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Encenações de Poder: a política do espaço da performance

Autor: Ngügï wa Thiong'o


Fonte: TDR (1988-), Vol. 41, No. 3 (Autumn, 1997), p. 11-30
Publicado por: The MIT Press
URL Estável:
http://www.jstor.org/stable/1146606 Acesso:
28/08/2008 17:49

Encenações de Poder
A Política do Espaço de Performance
(Tradução coletiva turmas 021 e 022 de Artes Cênicas da Unicamp,
com a orientação do Prof. Eduardo Okamoto)
Encenações de Poder

A Política do Espaço de Performance

Nota do editor: em maio de 1996, Ngũgĩ wa Thiong'o realizou uma palestra em inglês no
programa de pós-graduação Clarendon da Universidade Oxford, Grã-Bretanha. O texto
que segue é a segunda palestra de quatro que serão publicadas pela imprensa da
Universidade de Oxford no outono de 1997 com o título: Penpoint, Gunpoint and Dreams:
Em Direção a uma Teoria Crítica das Artes e o Estado na África.

O conflito entre as artes e o Estado pode ser melhor compreendido na performance no


geral e na luta para que se consiga espaços para performance, em particular. A performance é
uma representação do ser - do vir a ser e o deixar de ser nos processos da natureza, da
sociedade humana e no pensamento. Se antes do aparecimento do Estado o domínio da
cultura já incorporava o desejável e o indesejável na esfera de valores, isso se expressava
através da performance. A comunidade aprendeu e passou seus códigos morais e julgamentos
estéticos através de narrativas, danças, teatro, rituais, música, jogos e esportes. Com o
surgimento do Estado, o artista e o Estado se tornaram rivais não só em articular as leis,
morais ou formais, que regulam a vida em sociedade, como também rivais em determinar as
maneiras e circunstâncias de como isso chegava.
Isso é melhor demonstrado no texto As Leis de Platão. O ateniense descreve como
eles, em posição de representantes do Estado, devem responder quando o poeta trágico chega
em sua cidade e pede permissão para performar:

Excelentíssimos estrangeiros, nós mesmos, na medida de nossa capacidade, somos os autores de,
uma tragédia a um tempo superlativamente bela e boa; toda nossa constituição tem como única
razão de ser imitar a mais bela e melhor vida, no que consiste verdadeiramente, a nosso ver, a
mais autêntica das tragédias. Assim somos compositores das mesmas coisas que vós, vossos rivais
como artistas e atores do drama mais belo, o qual somente a lei verdadeira está naturalmente apta
a criar. Não imaginais, pois, que permitiremos em qualquer tempo que instaleis vosso palco ao
nosso lado na agora e que daremos permissã o aos vossos atores importados com suas doces
melodias e vozes mais altas que as nossas para arengar mulheres e crianças e toda a multidão, e
dizerem não as mesmas coisas que dizemos sobre as mesmas instituições, mas, ao contrário,
coisas que são, na sua maioria, precisamente o oposto. (2019, VII p.40)1

A guerra entre a arte e o Estado é realmente uma luta entre o poder da performance
nas artes e a performance de poder pelo Estado - em resumo, decretos de poder. O conflito
nos decretos de poder é mais visível onde o Estado é externamente imposto, numa situação
onde há um colonizador e um colonizado (conquistador e conquistado), por exemplo, como
no colonialismo.
1
Edição citada de Platão é mais recente, mas que diz respeito ao mesmo trecho escolhido por Ngũgĩ na obra
original. Disponível em
https://www.democracia.org.br/wp-content/uploads/2019/02/Plat%C3%A3o-As-Leis.pdf
Jomo Kenyatta dramatiza um exemplo de confronto como este em Diante do Monte
Kenya ([1938] 1962). A história conta que houve um breve período do reinado na sociedade
Agĩkũyũ. Este foi substituído por um novo e mais igualitário sistema enraizado como
unidade básica na família. A substituição foi efetuada através de uma revolução, ituĩka, que
significa literalmente rompimento, completo rompimento com o que era antes. Os novos
conselhos revolucionários, todo o caminho até o mais alto corpo de coordenação de anciãos,
derivou sua autoridade de camadas mais baixas. O nascimento desse novo sistema passou a
ser celebrado através de uma cerimônia ituĩka a cada 25 anos mais ou menos. Isso também
marcou a passagem de poder de uma geração a outra. O festival foi se espalhando pelo
período de seis meses, e envolveu toda a terra habitada pelos Agĩkũyũ. A posição de colônia
britânica se estabeleceu por volta de 1895. Trinta anos depois a comunidade Agĩkũyũ estava
envolvida em uma enxurrada de atividades para celebrar a cerimônia ituĩka, mas toda essa
organização foi impedida pelo estado colonial. A performance de ituĩka foi entendida como
um desafio pelo poder colonial. A parada anual de militares britânicos que acontecia na
abertura de novas sessões de assembleia legislativa substituiu performances como ituĩka.
Os principais ingredientes da performance são o local, o conteúdo, a platéia, o tempo
e o objetivo - o fim, por assim dizer - que pode ser para instruir ou para o prazer, ou uma
combinação dos dois - em suma, que provocasse algum tipo de efeito de mudança no
público. O Estado tem suas áreas para performance; assim como os artistas. Enquanto o
Estado performa poder, o poder do artista está unicamente na performance. Ambos Estado e
artista podem ter diferentes concepções de tempo, local, conteúdo, objetivos, tanto de suas
próprias performances como do outro, mas da mesma forma, ambos têm o público como
alvo comum. Novamente, a luta pode tomar a forma de intervenção do Estado no conteúdo
de trabalhos de artistas - o que pode se chamar de censura - mas a principal área que está em
luta é o espaço da performance: sua definição, delimitação e regulação.

II

Eu posso pegar qualquer espaço vazio e chamar de palco nu, é o que diz Peter Brook
na frase inicial de seu livro O Espaço Vazio (1968). Um homem atravessa o espaço vazio
enquanto outra pessoa está o assistindo; isso é tudo o que se precisa para um ato de teatro.
Eu quero propor a pergunta: um espaço de performance pode ser um espaço vazio, como no
título do livro de Peter Brook? Existem muitas maneiras de olhar para o espaço da
performance. Uma é como um campo autocontido de relações internas: a interação de
atores, adereços, luz e sombras - mise-en-scène - e entre o mise-en-scène como um todo e o
público. As fronteiras externas desse espaço são definidas por uma parede, material ou
imaterial. O material pode ser pedra, madeira ou cercas naturais. O imaterial é o contorno
formado pelo público que, do outro lado, seria um espaço livre. O diretor utiliza todo o
espaço de jogo, ithaakĩro, para maximizar o efeito em ambos: atores e público. Ele vai
buscar por níveis variados, alturas, centros e direções de força na área de atuação. Mas esses
níveis e centros somente adquirem seu real poder quando em relação ao público. O espaço
como um todo se transforma em um campo magnético de tensões e conflitos. Ele é
eventualmente transformado em uma esfera de poder girando em torno de seu próprio eixo
com um planeta no espaço sideral. Essa é a real magia e poder da performance. Incorpora o
espaço arquitetônico das paredes materiais ou imateriais em si mesma e se torna uma esfera
mágica feita ainda por seu próprio movimento - mas é potencialmente explosiva, ou melhor,
está prestes a explodir. É por isso que o Estado, uma máquina repressiva, muitas vezes mira
seus olhos nervosos sobre este aspecto do espaço da performance. Pois mesmo que não
exploda, não poderia, por sua pura energia, através de seus feixes de energia laser, incendiar
outros campos? Pois a esfera mágica não está suspensa em total isolamento. Existem outros
centros sociais e campos de ação humana: fazendas, fábricas, residências, escolas. A vida
continua ali - nascimentos, casamentos, mortes e suas representações em festivais de boas-
vindas ou em canções de despedida.
O que nos leva a outra maneira, a segunda maneira de olhar o espaço da performance.
O espaço performático também é constituído pela totalidade de suas relações externas com
esses outros centros e campos. Onde todos eles estão localizados em relação uns aos outros?
Quem acessa estes centros e com que frequência? Em outras palavras, importa se o espaço
do artista está localizado em um bairro da classe trabalhadora, em um bairro residencial
burguês, nos guetos ou em partes glamurosas da cidade. A verdadeira política do espaço da
performance pode muito bem residir no campo de suas relações externas; em suas reais ou
potenciais relações conflitantes com todos os outros santuários de poder, e em particular,
com as forças que detêm as chaves desses outros santuários de poder. Esses santuários
podem ser a sinagoga, a igreja, a mesquita, o templo, o parlamento, os tribunais, as estações
de televisão e rádio, a mídia eletrônica e impressa, a sala de aula - campos de todos os tipos
e disfarces. Em outras palavras, muitas vezes não se trata tanto do que acontece ou poderia
acontecer no palco a qualquer momento, mas sim do controle de contínuo acesso e contato.
Estas questões de acesso e contato se tornam muito pertinentes em um Estado
colonial e pós-colonial, onde o estrato social dominante é frequentemente incerto de seu
controle hegemônico e particularmente onde a população está dividida não apenas nas linhas
tradicionais do urbano e do rural, mas também em fissuras raciais e étnicas. E dentro dessas
fissuras, correm as divisões de classe. O vão entre pobres e ricos é tão gritante, tão imediato e
tão visível que o Estado pode não querer que os espaços da performance existam porque eles
continuam impulsionando essa discussão. Em tal situação, a questão de o espaço estar ou não
dentro de um edifício pode adquirir valor simbólico e tornar-se o local de intensas lutas de
poder.

