De Keersmaeker utiliza um vocabulário dançado sempre prezou pelas trilhas sonoras compostas
controverso. De seu trabalho, diz-se que ele exclusivamente para suas obras, sendo elas a força
era “caótico”, mas “formalista”, “complacente”, mas motriz do seu trabalho.
“potente”, “cativante”, mas “agressivo”, “anárqui- 11 “De Keersmaeker utilise Um grande compositor
un vocabulaire dansé controversé.
co”, mas “rigorosamente estruturado”, “emocional- De son travail, on a dit qu’il presente em outras obras
mente duro”, mas “lúcido”, ou ainda, “honesto”.11 était ‘chaotique’ mais ‘formaliste’, da coreógrafa é o ameri-
‘complaisant’ mais ‘puissant’,
Philippe Guisgand (2007, p. 51). ‘prenant’ mais ‘agressif’, ‘anar- cano Steve Reich, consi-
chique’ mais ‘rigoureusement struc- derado um dos mais impor-
turé’, ‘émotionnellement dur’ mais
A obra Rosas danst Rosas estreou em 1983, sob ‘lucide’ ou encore ‘honnête’! ”
tantes compositores
a direção da coreógrafa belga Anne Teresa De (Tradução livre). da música minimalista.
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O estilo minimalista na música é representado, para suportar a hipnose da reprodução disciplinada.
entre outras referências, pelas repetições ou ritmos É um jogo em que se inflam as qualidades inter-
hipnóticos, que selam o tônus da obra também pretativas que se distanciam de toda a superficiali-
no que diz respeito ao comportamento da dança. dade da dança.
As  sequências de movimento se repetem de forma A relação com este espaço corporal preciso e
evidente e se tornam viciosas, marcantes e até definido pela coreógrafa reflete certamente a relação
hipnóticas, justamente pela precisão e pela clareza destes com o espaço físico adotado para a obra. A es-
de suas retomadas e contínuas reproduções. cola expõe salas vazias, com vários vidros que exer-
No entanto, a variação do espaço físico e do enqua- cem a função de parede e permitem enxergar vários
dramento propostos pela imagem denota desvios ambientes ao mesmo tempo. Estes vidros exercem
na perspectiva do formato da repetição dos movi- funções duplas: ao mesmo tempo em que estabe-
mentos corporais. A possibilidade destes movimen- lecem uma barreira entre os espaços, permitindo a
tos corporais “passearem” e ocuparem diferentes intimidade de cada um, ambiguamente fazem deste
proposições espaciais transformam, inclusive, um só espaço, composto por diversos pequenos
essa repetição corporal em outras repetições, porém espaços ligados pelos próprios vidros, transparentes.
influenciadas pela imposição do espaço físico. Todo este cuidado da coreógrafa em individuali-
A ideia deste espetáculo enquanto movimento zar a expressão corporal de cada um também se
corporal se dá a partir da influência do minimalismo ajusta na forma em que os bailarinos ocupam os
no sentido de se fazer o máximo de movimento espaços entremeados pelos vidros. São espaços labi-
com a impressão do mínimo. É a revelação de uma rínticos não só pela maneira como a câmera os capta,
intimidade que se dá neste mínimo, quase no imper- mas também pela ação reflexiva dos vidros, como
ceptível, a naturalidade se escapa no meio da os espelhos, exemplo célebre de uma heterotopia.
repetição, que durante este ato repetitivo se apropria Segundo Foucault (2009, p. 18), o espelho é referi-
cada vez mais da linguagem coreográfica, transfor- do como um dos elementos que atribuem um espaço
mando-a durante os pequenos detalhes da própria utópico ao corpo. Estas utopias localizadas, neste
repetição, que sinalizam a identidade individual. caso do espelho que possui tempo determinado de
Além disso, Keersmaeker tem uma estratégia duração — ou seja, o tempo da presença real dian-
mais matemática e mais precisa diante da organiza- te do espelho para sua imagem utópica ser refleti-
ção de suas sequências. É como se provocasse da —, constituem espaços próprios. São os espaços
pequenas catarses diante das sufocantes repetições. outros, ou seja, espaços criados, inventados.
Catarses essas que permitem inovar os pequenos O espaço físico, além de ser composto por estes
pormenores do movimento, lançando inventividade vidros como divisórias, também sofre a influência
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das sombras provindas da luz solar, que compõem pelos vidros fossem corpos inseridos em uma
um desenho de luz projetado sobre o espaço e imagem que se projeta na tela/vidro.
sobre os corpos. Nas cenas em que o ambiente tem O vidro pode ser visto também como um dispo-
claramente um tom noturno, estas luzes atraves- sitivo de continuidade do ato da repetição, por meio
sam os corpos e criam novos espaços imaginários da reflexão. Esta capacidade, lançada ao vidro,
sobre este espaço. de manter de alguma forma este princípio norteador
Assim, tanto a luz que se projeta quanto os vidros, do trabalho da coreógrafa também confere a este
que são componentes do espaço físico e promovem, espaço físico uma estampa do espaço corporal.
junto aos corpos dançantes, a criação das hete- Assim, o espaço do corpo assume outra função
rotopias, são espaços outros originados pelo próprio diferenciada não enfatizada até então. Além de
espaço. O espaço do corpo ora é multiplicado, o corpo tomar sobre si a força de expressar a dança,
efeito do reflexo dos vidros, ora é atravessado por expressar o movimento, utilizando-se das técnicas
estas luzes, dando-lhe claridade como feixes, pois o corporais e das apropriações que moldam um corpo
espaço não possui uma regularidade na intensidade durante um processo de criação, este corpo também
da luz. Este efeito desigual provocado pela luz assume outras leituras e simbologias ao ser es-
também modifica o espaço do corpo, pois algumas pecificamente levado a um espaço, que não é o palco,
vezes a escuridão impede a exatidão dos corpos. mas um espaço com arquitetura própria, com parti-
Já se percebe, então, a tendência da aproxima- cularidades que possam trazer mais identidade
ção entre o espaço corporal e o físico. A ideia do ao próprio corpo.
corpo se tornando espaço e do espaço se tornando Colaborando com a especificidade da modalida-
corpo se faz bem pertinente e visível nesta obra, de dança na imagem, o corpo também recebe
evidenciando a mistura destes “espaços”, da arqui- interferências da aplicação da câmera, tanto em rela-
tetura agregando-se ao corpo, permitindo que a ção ao movimento desta como em sua posição ou
visualização do movimento do corpo seja entrecor- forma de enquadramento. Cada detalhe deste
tada pela estrutura do espaço. Ou, então, que o implica novas situações ao espaço do corpo, novas
espaço também assuma uma continuidade do corpo, insinuações que são, de fato, específicas ao exercí-
que ele se harmonize coreograficamente com o corpo. cio da dança na imagem. Portanto, neste caso,
A imagem do corpo que dança é transfor- o espaço do corpo agrega referências que são inova-
mada pela ação do próprio vidro. Neste caso, esta doras para o exercício da dança, para a composição
alteração é dada, sobretudo, pela transparência e apreciação desta. Vê-se que são diversas as
diferenciada deste vidro, que cumpre praticamente situações ocasionadas pela relação do espaço
a função de tela, como se os corpos que passam corporal com o espaço físico aliado à posição
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da câmera, ou seja, pela recíproca aderência do Esta capacidade de provocar esta suposta
espaço-trio. desorientação no público, no que concerne à
Estes espaços outros criam situações diversas ocupação dos espaços, e a existência das camadas
ao corpo, à dança, à imagem e ao próprio espaço. que podem simular situações reais ou virtuais, traz
Situações não habituais e cotidianas. Criam imagi- à coreografia novos elementos de composição
nários a partir da configuração orgânica do espaço- e de sobreposição de imagens. Neste caso, são
-trio. Criam novas perspectivas da relação corpo imagens provocadas pelo próprio espaço físico e
versus espaço. É o espaço sendo modificado a partir não pelo espaço da tela. Assim, sobrepõem-se
da apropriação do corpo nos moldes do espaço-trio imagens criadas pelo espaço para serem capturadas
e, da mesma maneira, o seu inverso, o corpo em também pelo espaço da tela. Ou seja, um mesmo
fusão com seu espaço físico, propondo as inserções espaço é capaz de criar diversos espaços outros,
em espaços outros. as heterotopias.
A composição da cena em que existem duas Observando a obra como um todo, percebe-se que
camadas de vidro dividindo e compondo três espa- ela gira em torno da composição do espaço de vidro
ços, sendo que em cada qual existe uma disposição e sua influência sobre a coreografia. Da mesma
diferente das bailarinas no espaço, permite que forma, a coreografia repetitiva também se associa
o espectador a reconheça como uma das cenas mais à ideia de reflexos de sua própria imagem pela
relevantes no que diz respeito ao efeito da hetero- sincronia de movimentos entre as bailarinas, como
topia do espelho — neste caso, transferida aos vidros. se uma fosse reflexo da outra, e assim por diante.
No entanto, o curioso é que neste momento os De maneira que os vidros e os reflexos destes
vidros não estão refletindo, apenas cumprem a função corpos são transformados, provocando situações
de transparência. A formação de três camadas outras também ao corpo que dança.
espaciais pelo atravessamento dos espaços gerado As estratégias elaboradas pelo espaço da imagem
pela transparência provoca uma confusão de para compor esse fenômeno penetrável entre o
espaços conectados, uma confusão de percepção espaço do corpo e o espaço físico é praticamente
do que é real e do que é virtual. a marca desta obra, é o ponto de exploração mais
O vidro provoca efeitos e sensações. É o efeito recorrente e forte, suscitando novos encontros
de atravessar os espaços, dando visibilidade em entre a dança, o espaço e a imagem, possibilitando
todos. Isto assegura ao espectador a pluralidade de o olhar cinecoreográfico.
espaços que se interconectam, que se cruzam O olhar cinecoreográfico é um adjetivo para
e que estão intimamente ligados pelos corpos que a denominação dancine proposta nesta reflexão.
ocupam essas camadas. A dancine se realiza pelas percepções do espaço-trio,
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Ensaios contemporâneos
Carolina Natal Dancine: inter-relação de espaços
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e não necessariamente pelo simples uso da câmera. este eixo não é representado só pelo movimento,
Seria ingênuo atribuir qualquer experimentação da que é umas das palavras que definiram tanto o cine-
dança através da imagem como de fato uma ma quanto a dança, mas para além dele. O cinema
experiência transformadora dos campos artísticos, transporta o imaginário das pessoas para diversos
desta em que se mobiliza não só o corpo que dança, lugares sem manifestar dificuldade geográfica
mas também o espaço físico e o espaço da imagem. para tal. No cinema não se vive necessariamente o
A palavra dancine, neste caso, está atrelada tempo real dos acontecimentos, proporcionando
à percepção do espaço-trio não somente pelo fato inclusive o efeito da falsa imersão na tela. A dança
de a dança se compor na imagem. A dança é a inserida neste contexto provoca novas sensações
expressão fundamental; contudo, como ela vai ser ao público, ao poder ser deslocada com esta mesma
observada pelo espectador através da imagem facilidade, ao permitir ao corpo ampliar seu ta-
captada pelo olho da câmera, este arranjo mantém manho normal, ocupando todo o espaço da tela por
a mesma importância que a dança, no sentido meio de zoom, exibindo detalhes de outro modo
que sua captação deverá condizer com o que o corpo imperceptíveis, por exemplo.
busca manifestar. É um acordo em que ambos se Quando a dança se apropria destes recursos
constroem mutuamente, com o mesmo peso, a cinematográficos, novos panoramas são delegados
mesma força e medida. ao espaço do corpo. Surge uma nova convenção
Assim, a dancine se compõe por uma concilia- estética. O corpo passa a ter novas derivações
ção heterogênea de espaços, mas eles devem como pontos de exploração. A linguagem cinemato-
dialogar ou propor intenções que criem novas situa- gráfica passa a ser um dos discursos do corpo, seja
ções, como as próprias heterotopias. A dancine tem o tipo de corte, o tipo de plano, as variadas possi-
o propósito do atravessamento dos olhares, tanto bilidades de posição de câmera modificando o eixo
daquele que a produz quanto daquele que a aprecia. do olhar, o tipo do enquadramento e os ajustes
Seu discurso não é aleatório; ao contrário, dá-se da pós-produção.
pela própria organização do espaço-trio, pela possível Por fim, a linguagem coreográfica de Keers-
produção de espaços outros gerados pelas acomo- maeker associa-se fortemente ao espaço escolhido
dações dos elementos do espaço-trio. e à maneira como a câmera capta e reproduz
A dancine representa um território emergente estes corpos. O posicionamento da câmera diante
e trata também de uma associação entre dança e destes produz efeitos que a coreografia por si só
cinema. Em outros termos, é perceber que a dança pode até dar conta de fazer; porém, através da ima-
e o cinema são regidos por um eixo que, em algum gem, com os ajustes dos elementos do espaço-trio,
momento, se tornará comum a ambos. Certamente a obra se fortalece com a identidade denominada
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Carolina Natal Dancine: inter-relação de espaços
280–281
dE videodança
dancine. Dança e cinema criando seus próprios Alejandra Ceriani
espaços, suas próprias heterotopias.

