Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Introdução
“No modo de produção burguês, a indelével herança mimética de toda a práxis é
abandonada ao esquecimento. Os homens obcecados pela civilização só se percebem
de si próprios traços miméticos, que se tornaram tabus, em certos gestos e
comportamentos que encontram nos outros e que se destacam em seu mundo
racionalizado como resíduos isolados e traços rudimentares verdadeiramente
vergonhosos. O que repele por sua estranheza é, na verdade, demasiado familiar”2
A epígrafe de Adorno que inicia este texto aponta para um dos objetivos do
ensaio: a relação entre mimetismo da violência e justiça anamnética. Propomos
inicialmente umas considerações sobre os conceitos de justiça e a historicidade. Ambos
conceitos, justiça e historicidade, têm permanecido na tradição ocidental, especialmente
na modernidade, como contraditórios. Ao amparo dessa aparente incompatibilidade, foi
elevado o imenso edifício da justiça procedimental moderna como se fosse a única
possibilidade de fazer justiça. Propomos um outro caminho, ou seja, a formalidade dos
procedimentos e sua pretensa universalidade são necessários de forma subsidiaria e não
suficiente. O prioritário da justiça deve ser procurado na historicidade das vítimas, na
sua alteridade negada pela injustiça sofrida. O universalismo procedimental da justiça
formal contempla as vítimas como uma parte do processo e não como o referente ético
do justo. Aqui subjaz uma questão neurálgica que vem a questionar a onipotência da
justiça procedimental e demanda uma atenção especial para a historicidade das vítimas
como critério de justiça.
Se toda injustiça e uma forma de violência, o ponto central da nossa reflexão se
tece entorno da cumplicidade que une a violência com a potência mimética. Toda justiça
de transição se confronta com violências históricas de grande calado, barbáries que têm
que ser julgadas para pensar em novos contextos justos. Para pensarmos uma efetiva
1
Dr. Filosofia. Pesquisador do Programa de Pós-Graduação Filosofia, UNISINOS. Coordenador Cátedra
Unesco – Unisinos de Direitos Humanos e violência, governo e governança.
2
ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro; Zahar,
2006 p. 150
justiça de transição haveremos de desvendar e confrontar os elos ocultos que vinculam a
perpetuação da violência com sua potência mimética. Só políticas efetivas que consigam
neutralizar a potência mimética da violência conseguiram implementar uma efetiva
justiça de transição. Mas como neutralizar a mimese da violência?
Num terceiro momento, nos propomos a desenvolver a relação que existe entre
esquecimento e mimese da violência, assim como as falsas soluções pretendidas pelas
políticas de esquecimento como forma de superação da violência ou de efetivação da
justiça. No contraste com o esquecimento, desenvolvemos um estudo sobre a
potencialidade da memória para neutralizar o mimetismo da violência. Ainda indicamos
a necessária relação que vincula a memória com a justiça, tendo como referente ético a
memória das vítimas. É o que denominamos de justiça anamnética ou justiça do outro.
8
MARDONES, José Maria e MATE, Reyes (org.) La ética ante las víctimas. Barcelona: Anthropos,
2003.
9
ZAMORA, José Antonio. “La provocación de las víctimas. A vueltas con la filosofía de la historia”. In.
SUCASAS, Alberto e ZAMORA, José Antonio. (org.). Memoria-política-justicia. Madri: Trotta, 2010,
p.. 109-130.
históricos, tem como referente do justo uma exterioridade que a interpela: a alteridade
injustiçada das vítimas.
A sua historicidade desafia a liberdade e compromete a responsabilidade dos
sujeitos envolvidos. Tal responsabilidade se desenvolve sempre em relação à alteridade
humana - em especial às vítimas da injustiça -, e não à preservação da ordem, que
também é subsidiária da alteridade humana. A justiça é uma prática histórica em que os
sujeitos são responsáveis pelas deliberações criadas10. A responsabilidade da justiça se
mede em referência ao outro (que é singular e histórico) e não a princípios abstratos.
