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Era uma sexta-feira, as ruas de Nova Iorque estavam movimentadas como é habitual e as luzes

dos carros e dos semáforos encandeavam-me os olhos. Tudo parecia desfocado e obsoleto.

E é então que eu decido que preciso de tirar um tempo para mim, talvez o que eu precise é de
um fim de semana fora desta cidade.

Quando chego a casa, faço uma pesquisa breve sobre locais para passar o meu fim de semana,
e deparo-me com um anúncio que chama à minha atenção. Havia algo de atrativo sobre o sítio
publicitado, fora talvez o verde predominante daquele lugar que me fez confirmar a reserva na
denominada “Casa de Vidro”.

Entusiasmada com a ideia de um fim-de-semana fora da paisagem cinzenta com que me deparo
diariamente nas ruas da minha cidade, decido seguir viagem de manhã bem cedo, apesar de o
lugar ser relativamente perto de onde eu moro, visto que fica apenas a cerca de uma hora e 20
minutos de comboio. Saí na estação de New Canaan e, cansada de transportes públicos, chamo
um uber para me levar até ao lugar desejado.

Chegando ao local, sou surpreendida com aquilo que parece ser um portão na frente da dita
casa, com duas colunas imponentes, altas e robustas, numa rua um pouco deserta, de tal forma
que quase se assemelhava a um bosque e decido entrar.

Fiquei de tal forma encantada com o cenário verde brilhante que vislumbrara, que receei não
ser capaz de ir ao encontro da entrada da casa, mas esse medo imediatamente dissipa-se quando
olho para o chão e vejo que há um caminho de gravilha que me guia até ao sítio pretendido.

Este percurso, delimitado por relva milimetricamente cortada, era composto por linhas oblíquas
umas às outras, numa métrica pouco percetível para mim, que me obrigou a contornar uma
parte da propriedade, o que pareceu ter demorado uma eternidade, mas, na verdade, haviam
passado apenas dez minutos, e é neste momento que começo a ter vistas da referida construção.

Constatei que, de facto, o nome faz juz ao que os meus olhos se deparam, a “Casa de Vidro” é
mesmo toda de vidro! É um pequeno paralelepípedo achatado, com apenas duas faces opacas,
o teto e o chão, assente sobre um verdejante plano. Parece uma delicada vitrine, aquelas em
que em nada se deve mexer e onde nada deve de ser alterado, tudo ali faz harmoniosamente
parte da composição.

A curiosidade toma-me e entro no edifício.

Ao entrar, fico surpreendida, quando me aproximo e me apercebo que a porta está destrancada,
e, então, deparo-me com aquilo que parece ser a sala de estar, sala de jantar e cozinha, que se
fundem num só espaço.

Mais intrigada fico quando vejo que esta casa é interseccionada por um largo e imponente
cilindro, que vai do chão até ao infinito, e que contém uma lareira. Este objeto parece-me
desproporcionado para o edifício e para a estrutura que contém, que se tratava de uma lareira.

Olhando para a direita, vejo uma parede revestida a madeira, que não vai até ao teto, nem até
às extremidades da casa. Como tal, este espaço a que chamam casa, não passa de um grande
open space envidraçado. Decido transpor essa parede, e vejo uma cama, com uma pequena
secretária à sua frente.

Não conseguiria imaginar um cenário mais simplista que este!


Volto para a sala, e vejo a minha mala e o meu casaco em cima da poltrona, e aquela pequena
desorganização, de certa forma, inquietou-me. Não consigo suportar, por razões que
desconheço, ver aquela desordem no espaço que me envolvia, é como se aquilo interferisse com
o espaço, mudando completamente a sua génese, a sua identidade que parecia tão
perceptivelmente bem delimitada. Tudo aqui parece ter sido escrupulosamente pensado, todo
e cada detalhe, desde os móveis, até à forma que o padrão da cerâmica toma no chão.

Procuro um armário para que possa arrumar as minhas roupas, concluindo, mais uma vez que
trago sempre roupa a mais, e denoto que esta parede, não se limita apenas a dividir a casa em
duas zonas, como foi também aproveitada para arrumação.

Tento desfazer as malas, mas o cansaço vence-me e decido ir dormir, já que acordei cedo para a
viagem e tenho já vários planos para amanhã.