Aumont, Jacques. L’image. 3.


ed. Paris: Armand Codin Éditeur,

projeto webdança:
2011.
Debat, Michelle. “De la danse
à la proposition chorégraphique ou
l’apparition d’un nouveau langage
scénique.” In: Ce qui fait danse: de
uma coreografia do
gesto digital
la plasticité à la performance. Revue
de pensée des arts plastiques: La
part de l’oeil, nº 24. Bruxelas, 2009.
Foucault, Michel. Le corps
utopique, les hétérotopies. Apresen-
tação de Daniel Defert. Nouvelles
Éditions Lignes, 2009.
Guisgand, Philippe. Les fils d’un
entrelacs sans fin. La danse dans
l’oeuvre d’Anne Teresa De Keersmaeker.
Villeneuve d’Ascq, França : Presses
Universitaires de la Recherche,
2007.
Mello, Christine. Extremidades
do vídeo. São Paulo: Senac São
Paulo, 2008.
Mira, Virgine. “L’espace modele
par le souffle.” In: Repères. Cahiers
de danse. CDC/Biennale de danse
du Val-de-Marne, França, nov.2006.
Perrin, Julie. “L’espace en
question.” In: Repères. Cahiers de
danse. CDC/Biennale de danse du
Val-de-Marne, França, nov.2006.

Performer, pesquisadora e realizadora de videodança e obras interativas.


Graduada na Faculdade de Belas Artes em Artes Plásticas (Licenciatura
e Professorado em Artes Plásticas). Bolsista da UNLP (Universidade Nacio-
nal de La Plata) para pesquisar sobre o vínculo corpo-tecnologia. Seus
trabalhos foram exibidos em numerosos festivais na Argentina e no mundo.

dança em foco
Ensaios contemporâneos
Carolina Natal
282–283
dE videodança
Explorar o diálogo corpo-câmera por intermédio de dança na produção do impacto de um corpo que per-
suas potenciais vinculações técnico-expressivas deu a noção de seus limites distintivos.
resulta em uma des-materialização do corpo no pró- De maneira comparável a esta outra forma de
prio processo de abstração do espaço físico e real visualização do corpo, seus contornos, seu peso, seu
para o espaço digitalizado e virtual, originando assim fluxo, a experiência de sujeição à câmera tornou visí-
coreografia do gesto digital. Esta coreografia conce- vel o “otimamente inconsciente”, a partir de diversos
be a si própria como nova forma de expressão pontos de vista, a partir das posturas do corpo etc.,
dentro do gênero videodança. em centésimos de segundos. A videodança possibilita
Este processo de estabelecimento do corpóreo no a articulação dos aspectos técnico-expressivos dos
sonoro e no visual pode ser visto como resultado de dispositivos com a surpresa do próprio corpo, podendo
uma des-materialização, uma des-carnação,1 já que se articular o significado da ação por intermédio do
deixa antever o processo de abstração do espaço e do detalhe, da amplificação, da substituição etc.
corpo físico, ao espaço do som e da imagem digital, O trajeto aqui proposto se baseia fundamental-
concebendo assim o metabolismo que se refere espe- mente em uma reflexão sobre a questão da imagem,
cificamente à organização do movimento, do meio audiovisual digital e das
1 Claudia Giannetti, “Reflexões
sobre a crise da imagem técnica, a do vivo na matéria digital. propostas artísticas em torno do corpo. Depois de
interface e o jogo” (Media Centre “O espaço do corpo situar o contexto, chega-se à análise do Projeto
d’Art i Disseny, Sabadell-Barcelona);
“Esta des-camação pode ser vista
é o espaço da imagem” 2 Webdança3 onde se indaga sobre esta relação entre
como resultado do processo de (Weigel, 1999) que se en- corpo e dispositivo por intermédio da criação de
expansão do visual, tanto no
sentido quantitativo como em sua
trega por completo a uma peças audiovisuais digitais, fazendo experiências com
conotação espaço-temporal. Dou fragmentação e dissolução a imagem em movimento e sua articulação sonora.
preferência a este termo porque o
da materialidade do gesto
considero mais significativo do que
o neologismo desmaterialização, físico para o gesto digitali-
já que deixa entrever sua relação zado. Juntamente com as
direta com o orgânico...” (<http://
www. artmetamidia.net/pdf/3 divergências entre analógi-
Giannetti_Crisisimagen.pdf>). co/digital, real/virtual,
2 Weigel Sigrid, Cuerpo, imagen
y espacio en Walter Benjamin, Una e com a discussão sobre
relectura (Ediciones Paidós, 1999). as relações espaciais do Marco teórico
Conceito parafraseado deste texto,
p. 47. corpo em relação à proxi-
3 Proyeto Webcamdanza, nº midade e/ou à distância
588134 Registro Nacional de Derecho
de Autor. (<http://www.youtube.
da câmeras, já se encontra
com.user/wwebcamdanza>). a convergência da video-
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Alejandra Ceriani projeto webdança: uma coreografia
do gesto digital
284–285
dE videodança
A dança e o vídeo são coparticipantes na criação de informação circula simplesmente e sim o resultado
uma forma combinada, videodança, e estão em desses entrecruzamentos.” 4
constante processo de mútua transformação. Existe,
no entanto, o risco de tornar rotineiro o gênero video-
dança ao pensar na sedução dos corpos dançantes
e a fixação da cultura na narração coreográfica
e o espetáculo cênico. Este é o momento oportuno
para a fusão com outras formas existentes, para
ressurgir da possível marginalidade decorativa Mediações
depois de um discurso crítico que aporte e abra luz
a um olhar analítico das produções, seja em obras
coreográficas ou trabalhos de pesquisa sobre
desenhos de movimento, performance com disposi-
tivos interativos etc. Articular estas disciplinas —
dança e vídeo — em um único gênero requer a
reunião da análise crítica e teórica que o cinema, o O videocineasta Douglas Rosenberg,5 com suas consi-
vídeo e as artes visuais forneceram por um lado; por derações sobre a dança mediada pela câmera e a
outro, estão as formas de construção da corporei- tela, compôs um marco que abarca várias subcate-
dade e visualização exigidas por esta vinculação. gorias: obra coreográfica para a câmera; documentá-
Propõe-se, por exemplo, que esta articulação rio sobre grupos, indivíduos, técnicas etc.; obra
entre dança e vídeo se defina ao redor dos dispositi- experimental (relacionada à videoarte) e obras para
vos para a captação e edição da imagem de palco (relacionadas à
4 Helena Katz e Christine Greiner
um corpo no ato de dançar e de certo olhar sobre (2007), “Por uma teoria do corpomí-
dança multimídia). A ex-
a dimensão do corpo, as qualidades do movimento dia ou a questão epistemológica do pressão dança para a tela
corpo”, Documentos e Artigos /
e sua sonoridade em recíproca configuração. Formação / Brasil / 22 de junho de
parece ser mais específica
Resulta também necessária uma construção 2007. <http//www.movimiento.org/ para os projetos de mo-
servlet/hverpublicacion01?7243>.
coletiva de pensamentos para se comunicar 5 Douglas Rosenberg, videasta
vimento criados para este
na diversidade. Não se pode operar a partir de trin- e teórico americano, conhecido por suporte. É inerente a
seu trabalho em colaboração com
cheiras disciplinares. Os pensamentos teóricos coreógrafos contemporâneos. Sua
este termo o conceito
devem funcionar como pontes, caminhos conceituais obra em videodança e vídeo-insta- de re-corporificação, isto
lação tem sido exibida dentro e fora
por onde atravessar para o encontro com o outro. de seu país. <http://www.dvpg.net/
é, a reconstrução com os
Portanto, “o corpo não é um meio por onde a archive/>. componentes técnicos
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Alejandra Ceriani projeto webdança: uma coreografia
do gesto digital
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dE videodança
expressivos do meio, de um corpo que não está com ideias, deve-se criar uma nova linguagem
sujeito à gravidade, ao tempo e ao espaço real. cinematográfica para expressá-las — se pretender-
Na dança para a tela o corpo é a matéria-prima de mos que estas ideias tenham certa flexibilidade e
uma re-conceitualização da corporeidade, um corpo certa complexidade”.7 Alexander Astruc (1948),
filmado e editado que se transforma num corpo único teórico e diretor francês, citado também no texto
e múltiplo na simultaneidade dos fragmentos encai- de Susan Sontag, com o auxílio de seus postulados
xados na edição de uma coreografia que instaura sobre a câmera-caneta, sugeriu a ideia de autor e
uma protonarração. Rosenberg indica com precisão de linguagem cinematográfica, destacando que
padrões que se situam fundamentalmente na “por linguagem entendo a forma pela qual e através
questão da narrativa ficcional. O primeiro padrão da qual o artista pode expressar seus pensamen-
é o que põe a dança a serviço do narrativo, para tos, por mais abstratos que sejam, ou traduzir
levar a história adiante, e atua como ponto de apoio suas obsessões”.8
à estrutura ficcional. O segundo padrão é a narração Leve-se em conta aqui que se parte de um
a serviço da dança. A narração serve para a cria- conceito de cinema como meio de escrita não relaci-
ção de um espaço para a coreografia. O terceiro onado intrinsicamente com a experiência plástica
padrão é o da dança como narrativa, em que o corpo e muito menos com a experiência de dança, e sim
dançante é tanto sujeito como objeto do filme ou mais próximo de uma forma distintiva de escrita
vídeo. O espectador deve criar uma espécie de narrativa. Trata-se mais da questão da palavra-diá-
meta-narrativa própria. À medida que a dança para logo, da escrita com imagens e sons. Isto nos leva
a tela se institucionaliza, estes padrões começam à condição da criação, não só no terreno das imagens,
a se serializar, apontando para um modelo que mas de ideias que se expressem numa nova lin-
tende a excluir a experimentação formal que lhes guagem… Cinematográfica? Audiovisual? Digital?
é característica. Propomos: a linguagem digital.
Façamos agora uma parada para poder chegar Nosso interesse se circunscreve à dependência
a outras buscas dentro do gênero em questão. entre os dispositivos, o corpo em movimento e a
Diz Susan Sontag (1966), a propósito dos filmes imagem digitalizada. Para isso, retomamos a ques-
de Robert Bresson e Jean-Luc Godard, que “a evo- tão da dança para a câmera, como vínhamos esbo-
lução das formas na arte é parcialmente indepen- çando. E, para sermos mais precisos, dos dispo-
6 Susan Sontag (1966), Contra a
dente da evolução dos sitivos digitais que hoje atravessam os gêneros e dis-
6
interpretação (Ediciones Alfaguara, temas”, assinalando além ciplinas desde a concepção da produção em que a
2005), p. 238.
7 Ibid., nota nº 6, p. 272.
disso que, “para poder linguagem e a recepção mobilizam seus princípios e
8 Ibid., nota nº 6, p. 272. trabalhar seriamente renovam suas projeções. Na videodança já situamos
dança em foco
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Alejandra Ceriani projeto webdança: uma coreografia
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duas questões que abrangem o campo de reflexão: sempre inconclusa, pedaços e partes que se produ-
dispositivo vídeo e disciplina dança, ou, para maior zem depois da ação desse corpo, sendo impossível
aplicação: linguagem do movimento corporal. reconstruir o todo. A câmera instaura o espaço
Em primeiro lugar, dissemos que se trata de do corpo e da imagem, transforma-o, estabelecendo
experiência intermediada. Uma maneira de pensar um diálogo espacial com o corpo que se movi-
esta forma heterogênea de mediação é tomar menta e o ocupa, não apenas como olho que a cir-
a câmera como produtora de espaços. É ali cunscreve mas como outra existência que irrompe
que acontece a obra. A representação da dança é da mesma forma.
observada pelas estratégias do enquadramento A respeito da vinculação corpo-câmera, os
e da composição, para depois passar pelo processo novos meios do vídeo problematizam a dança para
de edição. Aqui é onde se torna imperioso falar a tela — como conceito, como dispositivo e como
em linguagem do audiovisual em relação com formato —, fazendo entrar em erupção as práti-
os padrões narrativos indicados. A linguagem audio- cas artísticas e culturais em suas condições de visua-
visual oferece uma definição do espaço e do tempo lidade, entre outras coisas. O formato de projeção
fluído, e também um ponto de vista variável. tem suas próprias características e convenções.
A própria natureza da câmera, com sua capacidade Até agora, este formato cinematográfico e de vídeo
de se aproximar ou se distanciar de uma área em tem sido o meio básico de apresentação e divul-
detalhe, convida à exploração das transformações gação dos materiais no que se refere ao audiovisual,
do corpo em movimento. Neste caso interessa filmes ou vídeos de dança; tem sido seus apresen-
esclarecer o que é a câmera como meio, como tadores e guardiões. Os novos meios do movimento
corpo-ação a serviço da dança. Neste gênero, apresentam novos formatos e levam ao público
a câmera sofre uma transformação (a peculiaridade da internet práticas restritas a outros contextos.
da câmera digital permite novas maneiras de filmar, No momento de nomeá-los podemos nos referir aos
tanto do ponto de vista econômico como a partir dispositivos de visões pessoais, como computadores
de seus delineamentos estéticos), o meio se portáteis, celulares e iPods. Toda uma série de
torna corpo e o corpo é o meio que se faz carne, fora aparatos que geram não apenas novas propostas
de uma tecnificação, de um controle mecanizado, de uso, de produção e de visibilidade, mas a trans-
evidenciando, mais do que o movimento da câmera, formação, o acondicionamento da linguagem
a ação do corpo. A câmera é um ponto de cone- combinada e já complexa da dança com o registro
xão que evidencia um gesto, reprisa, vacila, circula e a pós-produção áudio e visual.
agregando fragmentos. Esta relação inseparável
corpo-câmera propõe uma leitura nunca linear,
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Alejandra Ceriani projeto webdança: uma coreografia
do gesto digital
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dE videodança
A dança utiliza o movimento como meio formal.
O impulso da dança é essencialmente inerente ao
corpo humano, à mente e à consciência. Uma con-
jetura bem conhecida sobre a origem da dança
Dança, movimento e imagem a relaciona com os movimentos dos corpos com um
ritmo marcado e reconhecido coletivamente pelos
primeiros dançarinos. Deve-se então refletir sobre
o movimento, como se faz com as imagens? Há um
percurso da dimensão temporal, pelo que haveria
uma dimensão do temporal nas imagens.
Em 1896, Bergson escreveu Matéria e memória
A dança é movimento de corpos, a videodança é mostrando uma imagem-movimento e, mais profun-
imagem de corpos em movimento, se for o caso. damente, uma imagem-tempo, inspiradas na arte
Mas é o fluir (em todas suas qualidades possíveis) cinematográfica. Toda evolução das artes se relacio-
do movimento do corpo o que define a dança e na, nesta parte, com a evolução do cinema:
não a imagem. A prisão provisória, a “aparência de
uma forma no instante”, neste caso seria uma Os contemporâneos poderiam ser sensíveis a uma
eventualidade analítica diante do fluxo do movimen- evolução que arrasta consigo as artes e muda o
to. Merleau-Ponty (1986) assinalou que a visão está estatuto do movimento, incluindo a pintura. Com
sujeita ao movimento. “O enigma reside em que maior razão a dança, o balé, a mímica abandonam
meu corpo é ao mesmo tempo vidente e visível”.9 as figuras e as poses, para liberar valores que não
Em O que vemos, o que nos vê, Didi-Huberman posados, não pulsados, que reportavam ao movi-
(1977) partiu do paradoxo da divergência do ato de mento um instante qualquer. Com isso a dança, o
ver nosso próprio corpo vidente. “A visão se encon- balé, a mímica passaram a ser ações capazes de
tra sempre com o iniludível volume dos corpos replicar aos acidentes do meio, isto é, à repartição
humanos. Os corpos são dos pontos de um espaço ou dos momentos de um
9 Maurice Merleau-Ponty, El ojo
y el espíritu (Barcelona: Editorial os objetos primeiros acontecimento. Tudo isto conspirava com o cinema.11
Paidós, 1986), p. 15. de todo conhecimento e
10 Georges Didi-Huberman. Lo 10
que vemos, lo que nos mira (Buenos de toda visibilidade.” Novamente a dança é citada a partir da vincula-
Aires: Manantial, 1997). Estas palavras suge- ção com o dispositivo imagem-imagem em movi-
11 Gilles Deleuze. La imagen-Movi-
miento. Estudios sobre Cine. Ed.
rem novas associações mento. Volto à interrogação inicial. Existe uma
Paidós Comunicación, 1991. para o tema proposto. temporalidade da imagem que insere a dança como
dança em foco
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Alejandra Ceriani projeto webdança: uma coreografia
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dispositivo fundamental de tal temporalidade? questionável. Surge então nova interrogação: será
Se existe uma arte do efêmero talvez seja a arte necessário outro contexto de relações, de contextua-
da dança. Susanne Langer (1966) propõe a dança lizações das artes para poder relacioná-las com a
como “imagem dinâmica”.12 E pergunta: Para que se dança? Se existe um critério filosófico sobre o
cria esta imagem? “Como expressão”, responde, temporal e o espacial nas artes, a dança, no entanto,
“do conhecimento interior, como exteriorização des- como arte autônoma, nem menor nem maior, não
se processo interno.”13 Sustenta que toda obra tem sido estudada e revisada a partir de visões
de arte é uma imagem desta natureza e, se todas estéticas que sistematizam conceitualmente o lugar
as obras de arte se assemelharem neste aspecto que ocupa o problema do corpo e a dança em união
de importância fundamental, o que seria então com dispositivos audiovisuais digitais, por exemplo.
o específico, o que faria da dança aquilo que ela é? Suposto o componente de imagem que constitui a
dança, de “imagem dinâmica”, como estabelece
A distinção entre dança e todas as demais artes Langer, o encontro com o dispositivo vídeo e o corpo
maiores reside na substância com que é feita a poderia representar o encontro entre os persona-
imagem virtual, a forma expressiva […] Mas como gens de Hiroshima, meu amor,16 em que um diz ao
espaço, acontecimentos, tempo e forças estão outro: “Você não sabe nada.” 17
relacionados entre si, na realidade também todas
as artes estão ligadas por relações intrincadas, que
são diferentes entre as diferentes artes.14