Ela é uma prática que se justifica (como justa) em relação à responsabilidade (e aos
efeitos) sobre o outro, especialmente o outro que é vitima da injustiça.
A condição histórica da alteridade ferida da vítima emerge como referência
paradoxalmente universal e histórica da justiça11. Práxis justa é aquela que repara a
injustiça. A reparação se torna, então, o modo justo de implementar a justiça das
vítimas. O fato ou a política que provocaram a injustiça e a alteridade vitimada ficam
julgados pelas conseqüências nefastas sobre a vida humana. Por isso toda justiça há de
ser uma justiça a partir das vítimas, ou seja, uma justiça das vítimas.
Mimese e violência
4. Toda injustiça é numa forma de violência contra o outro. Uma das maiores
dificuldades para pensarmos uma efetiva justiça das vítimas advém dos dispositivos de
invisibilização que as tornam elementos prescindíveis para a justiça. A invisibilidade
das vítimas é produzida por inúmeros meios, entre eles destacamos os dispositivos de
naturalização da violência. Ao naturalizar a violência se naturalizam as vítimas e se
inviabiliza uma justiça efetiva.
10
É neste sentido que Levinas afirma: “No último caso, justificar a liberdade não é demonstrá-la mas
torná-la justa.”. LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Ed. 70, 2000 p. 70.
11
Alain Badiou alerta que a vítima não é reconhecida por ser um mero corpo sofredor. Ela é portadora de
uma certa universalidade. Com isso, a importância da vítima vai além da sua visibilidade (midiática) a
qual depende de uma decisão política que reconheça sua condição (de injustiçada). Nessa encruzilhada, o
reconhecimento da vítima e o da justiça estão atrelados à posição política que as nomeia Cf. Id. Op. Cit.
passado não se apaga com o mero passar do tempo e continua presente de muitas
formas. Os efeitos da violência persistem mesmo quando termina o ato violento. Os
desdobramentos da violência perpassam a linearidade do tempo provocando efeitos
dificilmente mensuráveis pela lógica cronológica de um tempo seqüencial. Na violência
vigora um outro tempo, seus efeitos ecoam além do ato violento para limites
imprevisíveis.
14
Foi Michel Foucault quem desenvolveu amplos estudos sobre a relação entre biopolítica e violência.
“Parece-me que um dos fenômenos fundamentais do século XIX, é o que poderia denominar a assunção
da vida pelo poder: se vocês preferirem,uma tomada do poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma
espécie de estatização do biológico ou, pelo menos, uma certa inclinação que conduz ao que se poderia
chamar de estatização do biológico”, cf. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo:
Martins Fontes, 2000, p. 286-287.
15
Walter Benjamin na sua tese sétima sobre o conceito de história adverte: “[...] nunca houve um
monumento de cultura que não fosse também um monumento de barbárie. E, assim como a cultura não
está isenta da barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura.”. BENJAMIN,
Walter. “Sobre o conceito de história”. Id. Obras escolhidas. Magia e técnica,arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1996, p. 225.
16
Há que se levar em conta a tese de Rene Girard: “O desejo liga-se à violência triunfante; ele se esforça
desesperadamente por dominar e encarnar esta violência irresistível”. GIRARD, Rene. A violência e o
sagrado. São Paulo: Paz e Terra/UNESP, 2008, p. 191.
A violência é a sombra de injustiça. Toda injustiça encarna um tipo de violência.
A violência do nosso presente se conecta, de uma ou outra forma, com a violência
histórica mal resolvida. Ela remete à injustiça histórica justificada como ato legítimo.
Para pensar criticamente a desconstrução de uma sociedade violenta, com agentes
violentos, instituições violentas, valores e hábitos sociais violentos, haverá que procurar
sua gênese para além do imediatismo do presente. Há algo de intangível na nossa
história de violência que dificulta sua neutralização e a perpetua como sombra da nossa
realidade social latino-americana. Os estados de exceção vividos nas últimas décadas do
século XX no conjunto dos países do cone sul latino-americano, não devem ser lidos
como meros episódios pontuais da violência histórica. Sua lógica violenta conecta-se
com uma violência histórica mal resolvida que contamina, ainda, as instituições e os
comportamentos de nossa sociedade17.