Na manhã seguinte, pretendia deixar-me dormir mais um pouco, já que há muito tempo que não
tirava um fim-de-semana dedicado só a mim sem pensar no frenesim do dia-a-dia, mas sou
acordada por uma luz intensa na minha cara, afinal a grande luminosidade desta casa, por ser
inteiramente de vidro, não era uma vantagem a qualquer hora do dia, por isso, levanto-me e vou
à procura dos estores para os fechar.

Não os encontro, o que me fez perder o sono, deixando-me bastante mal humorada logo pela
manhã, afinal não vejo assim tanta diferença entre as luzes de Times Square e esta luz, já que
ambas me impossibilitam de descansar.

Entretanto, enquanto me visto, questiono-me como alguém pode ter achado que construir uma
casa de vidro fosse uma boa ideia. Sinto-me como uma boneca exposta, como se do lado de fora
estivesse alguém a me vigiar constantemente e sem qualquer dificuldade. Uma construção toda
envidraçada tem tanto de inovador e peculiar como de invasivo à minha privacidade, concluo.

Talvez tenha sido essa a razão pela qual o dono desta casa não mora aqui e pela qual decidiu
tornar isto num alojamento local. Este é daqueles lugares que nos encantam a vista mas que não
conseguem responder à necessidade de utilidade e praticidade que procuramos no quotidiano
e, por esse motivo, não consigo imaginar outra alternativa que não a que o proprietário
encontrou: tornar este sítio atraente para uma estadia breve.

Levanto-me e vou para o exterior, ao qual tenho acesso através de uma porta no quarto, que não
fechei ontem à noite, visto não saber da sua existência.

Quantas portas terá esta casa? Circundo o edifício e vejo que tem, precisamente, quatro portas.
Dormi sozinha, no meio de vegetação, numa casa completamente transparente, sem estores e
com três das quatro portas abertas, realmente a segurança não é o forte desta casa.

Decido dar uma volta pela propriedade para espairecer, afinal era isso mesmo que procurava
com esta estadia, e desço um terreno bastante inclinado. Vou ao encontro de um pequeno lago,
que, em cima de si, tem uma estrutura branca e harmoniosa que contrasta com o cenário
envolvente verdejante. Estão assentes nela pilares altos e finos que suportam uma cobertura, e
que não consigo evitar lembrar-me dos templos gregos que dei em história da arte no décimo
ano, bons tempos…

À semelhança da casa onde dormi quando me deparei com ela na internet, esta estrutura parece
que chama por mim, pelo que entro nela, e sento-me no chão, com as pernas cruzadas, e admiro
o envolvente, imbuída numa atmosfera tranquila e silenciosa, o ambiente propício para refletir
sobre todas as questões que a rotina frenética me impossibilita de pensar.

Daqui de baixo, observo a casa, e questiono-me se este retângulo envidraçado absorve a


natureza ou se é a natureza que o absorve, é como se a vegetação tão farta e de cor tão
predominante absorvesse tudo o resto e aquela construção como que se fundisse no meio que
a envolve, já que a sua estrutura em vidro permite ver tudo o que está para lá das paredes: o
verde da natureza e, assim sendo, é quase como se tornasse uma só coisa. Porventura era essa
a experiência visual que quem projetou a casa quisera que quem estivesse dentro dela tivesse.

Mas tudo isto me fez perceber que talvez tenha escolhido o sítio errado para me afastar da
azáfama de Nova Iorque, talvez seja eu que não suporto a minha presença, ou talvez o silêncio a
que me votava aquele isolamento não seja o que procurava, talvez dê aso a questionamentos
que não pretendo ter, talvez a casa seja o problema, ou talvez seja um problema para mim estar
nesta casa sozinha…Todas estas possibilidades eram válidas, e eu não tendo como as refutar,
decidi, para meu bem, abandonar prematuramente a minha estadia neste lugar.

Chegou a tarde, e decidi ir embora, arrumei as minhas malas e preparei-me para abandonar o
local. Chamo novamente um Uber e apanho o comboio em New Canaan para Nova Iorque, e em
breve estarei em casa novamente.

Nunca saberei o que poderia ter acontecido se decidisse lá ficar mais uns dias, nem tão pouco
saberei como será morar ali, mas posso afirmar que foi de facto uma das poucas experiências
que me poderiam ter levado à loucura, o de viver numa Casa de Vidro.

“Casa de Vidro”

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