12 Susanne Langer, “La Danza” Por outro lado, e em res-


(1996), en Antologia, Textos de
posta às considerações
Estética y Teoria del Arte (compi-
lación Adolfo Sánchez Vázquez, enunciadas por Langer, Projeto webcamdança
Lecturas Universitarias 14, Unam, “a história das reflexões so-
1978), p. 353–357.
13 Ibid, nota nº 12. bre o corpo como meio de
14 Ibid, nota nº 12. expressão provocou […]
15 Ibid, nota nº 12, p. 249.
16 Filme: Hiroshima, mon amour uma ruptura diante da
(1959). Direção: Alain Resnais. ideia de uma clara inter-
Intérpretes: Emmanuelle Riva,
Eiji Okada. pretação do corporal e o
17 Marguerite Duras, escritora anímico”.15 A relação entre Não se deve supor que a dança dá vigor ao dispo-
e roteirista de Hiroshima, mon
amour, que escreveu inesquecíveis
corpo e linguagem se sitivo vídeo ou que o dispositivo vídeo lance luz
diálogos no cinema. tornou, pelo menos, sobre a dança, mas que as imagem desta conjunção
dança em foco
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Alejandra Ceriani projeto webdança: uma coreografia
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dE videodança
vídeo e dança entrem em contato com o presente afeta a forma e o tempo na sucessão do
contínuo para formar uma visão suspensa, portado- movimento.
ra de novas condições artísticas de criação além Dentro das possibilidades técnicas da edição
da sensação motriz do narrativo, das amplificações encontramos:
etc. Certas buscas dentro deste gênero desafiam —— dispositivo dos pontos de sincronia do som
as representações do movimento, unem o espaço associados ou não a instantes de movimento
da imagem com o espaço do corpo. do corpo registrado;
Haveria pois uma “física da imagem digital”,18 —— manipulação da velocidade do registro,
que se comportaria como aquela percepção que com- acelerando ou ralentando.
promete, por um lado, o corpo real e seus gestos,
e, por outro, o corpo capturado e editado. Essa física Vinculações
machucada de carne e pixels é o que conformaria
os recursos existentes da obra, no que a obra se loca- Sobre a base desta vinculação entre o corpo e o
liza além da vontade do que aparece. dispositivo se busca definir a denominação a que fiz
referência como coreografia do gesto digitalizado.
Conceito Em primeiro lugar se refere àqueles instantes
privilegiados aleatórios, que aparecem basicamente
O projeto de pesquisa webcamdança é uma indagação por intermédio das modificações da velocidade do
sobre a relação entre corpo e dispositivo pela criação registro em reprodução. Coreografa-se, compõe-se
de “peças audiovisuais” dentro do gênero videodança, o movimento sobre um corpo que dança na imagem
compondo o que se poderia chamar de coreografia do digitalizada. Portanto se ralenta ou se acelera
gesto. Esta exploração o movimento do corpo gravado, trabalhando sobre
18 Ibid, nota nº 6. Sontag escreve
sobre a física das almas: “Todos os
digital permite documentar o ritmo da imagem ralentada que se retém e se
movimentos naturais da alma são o corpo real e transformá- desprende, agita-se, repousa. Ambos os planos, o
controlados por leis análogas às da
gravidade física. A única exceção
-lo em ato diante das do corpo gravado e o da imagem digitalizada propria-
é a graça. A graça, cheia de espa- possibilidades técnicas da mente dita, entram numa ida e volta até a disso-
ços vazios, só pode entrar quando
há um vazio para recebê-la, e é a
webcam e as possibilida- lução e mistura, ocasionando que se coreografe e se
própria graça que permite a criação des técnicas da edição. edite em uma mesma operação. Mas seria coreo-
de um vazio. A imaginação está em
contínuo funcionamento comple-
Dentro das possibili- grafia? Ou seria o caso de pôr em circulação uma
tando todas as fissuras por onde a dades técnicas da câmera nova denominação nesta tarefa tanto de editar como
graça poderia passar.” Parafra-
seando esta nota, definimos “física
encontramos: de coreografar reciprocamente, tudo vinculado a
da imagem digital”. —— latência de quadro que estes dispositivos e interfaces.
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Alejandra Ceriani projeto webdança: uma coreografia
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dE videodança
Retomando a questão da gestualidade concebi- privilegiados. É uma configuraçãodo gesto que
da pelas latência de captura da câmera, a ilumina- revela sua disposição espacial e temporal, expan-
ção recebida pelo corpo dentro do campo de captura dindo a potência formal em sua ressonância.
e a modificação da velocidade de gravação na edição, A imagem do gesto do corpo engloba o discurso
há necessariamente uma mudança qualitativa e quan- sonoro. O tratamento do som em edição gera, a
titativa no gesto traduzindo a imagem, uma apreen- partir do estudo articular dos movimentos de frag-
são defasada do corpo encenado, construída pela mentos corporais, mínimas estruturas somatórias
velocidade recriada nos dispositivos de transcrição. que resultam em acontecimento audível da disposi-
Mas além disso há o tema da luz. Ilumina-se ção interna do corpo nessa cadeia de movimentos.
apenas a zona do corpo que será registrada para pro- A disposição dos pontos de sincronização entre
duzir contrastes entre o corpo e o fundo — um fundo instantes do movimento também funcionam entre
que pode ser oco, profundo ou plano, um telão: os um corte do movimento ou do som. O discurso sonoro
enquadramentos fixos em sua maioria e a distância fala da interioridade do corpo mostrando pelo
mínima entre câmera e corpo oferecem maior plas- comportamento visível aquilo que não está visível
ticidade à imagem gravada pela webcam. e que o guia à maneira de um sonar. Um exaustivo
trabalho de acoplamento entre o corpo em movi-
Efeitos mento capturado, o som e a coreografia, destituídos
de todo referente espacial, constituem nada mais
As instâncias de vinculação entre corpo em movi- do que o rastro ou peça para uma dança da gestua-
mento, captura e edição geram um espaço de concei- lidade digitalizada.
tos narrativos na dança ou no movimento filmado.
As ferramentas tecnológicas que se aplicam aos
programas de edição dão acesso à intervenção tem-
poral da continuidade dos movimentos do corpo ao
abrir as possibilidades de representação linear ou
não linear. O registro com a webcam intervém espe-
cialmente no efeito da latência do quadro, na O trabalho do gesto
própria linearidade do movimento do corpo ao ser
registrado. As peças, os fragmentos das costas,
abdome, quadris etc. alteram-se a partir de sua
sucessão espaço-temporal recompondo, pela inter-
venção da velocidade da imagem, os instantes
dança em foco
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“O corpo é hoje, na dança, o problema”,19 disse a partir destas intervenções na temporalidade do
Susana Tambutti (2008): fluir da imagem do corpo, por exemplo, incluem
partes do corpo, intentando captar o conteúdo conse-
Atualmente, no século xxi, as propostas mostram quente e expressivo transmitido pelos gestos
corpos como galáxias em fuga, corpos desintegrados dessas peças. O som se incorpora à visualização,
pela velocidade e o impacto tecnológico. Corpos pelo qual o corpo se apresenta fechado, o gesto
viajantes do tempo. Corpos incluídos em novas recobra a preponderância, é motor da criação
imagens cinéticas, numéricas, artificiais. São corpos coreográfica. Em consequência se poderia associar
que são vistos, incorporando-se ao cosmos com este gesto digitalizado ao gesto musical.
inauditas transformações. Esta terrível certeza é O que acontece com o gesto?
o achado metafísico da dança no século xxi.20 O gesto é instrumento. Ao interatuar com a ima-
gem e o som, o gesto realiza a tentativa de aproximar,
Temos de olhar com atenção: o primordial para a dentro de uma perspectiva artística, uma interro-
interação da performance em tempo real como para gação técnico-expressiva da relação corpo/disposi-
o registro fílmico e a edição na maior parte das tivo. Estes processos se realizam dentro do con-
propostas atuais, é que há corpo. Este corpo em texto ideológico pelo qual se considera a tecnologia
ação parece se tornar o seu oposto: o corpo é carne como produtora e produto de representações e lin-
mas também imagem, pixel, interface. O corpo guagens, de formas e categorias do discurso.
volta a problematizar a questão. Como se incorpora Portanto, que qualidades de gesto, que formas de
à digitalização, ao número, ao algoritmo, deixando escrita condicionada formal e culturalmente se
de ser obstáculo e sim ferramenta, expressão? reproduzem na edição, que representações perpe-
Trata-se de atitudes e de posturas reguladas diante tuam o prolongamento enrijecido das técnicas
das faculdades propostas pelos dispositivos, disciplinares de um corpo adestrado? Ao fazer refe-
programas, algoritmos? É essencial que esta nova rência ao gesto temos de examinar se ele é o produto
prática de experimentação e renovação de movi- e o excesso de uma certa tradição de representação
mentos seja colocada em um contexto híbrido e objetivista do corpo em sua totalidade, do corpo
complexo. O dualismo corpo físico / corpo virtual, nas artes, do corpo na educação do corpo. É possí-
corpo projetado / corpo vel pensar o gesto do corpo em movimento além
19 Susana Tambutti, “Danza
o el império sobre el cuerpo”
editado, é parte consti- destas representações?
(2008) — Movimento.org tuinte destas propostas. As experiências com os novos sistemas intera-
(<http://.movimientolaredsd.
ning.com/>).
Os diferentes usos tivos em tempo real são processos perspicazes,
20 Ibid, nota nº 19. de programas de edição, em que o desenho dos movimentos é gerado em si
dança em foco
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Alejandra Ceriani projeto webdança: uma coreografia
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dE videodança
mesmo a partir de uma retroalimentação com o faces e o software que o sustenta. As investigações
sistema. Mas os movimentos como microssistemas sobre os sistemas interativos e o gesto corporal
de empatia com as interfaces não se pensam, nem podem ser encaradas como laboratórios onde
se imaginam, mas cobram existência na conjunção individualizar, extrair e analisar peculiaridades do
cinestética21 e kinestéti- gesto e da totalidade do corpo em movimento,
21 Cinestesia é a sensação que 22
o corpo tem de si mesmo no espaço, ca no corpo físico. Estas relacionados com a criação de conteúdo expressivo
uma de nossas principais formas pesquisas sobre o gesto e portanto compositivo. A aposta interativa funciona
de conhecimento.
22 Kinestésica é a capacidade de expressivo em sistemas com a mesma condição, utiliza o corpo como o
usar todo o corpo para expressar de captação interativos elemento ativo da interface, capitalizando o que vai
ideias e sentimentos (por exemplo um
ator, um mímico, um atleta, um dan- vêm, de fato, do gesto sendo depurado da passagem entre o percebido e o
çarino) e a facilidade do uso das em relação à programa- medido, entre o que se apreende e o que escapa.
próprias mãos para produzir ou trans-