O Estado tem suas áreas de performar seu trabalho; o artista também tem. Enquanto o
Estado performa seu poder, o poder do artista está unicamente na performance.

E, em terceiro lugar, o espaço da performance, em sua totalidade de fatores internos e


externos, pode ser visto em relação ao tempo; em termos, isto é, do que foi antes - história - e
do que poderia ser a seguir - o futuro. Que memórias o espaço carrega, e que anseios ele pode
gerar?
Fica claro a partir disto que o espaço da performance nunca está vazio. Desnudo, sim,
aberto, sim, mas nunca vazio. É sempre o local das forças físicas, sociais e psíquicas da
sociedade. É a consciência instintiva disto que leva o Ateniense nas Leis de Platão a nunca
querer permitir que o artista performático sério debata abertamente com mulheres, crianças,
pessoas comuns sobre "nossas instituições". E então, as batalhas pelo espaço performático
. Baseando-me concretamente em minhas próprias experiências com teatro no Quênia
e em produções específicas, quero olhar para o espaço de atuação do artista. Em seguida,
olharei brevemente as próprias áreas de atuação do Estado e, finalmente, suas interações e
consequências no corpo e na mente do artista e da população como um todo. No processo
veremos como esses espaços estão ligados ao tempo, ou seja, à história, e que, portanto, são
locais de forças físicas, sociais e psíquicas em uma sociedade pós-colonial. Veremos que a
política do espaço de atuação é uma complexa interação de todo o campo das relações
internas e externas destas forças no contexto do tempo e da história

III

Em primeiro lugar, o espaço do artista. Que este espaço, por mais nu que pareça, não
está vazio se esclareceu para mim quando, em 1976, me envolvi na produção da peça O
Julgamento de Dedan Kimathi (The Trial of Dedan Kimathi), cuja estreia nacional e
mundial foi em Nairóbi, Quênia, em 20 de outubro de 1976. O roteiro da peça foi um
esforço conjunto de Micere Mügo e de mim mesmo. Éramos então colegas no
Departamento de Literatura da Universidade de Nairóbi. Embora ela e eu tenhamos
discutido durante muito tempo a possibilidade de colaborar em uma peça de teatro, é irônico
que o que realmente desencadeou a intensificação dos esforços de nossa parte tenha sido
uma resposta a um chamado do Estado. O local do Segundo Festival Mundial de Artes e
Cultura Negra e Africana, originalmente programado para o Zaire, havia sido mudado para
Lagos, Nigéria, em fevereiro de 1977. O Quênia seria representado em todos os eventos,
desde exposições de cultura material até artes cênicas, incluindo teatro.
Com a presença queniana em Lagos à vista, o Ministério de Serviços Sociais, sob o
qual eram administradas a cultura e as instituições culturais, havia criado um comitê
nacional para supervisionar todos os preparativos. Isto, por sua vez, criou subcomitês para
os diversos eventos. O Subcomitê de Teatro recebeu a tarefa de apresentar duas peças.
Inicialmente eu era o presidente deste subcomitê, mas mais tarde, quando a peça na qual eu
havia colaborado com Micere Mügo foi submetida à consideração, eu desisti da presidência,
e Seth Adagala assumiu o cargo. Seth Adagala então trabalhou com o Ministério, tendo
renunciado alguns anos antes como o primeiro e único diretor africano do Teatro Nacional
do Quênia. O Subcomitê de Teatro acabou selecionando duas peças teatrais: O Julgamento
de Dedan Kimathi por Ngūgi wa Thiong'o e Mīcere Mūgo; e Betrayal in the City por
Francis Imbuga. As duas peças seriam executadas sob o nome de Kenya FESTAC 77
Drama Group. Tirus Gathwe deveria dirigir Betrayal in the City, e Seth Adagala, O
Julgamento de Dedan Kimathi. Mas Sech Adagala, como presidente do subcomitê do
Ministério, deveria estar no comando geral.
Em junho de 1976, o Grupo de Teatro do FESTAC 77 surgiu com uma proposta
brilhante, mas realmente de senso comum: como as duas peças supostamente iriam
representar o Quênia em Lagos, era importante que elas fossem apresentadas primeiro para
o público do Quênia, não por uma questão de privilégio, mas de direito e necessidade.
Havia uma razão adicional: O Quênia iria sediar uma conferência geral da UNESCO;
haveria muitos delegados de todo o mundo, e a imagem do Quênia seria beneficiada caso os
delegados vissem um teatro africano eficaz. A questão agora era simplesmente determinar o
melhor momento e local "simbólicos".
O mês de outubro foi finalmente escolhido por duas razões: a reunião da UNESCO
deveria ser realizada naquele mês; mas outubro foi também o mês em que os quenianos
celebraram os heróis das lutas anticoloniais. Também fomos unânimes sobre a questão do
local: o Teatro Nacional do Quênia. Afinal de contas, foi chamada Nacional, e estava sob o
Ministério de Serviços Sociais; e certamente, além de qualquer outra coisa, seria o ponto
focal de interesse dos delegados da UNESCO. Guardiões da educação e cultura
internacional, certamente estariam interessados no que o Teatro Nacional do Quênia
ofereceria durante sua estadia no país. Pensando que todos concordariam com isso, a
liderança do Grupo de Teatro FESTAC 77 apresentou as propostas para a administração do
Teatro Nacional do Quênia. Nós estávamos certos de que não haveria nenhum problema: a
lógica e o bom senso fundamentaram a escolha da data e do lugar.
Porém, um choque de realidade nos pegou de surpresa. A administração, que era
composta quase que completamente por europeus ligados aos maiores grupos amadores e
semiprofissionais também europeus, nos disse que não havia espaço no Teatro. Mas isso foi
em 1976, após 13 anos de independência sob a presidência de Jomo Kenyatta! Então, nós
chamamos a atenção deles para o simbolismo do evento: A dignidade do Quênia perante o
mundo; a necessidade de apresentar a peça para os quenianos antes da apresentação em
Lagos; e é claro, além de tudo isso, a necessidade de reforçar a memória da independência,
que foi conquistada por meio de suor, sangue e da morte de muitos! Mas mesmo assim: sem
espaço no Teatro. A administração já tinha um compromisso com a apresentação de “Um
Escravo das Arábias em Roma” do Jeune Ballet de France. Num momento tão crucial e num
espaço considerado nacional, o Quênia seria visto pelos olhos de um balé francês
representando um fórum Romano.
É a partir dessa dificuldade em encontrar datas e palcos disponíveis que surgem
questões básicas e de princípio. O Teatro Nacional e o Centro Cultural do Quênia não
deveriam servir primariamente aos interesses nacionais? Ao planejar as atividades culturais
no ano, a administração não levou em conta a reputação nacional e internacional do Quênia?
Que espetáculos devem ser exibidos nos feriados nacionais? E que espetáculos devem ser
exibidos para o mundo durante a iminente reunião da UNESCO? Muitas perguntas e apenas
uma resposta: não havia espaço para nós no Teatro!
A administração ainda argumentou dizendo que essas datas estavam reservadas há
meses e que, de qualquer forma, peças africanas nunca chamaram a atenção dos amantes do
teatro. Nos foram apresentadas até mesmo estatísticas como prova. Em momento algum eles
pararam para se perguntar o porquê - assumindo que suas afirmações fossem verdadeiras - da
baixa adesão à peças africanas no Teatro Nacional. Não eram óbvias as razões, considerando
o que eles propuseram a oferecer como cultura queniana em outubro, diante de todo o
mundo? Não seria porque, ao longo dos anos, o Teatro Nacional criou para si mesmo a
imagem de um posto de serviço para espetáculos ocidentais como A Esperança, O
Namoradinho, O Rei e Eu e Jesus Cristo Superstar? Ou, mais honestamente, um posto de
serviço para o tipo de teatro descrito como mortal no livro O Espaço Vazio de Peter Brook?
Na realidade, por trás de todo o conflito e de toda a argumentação, existem questões
mais profundas relativas à performance na História. A trajetória do espaço definido como “o
teatro nacional” está interligada com O Julgamento de Dedan Kimathi e com o passado do
país inteiro. Três narrativas se conectam com o desdobramento do drama das datas e dos
espaços!
O prédio do Teatro Nacional foi construído pelo estado colonial. De acordo com
Richard Frost, antigo chefe do Serviço de Informação do Império e primeiro representante do
Conselho Britânico na África Oriental, o Teatro teve instruções diretas da metrópole para
atender as necessidades urgentes de incentivo à boas relações raciais na colônia por meio de
práticas culturais. O complexo do Teatro Nacional e do Centro Cultural deveria ser um lugar
em que “pessoas de cultura e posição” pudessem se encontrar. No livro Race Against Time,
Frost se aprofunda mais no tema:

Naquela época, nenhum africano podia morar próximo ao terreno selecionado, porém, ele foi
escolhido justamente porque era esperado que até o prazo previsto o apartheid residencial já teria
sido erradicado e que as regiões até então abertas apenas para europeus se tornariam distritos onde
pessoas de todas as raças poderiam viver. Como não se pretendia fazer um teatro para a “classe
trabalhadora”, ele foi construído no centro da abastada Nairobi. (1975:73)

O prédio do Teatro Nacional também seria a sede do Festival de Teatro das Escolas
do Quênia. O British Council, que foi responsável por esse plano de 1951, esperava “ganhar a
simpatia dos europeus e contribuir para que eles pudessem manter a herança cultural
britânica num padrão alto” (Frost 1975:196). O teatro era o instrumento perfeito:

O teatro era uma atividade cultural desfrutada por ambos, atores e público, além de ser uma
atividade na qual africanos e asiáticos tinham interesse. Era esperado que por meio do teatro a
simpatia dos europeus fosse ganha e que, mais tarde, pessoas de todas as raças pudessem se unir
pela participação em um passatempo em comum que todos gostassem. (1975:196)

Então, desde o início, o lugar foi concebido como um espaço vazio disponível para
que um teatro predominantemente britânico fosse coautor da construção de um novo capítulo
das boas relações interraciais no país.

A luta pode assumir a forma da intervenção estatal no conteúdo da obra de um artista - o


que pode ser chamado de censura - mas a arena principal da luta é o espaço para
performances:
sua definição, delimitação e regulamentação.

No entanto, o terreno não era um espaço esvaziado de História onde, agora, uma
narrativa de novas relações raciais poderia ser escrita pelo ponto de vista moderado da
metrópole aliada com os colonos “com boa vontade”. Ao lado do terreno do Teatro Nacional
estava, e ainda está, o Norfolk Hotel, construído na virada do século pelo Lorde Delamere,
um dos primeiros colonos britânicos. Era conhecido popularmente entre os colonos como A
Casa dos Lordes, já que lá era o local onde a nobreza colonial branca - ou os que fingiam
fazer parte dela - se encontrava para beber, conversar e discutir política. O Norfolk Hotel tem
vista para o local onde em 1922, trabalhadores africanos foram massacrados pela polícia
britânica. Os trabalhadores marchavam até a Estação Central de Polícia para exigir a soltura
de seu líder, Harry Thuku, que havia sido detido e mais tarde preso por oito anos, por conta
de seu envolvimento com o então nascente movimento dos trabalhadores. A marcha foi
interrompida por tiros da polícia. Os Lordes nos terraços do Norfolk se juntaram à polícia no
massacre. A quantidade de mortos é discutível. Os britânicos admitem 22; mas foram ao
menos 150 mortos. Os corpos mortos e feridos estavam espalhados no chão que anos depois
seria base para a construção do complexo do Teatro Nacional e da Universidade de Nairobi.
Harry Thuku se tornou um herói nacional, tema para diversas canções e danças. Porém, se
opondo à Harry Thuku e suas políticas trabalhistas, estavam os chefes coloniais que
fundaram o primeiro movimento legalista do país. O Estado colonial e os líderes legalistas
estavam do mesmo lado, culpando as vítimas pelo massacre.
A tragédia também atraiu protestos internacionais. Marcus Garvey, em nome da
Associação Universal para o Progresso Negro, enviou um telegrama para o então Primeiro
Ministro Britânico Lloyd George em que dizia:

Você derrubou uma população indefesa que estava em sua terra nativa exercendo seus direitos
inatos. Esse tipo de política só vai agravar as várias injustiças históricas apontadas para uma raça,
que algum dia estará em posição de verdadeiramente se defender, não com meros gravetos,
bastões e pedras, mas com implementações modernas da ciência. (in Ngugi 1987:40)

A profecia de Garvey se concretizou em 1952, quando um jovem de 22 anos, ex


professor de escola primária e contador escapou da rígida rede de segurança e fugiu para as
montanhas para se tornar literalmente o mais formidável líder das forças armadas guerrilhas
Mau Mau. Seu nome era Dedan Kimathi.
Diante a liderança de Dedan Kimathi, as guerrilhas Mau Mau fizeram um dos atos
mais heróicos contra o imperialismo no século XX. É frequentemente esquecido que
enquanto movimentos de liberação em lugares como Guinea, Moçambique, Angola e Algeria
tinham territórios vizinhos livres, que serviam como bases, as guerrilhas Mau Mau eram
completamente rodeadas pela administração inimiga e não havia como recuar para nenhum
Estado amigo. Eles tinham que depender quase que inteiramente nos exércitos que
conseguissem roubar das forças inimigas e no que que conseguiam fazer nas fábricas
subterrâneas de armas nas cidades e florestas do país. Antes de ser capturado em 1956 e
executado em 1957, até o governo britânico e o Estado colonial tinham que admitir que,
apesar de milhares de soldados trazidos de bases britânicas pelo mundo tudo, e apesar de
bombardeios em uma escala remanescente a segunda guerra mundial, havia na prática duas
autoridades governando Quênia: os coloniais, liderados pelo Governador, e Mau Mau,
liderados por Dedan Kimathi.
O período viu a mais incrível explosão da cultura queniana. Haviam diversos jornais
em línguas quenianas. Músicas e danças celebrando o passado africano, condenando práticas
coloniais e o chamado pela liberdade estava em erupção. Na área da educação, as pessoas
desenvolveram suas próprias escolas seguindo o Movimento Kikuyu de Escolas da
independência e Kikuyu karing’a Associação de escolas. Esse movimento educacional
atingiu seu clímax pelas próprias pessoas, com o primeiro instituto de educação superior do
país, Githuingur African Teachers College (faculdade de-para professores africanos),
liderado por Mbiyu wa Koinange, um ex aluno de Columbia University. A importância
simbólica disso pode ser vista no fato que não foi até 1960, três anos antes da independência,
que o segundo instituto de educação superior, A Universidade de Nairobi, foi construído,
ironicamente, em um terreno ao lado do Hotel Norfolk e do National Theatre. Então, por
volta de 1952, havia performances de paz em todos os lugares.
O Estado colonial retaliou. Em outubro de 1952, foi declarado estado de emergência.
Escolas administradas por africanos foram fechadas pois eram vistas como espaços para
performance de forças nacionalistas. Githuingur African Teachers College foi fechada como
uma instituição de ensino e transformada em uma prisão onde guerrilheiros Mau Mau
capturados e simpatizantes eram enforcados. Todas as performances culturais foram paradas.
E no dia 20 de outubro de 1952, Kenyatta e centenas de líderes da KAU (União Africana do
Quênia) e da Mau Mau foram presos. Kenyatta e sete outros foram depois julgados no que
veio a ser um dos mais celebrados juris da história, agora imortalizado pelo livro de
Montague Slater, “The Trial of Jomo Kenyatta”. Os réus foram julgados por organizar a Mau
Mau e presos por oito anos de trabalho duro. O Estado colonial não se preocupou em julgar
centenas de outros; eles foram enviados para campos de concentração pelo país.
A peça O Julgamento de Dedan Kimathi tenta capturar o heroísmo e determinação
das pessoas no capítulo mais gloriosode suas histórias, um momento que não só enfraqueceu
o Império britânico e sua política colonial inteira mas também, para os quenianos, um
momento de auge diante a todos os problemas sofridos por todos os outros heróis de
resistência da nossa história, como Waiyaki, Me Katilili e Koitalel. Kimathi se viu como
parte da tradição desses sofrimentos mas também em relação a rebelião Tyler na Grã
Bretanha, um evento o qual ele se referiu em uma carta endereçada aos britânicos de quando
fugiu para as montanhas. A peça tenta capturar os medos e esperanças, as promessas e
traições, com a dica que a história pode se repetir.
Agora é evidente que ambos, espaço e tempo - particularmente dias e o mês inteiro de
outubro - carregam memórias diferentes. Para a administração, 1952 foi o ano que o National
Theater (teatro nacional) foi construído e aberto. E entre 1952—-o ano que viu a declaração
do estado de emergência, o banimento de performances africanas independentes, o pico do
conflito armado com Mau Mau—- e 1963, o ano formal da independência, o espaço do
National Theatre havia permanecido um lugar para basicamente teatro britânico, um lugar
onde africanos só podiam entrar se eram pessoas de “cultura e posição social”.
Eram esses homens e mulheres de cultura e posição que, após a independência,
conseguiram de fato integrar esses espaços especiais que Frost cita: Muthaiga, Westlangs e
Hill. A independência removeu o aparthaeid racial mas manteve as barreiras econômicas.
Alguns desses quenianos africano, definidos por britânicos como homens de “cultura e
posição” tinham também lugares muito importantes no governo pós colonial. Um desses era
o filho de um dos chefes coloniais, que eram parte do mais leal movimento de oposição aos
partidos nacionalistas de Harry Thuku. Ele se tornou procurador geral e, como patrono de um
dos grupos perfomistas europeus e, com sua ligação social com a maioria dos membros da
administração do National Theater de Quênia e do centro Cultural, ele tinha um papel crucial
garantindo o controle ininterrupto do espaço, por homens e mulheres que podiam manter
padrões colocados pelo estado colonial. E para ele, mesmo que ele fosse um africano
negro, as únicas pessoas que poderiam garantir tal continuidade eram os britânicos brancos.
Em outras palavras, práticas coloniais eram a régua utilizada para medir a cultura
performativa no lugar. Não surpreendentemente, a administração do centro cultural podia
genuinamente sentir que estava fazendo seu trabalho para o seu país, Quênia, por oferecer
uma exibição de ballet francês durante o histórico mês de Outubro e durante a conferência da
UNESCO, sediada no Quênia. Para eles, os símbolos de um ballet francês e um fórum
romano representavam a autêntica tradição da anglicana Quênia.
A peça O Julgamento de Dedan Kimathi defendia uma tradição diferente. Celebrava o
heroísmo Mau Mau e sua centralidade em defender a independência do Quênia. Mas mais
importante ainda, era afiliada com a cultura e a estética da resistência desenvolvida pelos
ativistas Mau Mau enquanto lutavam nas montanhas; enquanto resistiam em prisões e
campos de concentração; enquanto suplicavam por uma nova Quênia e uma nova África. Um
bom número de músicas e danças patriotas Mau Mau, agora disponíveis em uma coleção
editada por Maina wa Kinyatti com o título Trovão das montanhas (Thunder from The
Mountains) foram incorporadas em textos e performances da peça.
Então o conflito pelo espaço da performance era também um problema de quais
símbolos culturais e atividades iriam representar a nova Quênia. A nova Quênia havia
emergido de um problema anticolonial: Poderiam a cultura e herança colonial efetivamente
formar a base de sua nação e identidade? Mesmo pequenos atos podiam carregar visões
conflitantes da nova Quênia. Em um tempo em que o FESTAC 77 Drama Group estava
tentando carregar uma performance que refletia a história nacional e inventar emblemas que
simboliza isso, a administração do National Theatre de Quênia estava vendendo cartões de
natal do prédio do National Theatre como era em 1952. Estava nessa época, claro, voando o
Union Jack, com a bandeira britânica e isso era bem proeminente nos cartões.