6. Como entender a mimese? A mimese é uma pulsão que tende a repetir aquilo
que a origina ou ainda imitar aquilo com o qual se relaciona. O que caracteriza a
mimese é a reprodução imitativa do comportamento externo. Não concordamos com a
tese de Rene Girard de que a mimese seja essencialmente violenta, embora
concordamos que a violência é essencialmente mimética. A mimese é uma dimensão do
comportamento humano aberta para muitas possibilidades de ser18. O comportamento
humano é, em grande parte, mimético. Como todo o humano, a mimese é paradoxal.
Walter Benjamin analisou a capacidade mimética do ser humano como uma
característica própria de nossa aprendizagem. No ser humano, segundo Benjamin, a
mimese é correlativa à produção das semelhanças. Por isso, nenhuma das principais
faculdades humanas escapa à mimese19. A (re)produção das semelhanças do que vemos,
pensamos, sentimos e agimos está perpassada pela condição mimética. Para Benjamin, a
própria mimese não se impõe como uma pulsão abstrata no comportamento humano,
senão que: “Esta faculdade (a mimese) têm uma história, tanto no sentido filogenético
17
VIOLA, Solon. “As sombras do tempo entre Cronos e Kairos e as andanças da memória e do
esquecimento”. IN. RUIZ, Castor Bartolomé. Justiça e memória II. Direito a justiça, memória e
reparação, a condição humana nos estados de exceção. Passo Fundo: IFIBE/LEIRIA, 2012, p. 153-166
18
A diferença de Rene Girard, entendemos que todo desejo humano é, também, uma produção simbólica
de sentido que possibilita sua reconstituição para além da mera mimese. Sobre este ponto cf. RUIZ,
Castor M.M. Bartolomé. Por uma crítica ética da violência. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p. 87-112.
19
. “A natureza engendra semelhanças: basta pensar na mímica. Mas é o homem que tem a capacidade
suprema de produzir as semelhanças. Na verdade, talvez não haja nenhuma de suas funções superiores
que não seja decisivamente co-determinada pela faculdade mimética”. BENJAMIN, Walter. “A doutrina
das semelhanças”. In. Id. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996,
p. 108.
como ontogenético”20. Desde os primórdios de nossa infância apreendemos de forma
imitativa, mimética. Muito do que somos como pessoa é construído pela mimese.
maioria das vezes involuntário.” GIRARD, Rene. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e
Terra/UNESP, 2008, p. 186
24
Destacamos a ênfase que Benjamin outorga à capacidade mimética do ser humano como possibilidade
de repetir as semelhanças, que no caso da violência implica numa reprodução de si mesma na compulsão
inicial de reproduzir as semelhanças: “O dom de ser semelhante, do qual dispomos, nada mais é que um
fraco resíduo da violenta compulsão, a que estava sujeito o homem, de tornar-se semelhante e de agir
segundo a lei da semelhança”. BENJAMIN, Walter. “A doutrina das semelhanças”. In. Id. Obras
escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 113.
25
Uma das derivações biopolíticas da potência mimética é a teoria do sacrifício necessário. Muitas das
perseguições, torturas e mortes de opositores se legitimam como parte do sacrifício necessário para salvar
o corpo social de um perigo que o ameaça. No contexto dos regimes autoritários, violentos por natureza,
as teses do sacrificialismo de Girard adquirem nova coloração: “Apenas a perspectiva do fora, aquela
que vê a reciprocidade e a identidade e que nega a diferença pode identificar o mecanismo da resolução
violenta, o segredo da unanimidade refeita contra a vítima expiatória” GIRARD, Rene. A violência e o
sagrado. São Paulo: Paz e Terra/UNESP, 2008, p. 211.
7. Uma reflexão sobre a justiça de transição exige um estudo crítico da
violência. A transição remete sempre a um contexto de violência a ser superado de
forma justa.