formar coisas (por exemplo um arte- ção propriamente dita É destas experiências que se alimenta o Projeto
são, escultor, mecânico, cirurgião). e tenta encontrar ademais Webcamdança. Surge destes ensaios do corpo e a
Esta inteligência inclui habilidades
físicas como a coordenação, o equi- respostas possíveis a interação com a webcam que se estabelece como
líbrio, a destreza, a força, a flexibili- perguntas como: interface, e da exploração entre este vínculo som/
dade e a velocidade; também as capa-
cidades autoperceptivas, as tácteis e movimento por intermédio da construção de uma
a percepção de medidas e volumes. Como é a dinâmica tempo- metáfora que gerou um relato do músico John Cage.
23 Pesquisas feitas com o software
de captura Eyes Web. Referências ral de tais gestos relacio- A descrição, feita pelo próprio Cage (1965), ao fazer
principais: “Análisis multimodal de nados com a interação uma experiência dentro de uma câmara anecoica,
gesto expressivo en la música y
funcionamiento de baile”, em: A. de conteúdo expressivo? diz assim:
Camurri, G. Volpe (ed.), Comunica- Como podem se originar?
ción basada por gesto en interacci-
ón de Ordenador humano, lnai 2915, Estes gestos, vinculados Naquela peça silenciosa, escutei dois sons, um
Springer Verlag, 2004. (<http//
às respostas do software, agudo e outro grave. Depois perguntei ao engenhei-
www.infomus.dist.unige.it/>).
24 <http://www.johncage.info/>. são compatíveis com ro responsável por que motivo, sendo a peça tão
25 Uma câmara anecoica é uma
sala “não sonorizada” especialmen-
a percepção dos especta- silenciosa, escutei dois sons. Disse-me: “Descreva-
te desenhada para absorver o dores, de interpretação os.” Depois explicou: “O agudo era o funcionamen-
som que incide em suas paredes,
solo e teto. Está isolada do exterior
expressiva? 23 to de seu sistema nervoso. O grave era a circulação
e consta de paredes cobertas com do sangue.” 24
cunhas construídas de materiais
como a fibra de vidro ou espumas
Os movimentos do corpo
porosas. Ver imagem em <http:blog. estariam pensados, por A partir desta explicação e tendo experimentado pes-
educastur.es/practicalinsrumental
/2008/03/14/ John-cage-oir-a-
uma parte, a partir da soalmente25 estas descrições físico-auditivas dentro
traves-del-silencio/>. vinculação com as inter- de uma câmara anecoica, surgiu a metáfora inte-
dança em foco
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rativa que simularia a sonoridade do corpo humano,
sua ressonância íntima amplificada. O desenho Microdanças
na programação26 de captura habilitaria a possibi-
lidade de demonstrar pelo comportamento visível Nos registros com a webcam nos focamos no enqua-
aquilo que não é visível. Deste modo, no plano dramento, a proximidade e os fragmentos do corpo.
programático, a metáfora se sustentará tanto pela Os enquadramentos exploram as fronteiras do
parte física como virtual da interface, articulan- abstrato, onde reconhecemos partes do corpo, e par-
do-se igualmente a ideia de dois espaços que coa- tes de seus movimentos, seu traço, sua dinâmica.
26 Referimo-nos à programação
bitam: no exterior e no Surgem as primeiras interrogações: É isto video-
realizada para a obra interativa em interior. A pergunta dança? É esta a proposta fragmentada do corpo,
tempo real Projeto Hoseo (<http://
motivadora para a cons- dança para a câmera?
www.movimiento.org.video/entrevis
ta-con-alejandra>). Links para ver trução foi: Que sonorida- Citaremos Jaime del Val27 para avançar sobre o
publicações (sobre escritos teóri- des se compõem com conceito de microdança. Ele define este termo assim:
cos a respeito da investigação artís-
tica realizada com performance as estruturas internas
P. Hoseo): <http.danzanet.com.ar/; do organismo quando nos […] a transformação do corpo (sua representação,
http//www.territorioteatral.org.ar;
http://odanza.blogspot.com; http:// movimentamos? Que sua anatomia e suas linguagens) mediante a
revista escaner.cl.node/1187>. acontecimento audível proximidade da câmera e o enquadramento frag-
27 Jaime del Val, pianista e com-
positor, artista digital e visual, coreó-
ocorre dentro do corpo, mentado, e a transformação na propriocepção28
grafo e performer, escritor, pesqui- no avesso da pele? produzida quando o corpo improvisa por intermédio
sador independente e diretor do
Proyeto Reverso. (<http://www.rever-
Que tipos de sonorida- de sua imagem fragmentada.29
so.org/; <http://www.artnodescom/6/ des e como poderiam
dt/esp/val.pdf>; <http.reverso.org/
ser ouvidas? Portanto, coreografa-se, compõe-se com o movi-
anticuerpos-microdanzas.html>).
28 A propriocepção é um sentido A imagem do gesto mento sobre partes de um corpo que microdançam
de intercepção pela qual temos do corpo geraria o dis- na imagem digitalizada.
consciência do estado interno do
próprio corpo — à diferença dos seis curso sonoro. wcd é Primeiramente são apontados aqueles instan-
sentidos de exterocepção (visão, uma dança do gesto, mas tes privilegiados aleatórios que aparecem basica-
gosto, olfato, tato, audição e equi-
líbrio) com os quais percebemos o do gesto da consciência mente nas modificações da velocidade do registro
mundo exterior. A cenestesia ou do estado interno do em reprodução. A dimensão temporal acrescenta
kinestesia é outra palavra que costu-
ma se intercambiar com propriocep- próprio corpo, não da um aspecto fundamental: a abstração do movimen-
ção. A cinestesia é um componente pantomima ou a simboli- to, do gesto, da temporalidade do corpo.
chave da memória muscular e a
coordenação entre olhos e mãos.
zação deliberada. Os micromovimentos, “em evolução minimalista,
29 Ibid, nota nº 27. como fonemas e sílabas de uma nova protolinguagem,
dança em foco
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que é ao mesmo tempo familiar em sua estranheza”30 e associadas. Os dois territórios, o do corpo e o da
ao serem ralentados ou acelerados, trabalham sobre imagem do corpo, convergem como procedimentos
esta rítmica da imagem que se retém e se despren- de gestação e incorporação um no outro.
de, agita-se, repousa. Ambos os planos, o do corpo Uma primeira instância é a de registro da trans-
gravado e o da imagem digitalizada propriamente formação digital do evento; uma segunda, a coreo-
dita, entram num vaivém até a dissolução e mistu- -edição desse material digitalizado.
ra, permitindo que se coreografe e se edite em Ambas as instâncias são fundamentais no proces-
uma mesma operação. so, tanto a edição da peça de vídeo como a improvi-
Mas isto seria coreografar? Ou apenas editar? sação diante da webcam.31
Deve-se pôr em circulação uma nova denominação As instâncias de vinculação entre o corpo em
nesta tarefa, tanto de editar e coreografar reci- movimento, a captura e a edição geram um espaço
procamente, em vinculação com estes dispositivos de conceitos narrativos na dança ou no movimento
e interfaces. filmado. Não é gênero nem paródia de gênero, é
outra coisa. É uma exploração do “limiar inquietan-
te em que você não está seguro do que vê no limiar
da representação e sua morfogênese”.32
Esta situação impera, certamente, na simples
relação da linguagem com a técnica, aprofundando
sua importância na possibilidade de criar uma
Coreo-editar mistura entre “o gesto e a
30 Ibid, nota nº 27.
31 Convidada a realizar uma
cor expressiva e, por outra
oficina para a montagem de uma parte, o cálculo e suas
peça de videodança, nos dias 27, 28 formalizações abstra-
e 29 de outubro de 2009, pelo
Centro Cultural de España, em tas”.33 A ação de gestuali-
Montevideo, e o FIVu, Uruguai. Ver zar interatuando com o
material deste processo: <http://
www.youtube.com/watch?v=FOy
som implica especialmen-
A categoria de coreo-editar se originou, em grande MoBOWAVw; http://www.youtube. te nossa audição. Esta
parte, da ação técnico-expressiva de editar e coreo- com/user/videodanzuruguay>. imagem do gesto, esta
32 Ibid, nota nº 27.
grafar ao mesmo tempo. 33 Edmond Couchot Y Marie- imagem do corpo, a que
A situação de editar aparece associada à de Hélène Tramus, “Gesto y Cálculo”, fizemos referência nos
traducción de Felipe Ardila y Angela
coreografar, como um tipo de ação dobradiça entre Camargo. (<http://www.geocities.
parágrafos anteriores, é a
ambas as dimensões espaço-temporais diferentes com/athens/8478/ardila.html>). criação de outro gesto, de
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Alejandra Ceriani projeto webdança: uma coreografia
do gesto digital
306–307
dE videodança
outro motor e movimento, que vai se potencializan- Sontag, Susan (1996) [2005].
Contra la interpretación. Capítulo IV,
do e identificando na digitalização. Ambos se ampliam, México: Ediciones Alfaguara.
corpo real registrado e gesto digital editado, para Stam, Robert et al. Nuevos
conceptos de la teoría del cine. Barce-
uma dança da gestualidade digitalizada. Quem edita lona: Paidós, 1999.
não poderia se diferenciar de quem coreografa Tambutti, Susana. “Danza o el
império sobre el cuerpo”. Conferência
porque, na passagem do material físico ao digitali- apresentada no V Festival Internacio-
zado do registro e da edição, permanece como resul- nal de Buenos Aires, 2005. Inédita.
VVAA. Quinto festival Interna-
tado um algo que denominaremos videodança cional Videodanza 99. Buenos Aires:
ou, para sermos mais precisos, um algo que sugere Secretaría de Extensión Universitária,
Uba, Centro Cultural R. Rojas, 1999.
sua vinculação expressiva, estética e produtiva VVAA. Arte Audiovisual:
com o novo universo do digital. Tecnologías y discursos. Capítulo
“La figura humana en el paisaje
electrónico”, Valentina Valentín, p. 193.
Capítulo ”Pequeñas historias del
video”, Valentina Valentín, p. 173.
Buenos Aires: Eudeba, Uba, Centro
Cultural R. Rojas, 1998.
Aumont, Jacques y Marie, Didi-Huberman, Georges. Lo que
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Aumont, Jacques. El ojo Dubois, Philippe. “Para uma esté-
VVAA (1990). Videoculturas de
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dra, S.A.
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Barthes, Roland. Lo obvio y lo Domingo, Hernández Sánchez.
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ción [1985]. el Espíritu. Barcelona: Paidós, 1986.

dança em foco
Ensaios contemporâneos
Alejandra Ceriani projeto webdança: uma coreografia
do gesto digital
308–309
dE videodança
Douglas Rosenberg

observações sobre
dança para A câmera
E um manifesto
1

Douglas Rosenberg tem mestrado em Performance e Vídeo pelo Instituto de


Artes de São Francisco. É um artista interdisciplinar que trabalha com vídeo,
instalações e performance cujo trabalho circula tanto nos eua quanto interna-
cionalmente em museus, galerias e festivais. É ensaísta e leciona Artes
Interativas e Tecnologia no Programa de Dança da Universidade de Madison
em Wisconsin. É diretor do Dancing for the Camera Festival, realizado no
quadro do American Dance Festival e autor do livro Screendance: Inscribing
the Ephemeral Image, publicado pela Oxford University Press.