IV

O Ministério, provavelmente envergonhado por notícias da imprensa, de que uma


peça queniana havia sido restringida no Dia de Kenyatta, interveio; e assim foram dados ao
Grupo de Teatro FESTAC 77 oito dias, entre 20 e 30 de outubro, para usar o espaço. Então,
as duas peças de Encenações de Poder (Enactments of Power I9), O Julgamento de Dedan
Kimathi e Traição na Cidade (Betrayal in the City), foram algemadas em quatro quatro
noites cada, entre Bossman's Jeune Ballet de France (de 10 a 18 de outubro) e The City
Players’ A Funny Thing Happened On The Way to the Forum (de 1 a 21 de novembro). Isso,
de fato, significava que os dois shows europeus tinham um total de 31 dias para serem
apresentados, enquanto o nosso, apenas oito.

No entanto, apesar de ter sido espremido em apenas oito noites, o sucesso das duas
produções foi surpreendente, especialmente em termos de recepção pelo público africano.
Todas as noites dos oito dias foram esgotadas. A noite de abertura de The Trial foi
particularmente memorável porque a esposa de Kimathi e suas crianças eram convidados de
destaque. A família ficou com o elenco durante quase toda a noite, contando histórias da
guerra e cantando muitas das canções de novo e de novo. Como disse um jornal: "Nunca
antes foi contada a história das dificuldades do Kenya e sua liberdade com tanta força e
convicção" (Target, 1977). Nem, se posso acrescentar, teve recebido com tanto entusiasmo
por uma audiência queniana qualquer outra produção anterior no Teatro Nacional. Durante
aquelas oito noites, o espaço fora verdadeiramente nacionalizado pelos pés de tantos, de
tantas esferas da vida, que vieram a pé, em carros particulares, e em veículos alugados, para
cantar e dançar com os atores.

O espaço de atuação nunca está vazio. Descoberto, sim, aberto, sim, mas nunca vazio. É
sempre o local de experiências físicas, sociais e forças físicas na sociedade.

Mas o destaque dramático ainda pertencia à noite de abertura. Enquanto os atores


executavam sua última música e dançavam pelo corredor do meio do auditório, a plateia se
juntou a eles. Todos eles foram para fora do edifício do teatro, ainda dançando. O que tinha
sido confinado ao palco tinha se derramado ao ar livre, e não havia mais distinção entre
atores e público. Tornou-se uma procissão, e eles abriram caminho em direção ao histórico
Norfolk Hotel, em direção aos terraços onde em 1922 os colonos haviam sentado e ajudado a
polícia em seu massacre. Mesmo em 1976 ainda era amplamente frequentado por brancos,
principalmente turistas. Quando a procissão estava prestes a atravessar a rua, o grupo foi
recebido por um contingente de policiais que agora, educadamente, mas com firmeza,
diziam-lhes para voltar. Não houve então nenhum conflito físico antagônico. Os atores
dançaram de volta ao Teatro Nacional, formaram uma roda do lado de fora, e continuaram
com suas danças e canções que falavam sobre todos os heróis da resistência queniana. A cena
do lado de fora do prédio do teatro se repetiu em cada uma das quatro noites alocadas para a
apresentação de The Trial. Mas a tentativa de dançar nas instalações do Norfolk Hotel não se
repetiu. No entanto, era como se o elenco e o público estivessem tentando criar um Espaço
Aberto em torno do edifício do Teatro Nacional do Quênia, um espaço que permitiria com
que eles se comunicassem melhor com os espíritos daqueles que haviam morrido em 1922.
Um nome que continuou surgindo no canto foi Mary Mfithoni Nyanjirfi, a mulher que
liderou a procissão dos trabalhadores e foi a primeira a cair sob a chuva de balas coloniais.

Após os oito dias destinados às duas peças, todos desocupamos o espaço, pacificamente. Os
europeus vieram com suas produções. Um dia Seth Adagala e eu fomos convocados para a
Sede de Nairobi do Departamento de Investigação Criminal para algumas perguntas sobre as
apresentações no Teatro. Na verdade uma pergunta! Por que estávamos interferindo nas
apresentações europeias no Teatro Nacional?

Para alguns de nós, ficou claro a partir dessa experiência que se o teatro queniano alguma vez
prosperasse, teria que encontrar e definir seu próprio espaço, tanto em termos de localização
física quanto de linguagem. O Julgamento de Dedan KTmathi (The Trial of Dedan KTmathi)
havia sido feito em inglês por motivos controversos. O verdadeiro teatro nacional certamente
estava onde residia a maioria das pessoas: nas aldeias do campo e nas áreas urbanas pobres.
Teria que ser o local de uma combinação de o que Brook descreve como Teatro Sagrado,
Teatro Bruto e Teatro Imediato. Teria que ser um teatro que raspasse o fundo do espaço
histórico da experiência das pessoas com o objetivo de falar à sua presença imediata
enquanto enfrentassem seu amanhã. Para conseguir isso, era importante, nós sentimos, ter um
espaço de performance diretamente sob o controle das pessoas. Essas são algumas das
preocupações, entre outras, que levaram à fundação da Kamiriithi Community Education and
Cultural Centre.