Para avançar numa teoria crítica da violência se faz necessário realizar uma
distinção conceitual entre agressividade e violência. Ambos conceitos são habitualmente
confundidos como sinônimos, o que leva a uma indistinção conceitual e real entre
agressividade e violência26, e como conseqüência à legitimação do naturalismo da
violência.
O ser humano é o único ser vivo com abertura para a alteridade. Tal abertura
criou dentro uma fenda no humano entre subjetividade e alteridade possibilitando a
existência de ambas. Sem a fratura que cindiu a naturalidade compulsiva do instinto
natural, o humano seria uma mera espécie animal, mas não seria humano, no sentido
que hoje o conhecemos. A fratura da compulsão naturalista abriu o ser humano para o
Outro como alteridade distinta de si, instituindo a possibilidade de perceber-se como
sujeito diferenciado do outro e do mundo. A emergência da subjetividade se faz a partir
da abertura para a alteridade. Sem esta, a alteridade, não é possível aquela, a
subjetividade. Entre ambas persiste o vão da fratura humana que vincula o ser humano
com o mundo através do sentido e não mais da pulsão compulsiva da natureza. O
sentido é sempre uma construção simbólica das pulsões e das impressões. A abertura
para alteridade institui uma distância entre subjetividade e natureza que possibilita ao
ser humano significar simbolicamente seus instintos.
A agressividade é vivenciada pelo ser humano como pulsão natural que deve ser
significada simbolicamente. Como todas as pulsões, a agressividade está submetida à
26
A indistinção entre agressividade e violência está presente na obra de Sigmund Freud, que utiliza de
forma indistinta os dois conceitos. Afirma, entre outros exemplos, que o instinto de auto-preservação, que
é de natureza erótica, deve ter a sua disposição a agressividade para atingir esse propósito. A indistinção
leva-o a concluir que a violência, assim como a agressividade, é um instinto natural e como conseqüência
irrefreável. Cf. FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro, Imago, Edições Standard,
Tomo XXI , 1969.
significação do sentido que a pessoa e sociedade devem dar para ela. A agressividade,
no ser humano, não se impõe de forma unívoca, senão que como todos os instintos
naturais, para ser humano, passa necessariamente pelo filtro da significação simbólica.
A mediação simbólica possibilita ao ser humano não ser mero receptor passivo da sua
natureza e se tornar um sujeito criativo de suas ações. A agressividade, sendo um
instinto natural, pode ser significada, por exemplo, na forma de esforço, superação de
obstáculos, crescimento pessoal, enfrentamento das dificuldades, etc27. A agressividade
pode ser canalizada simbolicamente na forma de potencia que habilita para a superação
das dificuldades, porém essa potência não tem porque ele ser violenta28. O ser humano é
único ser vivo que tem a potencialidade de dobrar-se sobre sua própria natureza sem
negá-la, porém tem o poder de nessa dobra mediar os instintos da natureza
transformando-os em ações simbólicas. Esta mediação simbólica possibilita distinguir o
instinto da agressividade da ação violenta.
27
Neste sentido que pode ser compreendida a obra de Marcuse, Herbert. Eros e civilização. Rio de
Janeiro: LTC, 1999. Na qual faz uma releitura das posições de Freud mostrando aberturas construtivas do
instinto agressivo.
28
Um outro exemplo da indistinção entre agressividade e violência encontra-se na obra de LORENZ,
Konrad. A agressão: uma história natural do mal. Lisboa: Relógio d´Agua, 2003. Nesta obra Lorenz,
premio Nobel, criador da etologia, defende a agressividade como um instinto natural de todos os seres
vivos com uma função necessária para a sobrevivência. A indistinção entre agressividade e violência,
leva-o a concluir que a violência é natural e que só de forma parcial, ou seja, cultural, poderemos evitar
todos seus efeitos destrutivos.
ser humano. A violência, a diferença da agressividade, existe correlativamente à
negação total ou parcial da alteridade humana.