dança em foco
Ensaios contemporâneos
1 Este texto é um excerto de um artigo apresentado original- 310–311
dE videodança mente no Dance for the Camera Panel, na International Dance
and Technology Conference, Universidade do Estado do
Arizona, em 1999.
Ministrei recentemente um curso chamado “Dança de 1940; e o vídeo, no final dos anos 1960 e 1980.
para a câmera: inscrevendo a imagem efêmera”. Atualmente, em vista da disponibilidade e da
Sally Banes e Noël Carroll participaram e colabora- crescente percepção de novos meios, sob a forma
ram comigo, a fim de começar a articular uma de websites, cd-rom e tecnologia digital, a dança
história da dança para a câmera e a elaborar um mani- se vê de novo em foco de muita apreciação dentro
festo que estabelecesse essa história, criando ao do contexto.
mesmo tempo uma base teórica para sua existência. Desde os primeiros tempos da fotografia, o corpo
Muitos artigos têm sido produzidos ao longo é fonte constante de inspiração. Isso se deve, natural-
dos anos, alguns partindo de um ponto de vista mente, a uma ampliação do relacionamento dos
modernista, outros com base na história do cinema, artistas com o modelo, como praticado durante
e outros mais, de uma perspectiva pós-Judson e séculos, sem a necessidade temporal, por exemplo,
pós-moderna (coincidentemente, de autoria de da pintura. É possível ver no cinema e no vídeo,
Banes e Carroll), mas nenhum texto definitivo que mais recentes, as diferenças no aspecto moral e na
colocasse a dança para a câmera em sua perspecti- atitude em relação ao corpo, fixadas no tempo, de
va histórica. Nenhum que investigue o período uma forma que um desenho a carvão não tem como
desde que o gênero se libertou do quadro fixo se aproximar.
da fotografia. O cinema possui uma aura de autenticidade,
A dança para a câmera, embora praticada com incorporada na cultura popular, com a qual nenhum
vigor considerável durante os últimos 100 anos, outro meio pode competir. Quando a cinedança deu
sempre foi um gênero marginal. Nunca perfeitamen- lugar ao vídeo, no início da década de 1970, a
te encaixada no construto do cinema (como a referência principal da videodança continuou sendo
cinedança) ou do vídeo (como a videodança), ela o cinema e sua concorrente, a televisão. Embora os
tem sido tratada com um certo desprezo por ambas produtores de dança para a câmera tenham explo-
as comunidades e, mais surpreendentemente ainda, rado os rigores tanto de um quanto de outro, não há
a dança para a câmera nunca foi aceita de todo como negar que o cinema tem significância cultural,
por nenhum setor da própria comunidade da dança. enquanto o vídeo vive à sombra das emissões
Houve — e ainda há — momentos isolados em televisivas. Os primeiros praticantes de videodança
que ela se viu nas boas graças do construto maior criaram trabalhos que eram muito diferentes da
da dança, seja moderna ou pós-moderna. Em geral, televisão diária. Ainda assim, a história do vídeo
esses instantes de inclusão coincidem com uma está inextricavelmente vinculada à cultura de massa
tecnologia nova ou em desenvolvimento, como o e, em particular, à televisão. Num momento em que
cinema no início do século e, depois, na década a tecnologia torna-se mais difundida em nossas
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Douglas
Rosenberg
observaçoes sobre dança para
A câmera E um manifesto
312–313
dE videodança
vidas, e as câmeras de vídeo são onipresentes, É como se o vídeo se tornasse uma prótese
parece perfeito olhar para trás e examinar a história para os corpos feridos da década de 1980. Vários
do gênero, em uma tentativa de codificá-la. artistas que a comunidade da dança perdeu para
Há, como sempre, tantas histórias quanto suas a aids estão gravados em vídeo. Os corpos
versões. A que gostaria de focar é a dos indepen- doentes ainda estão sãos e intactos, dentro do
dentes. A dança em si já é uma forma de arte oceano de pixels do videotape.
marginal e, certamente, os realizadores de cinedan- O alcance abrangente da discussão sobre dança
ça e videodança devem ser considerados proscritos, para a câmera é mais apropriadamente descrito
em particular mulheres como Maya Deren, Shirley no termo de Noël Carroll, “dança para tela”, expres-
Clark, Doris Chase e outras. Essas supostas são mais inclusiva, que cria uma conexão entre
feministas conseguiram encontrar um espaço dife- cinedança, videodança e dança digital. Não é possí-
rente na cinedança: o independente, onde diretores vel isolar qualquer gênero de seu contexto histórico
experimentais e pessoas de fora do meio foram e social, e meu objetivo é incluir a dança para a
capazes de criar trabalhos seminais na história câmera nos cânones mais amplos da dança, do
da dança para a câmera. É nesse espaço marginal cinema, do vídeo, das artes visuais, e criar mais um
que a década de 1960 trouxe uma era de autoexa- cânone inclusivo para juntar todos estes.
me, e a Sony nos deu, coincidentemente, um vídeo Os escritos de Sally Banes, em trabalhos como
portátil. A era da videoarte sobrepõe-se ao surgi- Greenwich Village 1963, Terpsichore in Sneakers,
mento da dança pós-moderna e da Judson Church. além de outros livros e publicações, apontam
É aqui que as histórias da dança e dos meios momentos críticos na história da dança, em que
óticos fundem-se, no contexto da “aldeia global”, ocorrem sobreposições e digressões, assim como
de McLuhan, e de um sentimento de igualdade momentos históricos sinergéticos, nos quais
e futurismo, forma que se adequava à tecnologia aconteceram confluências de práticas díspares, o
do vídeo. Foi nessa margem que a dança para que resultou na emergência das chamadas formas
a câmera passou seu foco do cinema para o vídeo, híbridas. Seus escritos colocam esses instantes
descartando o equipamento que a acompanhava. dentro do cânone da dança moderna e pós-moder-
É aí que dança e tecnologia começam seu namoro. na, embora reconheçam de maneira explícita
E é o vídeo que abre caminho durante as déca- contextos maiores, nos quais residem a dança e a
das de 1980 e 1990, como capacitador de corpos performance (como, por exemplo, o feminismo, o
e psiques danificadas, ampliando a ideia das danças ativismo social, as questões raciais etc.).
faladas de Liz Lerman, Bill T. Jones, Victoria Marks Lucy Lippard escreve sobre a desmateriali-
e, é claro, de Anna Halprin. zação do objeto, pondo em confronto escultura
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Douglas
Rosenberg
observaçoes sobre dança para
A câmera E um manifesto
314–315
dE videodança
e performance em seu livro Six Years: The Dema- O cinema reforçou esse paradigma, desde o início,
terialization of the Art Object from 1966–1972. com o uso do primeiro plano e do enquadramento
Ela mostra como o objeto metamorfoseou-se em assimétrico do corpo.
processo e, no final das contas, tornou-se corpo, A dança tem a gravidade como um constante
em certo sentido. Suas teorias e outras, escritas na lembrete terreno de que o corpo é de fato pesado e
década de 1970, estão em processo de serem pertence a este mundo. O dançarino precisa apenas
reaplicadas à tecnologia contemporânea, embora começar a saltar para que essa sensação torne-se
muitas vezes de forma involuntária e sem crédito. muito real, enquanto é puxado de volta para a
As teorias de Lippard, Banes e outros tornaram-se, terra. Porém, na cinedança, quando Talley Beatty
por uma espécie de osmose cultural, um pedaço da salta no espaço sob as lentes da câmera de Maya
paisagem dos críticos. Enquanto procuro criar o Deren, ele permanece no ar pelo tempo que a
cânone inclusivo previamente aludido, é importante diretora quer. Uma análise desse exercício em
que esses e outros teóricos seminais sejam reco- prestidigitação temporal simplifica muito a ideia da
nhecidos, e que seus trabalhos sejam inseridos no fragmentação do corpo e do seu impacto na prática
contínuo do qual a dança para tela faz parte. desse suporte. O que está em funcionamento ali,
É também imperativo que se continue a criar novas no trabalho de Deren, e no cerne da dança para tela
teorias, à medida em que nos precipitamos digital- em geral, é o que se pode chamar de “rematerializa-
mente no milênio, e que se produzam novos fóruns ção do corpo”, por meio de técnicas de cinema
para a análise crítica das novas tecnologias, ao (“rematerialização” é usado aqui para descrever
mesmo tempo em que se desenvolvem e se modifi- uma reconstrução literal do corpo que dança,
cam as metodologias existentes. através de técnicas cinematográficas que criam, às
Uma das promessas da tecnologia contemporâ- vezes, um corpo impossível, sem as restrições da
nea é a libertação do corpo de sua concha física. gravidade, do tempo e nem mesmo da morte).
Em um nível muito simples, essa promessa tem O que ocorre quando o corpo inscreve a própria
pairado no ar há anos. Primeiro, o telégrafo e, mais imagem em filme ou videotape? No caso de Nine
tarde, o telefone permitiram a fragmentação do Variations on a Dance Theme, realizado em 1967 por
eu holístico em partes separadas. Ou seja, o corpo Hilary Harris, com a dançarina Bettie De Jong, o
fica no lugar enquanto pensamentos, palavras corpo que vemos no filme é diferente daquele que
ou vozes viajam para locais distantes. Assim, Ms. De Jong estende e move em um espaço real
o receptor do texto oral está tendo a experiência e, certamente distinto do que ela tinha 30 anos
de apenas um elemento do todo e imaginando depois. A pergunta é então a seguinte: qual é o autên-
a compleição física do indivíduo que envia a voz. tico? A resposta mais provável seria a de que o
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Douglas
Rosenberg
observaçoes sobre dança para
A câmera E um manifesto
316–317
dE videodança
corpo físico que serve atualmente a Ms. De Jong astros do cinema, tiradas anos atrás, que permane-
é o autêntico, aquele no qual sua vida foi inscrita. cem como o significante culturalmente inscrito
Esse argumento funciona porque ela ainda está entre de, por exemplo, James Dean, Marilyn Monroe e
os vivos. No entanto, no caso de Talley Beatty, que Elvis Presley, muito depois de o corpo físico ter
morreu faz alguns anos, onde está o corpo autênti- envelhecido ou deixado de existir. Essas represen-
co? Sua imagem cinematográfica no filme de Maya tações tornam-se objetos de fetiche em alguns
Deren está inscrita para sempre como a de um casos, ícones em outros, mas seja como for trans-
dançarino sensual, erótico e plenamente desenvol- formam-se no corpo autêntico do indivíduo para
vido, muito vivo em nossa memória coletiva. aqueles que o conhecem apenas por sua imagem
A dança para a câmera recupera o corpo morto, reproduzida mecanicamente.
em alguns casos até o reinventa e o ressubstan- Hilary Harris realizou a filmagem de Nine Varia-
cializa, objetivando-o ou materializando-o (para tions em mais ou menos 25 sessões de cerca de
inverter o termo de Lippard) no processo. A documen- duas ou três horas cada, durante um ano. O corpo
tação da dança, que registra a coreografia da forma que vemos não é o de Ms. De Jong, num dia em
como é realizada numa apresentação ao vivo, particular de 1967, mas um construído durante
está sujeita às variações da performance. A que fica aquele ano e que estava em processo de se tornar
registrada raramente é aquela que o coreógrafo o que era, enquanto ocorria sua tradução em filme.
sente ser a definitiva. Contudo, a dança criada espe- Assim, a ação de tornar-se, envelhecer e amadu-
cificamente para a câmera nunca é de fato fixada recer está toda registrada em Nine Variations,
como apresentação ao vivo; está sempre no proces- embora o que se vê, em última análise, seja uma
so de tornar-se. Embora Harris tenha realizado Nine versão lírica, cinética e altamente editada de um
Variations em 1967, e o material bruto da filmagem corpo dançando. Um corpo impossível, se preferir.
de Ms. De Jong tenha permanecido inalterado, É possível usar esse trabalho como um modelo, a
exceto pela possível degradação devido à armaze- partir do qual se vislumbra a maturação de um
nagem do filme, está claro que Harris poderia entrosamento cubista, quase futurista, com o corpo
reeditar o trabalho 30 anos depois (esse fenômeno face a face com a cinedança. Um modelo em que
acontece o tempo todo em Hollywood, recentemen- o corpo é a matéria-prima para a reconceitualização
te com A dama oculta, de Alfred Hitchcock). Isso da materialidade, em que a reprodução mecâni-
representa uma espécie de modificação corpo- ca recorporaliza a carne e o corpo, filmado e editado,