Eu contei pedaços da história de Kamnirithfi em três de meus livros: Detido: o diário de


prisão de um escritor (Detained: A Writer’s Prison Diary); Descolonizando a mente
(Decolonizing the Mind); e Barril de uma caneta (Barrel of a Pen) , então eu não entrarei em
muitos detalhes aqui. O projeto, iniciado em 1976 como programa de alfabetização e cultura
com o teatro no centro, tornou-se um assunto verdadeiramente comunitário envolvendo
camponeses, operários e trabalhadores de latifúndios que eram então residentes na aldeia do
mesmo nome. Em 1977, junto com a comunidade camponesa e operária desta aldeia chamada
Kamiriithfi - a cerca de 30 quilômetros da capital, Nairóbi - desenvolvemos uma peça,
Ngaahika Ndeenda (Vou casar quando eu quiser, ou I Will Marry When I Want, em inglês),
na qual as pessoas estavam literalmente cantando sobre sua própria história. Ali estavam
camponeses e operários que só no ano anterior eram analfabetos, acostumados a cantar
canções de louvor sobre a liderança e o que ela havia feito pelo povo, e que agora não só
sabiam ler e escrever, mas na verdade cantavam com orgulho sobre suas próprias habilidades,
sobre o que eles fizeram no passado, e agora sobre suas esperanças do que poderiam fazer
amanhã! Além do mais, eles haviam contruído um teatro ao ar livre no centro da vila através
de seus próprios esforços - e sem ajuda alguma do estado! Recuperaram seu espaço histórico.

Eles tentaram fazer o mesmo quando em 1982 tentaram outra peça, Mãe cante para mim
(Mother Sing For Me). Novamente foi orgulho em sua própria história e fé em suas próprias
habilidades e, por isso, sua esperança para o futuro que era importante. A Professora Ingrid
Bjorkman, que pesquisou sobre Kamlriithi em 1982, escreveu um livro que realmente atesta
esse aspecto. Ela veio para o Quênia em 1982 no rescaldo da repressão do governo, e
entrevistou os atores e membros da plateia que vieram ver a peça nos ensaios públicos antes
da proibição. Ela encerra seu texto principal com as palavras de um daqueles que haviam
assistido ao show:

Algo notável é que em nosso tipo de sistema acredita-se que temos pessoas para pensar por nós.
Como trabalhadores e camponeses, as pessoas que realmente trabalham, não deveríamos associar
as coisas isoladamente e você sempre sabe que está sendo levado a qualquer coisa. Agora, aqui
Ngug mostrou em Mãe cante para mim que os camponeses podem pensar e podem comunicar
esses pensamentos - a compreensão de seu ambiente - para outras pessoas. Eles podem entender o
que os torna aquilo que eles são. É melhor que alguém, que sempre soube que é um pensador,
pensar que um camponês poderia atuar e também poderia formar canções que poderiam se
expressar. [...] Então essa sensação de que os camponeses podem entender uma situação e
realmente comunicar o que eles estão pensando é o que se tornou a maior ameaça. Porque para ser
conduzido é preciso ser "ovelha". E quando você mostra que você não é "ovelha" o líder fica
perturbado. (1989:97)

A tentativa de situar o teatro entre as pessoas exigiria novas perguntas e respostas


sobre o conteúdo, a forma e a linguagem do teatro africano. Mas, em novembro de 1976, eu
não percebi que a tentativa de localizar a cultura de onde ela pertencia levantaria ainda mais
problemas e questões, não apenas sobre o espaço performático do artista, mas também o do
Estado.
VI

“Todo o mundo é um palco”, disse Shakespeare em Do jeito que você gosta, com
muitos jogadores tendo suas saídas e entradas. O estado-nação vê todo o território como sua
área de atuação; organiza o espaço como um enorme recinto, com lugares definidos de
entrada e saída. Estas saídas e entradas são protegidas por empresas, com trabalhadores que
eles chamam de oficiais de imigração. As fronteiras são vigiadas por guardas armados que
afastam os invasores. Mas eles também estão lá para confinar a população de um
determinado território. O Estado-nação realiza sua própria individualidade, incansavelmente,
por meio de seu exercício cotidiano de poder sobre as saídas e entradas, por meio de
passaportes, vistos e bandeiras.
Dentro desse recinto territorial, cria-se outros recintos, sendo a mais proeminente a
prisão, com suas entradas e saídas guardadas por forças armadas. Como que a prisão, um
palco muito mais estreito, veio a ser um local tão importante para a execução da punição do
Estado? O Estado prefere agir com seu poder, sendo visto por toda a audiência de seu
território. Na era da televisão isso é possível, embora haja restrições. Historicamente, as
punições nem sempre eram ordenadas em um recinto escondido. Em Vigiar e Punir, Foucault
descreveu, em detalhes minuciosos, cenas de punição na Europa do século XVIII em termos
de espetáculo, o que ele chama de representação teatral da dor pelo Estado. "Houve até
alguns casos de reprodução quase teatral do crime na execução do culpado - com os mesmos
instrumentos, os mesmos gestos" (1979:45). Estes costumavam acontecer ao ar livre. "Nas
cerimônias", escreve Foucault, "o personagem principal era o povo, cuja presença real e
imediata era necessária para a performance" (58).

Uma execução que se sabia estar ocorrendo, mas que acontecia em segredo, dificilmente teria
algum significado. O objetivo era dar o exemplo, não apenas conscientizando as pessoas de que a
menor ofensa é suscetível de ser punida, mas despertando sentimentos de terror pelo espetáculo
do poder, deixando sua ira cair sobre o culpado. (1979:58-59)

Em seu artigo do TDR "Teatro para um Deus Irado", Mark Feamow descreveu um fenômeno
semelhante na América do século XVIII. Ele discute os enforcamentos e queimadas públicas
na Nova York colonial em 1741 em termos de performance, o que ele descreve como "os fins
mais revoltantes para os quais as técnicas teatrais podem ser aplicadas: execução pública
como entretenimento popular, a exibição de cadáveres apodrecendo e explodindo como
espetáculo triunfante" (1996:16). Mas esse espetáculo nem sempre produzia os fins
desejados, principalmente no público. Foucault escreve que o condenado, pela forma que
reagia à dor, às vezes poderia ganhar a simpatia e até a admiração de quem assiste, e que
sempre existiu o perigo da multidão intervir. O povo, atraído por um espetáculo destinado a
aterrorizá-los, poderia expressar sua rejeição ao poder punitivo e às vezes se revoltar.

Impedir uma execução considerada injusta, arrebatar um condenado das mãos do carrasco, obter o
seu perdão por força, possivelmente perseguindo e agredindo os carrascos, de qualquer maneira
abusando dos juízes e causando um alvoroço contra a sentença - tudo isso fazia parte de práticas
populares que investiam, atravessavam e muitas vezes derrubavam o ritual da execução pública.
(Foucault 1979:59-60) E mesmo depois de sua morte, o chamado criminoso poderia se tornar um
santo e voltar para assombrar o estado. O condenado se viu transformado em um herói pelo peso
do drama e da publicidade em torno de seu caso: "Contra a lei, contra os ricos, os poderosos, os
magistrados, a polícia ou a guarda, contra os impostos e seus cobradores, ele parecia ter feito uma
luta com a qual qualquer pessoa facilmente se identificaria” (Foucault 1979:67).

Havia precedentes pré-século XVIII: o caso mais famoso da história bíblica, na antiguidade,
é a de Jesus Cristo, cuja execução pública mais tarde assombraria o Estado e o império
romano. Então, com o tempo, essa representação teatral ao ar livre da dor foi retirada do
espaço aberto para um recinto. Mas, ironicamente comenta Foucault:

Qualquer que seja o papel desempenhado pelos sentimentos de humanidade pelos condenados em
abandono da liturgia das execuções públicas, houve, em todo caso, por parte do poder estatal, um
temor político dos efeitos desses rituais ambíguos. (1979:65)

Fearnow descreve o mesmo medo - a ameaça à ordem pública nas feiras que desenvolveu-se
espontaneamente em torno de tais execuções - como estando por trás da proibição do
enforcamento na Inglaterra em 1845. A veracidade dessas observações é atestada em casos
históricos reais, como descrito por Foucault, mas também na literatura. O dickensiano
condenado em Grandes Esperanças sempre pôde ganhar simpatia, mesmo que fosse de um
garotinho - os Pips para os Magwitches do mundo. No Quênia, o estado colonial realizou
execuções públicas e exibiu corpos dos condenados “Mau Mau” , mas isso sempre despertou
mais raiva contra o estado, como dramatizei em meu romance A Grain of Wheat (1967). E
quando em 1984 o estado pós-colonial ordenou procissões nas quais minha efígie foi
queimada e as cinzas foram lançadas nos rios, lagos e no oceano, o espetáculo só despertou
mais simpatia por mim e pela causa que defendia: a libertação de todos os presos políticos no
Quênia. Embora a prática da punição pública ainda continua em alguns países, e certamente
de outras formas mais indiretas por todo o mundo, remover o espetáculo da punição do maior
espaço territorial e colocar em um recinto é um desenvolvimento lógico. Nenhum estado quer
seus designados "criminosos" transformados em heróis e santos, com a possibilidade de seus
túmulos se tornarem uma espécie de santuário revolucionário.