A violência produz vítimas. Não há violência sem vítimas, nem vítimas sem
violência. A condição de vítima não é algo subjetivo, como pretendia Nietzsche. Se
assim for e quando isso acontecer, estamos perante um mecanismo falacioso de
manipulação do outro. Nestes casos se tornam procedentes a maioria das críticas
nietzschianas às falsas vitimas. Mas a vítima existe contra sua vontade e sofre uma
condição objetiva de violência provocada pela injustiça. A injustiça e a violência
produzem vítimas, que estão nessa condição de forma involuntária porque, de alguma
forma, sofreram uma negação objetiva da sua condição humana. A vítima é o lado
perverso (objetivo) da injustiça e da violência. Eis porque a vítima também se torna o
critério ético e político para julgar a injustiça e a violência sofridas.
29
Levinas desenvolveu a importância do rosto como categoria ética através da qual a alteridade humana
se revela. A manifestação do rosto é a não violência, sua negação é a pura violência. “O rosto onde se
apresenta o Outro – absolutamente outro – não nega o Mesmo, não o violenta como opinião ou
autoridade ou o sobrenatural taumatúrgico. Fica à medida de quem o acolhe, mantém-se terrestre. Essa
apresentação é a não-violência por excelência, porque em vez de ferir a minha liberdade, chama-a á
responsabilidade e implanta-a. Não violência, ela mantém a pluralidade do Mesmo de do Outro”
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Ed. 70, 2000, p. 181-182.
tortura um ato de normalidade. O torturador é também um produto da violência30. O
embrutecimento de sua sensibilidade, a normalidade com que violenta os outros, o
sadismo do prazer que sente ao violentar os outros é o resultado de uma subjetividade
desumanizada pela própria violência que ele comete.
10. A perversão do paradoxo mimético da violência não se pára por um mero ato
externo da vontade do sujeito ou das instituições políticas. A prática da tortura não foi
anulada pelo fato de que o estado de exceção acabou no Brasil. A potencia mimética da
violência que normalizou a tortura como prática de governo, continua a normalizá-la na
sua reprodução mimética em muitos agentes do Estado32. Estes continuam a reproduzir
aquilo que aprenderam de seus superiores e colegas como uma réplica mimética das
semelhanças. A atual prática da tortura no Brasil, sob novas formas e métodos
evidentemente, responde ao efeito mimético da violência que não foi neutralizado de
forma eficiente, porque sempre foi negado. A negação e o esquecimento, como veremos
a continuação, se tornam condição necessária para a reprodução mimética da violência.
30
BURIHAN, Eduardo Arantes. A tortura como crime próprio. SP: Juarez de Oliveira, 2008.
31
GARZÓN, Baltasar; ROMERO, Vicente. El alma de los verdugos. Buenos Aires: Del Nuevo
Extremo/RBA, 2008.
32
RIBEIRO da Cunha, Paulo. “Militares e anistia no Brasil: um dueto desarmônico”. In: TELES, Edson e
VLADIMIR, Safatle. O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010, P. 15-40
As próprias instituições, incluído o Estado, não estão imunes ao mimetismo da
violência. Quando esta se naturaliza como forma de governo, sua prática tende a
perpetuar-se nas sombras dos aparatos do Estado como uma prática normal de (re)ação
com a cidadania ou com os grupos considerados perigosos.
Num primeiro momento, cabe apontar algumas falsas soluções propostas para
superar o mimetismo da violência. Há uma lógica biopolítica imersa no mimetismo da
violência que não é captada pelo discurso racionalista, o que torna os discursos formais
do direito insuficientes para neutralizar o mimetismo da violência. Os meros
procedimentos formais, sejam jurídicos ou políticos, de mudanças leis e instituições
dificilmente conseguem atingir o núcleo dinamizador da potência mimética da
violência. Embora a mudança de procedimentos e câmbios institucionais ou de regime
33
Este seria um dispositivo imunitário que a biopolítica utiliza como mecanismo para sacrificar umas
vidas, que considerar ameaçadoras, para preservar as vidas normais. Sobre a dimensão da biopolítica cf.