ral ou cirurgia cosmética que a reprodução mecâni- transforma-se no corpo autêntico, enquanto sobre-
ca ou eletrônica permite e, na verdade, encoraja. vive ao sujeito. E ao mesmo tempo em que essa
Basta observarem-se as fotos para publicidade de metodologia favorece o diretor, ela é, de forma
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Ensaios contemporâneos
Douglas
Rosenberg
observaçoes sobre dança para
A câmera E um manifesto
318–319
dE videodança
subversiva, uma técnica para se escrever a própria 1968, a retórica que a cercava era estranhamente
autobiografia e autorrepresentação, em oposição similar ao que estamos atualmente acostumados,
à escolha do dançarino como vocabulário de movi- no que diz respeito às tecnologias contemporâneas.
mentos. Sujeitar-se a um ano de filmagem, dançan- A diferença era que os artistas que adotavam o
do sempre a mesma peça, livrou, via reprodução vídeo como forma autônoma de arte estavam compro-
mecânica, Bettie De Jong da extinção que vem com metidos em circular fora do mercado predominante
o fim da vida profissional de um bailarino. e em usar essa nova tecnologia como forma de
Uma das características mais reconhecíveis questionar a cultura, assim como os meios de comu-
da dança para a câmera é a tentativa de imortalizar nicação e o paradigma produtor/receptor. O que
momentos efêmeros, escritos por corpos que costumava ser conhecido como “complexo industrial
dançam, e traduzi-los para o suporte do filme militar” ou “o sistema” era de particular interesse
ou do vídeo. A ideia de dança para tela amplia esse para realizadores ativistas, que viam a tecnologia
conceito para o domínio digital. Em minha opinião, do vídeo como ferramenta para criar e engajar-se na
o sucesso ou fracasso de uma dança para tela resistência, usando as ferramentas da cultura
reside em grande parte na habilidade dos realiza- predominante, a fim de se dirigir a essa mesma
dores para inscrever ou reinscrever o que Walter cultura em seu próprio vernáculo.
Benjamin chamou de “aura” da obra de arte. É esse espírito independente, tão valorizado
Ela permite ao espectador transcender o meio de pelos primeiros ativistas da mídia, que os produto-
representação e concentrar-se nos aspectos mais res de tecnologia contemporânea escolheram e
sensíveis da dança para tela. enviam agora ao consumidor diretamente; a habili-
O ancestral da dança para tela é, naturalmente, dade para criar trabalhos de arte digitais, usando
o cinema. Em meados da década de 1960, ele foi as ferramentas preparadas e embaladas para consu-
substituído pelo vídeo. Há pessoas que creem mo imediato e relativamente fácil. Daí o novo mer-
que as tecnologias digitais tornaram tanto cinema cado artista/consumidor. Os primeiros artistas
quanto vídeo obsoletos. Essa afirmação é em prin- midiáticos questionavam consistentemente a autori-
cípio totalitária, além de prematura e fatalista. dade e a moralidade do produtor a todo instante.
A vanguarda contemporânea, tal como está, é como Esse ceticismo foi há muito substituído por uma ansie-
um cão tentando morder o próprio rabo. Fecham dade, por parte de artistas/consumidores, para
círculos sobre si mesmos, devorando-se metafori- participar quase que a qualquer preço. O fantasma
camente. empresarial que paira ligeiramente sobre a tecno-
Quando a tecnologia de vídeo tornou-se ampla- logia contemporânea é palpável, e os negócios
mente disponível aos consumidores, a partir de feitos com entidades corporativas, a fim de que
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Douglas
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observaçoes sobre dança para
A câmera E um manifesto
320–321
dE videodança
indivíduos e universidades participem, deixaria a — Você precisa realmente de uma câmera de
maior parte dos diretores seminais de cinema e vídeo digital em oposição a uma câmera analógica?
vídeo enojados. Na verdade, por que precisa de uma câmera
A ironia aqui é que a retórica principal à época de vídeo? Você já sabe como usar plenamente uma
do nascimento do vídeo independente partiu de câmera, incluindo as questões estéticas relativas
realizadores, escritores e intelectuais do meio. a enquadramento, composição e iluminação, além
A retórica atual é produzida em grande parte por das pragmáticas, como profundidade de campo,
executivos astutos e adotada às pressas por controle da íris e ajustes de comprimento focal?
artistas/consumidores e outros que queiram um Já decidiu se vai trabalhar com vhs, svhs ou Beta-
lugar sob o sol da informação. A ideologia marxista/ cam? Você ou seus alunos têm noções de edição
socialista/esquerdista da antiga prática midiática linear e analógica, ou estão passando para a edição
deu lugar, com pouca resistência, a uma fanta- digital sem nenhum contexto? Para que vai usar
sia romântica do tecnólogo como artista, patrocina- a câmera: trabalho de arquivo ou “experimental”?
da por ibm, Adobe Photoshop, Bill Gates e E, acima de tudo, como você vê as questões de
outras corporações. conteúdo e como isso afeta sua escolha de hardware?
Você conhece a história da dança para câmera ou
se interessa por ela? Conhece a história da videoar-
te e sua interseção com a prática feminista ou
quando o cinema independente deu lugar ao vídeo,
e que mudanças culturais surgiram a partir disso?
Vai conseguir resolver algumas dessas questões
Um Manifesto pela
e dar respostas certas a seus alunos?
Dança para Tela
Estamos num gueto que privilegia a forma em
detrimento do conteúdo, coloca as ferramentas acima
da prática; um construto modernista em uma era
pós-moderna. Usar instrumentos sofisticados para
criar trabalhos grosseiros, com frequência menos
interessantes que as pinturas que as crianças
A integrante de um departamento de dança quer fazem com os dedos. As pessoas congratulam-se a
comprar uma câmera digital. Ela pergunta: cada nova interface bem-sucedida, sem parar para
— Que câmera de vídeo digital devo comprar? formular uma nova teoria ou para contextualizar
Respondo com outras perguntas: essa interface em relação à cultura contemporânea.
dança em foco
Ensaios contemporâneos
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Rosenberg
observaçoes sobre dança para
A câmera E um manifesto
322–323
dE videodança
Fala-se em um código de elites privilegiadas, sobre de questionar o mensageiro, pois ele pode ser um
ram e mega-hertz e, muitas vezes, menosprezam- Cavalo de Troia.
-se críticas válidas, com a desculpa de que, para se Dança e tecnologia é uma designação inadequa-
entender a obra, é preciso que se seja versado na da. É muito mais comum tecnologia e dança.
tecnolíngua que acompanha esses desdobramentos Sejamos honestos mais uma vez. Ainda é uma
tecnológicos. Ou pior, despreza-se o fracasso de um estrutura hierárquica e baseada no gênero, na qual
trabalho culpando uma tecnologia que funciona mal. esta tem que se chamar dando primeiro nome à
Ou ainda pior, não se critica a obra e levanta-se outra, a que não é. Essa intencionalidade ao nomear
o moral do realizador, parabenizando-o por mais um perpetua a guetização de um gênero de trabalho
grande sucesso. Estamos presos ao fascínio da tecno- que se encontra atolado na própria falta de con-
logia, a sua sedução plenamente sexual, da mesma textualização histórica. E ninguém quer balançar o
forma que um peixe se deixa enfeitiçar por uma barco. Onde está o discurso crítico? Quem vai
isca brilhante, girando, e a morde com força, afer- se levantar e dizer sobre uma obra: isso é uma fraude
rando-se permanentemente ao objeto de desejo. ou simplesmente uma reutilização batida de uma
Platão disse conte-me tudo. Aristóteles disse ideia antiga? Quem vai dizer que essa obra é menos
conte-me tudo, mas também me mostre a própria que a soma das partes? Que esse trabalho é
coisa. Em homenagem à posição de Aristóteles, parte de um contínuo histórico, que não foi reconhe-
peço o fim da retórica tecnológica, o fim da língua cido ou aceito de forma artística pela comunidade
do privilégio, o fim do deslumbramento, do dogma, de Dança e Tecnologia? Eu vou dizer aqui e agora.
da divisão baseada no gênero, dogmática e hie- Não há dúvida de que me vou indispor com muitos
rárquica do ciberespaço, que se esconde atrás e expor-me a críticas também. Todavia, aprecio
do verniz da igualdade e da democracia tecnológica. a oportunidade de abrir um diálogo que é honesto,
Os gurus, como tal, prestam falso testemunho rigoroso e apaixonado. Onde estão os pontos
ao reciclar velhas teses modernistas, transforman- de resistência nessa revolução? Ela é civil demais,
do-as em filosofia aparentemente contemporânea, passiva demais em seu uso dos equipamentos
que é citada como se fosse transcendente. de batalha. É hora de criar um fórum para avaliação
Sejamos honestos, grande parte disso foi feita crítica do cenário da dança e da tecnologia, que não
de forma simples e com outras ferramentas, talvez perpetue apenas um estilo defensor da textualida-
menos sofisticadas. Não há nada de radical nisso. 2 N. do R.: Termo criado
de, mas pergunte: Qual
A retórica que cerca a “supervia da informação” 2 no final dos anos 1990 que é o significado social des-
tentava descrever o mundo
(alguém sabe quem cunhou esse termo cooptado?) da internet. Em inglês
se trabalho e qual sua
é curiosamente familiar e vazia. Que não se cesse Information Superhighway. contribuição à cultura?
dança em foco
Ensaios contemporâneos
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observaçoes sobre dança para
A câmera E um manifesto
324–325
dE videodança
O pêndulo da dança e da tecnologia vem balan- como produtores e ativistas da videodança, e fiquei
çando perigosamente para longe da arte da dança, muito satisfeito em participar. O que lhes enviei foi
em direção à tecnocracia. Esse é um chamado uma palestra reformulada e um manifesto, de 1999,
ao equilíbrio. que escrevi originalmente como artigo para uma
É hora de começar a escrever um cânone que conferência. Quando Paulo perguntou-me se era
seja inclusivo de tudo que se refere à dança para possível reeditar esse texto, fiquei muito interessa-
tela e, mais importante, é hora para uma reintegra- do em revisitá-lo, por uma série de razões. Primeira,
ção entre forma e conteúdo, hora de pôr fim à ele foi escrito originalmente num estado de (relati-
dissonância cognitiva que cerca o trabalho de arte va) paixão juvenil. Lembro-me de que meu entusias-
tecnologicamente mediado e de ofuscar sua falta mo pela área e o desejo ardente que sentia de
de comunicação num plano que seja relevante poder manter conversas sérias e inteligentes sobre
e signi-ficativo. É hora de uma rematerialização videodança não estavam, na época, encontrando
da dança e da tecnologia, de reinscrever o corpo um público receptivo. Além disso, minha voz era
no corpus da tecnologia. alta e agressiva, argumentativa e desnecessaria-
mente colérica. Em 1999, havia muito pouco no que
diz respeito a um discurso teórico, histórico ou filosó-
fico para se debater, e poucos colegas com quem
fazê-lo. Vindo de um contexto de artes visuais
e dança, tinha vontade de combinar teoria e prática
nesses dois campos e defender uma discussão que
refletisse meus desejos pessoais para a área.
Olhando para trás, agora, vejo que essas ideias, in-
completas e algo erráticas, foram a base para minhas
pesquisas no decorrer da década. Percebo que
algumas das tecnologias descritas ali talvez não
sejam conhecidas dos leitores jovens, e vejo também
o esboço do livro que por fim terminei de escrever,
Em 2006, Paulo Caldas me pediu que contribuísse Screendance: Inscribing the Ephemeral Image.
com um texto para um livro sobre videodança, Escrito em um tom mais maduro, esse trabalho
que os organizadores do dança em foco estavam (espero) foi inspirado nessas ideias originais e faci-
publicando. Já tinha ouvido muita coisa sobre o litado por uma década de conversas com colegas
grande trabalho que estavam realizando no Brasil, do mundo todo, à medida que a área começou
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Douglas
Rosenberg
observaçoes sobre dança para
A câmera E um manifesto
326–327
dE videodança
a encontrar seu espaço e que outras vozes torna- Susana Temperley
ram-se mais fortes. Finalmente, em 2011, conheci
Paulo Caldas, Leonel Brum, Eduardo Bonito,
Regina Levy e Marisa Riccitelli Sant’ana, no Brasil,
e consegui ver, com os próprios olhos, o trabalho
notável que é o dança em foco. Fico feliz por ser
incluído nessa publicação. escrita perplexa:
por um possível
encontro entre crítica
E videodança