O Estado-nação performa sua própria individualidade incansavelmente, por meio de seu


exercício diário de poder sobre as saídas e entradas, por meio de passaportes, vistos e
bandeiras.
Ainda que as punições tenham sido movidas do espaço público para o privado, o
elemento performático permaneceu, principalmente para prisioneiros políticos e intelectuais –
artistas, em sua maioria. A prisão é como um palco em que tudo, incluindo movimento, é
dirigido e coreografado pelo Estado. O mise-en-scène, o jogo de luz e sombra, o timing e a
dinâmica das ações – mesmo comer, dormir e defecar – são dirigidas pelas mãos armadas dos
ajudantes de palco chamadas de guardas prisionais. É literalmente o proscênio com a quarta
parede adicionada e seguramente trancada, para que nenhum espectador tenha o privilégio de
espiar e ver o mise-en-scène. De qualquer forma, tanto o estado quanto o artista condenado
estão cientes de que há uma platéia interessada do lado de fora do aprisionamento. O Estado
tenta traduzir, para a platéia do lado de fora, o que acontece entre as paredes fechadas: o
prisioneiro confessou; o prisioneiro está saudável; ou qualquer informação que queira
entregar ao mundo sobre o artista-prisioneiro.
O prisioneiro tenta driblar a propaganda governamental por todos os meios que
estejam a sua disposição. Escapar é impossível, uma missão suicida até. Então ele recorre à
caneta e papel quando consegue encontrá-los. Por isso a dificuldade para produções do meio
literário. Narrativas de prisão feitas por artistas prisioneiros são essencialmente a
documentação da batalha de textos e da contestação contínua do estado de performance do
estado. Essa contestação, ainda que direcionada aos grupos de espectadores interessados fora
dos portões – Anistia Internacional, PEN Internacional, Release Writers Committees, e outros
grupos de direitos humanos – é no final das contas direcionado ao público real: as pessoas
esperando no espaço territorial. O estado tenta dirigir o drama da auto-condenação do artista-
prisioneiro – uma confissão de crimes de pensamento, sua própria culpa, para assim dizer –
que possui paralelos com os dos discursos pré-enforcamento daqueles espetáculos teatrais da
Europa medieval e feudal:

O rito da execução previa que o próprio condenado proclamasse sua culpa reconhecendo-a
publicamente de viva voz, pelo cartaz que levava e também pelas declarações que sem dúvida era
obrigado a fazer. No momento da execução parece que lhe deixavam além disso tomar a palavra,
não para clamar sua inocência, mas para atestar seu crime e a justiça de sua condenação.
(Foucault, Vigiar e Punir, 1979)

O artista-prisioneiro, com toda a fibra de seu ser, nega expor “a placa de auto-
condenação,” e mesmo que seja torturado para mostrá-la, tentará despachar para o mundo,
pelas encenações mais empáticas, uma outra placa negando o conteúdo da primeira. Tal
contestação do espaço de performance prisional do estado é também um meio de resistência,
um meio de sobreviver nesta câmara de tortura do espírito. É, em outras palavras, uma das
maneiras de negar ao Estado um epílogo triunfante à sua performance.

VII
Não há performance sem objetivo. O encarceramento é a prisão na qual o estado
organiza o uso do espaço e tempo de maneira a atingir o que Foucault denomina mente sã em
corpo são. A dificuldade de subjugar a mente do artista-prisioneiro é primordial. É por isso
que mais uma vez livros e materiais literários se tornam um problema tão vitalmente.
Narrativas de prisão são cheias de relatos sobre os livros que ninguém está autorizado a ler e
os que são permitidos ao artista-prisioneiro. A lista de autorizados e banidos, um tipo de
índice análogo à inquisição prisional, pode ser uma janela para a mente do Estado. Em seu
livro, Kenya: A Prison Notebook (1986), o historiador Maina Wa Kĩnyattĩ relata vários
episódios em que ele era proibido de ler qualquer um de meus textos. “Os romances de Ngũgĩ
são políticos, eles são perigosos”, lhe é dito várias vezes durante seus seis anos e meios em
diversas prisões de segurança máxima. Mas ele tem de achar uma maneira de ler estes livros
ou similares. Consequentemente Maina Wa Kĩnyattĩ se alegra com o fato de poder ler
Richard Wright e Maxim Gorky sem problemas. Um prisioneiro político, está de fato
exercendo uma estética de resistência através de gestos mentais ou físicos. Ele está lutando
contra a docilidade da mente planejada pelo Estado. Mesmo dentro das celas ele tentará criar
um espaço físico, social e mental para si mesmo. Tentará usar seu tempo e espaço atribuído e
suas interações sociais limitadas de maneira a lhe dar o máximo de espaço psicológico.
Há uma ilustração jocosa disso em The Case of the Socialist Witchdoctor (1993) de
Hama Tuma. Na história “The Case of the Prison-Monger”, Hama Tuma conta de um
intelectual etíope que se descreve como “maníaco de prisão”. Ele alega que realmente ama a
prisão. Toda vez que é liberado comete um crime, mesmo que trivial, só para ser mandado de
volta para a prisão. A acusação o questiona: Não te incomoda passar dez anos do auge da sua
vida atrás das grades? Não, ele responde. Ele argumenta que as pessoas só estão presas
quando de fato acreditam que estão. Uma casa pode ser uma prisão. Até mesmo um palácio
pode ser uma prisão dourada para um rei. Por outro lado, o monge que se isola totalmente em
uma caverna não está preso. “Na prisão, eu conheci diversas pessoas muito livres” ele afirma,
para o enorme choque do juiz e promotor que não conseguem entender esta lógica. Segue
então esta interação:

Qual sentença você espera para o seu crime?


Eu deveria ser preso durante cinco anos como o artigo 689 do código penal prevê.
E se você for liberto?
Isso seria um crime, o acusado diz, chocado com a possibilidade de liberdade.
Mas se você fosse liberto, cometeria outro crime novamente?
Eu não poderia evitar. Para o bem estar geral e meu próprio.
Se você cometer mais três crimes, será morto.
Então a morte será um alívio. Não uma punição, mas a salvação de verdade. (1993:120-21)

E agora vem o julgamento:

Você, o réu, não é nada de bom, é uma pessoa tagarela, preguiçosa, estranha, louca. É um
parasita. Você também é perigoso. Qualquer pessoa que encontre prazer na prisão, qualquer um
que se sinta livre em nossas celas está contra a ordem das coisas, contra a expectativa. Uma vaca
não pode dar a luz a um filhote de cachorro. Prisões são punição, não uma fonte de calma e
liberdade. Se esses seus sentimentos se espalharem, nossa segurança estará perdida. Eu concordo
com o promotor. Você está condenado à liberdade imediata. (1993:121)
O acusado quase desmaia ao ouvir a sentença. Quando se recupera do choque, ele
grita ao juiz: “Você não pode fazer isso! Você precisa me mandar de volta para a prisão!”

O argumento está feito. Para ele, a prisão de verdade, o encarceramento, é menos


pior que o largo espaço territorial que está sob regime militar. O país inteiro é uma grande
prisão na qual os movimentos são meticulosamente controlados, em que as pessoas podem
ser retiradas dos espaços familiares e serem levadas para os que são facilmente vigiados. Em
qualquer caso, deslocamento e dispersão podem ser uma maneira de remover qualquer base
para performance coletiva de identidade e resistência. O método já havia sido testado durante
a escravidão em plantations na América e nas ilhas Caribenhas.