ESPOSITO, Roberto. Immunitas. Protección y negación de la vida. Madrid: Amorrurtu, 2005
sejam importantes e até necessários para as mudanças sociais, eles por si só não
conseguem exaurir as exigências de uma justiça de transição e são incapazes de
desarmar o potencial mimético da violência. Os atos formais por si só não produzem a
efetiva justiça de transição nem desarmam o potencial mimético da violência. Não foi,
por exemplo, o ato legal de libertar os escravos que eliminou todas as seqüelas da
escravidão no Brasil, nem propiciou sequer um mínimo de justiça às vítimas dessa
barbárie. Muitas transições foram meras transações negociadas entre interesses
dominantes sem levar em contas as vítimas e a reparação das injustiças e violências
contra elas cometidas. A mera mudança de regime, de ditadura para democracia formal,
não é suficiente para realizar uma justiça de transição efetiva, já que ficam impunes
muitos dos delitos e barbáries cometidos pela ditadura 34. Seus agentes continuam
inseridos nos aparatos do Estado, contaminando mimeticamente outros agentes com as
práticas da violência impunemente praticada. A mimese da violência não fica
neutralizada por leis ou decretos formais, ela sobrevive oculta nas práticas dos agentes e
instituições que contaminou anteriormente35.
A mera mudança formal de regime sem uma real justiça de transição deixa a
injustiça cometida contra as vítimas como um saldo colateral a ser pago à “história dos
vencedores”. Uma transição que não leve em conta justiça das vítimas, comete contra
estas uma dupla injustiça condenando-as como um sacrifício necessário para
contemporizar com os vencedores36.
12. Uma outra prática política amplamente utilizada nos contextos violentos de
transição são os atos formais de esquecimento. O esquecimento inviabiliza uma
autêntica justiça de transição, e contribui para potencializar a reprodução mimética da
violência
13. Uma secreta voz ecoa desde a fundura dos tempos clamando por uma justiça
devida, por uma verdade não dita e por uma memória negada. É voz das vítimas da
injustiça histórica que subsiste como potência e memória de uma justiça a ser feita. As
políticas de esquecimento, além de não neutralizar o potencial mimético da violência,
cometem uma segunda injustiça contra as vítimas apagando-as da história. Ao
desconhecer a injustiça sofrida negam a sua existência como vítimas e as condenam ao
esquecimento definitivo, sua segunda morte43.
45
Neste sentido que Reyes Mate fala de uma razão anamnética. Cf. MATE, Reyes. Memórias de
Auschwitz. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005, p. 145-176.
46
Sobre a relação entre memória e história, cf. RICOEUR, Paul. A memória a história e o
esquecimento.Campinas: Unicamp, 2007.
47
ZAFFARONI, Eugénio Raúl. La palabra de los muertos. Buenos Aires: Ed. Ediar, 2011
48
ZAMORA, José Antonio e MATE, Reyes (org.) Justicia y memoria. Hacia una teoria de la justicia
anamnética. Barcelona: Anthropos, 2011.
Justiça das vitimas: uma justiça anamnética, uma justiça do Outro.
14. O desarme do potencial mimético da violência é concomitante com a justiça
das vítimas. Cada modelo de justiça requisita seus métodos. A perspectiva de uma
justiça a partir das vítimas requer, como condição de possibilidade, a memória. Ela é
uma justiça pensada a partir do outro. O outro, a vítima, interpela o sentido da justiça
para que esta se adéqüe à realidade histórica da injustiça sofrida. É o Outro vitimado
que se torna o critério da justiça. A condição história da injustiça exige que a justiça
seja feita em referência às particularidades sofridas pelo outro injustiçado, a vítima.
Como indicamos inicialmente, a justiça é histórica e sua historicidade exige que seja
relativa à condição das vítimas.