Licenciada em Comunicação Social, pós-graduada em Especialização de


Crítica de Artes e docente na Área de Crítica de Artes do Iuna (Instituto
Universitario Nacional del Arte), onde leciona Semiótica e Teoria da Comuni-
cação e Semiótica Geral. É doutoranda na faculdade de Filosofia e Letras
da Uba (Universidad de Buenos Aires) com o projeto “A Dança e seus Limites”.
Desde 2007 organiza o Simpósio Internacional de Videodança do Festival
Internacional VideoDanzaBA. Publicou artigos sobre este tema em publica-
ções argentinas e internacionais. É coorganizadora do livro Terpsícore en
ceros y unos. Ensaios de Videodanza (Ed. Guadalquivir, Buenos Aires, 2010).

dança em foco
Ensaios contemporâneos
Douglas
Rosenberg
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dE videodança
As linhas que se seguem não procuram falar sobre e se orienta no sentido de indagar na própria obra a
videodança, mas sobre escrita de videodança. O inte- teorização sobre a linguagem da videodança, convo-
resse por este tópico se origina em algo que começa cando disciplinas como filosofia, epistemologia,
a se constituir como um problema: o fato de que a história da arte e até política. Em diferentes circuitos
videodança encontrou abrigo e crescimento prolífico de difusão das obras (especialmente os festivais)
na América Latina e, no entanto, ainda não despertou começaram a se abrir espaços paralelos, destinados
interesse dos críticos. O caso é que a crítica, um somente à discussão teórica que, por enquanto, se
dos metadiscursos mais importantes para a vida de dá entre os próprios artistas.
gêneros e linguagens,1 pode ser definida como o Hoje em dia, é de suma importância a existência
extremo da defasagem entre produção e teorização destes textos, visto que constituem o único meta-
de videodança. A incipiência de textos críticos é discurso existente sobre videodança e, ao mesmo
evidente quando comparada à vitalidade que adquiriu tempo, assinalam uma carência estrutural de
o objeto de estudo. Podemos estabelecer parâmetros escritos externos em relação à voragem da produ-
deste estado de coisas se considerado o contexto ção de obras. Podemos falar, assim, da teoria
da situação da arte contemporânea em geral e a proveniente do campo de produção artística como
possibilidade de permanência e validez do museu como um modo de expressão que, embora necessário,
espaço de difusão das obras. O tema é um dos tende a gerar um hermetismo estrutural no circuito
tópicos de discussão mais atuais. No caso da crítica, de difusão de obras (apesar do fluxo de intercâmbio
em compensação, a questão da validez como meio de por intermédio de websites e blogs). Em conse-
difusão não parece tomar parte em nenhum debate. quência, ainda estamos distantes da possibilidade
Diante do flagrante afastamento da crítica, de haver um “mercado” de videodança. Ainda que
pode ser formulada uma pergunta que contribui para muitos artistas estejam apresentando suas obras
abrir o debate: os formatos da crítica e as interroga- de maneira independente, ou em festivais (cada
ções que ela suscita habilitam-na a continuar funcio- vez mais sofisticados e completos) e mostras itine-
nando como parte do dispositivo metadiscursivo rantes, os consumidores de videodança, conquista-
da arte contemporânea? A ausência de crítica, ainda dos por qualquer destas vias, continuam sendo
que de forma encoberta, sobre as artes híbridas como os próprios artistas. É uma das diferenças básicas
a videodança, pode estar dizendo alguma coisa. em relação à videoarte em geral que, de alguma
Por outro lado, encontramos a escrita dos pró- maneira, está sendo explorada em circuitos mais
prios artistas. A palavra reflexiva dos criadores de video- rentáveis, abertos por grandes empresas do mundo
dança se torna cada vez tecnológico (principalmente de telefonia) por
1 Steimberg, 1993. mais frequente (e fecunda) intermédio de um neomecenato que, embora gere
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Susana Temperley escrita perplexa: por um
possível encontro entre crítica
330–331
dE videodança E videodança
controvérsias, parece assumir o encargo de um lugar
antes vazio.2
Em síntese, existe um espaço de teoria desocu-
pado, mas também existe outro, que começou
a amadurecer e a se sistematizar. O ponto básico O que significa ser crítico
é que a proliferação de escritos provenientes de videodança?
do próprio campo de produção de arte tem certas
vantagens, mas não pode substituir a crítica na
especificidade de seu papel.3
Parece essencial a existência de uma crítica que
abra o campo até uma reflexão profissional, ou pelo
menos renovada. Na busca de uma discussão sobre
2 Diferente é a aposta de alguns
este assunto surge Resolver
autores de videodança ao apresen- outra pergunta: se existis-
tar suas obras em festivais de
cinema independente, como é o
se uma crítica de video- De acordo com Danto, as considerações estéticas
caso de 5, de Jonathan Perel, dança, que papel ela repre- que governam nossa relação com as obras, incluindo
presente no bafici (Buenos Aires
Festival de Cinema Independiente)
sentaria diante desta o próprio conceito de arte, não são a-históricas, e na
2008, na categoria curta-metragem. linguagem artística com- atualidade nos encontramos em um momento de
Neste caso, podemos pensar na
incursão, com certo êxito, desta
plexa e ainda controverti- mudança radical: “Deveríamos pensar ainda na arte
arte híbrida em circuitos discursi- da? Para responder a depois da arte, como se estivéssemos emergindo
vos próximos, mas não próprios.
3 Remetemos ao papel ocupado
esta pergunta, deve-se da era da arte para outra coisa, cuja exata forma e
tradicionalmente pela crítica, isto levar em conta que a estrutura ainda está para ser entendida.” 4
é, fazer parte fundamental da
cadeia de produção, distribuição
existência de crítica deter- O autor aceita que a arte é paradigmaticamente
e consumo dos produtos artísticos mina em grande medida a imprevisível, mas, neste momento, estaríamos dian-
e, neste sentido, ser geradora de
público. Ver Traversa, 1984, p. 26.
importância de uma ma- te de uma estrutura na qual “tudo é possível”. A arte
4 Danto, 1997, p. 26. neira de expressão ar- contemporânea é demasiado pluralista em inten-
5 Danto esquematiza a narrativa
da história da arte ocidental como
tística na cultura, pois con- ções e realizações para ser capturada em uma única
uma era da imitação, seguida tribui para a indicação dimensão e, portanto, a crítica de arte deveria ser
de uma era da ideologia (em que a
filosofia explica a arte), seguida
do status daquilo que criti- tão pluralista como a própria arte pós-histórica.5
de nossa era pós-histórica “na qual ca e o circunscreve como No mínimo, cabe perguntar se é possível requerer
podemos dizer qualificadamente
que ‘vale tudo’, porque é o fim da
um espaço autônomo linhas de abordagem para as obras contemporâne-
narrativa-mestra”. de efeitos estéticos. as que permitam continuar definindo a crítica como
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Susana Temperley escrita perplexa: por um
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dE videodança E videodança
gênero.6 Se a crítica tem por tarefa determinar a crítico de arte da atualidade (chame-se contempo-
que estrutura histórica pertence a obra que critica, râneo ou pós-histórico, dá no mesmo) evidencia-se
que significados carrega e quais são as intenções em sua própria reflexão — tal como menciona o
que cumpre, logo se evidencia um efeito de incerte- crítico mexicano Cuauhtémoc Medina. Para ele,
za, por estarmos diante de uma estrutura histó- a arte atual
rica em que tudo é possível, isto é, que carecemos
de uma narrativa-mestra que sirva como refe- […] tem a ver com um território que assumiu (como
rência ao crítico para responder a estas questões. herança) a mudança das possibilidades criativas
Mas Danto propõe uma ressalva: e os dilemas entre essas possibilidades criativas e
os discursos, imagens, sons e estruturas sociais. […]
Hoje, tudo é possível no sentido de que certas coisas Nós que estamos dentro deste território (a crítica)
não eram possíveis para um europeu ou um africa- não compreendemos mais do que aqueles que
no em 1890. No entanto, estamos presos dentro estão fora. É que nos dispomos à experiência de ter
da história. Não podemos ter o sistema de crenças de construir nossa relação com estes objetos de vez
de exclusão que impediam os artistas europeus em quando, encontrando prazer no momento de
de fazer ídolos e máscaras. […] Mas não há formas estranhamento e aprendizagem.
que nos sejam proibidas. A única coisa que nos é
proibida é que elas tenham a espécie de significado Ninguém ensina como elaborá-la. Nós, os chama-
que tinham quando eram proibidas.7 dos especialistas, ficamos tão perplexos como
os outros. Nem sequer podemos fazer algo com
Segundo esta tese, a emergência de uma crítica es- o que se nos apresenta e, precisamente, o território
pecializada em linguagens pós-históricas como a onde estabelecemos diálogo entre nós — onde par-
videodança se defrontaria com um objeto de estudo tilhamos de nossas excitações, onde se elaboram
caracterizado pela liberdade formal, a novidade os discursos —, esse é o território de perplexidade…
e a imprevisibilidade em Mas não estamos em posição de retrocesso ante a
6 A partir das operações que relação ao seu signifi- condição de práticas não ancoradas em algum
realiza, isto é, “informar sobre a
atualidade da arte e classificar
cado, enquanto a mesma dispositivo já conhecido.8
o discurso focalizado dentro de uma crítica seria impensável
série histórica tanto naquilo que se
assemelha como no que se diferen-
fora deste regime de cren- Neste cenário, o crítico de videodança, ao assumir
cia dele” (Koldobsky, 2005, p. 3). ças do “tudo é possível”. seu papel, enfrentará em primeiro lugar a neces-
7 Koldobsky, 2005, p. 65.
8 Medina e Minera, 2009 (regis-
A posição tão incômoda sidade de resolver o dilema de sua própria posição,
tro de áudio). que se apresenta ao pois é possível que não possa fazer/dizer algo com
dança em foco
Ensaios contemporâneos
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dE videodança E videodança
o que se apresenta como objeto de reflexão, e ao já vimos, deve fazê-lo dentro da mesma estrutura
mesmo tempo não estará em condição de repeli-lo histórica. O crítico deve realizar uma escrita de seu
para voltar a um lugar seguro, o das artes definidas tempo, de um tempo que é o mesmo do artista,10
por um dispositivo tradicional. mas por meio de signos que resistem a dizer o que
nunca foi dito.
Escrever
A escrita é uma linguagem áspera que vive sobre
Os conceitos si mesma e de modo algum está encarregada
de confiar à sua própria duração uma sucessão
O meio em que o crítico assume seu lugar é a escrita. móvel de aproximações. Pelo contrário, deve impor,
E aqui surge outro problema. Barthes descreve o na unidade e na sobra de seus signos, a imagem
ato de escrever como uma espécie de gesto parado- de uma palavra construída muito antes de ser
xalmente trágico: inventada.11

Sem dúvida posso escolher determinada escrita, É assim que, para falar de algo, deve-se nomeá-lo,
e com este gesto afirmar minha liberdade, preten- e as palavras designam, definem e delimitam aquilo
der uma novidade ou uma tradição; mas não posso que é possível ser dito. A arte poderá ser essa
já desenvolvê-la numa duração sem me tornar “qualquer coisa” definida por Danto, mas a crítica,
pouco a pouco prisioneiro das palavras do outro mesmo a pós-histórica, não pode falar dela de
e até de minhas próprias palavras. Uma obstinada qualquer maneira. Partindo, portanto, da suposição
persistência, que chega de todas as escritas pre- 9 Barthes, 2005, p. 25.
de que existe ou pode
cedentes e do passado de minha própria escrita, 10 O artista “deve ser sujeito existir alguém tão (irres-
de seu tempo. [...] Para que
abafa minhas atuais palavras. Todo vestígio escrito a crítica de arte perdure tem
ponsavelmente) tenaz
se precipita como elemento químico, transpa- de haver um indivíduo refletindo para se atribuir a tarefa
diante do material que lhe
rente, inocente e neutro, em que a simples duração apresenta a cultura de hoje e sob
de criticar videodança,
faz aparecer pouco a pouco um passado em sus- pressão para pedir-lhe espaço como pode esta pessoa
à cultura contemporânea. Pedir
pensão, uma criptografia cada vez mais densa.9 ao tempo uma produção de seu
analisar algo que não
tempo e pedir ao sujeito que tem limites por intermé-
seja um sujeito de seu tempo.
A questão é que a crítica de videodança enfrenta Esta é uma reivindicação moder-
dio de uma linguagem
a tarefa de acompanhar e valorizar certo objeto — nista, mas que ainda contém ‘ que tem limites?
a crítica de arte atual” (Barthes,
que vive sempre num presente caracterizado pela 2005, p. 9).
Em outras palavras,
ausência de limites do aspecto formal — e, como 11 Barthes, 2005, p. 26. a crítica de videodança
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poderá ser uma escrita que nasce da perplexi- posição assumida pela escrita. A necessidade
dade, mas nunca pode ser imprecisa e ambígua de precisão se torna abismal (mas nem por isso
sem violentar sua própria característica de escrita. impensável). Cada vez que o crítico aborda um
Surge, assim, um aspecto em que é possível se novo objeto, deve submeter permanentemente a
situar para começar a escapar de tais dificuldades: exame as noções utilizadas em seus escritos —
a redefinição permanente dos conceitos.12 sempre qual ideia de corpo intervém em uma
Sabemos que a crítica deverá manter uma visão videodança, até que aspectos da disciplina se
particular para valorizar diferentes tipos de obras, destacam ao optar pelo termo videodança e “dança
centradas na experimentação tecnológica (ânsia para a câmera”, e até muito mais, pois seguramen-
de descobertas de novas possibilidades de movi- te será necessário perguntar-se sobre os signi-
mento e forma, sem perder a característica estéti- ficados de dispositivo, movimento e espaço cons-
ca do todo), ou aquelas que mantêm o foco na tantes da obra. E isto apenas para entrar na
expressividade, na poética e no conteúdo humanis- análise — e, muitas vezes, criar novas palavras
ta, ou o contexto social, até mesmo sobre cada uma especialmente formuladas para o caso. Um limite,
destas linhas estéticas. O crítico enfrentará, portanto: faz-se necessária a reconceituação
a cada vez, uma obra diferente em sua forma, sua permanente das noções que definem e definirão a
gramaticalidade, em seu ser único, que, ao mesmo linguagem da videodança, mas, em primeiro lugar,
tempo e sem determinar como, é parte de um a capacidade de gerá-las.
conjunto (que, a priori, só se pode caracterizar
como “todas as obras Os lugares-comuns
12 Paolo Fabbri assinala: “Natu-
ralmente não se pode impedir a
como esta”). É aqui que
ideia de que existem alguns signos o escritor deve ser capaz Depois, outro problema a ressaltar: a liberdade
que, para certos fins, se conside-
ram definitivos. Mas não significa
de propor, de saída, do objeto tende a repercutir num abuso do lugar-
que sempre existam signos definiti- uma série de conceitos -comum e das metáforas cristalizadas (catacreses).
vos, como as palavras, cuja combi-
nação produz frases ou textos.
por intermédio dos quais Apresentam-se como sintoma do enfraquecimento
Talvez possamos afirmar o contrá- possa dizer algo verda- da crítica em quase todas as demais linguagens
rio: só existem textos, textos de
objetos, não textos de palavras ou
deiro de uma obra de artísticas contemporâneas, de que a crítica de video-
de referências, textos de objetos videodança. Trata-se, dança ainda escapa simplesmente por carecer de
complexos, pedaços de palavras,
de gestos, de imagens, de sons,
portanto, de elaborar sistemática. Ao mesmo tempo em que turvam
de ritmos etc., isto é, conjuntos que conceitos capazes de se a escrita, os clichês e a estereotipia são parte intrín-
podem ser segmentados de acordo
com a necessidade ou a urgência.”
transformar de acordo seca de toda a reflexão sobre a arte que surge e
(Fabbri, 1999). com cada objeto e cada procura amadurecer, pois se prestam ao inter-
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câmbio, ao diálogo entre crítico e leitor,13 tal como atentam contra sua função de época: dizer algo
as boias são úteis aos náufragos. sobre um objeto que resiste sequer a ser nomeado.
Os lugares-comuns e as catacreses também se
delineiam no caso da escrita sobre videodança. Por- Equilíbrio
tanto, deter-se sobre eles pode resultar uma expe-
riência interessante: o que se pode dizer por intermé- Determinada por uma dupla contradição, uma relativa
dio de fórmulas como “manipulação da imagem”, à sobrevivência do lugar-comum (que tende a eliminar
“exploração da paisagem da dança”, “apropriação a reflexão particular e a complexidade, embora nada
simbólica do espaço”, “experiência de dança”, “sín- se pode comunicar sem ele), e outra baseada na
tese entre dança e imagem”, “experiência envol- complexidade dos conceitos (os signos que limitam o
vente […] na qual o público fica submerso”, e, com possível de ser dito, ao mesmo tempo, ainda, que não
bastante frequência, “diálogo entre câmera e corpo” ? há maneira de se expressar sem eles), vislumbra-se
Cristalizações sobre si próprios que também assim uma possível existência do metadiscurso
cristalizam um referente, os lugares-comuns “são o sobre videodança, que busca persistir além de sua
efeito, em seus apelos argumentativos, da inércia própria fatalidade não apenas como escrita mas
da memória cultural”,14 e aparecem, portanto, como também como crítica, a ponto de correr o risco de se
vontade que se orienta em direção ao passado, encontrar num lugar tão trágico como o do silêncio
na direção contrária da linguagem que é seu objeto, diante de uma obra de arte.
e se caracteriza pela complexidade e a busca da Falamos, portanto, de uma crítica de videodança
especificidade num contexto imprevisível, situado que é ainda incipiente, quase ausente, mas que já apre-
13 A propósito, podemos assumir
em algum lugar entre o senta vestígios de sua condição pós-histórica, pois en-
a caracterização feita por Oscar presente e o futuro. frenta a difícil, se não impossível, tarefa de exercitar a
Steimberg ao se referir ao discurso
das vanguardas históricas, cheias
Podemos agora incor- escrita para valorizar algo que, amiúde, resulta tanta no-
de lugares-comuns. O autor se porar outra característica: vidade que não existem ainda palavras para qualificá-lo.
refere ao caráter fatal, já circunscri-
to na retórica aristotélica, de apelo
a necessidade de uma A perplexidade e a escrita são os locais entre os
aos lugares-comuns na argumenta- posição de alerta perma- quais é gerida a crítica pós-histórica e seu objeto.
ção. Eles são o reservatório de
fórmulas já aceitas e instauradas na
nente diante dos mesmos Se a videodança estimula a perplexidade do espec-
memória pública, a que o expositor termos e frases que defi- tador, está fecundando o solo da crítica. Se a crítica
deve recorrer para assentar as pre-
missas da construção retórica, e na
nem a linguagem da crítica consegue conduzir para outra coisa — de maneira
mensagem das vanguardas apare- e, ao mesmo tempo em que não possa modificar os parâmetros que a defini-
cem como contradição interna que
não se pode salvar. (Steimberg, 1999).
que atuam como índices ram historicamente —, será possível sua constituição
14 Steimberg, 1999, p. 4. retóricos de gênero, como metadiscurso que acompanha a videodança.
dança em foco
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“A única realidade”, dizia Foucault, “não está Agora, vou referir-me à teoria que podemos definir
nas palavras nem nas coisas, mas nos objetos. como autorreflexiva, e que se apresenta como “chave
Os objetos são o resultado desse encontro entre as de leitura” da própria obra, mas também como guia
palavras e as coisas”.15 para a compreensão da linguagem da videodança.
Percorrendo os escritos latino-americanos dos últi-
mos anos, surgem dois grandes grupos orientados
por uma função definida (que pode ou não aparecer
explicitada nos mesmos discursos):