VIII

Em Canção de Ocol (Song of Ocol) de Okot p'Bitek (1988), o personagem principal,


membro da elite pós-colonial, quer banir todas as performances para que não reflitam sua
negritude. Ele lamenta: "Mamãe, mamãe, por que eu nasci preto?" Mas o caminho mais fácil
seria apagar o espaço rural de uma vez por todas, porque este é o espaço das performances
que mais o lembram do seu ser Africano. Sua visão para uma África pós-colonial é descrita
como uma enorme cidade que engole o rural completamente:

Eu vejo o grande
portão Da cidade
escancarado
Eu vejo homens e mulheres entrando (1988:149)

A pessoa rural tem apenas duas alternativas:

Ou entre
Pelo portão da
cidade Ou pegue a
corda
E se enforque (149)

Ouvimos nisso ecos da história econômica inglesa com seus enclausuramentos no


século XVIII? O objetivo é tomar a terra, que é a base do campesinato, e transformar os
camponeses em escravos assalariados nos enclausuramentos urbanos chamados de fábricas e
guetos. É uma outra forma de restringir o espaço de performance de um camponês.
A prisão, então, é uma metáfora para o espaço pós-colonial; pois mesmo em um país
onde não existem regimes militares, a maioria das pessoas podem ser descritas como sendo
condenadas à condições de confinamentos físico, social e psicológico perpétuos. O estado
performa seus rituais de poder não apenas por ser capaz de controlar saídas e entradas do
espaço territorial - seu espaço performativo inteiro - mas também por ser capaz de mover
pessoas por entre os diversos enclausuramentos dentro do espaço territorial nacional. Mas a
estética de resistência que sobrevive tanto na prisão menor quanto na territorial pode forçar o
estado a tentar novas medidas. Então, às vezes, ele demonstra tais rituais de absoluto controle
sobre todo o espaço territorial forçando o povo, cidadãos, para fora do espaço
territorial da nação-estado e dentro de uma existência como vagantes sem âncora no espaço
global. Há um caso especial para a colônia penal, o mais marcante sendo a Austrália, onde
todo um povo, considerados indesejáveis, foram removidos de um espaço territorial para
outro, igualmente grande ou maior. Na África, há o exemplo de Angola; foi usado como
território penal. Em sua nota histórica em sua tradução do romance de Pepetela, Yaka (1996),
Marga Holness diz que, em adição aos oficiais e tropas coloniais de Portugal, a comunidade
branca no século XIX incluía ex-condenados, exilados políticos - Republicanos, anarquistas -
e alguns que fugiram da recente República do Brasil. Forçar escritores e artistas ao exílio é
uma variação de território penal ao nível do indivíduo. A única diferença é que,
diferentemente do território penal, o espaço global onde tais escritores se encontram não é
controlado pelo mesmo estado. Mas os efeitos espirituais permanecem os mesmos.

IX

Uma escritora flutuando no espaço sem ancoragem em seu país é como uma pessoa
condenada. Nawal Sa’adawi sente como se estivesse na cadeia sempre que está longe do
Egito. Para ela, o exílio se transforma em outra prisão. Então o exílio é um modo de mover a
escritora de um confinamento territorial, onde seus atos de resistência possam incandescer
outros campos, em um “desenclausuramento” global. A esperança é que suas ações neste
desenclausuramento, sejam quais forem, não irão afetar diretamente aqueles confinados
dentro do vasto enclausuramento territorial. Mas aqui, como uma prisão interna, há muitas
consequências contraditórias para ambos, estado e artista. O artista em exílio sabe que ele ou
ela foi removido do espaço que nutre a imaginação. O artista vai, mesmo assim, tentar
escapar do desenclausuramento e alcançar o espaço territorial. Do exílio, ele ou ela ainda vai
tentar desafiar o absoluto domínio do estado sobre o espaço territorial. E por conta disso, o
estado também estará em dilema. Permitir um artista adentrar o espaço global significa a
rivalidade contínua da atenção da audiência global. Além disso, a palavra do exilado pode
muito bem viajar de volta ao território e continuar a assombrar o estado. Foi o que aconteceu
em 1984. Dan Barron-Cohen, um graduado de Oxford, e eu dirigimos uma produção de
Londres de O Julgamento de Dedan Kimathi no Africa Centre usando técnicas desenvolvidas
em Kamiriithu. O estado Queniano tentou parar a performance, tanto no African Centre
quanto no Commonwealth Institute. Eles queriam que o governo britânico fizesse isso por
eles; mas desta vez não houve resposta cooperativa. No Zimbábue, Ngugi wa Mirii utilizou e
estendeu a experiência do Kamiriithu para criar um dos mais contínuos teatros comunitários
na África. o estado Queniano tentou, em vão, fazer o estado Zimbabueano agir contra as
atividades de Ngugi.
Por isso, banir performances, confinar artistas em prisões ou matá-los são ações às
quais o estado frequentemente recorre. Mas para evitar as repercussões negativas do
aprisionamento, exílio e eliminação física, como a possível condenação pela audiência
nacional e internacional, o estado pode achar mais fácil negar espaço ao artista
completamente. É o caminho que encontra menos resistência e condenação. É o método mais
recomendado por Platão: “E portanto, quando qualquer um desses pantomímicos cavalheiros
que são tão inteligentes que conseguem imitar qualquer coisa que proponha exibir a si mesmo
e sua poesia, devemos enviá-lo para outra cidade” (1976:III, 23).

Podemos agora fazer uma observação experimental: quanto mais aberto for o espaço
performativo, mais parece amedrontar aqueles que possuem o poder repressivo. Isso pode ser
visto por uma rápida comparação das ações dos estados coloniais e pós-coloniais diante das
performances em espaços abertos.
A área de performance Africana pré-colonial era comumente um espaço aberto em
um pátio ou uma arena cercado por madeira e cercas naturais. Poderia ser dentro de
construções, onde histórias eram contadas ao redor de uma fogueira durante a noite. Mas o
espaço aberto era dominante, e mesmo no íntimo círculo ao redor da fogueira, era a abertura
da área performática que era marcada. Nesse tipo de espaço, o contador de histórias e os
ouvintes interativos estão no mesmo espaço. Visitantes podem entrar em cena a qualquer
momento, dado que a porta principal não era barrada para os possíveis convidados.
Igualmente, qualquer um dos ouvintes pode entrar e sair. Qualquer espaço pode ser
transformado em uma área performática desde que haja pessoas ao redor. Portanto, o espaço
performático é definido pela presença ou ausência de pessoas.
Conquistas coloniais resultaram na criação de limites claros que definiam o espaço
dominado com pontos controlados de saídas e entradas, e na formação de um estado colonial
para reger o espaço ocupado. E desde o começo, o estado colonial era muito cauteloso com o
ar livre. Não era certeiro o que estava sendo feito por lá, nos espaços abertos, nas planícies,
nos vales florestados e montanhas. Era ainda menos certo se pessoas dançavam nas ruas,
praças mercantis, cemitérios e espaços de enterro. E o que aqueles sons de tambores na
escuridão da noite realmente significavam? O que eles pressagiam?
Tentativas de suprimir ou limitar fortemente todas as performances ao ar livre no
espaço territorial foram seguidas alguns exemplos do Quênia:eu já mencionei a interrupção
da cerimônia ituika. Essa foi uma de diversas interrupções. Depois dos massacres de Harry
Thuku em 1922, mulheres conceberam uma formação de música-dança chamada
Kanyegenyuri, que não precisava ser definida permanentemente para ser performada. A
dança-poema-música foi banida pelo regime colonial: não poderia ser cantada, recitada ou
dançada em qualquer lugar do solo queniano.O Estado colonial tratou outra formação de
dança, Muthirigu, desenvolvida após a Segunda Guerra Mundial, da mesma maneira. E em
1952, quando o regime colonial mais uma vez atuou contra o aumento nacional de danças e
músicas decoloniais, ele baniu todas as performances ao ar livre em qualquer lugar do país.
Não importava o que estava sendo performado em qualquer momento específico. Toda
performance, até uma simples reunião religiosa, tinha de ser autorizada. O território inteiro
era um vasto espaço para performances, cheio de movimentos ameaçadores de inúmeras
esferas mágicas. Na era do apartaide na América do Sul um elaborado sistema de passe foi
desenvolvido para regular o espaço territorial inteiro - sendo a base para o desempenho
diário.
Então o exílio é uma maneira de mover a autora de um confinamento territorial, onde seus
atos de resistência podem inflamar outros campos, para a exclusão global.

O Estado pós-colonial apresenta sensibilidades semelhantes. A expressão coletiva de


alegria e até de luto, longe dos olhos atentos do Estado pode, em algumas instâncias,
constituir um crime. Então o Estado pós-colonial tenta impor limitações similares com as do
Estado colonial. No Kenya, sob o “Chief’s Act”, uma reunião de mais de cinco pessoas, não
importa onde ou a ocasião, têm de ter uma licença policial. O espaço performático para rezas,
cerimônias fúnebres, cerimônias de casamento, festas de chá, reuniões familiares, esportes,
dependem da emissão de uma permissão. Portanto quando a polícia entra em qualquer
reunião e quebra as sessões de contação de história nas casas das pessoas, eles estão
absolutamente dentro da lei. Performances eram para ser contidas dentro de espaços contidos:
em prédios de teatro licenciados, em escolas, especialmente - mas elas não eram para ser
feitas em espaços abertos onde as pessoas residiam.