A justiça a partir das vítimas estabelece uma nova relação com o passado49. Uma
relação diacrônica em que o tempo deixa de ser linear. O utilitarismo dominante na
ideologia do progresso reduziu o tempo a uma mera sucessão inevitável dos
acontecimentos. A visão linear do tempo sepulta os acontecimentos do passado num
amontoado de eventos progressivos em que a facticidade do presente se impõe como
releitura dominante dos interesses das elites dominantes. Quem tem o poder de fabricar
o sentido do presente (a elite social) esvazia de sentido os atos de injustiça contra os
vencidos e se auto legitima executores do progresso da história 50. A visão linear do
tempo favorece uma história dos vencedores, na terminologia de Walter Benjamin.
Para o tempo linear, o passado passou e não tem mais sentido que a
rememoração cultural da história. Na lógica linear, o presente existe de forma absoluta.
Na racionalidade cronológica o sentido do acontecimento passado se reduz à
emotividade da mera lembrança ou à erudição dos registros históricos. A compreensão
linear do tempo esvai a insignificância do passado na preeminência do presente. O
tempo que importa é o agora, o qual parece existir independente do passado que lhe
precedeu51.
49
Como diz Pierre Nora, "A verdadeira percepção do passado consiste em considerar que ele não era
verdadeiramente passado". NORA, Pierre (og.). Les lieux de Mémoire.Paris: Gallimard. Vol I, 1984. p.
18.
50
“A Idéia de um progresso da humanidade na história é inseparável da idéia de uma marcha no interior
de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da idéia dessa marcha tem como pressuposto a crítica da
idéia dessa marcha”.BENJAMIN, Walter. Ib. Tese 13 Sentido da história, p. 299.
51
Desafiando esta concepção linear e plana da temporalidade Benjamin escreve: “A história é objeto de
uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vaio, mas um tempo saturado da ‘agoras’[...]”
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história “. Id. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e
política. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 229.
A modernidade utilizou-se da visão linear do tempo para construir o mito do
progresso inexorável da história. Este seria um principio natural da racionalidade
histórica que impulsiona os acontecimentos desde um passado, sempre inferior e
obscuro, para um futuro sempre promissor. Nessa linearidade, o futuro é garantido pela
lei do progresso histórico. Para tal lei o passado é sempre algo que deve superar-se. Na
história agiria uma espécie de dialética progressista que anula os efeitos negativos do
passado abrindo o presente como o momento único importante do futuro que se
avizinha. Nessa tese, a única justiça viável é a instituída pelo contratualismo
procedimental que faz de cada momento histórico um ponto zero da história. Na visão
linear do progresso, o sofrimento das vítimas é interpretado como um efeito colateral
inevitável e até benéfico quando visto desde a ótica do presente52.
Porém, ao pensarmos a justiça desde as vítimas, uma justiça do outro, o passado
ressurge com uma potência significativa que interpela a auto-suficiência do presente.
Qualquer presente existe sobre os lastres do seu passado. E nenhum presente pode
deixar de ser o que o passado lhe legou53. A temporalidade existe como expressão do
fazer humano, por isso não há sociedade nem pessoa que possa olhar para seu presente
senão a partir do seu passado. O que somos está condicionado pelo que fizemos ou
sofremos. Tudo o que passou está vivo no presente que nos constitui, nada do que
aconteceu se perdeu para sempre. A diacronicidade da temporalidade presentifica, para
as vítimas, a injustiça passada como seqüelas que não foram reparadas. As vítimas da
injustiça existem nessa condição enquanto não houver uma justa reparação da injustiça
cometida. A condição de vítima é correlativa à perpetuação da injustiça no tempo.
52
São diversos os pensadores que legitimaram, de uma ou de outra forma, a existência das vítimas como
efeito natural da história, porém um do que mais influenciou foi sem dúvida Hegel: “Mas quando se trata
de um fim em si e por si, o que se chama ventura ou infortúnio deste ou daquele indivíduo particular não
pode ser tomado como momento da ordem racional do universo. Aqui não é o interesse nem a paixão
individual que exigem satisfação, mas a razão, o direito, a liberdade.” HEGEL, G. W. F. A razão na
história. Lisboa: Edições 70, 1995. p. 36. Cabe destacar notáveis pensadores contemporâneos que se
filiam à racionalidade do mercado como lógica inexorável da história que exige o inevitável sacrifício de
vítimas: Hayek, Friedrich. O caminho da servidão. Bibliex Cooperativa, 1991; Nozick, Robert. Anarquia,
estado e utopia. São Paulo: Zahar, 1991; Milton Friedman. Capitalismo e liberdade. São Paulo: Nova
Cultural 1998 .