1 Os trabalhos, pertencentes quase exclusivamen-


Reflexões sobre
te a artistas audiovisuais que navegam nas
a palavra do artista
águas da videodança, e que se propõem como
15 Foucault apud Fabbri, 1999, p. 40.
tarefa principal indagar
16 As vanguardas históricas sobre as possibilidades
arriscam a possibilidade de comuni-
cação e construção de um público à
técnicas da câmera
medida que o discurso artístico perde (enquadramentos, movi-
a previsibilidade. Aqui se radica a
causa da irrupção na cena artística
mento, efeitos de edição
Koldobsky assinala que “os últimos decênios do dos manifestos e, a partir daí, a etc.) em referência a um
crítica encontrará novos desenvolvi-
século xx foram resultado das indefinições sobre a mentos e conviverá com um crescen-
tempo e um espaço
obra de arte, sua prática e sua relação com outras te e expandido discurso de acompa- vinculados a um objeto
nhamento (Fabbri, 1999, p. 3–4).
práticas sociais impulsionadas no período, isto 17 Podemos dizer, então, que o
— corpo ou um corpo
é, que a partir daqui não resulta estranha a herança artista que também teoriza se como matéria que pode
molda à caracterização de Danto:
de uma palavra que acompanha o autor, além da “Os artistas hoje estão no fim de
ser manipulada. Estes
forma assumida por ela”.16 uma história na qual aquelas estru- escritos organizam
turas narrativas (as que se con-
Este é talvez um ponto interessante para ques- cluem na modernidade) represen-
as técnicas da imagem,
tionar a videodança em seu lugar histórico e, tam um papel, e assim podem experimentadas em
ser distintas dos artistas que de
também, tangencialmente, o papel pós-histórico17 alguma maneira imaginei sentimen-
suas próprias produções,
do artista de videodança. Já que se trata de palavra talmente como os que primeiro assim como os efeitos
emergem como especialistas
acompanhante ou de desenvolvimento de uma de uma precoce divisão do trabalho
conseguidos em sua apli-
função nova, na atualidade a teoria invocada sobre que os habilitou como indivíduos cação, de maneira tal
dotados para assumir as responsa-
a tal prática estética se encontra quase exclusiva- bilidades estéticas da sociedade.”
que aparecem como uma
mente sob o domínio dos próprios artistas. (Fabbri, 1999, p. 68). espécie de manuais le-
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Ensaios contemporâneos
Susana Temperley escrita perplexa: por um
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dE videodança E videodança
gitimados na própria experiência e orientados esquiva, caracterizada pela colagem e pela fragmen-
para a busca de novas possibilidades de produ- tação interdisciplinar e transdisciplinar.
ção e expansão dos limites da videodança Pode-se então fazer a pergunta: é realmente
a partir do que já foi feito e visto. autorreflexiva a palavra do artista? Ou dito de outra
maneira: o artista está ocupando um lugar na teoria
2 Os escritos, cuja autoria corresponde majoritaria- que pode ser ilustrado pela metáfora da “serpente
mente a indivíduos formados em artes do movi- que morde o próprio rabo”?
mento, que formulam questões de índole episte- A resposta parece, em princípio, ser afirmativa;
mológica e filosófica sobre conceito de corpo, seu no entanto, adquire relevo, como signo ou sintoma
papel de sujeito ou objeto na relação sempre na produção teórica atual de videodança, a presença
variável e conflitante com a câmera ou a essência de um novo modelo de artista-escritor que, sem
da videodança como linguagem híbrida, entre negar o molde inicial de sua gestação (ter-se forma-
outras. Em muitos destes ensaios são incluídas do numa arte pura), situa-se para escrever neste
citações sobre a própria produção, e até a experi- mesmo lugar indefinido que lhe permite moldar suas
ência pessoal do artista, a título de exemplo das obras por intermédio de um código próprio.
teses envolvidas ou por intermédio da referência A crescente tendência aos trabalhos disciplina-
paratextual.18 Em relação ao último grupo, a res (em nosso caso, os artistas que deixam a
relação paratextual da própria obra gera o efeito câmera para ser performers de suas produções, ou
de inversão na relação entre teoria e obra, pois a vice-versa) repercute na reflexão teórica e habilita o
citação transforma o escrito em um complemento indivíduo a falar de sua obra “de outro lugar”, não
da obra da videodança, tornando-se assim útil apenas do caminho frente a sua experiência em
para decifrar as chaves que permitem compreen- imagem ou em dança, mas deslocar-se do centro da
der quais conceitos de corpo, de movimento e cena (assunto que permite até refletir sobre a obra
de videodança estão em jogo nela ou, pelo menos, de outros e sobre a obra de artistas de outras
no pensamento do artista durante a criação. regiões), sempre buscando algo além de si próprio e
do que o terreno oferece à sua capacidade de criar.
Considerando a sobrevivência destas duas linhas
principais de reflexão teórica, tomamos como referên- EquIlíbrio
cia a formação institucional canônica (escola de
cinema ou academia de dança) dos autores-artistas A escrita do artista de videodança deixa antever, às
que, no entanto, navegam vezes, temas sobre a formação canônica que adqui-
18 Genette, 1982. em águas de uma arte riu recursos de outras disciplinas artísticas, reflexão
dança em foco
Ensaios contemporâneos
Susana Temperley escrita perplexa: por um
possível encontro entre crítica
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dE videodança E videodança
teórica e até desempenhos que nem parecem ligados
à esfera da arte e da estética.
Este artista-escritor é mais um habitante livre
do mundo e das linguagens do que um erudito disci-
plinado. Há uma teoria, a que pertence este criador
de videodança — cuja localização não pode ser
definida de todo, trafegando entre o manifesto, a
crítica ou a simples expressão literária —, que
“diz muito mais” por situar a própria obra em uma
narrativa cuja existência está marcada de antemão
pela ausência de uma narrativa mestra.

Barthes, Roland. El Grado Steimberg, Oscar. Semiótica


Cero de la Escritura (seguido de de los medios massivos. Buenos
Nuevos Ensaios Críticos). Buenos Aires: Atuel, 1993.
Aires: Siglo XXI Editores, 2005. ————. “Vanguardia y Lugar
Danto, Arthur. Después del fin común”, SYC, nº 9/10. Buenos
del arte: el arte contemporáneo Aires, 1999.
y el linde de la historia. Introdução e Traversa, Oscar. Cine: el
capítulo III: “Narrativas maestras y significante negado. Buenos Aires:
principios críticos”, vol. 16. Buenos Hachette, 1984.
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Fabbri, Paolo. El Giro Semió-
tico. Barcelona: Gedisa, 1999.
Genette, Gérard. Palimpsestos.
La literatura en segundo grado.
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Koldobsky, Daniela. “Sobre la
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Semiótica, Buenos Aires, 2005.
Medina, Cuauthémoc e Minera,
Maria. Crítica de Arte Contempo-
ráneo. Conversación entre críticos,
2009. Disponível em <http://www.
letrarlibres.com>.

dança em foco Susana Temperley


Ensaios contemporâneos
dE videodança
Paulo Caldas Leonel Brum Eduardo Bonito Regina Levy
Diretor Artístico e Curador Diretor Artístico e Curador Diretor Artístico e Curador Diretora Executiva e de Produção
paulocaldas@dancaemfoco.com.br leonelbrum@dancaemfoco.com.br eduardobonito@dancaemfoco.com.br reginalevy@dancaemfoco.com.br

Paulo Caldas, Leonel Brum, Eduardo Bonito, Regina Levy é


idealizador e diretor fundador diretor do dança diretora
diretor artístico dos festivais em foco — Festi- executiva e de
do dança em dança em foco val Internacional produção do
foco — Festival — Festival de Vídeo & Dança, dança em foco
Internacional de Internacional de desde 2005, — Festival
Vídeo & Dança, Vídeo & Dança, com formação Internacional de
é coreógrafo Dança Criança em artes cê- Vídeo & Dança
formado em e Dança Brasil, nicas e relações desde a sua
Dança Contemporânea pela Escola é doutor em Poéticas Interdisci- públicas pela USP (Universida- fundação. Foi curadora da Mostra
Angel Vianna e bacharel em Filosofia plinares da Escola de Belas Artes de de São Paulo) e performance Funarte de Dança e Teatro/
pela Uerj (Universidade do Estado da UFRJ (Universidade Federal do pela MiddlesexUniversity, é produtor Mambembão 2012. Pós-graduada
do Rio de Janeiro). Atualmente, Rio de Janeiro), onde desenvolve profissional desde 1990. Desde em Marketing, pela ESPM (Escola
é professor dos cursos de Dança da pesquisa sobre videodança, e 2004 é curador do Festival Panora- Superior de Propaganda e Market-
UFC (Universidade Federal do professor dos cursos de Dança da ma de Dança e desde 2006 atua ing), graduada em Publicidade,
Ceará) e diretor da companhia de UFC (Universidade Federal do também como diretor artístico. pela UFF (Universidade Federal
dança contemporânea Staccato | Ceará). Mestre em Comunicação e Fundador e participante de várias Fluminense), e em Relações
Paulo Caldas. Foi professor dos Semiótica pela PUC–SP (Pontifícia redes nacionais e internacionais, Públicas, pela FACHA (Faculdades
cursos de graduação em dança da Universidade Católica), trabalhou é consultor para instituições gover- Integradas Hélio Alonso). Desde
UniverCidade e da Faculdade Angel como coordenador nacional de namentais e fundações culturais 2006 leciona “Gestão, Elaboração
Vianna, onde coordenou o curso Dança da Funarte (Fundação Nacio- na América Latina e Europa. e Organização de Projetos
de pós-graduação “Estéticas do nal de Artes), onde também atuou Culturais” em diversas instituições.
Movimento: Estudos em Dança, como representante internacional Desde 1997, como produtora
Videodança e Multimídia”. das áreas de Circo, Dança e Teatro. cultural independente, atua em
Foi professor da Pós-Graduação festivais de música, cinema e
em Dança da UniverCidade e dança e projetos de artes plásticas
da Graduação em Dança da UFRJ. e teatro, entre outros.
Possui livros e artigos publicados
sobre dança, história de dança e
videodança.

Equipe do dança em foco — Festival www.dancaemfoco.com.br


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CIP-BRASIL. © Paulo Caldas, Leonel Brum,
CATALOGAÇÃO-NA-FONTE Eduardo Bonito, Regina Levy, 2012
SINDICATO NACIONAL DOS
EDITORES DE LIVROS, RJ Coordenação editorial
Camilla Savoia
D175
Projeto gráfico e diagramação
Dança em foco: ensaios contempo- Cecilia Costa
râneos de videodança / [organiza-
ção de Paulo Caldas... et al.; Tradução
tradução do inglês por Ricardo Léo Schlafman
Quintana, tradução do espanho por (textos de Silvina Szperling,
Léo Schlafman]. - Rio de Janeiro: Alejandra Ceriani e Susana
Aeroplano, 2012. Temperley)
352p. : 19 cm Ricardo Quintana
(textos de Claudia Rosiny,
Alguns textos foram traduzidos Karen Pearlman, Douglas
do inglês e do espanhol Rosenberg).
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7820-083-1 Revisão
Bruno Fiuza
1. Dança - Inovações tecnológicas. Camilla Savoia
2. Dança. 3. Linguagem corporal. Paulo Caldas
4. Multimídia interativa. I. Título.
Produção gráfica
12-5401 CDD: 792.82 Sidnei Balbino
CDU: 792.94

30.07.12 01.08.12 Todos os direitos reservados


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Telefax: (21) 2239-7399
aeroplano@aeroplanoeditora.com.br
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Composto em Bau Medium. O papel
utilizado para a capa foi o Cartão
Supremo DuoDesign 300 g /m2.
Para o miolo foi utilizado Lux Cream
80 g/m2. Impresso pela Prol Gráfica
para a Aeroplano Editora em agosto
de 2012.

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