Em outras palavras, diz Guillermo Gómez-Pena em seu artigo no TDR, “O artista


como um criminoso”, descrevendo cenas similares da repressão de performances de rua no
México em 1994:

É uma coisa realizar ações iconoclastas em um teatro ou museu de frente a um público pré-
disposto a tolerar comportamentos radicais, e outra levar o trabalho para a rua e introduzi-la em
um campo minado de imprevisíveis forças sociais e políticas. (1996:112)

Uma comparação entre a primeira performance de “O julgamento de Dedan Kimathi",


em 20 de outubro de 1976, dentro de um espaço de pedra e concreto chamado de Teatro
Nacional do Quênia e o “Eu vou me casar quando quiser” no vilarejo Kamiriithu em 2 de
outubro de 1977 no Teatro ao Ar Livre, uma construção sem teto e sem paredes de pedra, é
instrutiva. A produção de “O julgamento de Dedan Kimathi" foi feita por estudantes
universitários em inglês; e “Vou me casar quando quiser”, por um elenco de pedintes e
trabalhadores na língua Gikuyu. Portanto em 1976, apesar das tensões e a publicidade em
torno das produções de “O julgamento de Dedan Kimatchi”, e apesar das questões policiais,
não havia nenhuma ação tomada pelo Estado contra o espetáculo. Mas em 16 de novembro
de 1977, o Estado baniu futuras apresentações de “Vou me casar quando quiser”. E em
1982, eles baniram o mesmo grupo Kamiirithu de apresentar em qualquer outro lugar, até no
Teatro Nacional.

Mas a reação do Estado em diferentes espaços, é ainda mais explicativa. Em 1976 e


1982, o governo pós-colonial podia barrar pessoas do Teatro Nacional, mas o prédio nunca
foi destruído. Em 1982, depois do mesmo elenco de atores do vilarejo tentar apresentar outra
peça, “Mãe cante para mim”, o governo reagiu não somente recusando a licença para
apresentações, mas mandando policiais armados para derrubar o Teatro ao Ar Livre
Kamiirithu ao chão. Apresentações, não somente no centro, mas em todo o território do
município Limuru, foram banidas. O Estado atribuiu tanto valor para a destruição do espaço
ao Ar Livre, que todo o desenrolar da proibição no Kamiriithu Players em 12 de março de
1982 foi televisionado para todo o país ver. Havia um comissário provincial com todas as
burocracias regionais abaixo dele, guardado por tropas armadas, convocando uma aldeia
inteira para um encontro em que a cerimônia de negar o espaço para os Kamiirithu Players
iria acontecer. A cerimônia foi precedida por orações de líderes de diversas denominações
religiosas estabelecidas, que foram levados para a cena a fim de conceder a ocasião com
sanção divina. Mas também foi percebido que a maioria das orações tomaram forma de pedir
para Deus dotar o coração humano do espírito da tolerância. Mais uma vez em 1976 Seth
Adagala e eu nos livramos com apenas interrogatório policial. Mas em 1977 eu fui preso e
encarcerado numa prisão de segurança máxima por um ano, solto apenas após a morte do
primeiro chefe de Estado, Jono Kenyatta; e em 1982 eu me encontrei no exílio do Quênia.

A expressão coletiva de alegria e até mesmo luto longe dos olhos atentos do Estado pode, em
algumas instâncias, constituir um crime.

O espaço aberto entre as pessoas é percebido pelo Estado como a área mais perigosa
pois é a mais vital. Portanto a performance do Estado queniano do seu ritual de poder sob o
espaço territorial, tomou forma removendo eu do povo, primeiro me confinando em uma
prisão de 1977-1978, e então me expulsando do território nacional completamente em 1982.
Eles podiam ter feito pior me removendo do globo terrestre à la Ken Saro Wiwa, como
aconteceu com milhares de outros quenianos.

XI

O espaço de apresentação dos artistas defende a abertura; o do Estado o


confinamento. Arte quebra barreiras entre as pessoas; o Estado as ergue. A arte surgiu da luta
humana para quebrar o confinamento. Estes confinamentos poderiam ser naturais. Mas eles
também podem ser econômicos, políticos, sociais e espirituais. A arte anseia pelo máximo de
físico, social e espiritual espaço para a ação humana. O Estado tenta demarcar, limitar e
controlar.

É por isso que a questão política do espaço da performance é pertinente para qualquer
teoria sobre as condições pós-coloniais. Porque a política do espaço de apresentação é muito
mais que uma pergunta sobre uma visão física de um show teatral. Ela conversa com quase
todos os aspectos de poder e sendo em uma sociedade colonial e pós-colonial. É pertinente
aos problemas que irão constituir o nacional e o convencional. Em um governo pós-colonial
isso toma a forma de lutar entre aqueles que defendem a manutenção de tradições coloniais e
aqueles que querem ver os reflexos de uma nova nação e novas pessoas no espaço da
performance como um campo unificado de relações internas e externas.
Mas, em última análise, a política do espaço da performance e sua localização é uma
pergunta de classe. Porque o trabalho humano é o verdadeiro artista do mundo. Todas as
outras formas de expressões artísticas imitam aquilo que faz a mão e a mente humana. E a
mão e a mente humana têm todo o espaço e tempo ilimitados para sua performance da luta
pela liberdade humana e auto-realização. Porém a sociedade de classes que veio a existir
criou todos os tipos de fronteiras, recintos, para confinar aquela liberdade. Os recintos podem
ser o Estado-nação, religiões, raça, gênero, ideologia, línguas - qualquer variedade social
dentro desses temas. Questões do espaço da performance estão amarradas às da democracia,
às da sociedade civil, àquelas em que a classe controla o Estado.

Um dos meios mais efetivos de assegurar o controle social minoritário do trabalho e


dos produtos do trabalho é a exclusão de classes inteiras de pessoas da participação efetiva na
vida nacional. Classes inteiras de pessoas que podem ser colocadas em recintos físicos:
escravos e servos nas sociedades feudais; o proletariado nos mais avançados países
capitalistas de hoje; e mulheres na maioria das sociedades. Em tais sociedades, isso é feito
através do que Antonio Gramsci descreveu como hegemônico ao invés de leis exclusivas
formais (1967). Na África, a exclusão da maioria e seu enclausuramento em um estreito
espaço físico é alcançada através da dominância de línguas europeias em adição aos métodos
ainda mais brutais das botas policiais. Mas a língua da força cultural pode ser tão brutal para
a psique da comunidade quanto a força militar, para o corpo físico. Assim, a luta pelo espaço
da performance é integrada à luta por espaço democrático e justiça social.

Referências Bibliográficas:

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Press.

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Colonial New York, I74I." TDR 40, 2 (TI5o):I5-36.

Foucault, Michel, 1979 Discipline and Punish. New York:

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Gomez-Peia, Guillermo, 1996 "The Artist As Criminal." TDR 40, I (TI49):I I2-I8.

Gramsci, Antonio, 1967 The Modern Prince, and Other Writings. New York: International
Publishers.

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Kenyatta, Jomo, I962 [1938] Facing Mount Kenya: The Tribal Life of the Gikuyu. New York:
Vintage Books.

Maina wa Kinyatti, 1990 [1980] Thunderfrom the Mountains. Trenton, NJ: Africa World
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Ngüigï wa Thiong'o, 1987 Detained: A Writer's Prison Diary. London:

Heinemann. Okot p'Bitek, 1988 Song of Ocol. Nairobi: Heinemann.

Pepetela, 1996 Yaka. Translated by Marga Holness. Oxford: Heinemann.

Platão, 1976 Philosophies of Beauty. Edited by Albert Hofstadter and Richard Kuhns.
Chicago: The University of Chicago Press.

Slater, Montague, 1955 The Trial of Jomo Kenyatta. London: Secker and Warburg.

Target, The, 1977 Review of The Trial of Dedan Kimathi. The Target (Nairobi), October.

Ngugi wa Thiong'o é professor de Literatura Comparativa e Estudos Performáticos, e


Erich Maria Remarque é professor de Línguas na Universidade de Nova York (NYU). Além
de um dos Editores Contribuintes do TDR, Ngugi é autor de romances, dissertações literárias
e peças, incluindo "Descolonizando a Mente” (Decolonizing the Mind) (HEINEMANN,
1984), “Matigari ma Nijuungi” (1986), e “Movendo o Centro: as dificuldades para as
liberdades culturais” (Moving the Centre: The Struggle for Cultural Freedoms) (1993). Com
sua esposa Njeeri wa Ngugi, ele publica a revista de linguagem Gikiyiu: Mfitiiri.

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