53
“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-
se de uma reminiscência, tal como ela lampeja no momento de um perigo[...]” BENJAMIN, Walter.
“Sobre o conceito de história”. Id. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1996, p. 224.
15. Enquanto a injustiça persistir, a vítima continuará submetida a tal condição
de alteridade negada. A condição de vítima é um estado que deve ser superado, pelo
próprio bem da pessoa vitimada. Mas como fazê-lo? Como abandonar a condição de
vítima produzida pelos acontecimentos de um passado inesquecível?
O acontecimento ocorrido é inevitável, porém muitas das suas conseqüências são
reparáveis54. Se a injustiça sofrida não tem como ser anulada enquanto acontecimento
histórico, as condições provocadas pela injustiça podem ser mudadas. Essa é a
responsabilidade da justiça histórica. Só uma justiça que restaure, no possível, a
alteridade ferida poderá contornar o peso injuriante desse passado. As vítimas são um
produto das injustiças passadas. Uma justiça a partir das vítimas remete o presente ao
acontecimento da injustiça passada numa relação de imediatismo diacrônico em que o
acontecimento passado existe como presente. As vítimas da história e a história das
vítimas é parte constitutiva do presente e da justiça exigida. É como “escovar a história
a contrapelo”55. Nada do que passou nos é alheio. A barbárie da injustiça passada nos
interpela responsabilizando-nos a fazer justiça.
As vítimas históricas se tornaram invisíveis para a temporalidade linear por
diversos artifícios. Políticas de esquecimento foram amplamente lavradas como versões
oficiais de uma história dos vencedores. Inclusive a justiça procedimental, ainda que
tenha sua validade enquanto procedimento subsidiário da justiça, muito tem contribuído
a ocultar as feridas da injustiça histórica56. Uma justiça de transição há de tomar a
perspectiva das vítimas como critério ético do justo. Só uma justiça a partir das vítimas
tem a possibilidade de retirar o manto de sua invisibilidade tecido pelo
procedimentalismo sobre as injustiças históricas. Para que a vítima se torne um
referente ético da justiça são necessárias práticas de memória que neutralizem as
estratégias de esquecimento.
Neste contexto, a memória, sob a forma de anamnese, é o recurso das vítimas
contra o esquecimento amnésico da injustiça histórica. Desde tempos imemoriais ambas
dimensões (anamnese e amnésia) se confrontam numa disputa de poder para definir
hermeneuticamente o sentido do justo na história e no presente. A invocação da
54
ALASTUEY DOBÓN, M. Carmen. La reparación a la víctima en el marco de las sanciones penales.
Valencia: Tirant lo Blanch, 2000.
55
Tese 7. BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. Id. Obras escolhidas. Magia e técnica,
arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 225.
56
O paradoxal do esquecimento é que, como afirma Reyes Mate, : “Sem memória não há, pois, injustiça,
mas tampouco justiça”. Id. Tratado de la injusticia. Barcelona: Trotta, 2011, p.292.
memória anamnética 57 ou do esquecimento amnésico são estratégias de poder das
vítimas para reivindicar justiça ou dos verdugos para legitimar seu estatus no presente.
16. A modo conclusivo, cabe fazer alguns esclarecimentos paradoxais sobre a justiça
anamnética58. Primeiramente registrar que a potência da anamnese que neutraliza a
potência mimética não advêm do ressentimento, senão da justiça. Não há como negar
que atos de memória podem conduzir a práticas de ressentimento em que a vingança
aparece como alternativa. Mas não é o ressentimento que desativa a potência mimética
da violência. Pelo contrário, o ressentimento, sob qualquer forma, tende a legitimar e
ativar novas formas de violência, ou ainda fazer da violência o caminho único da
transição. O ressentimento é um desdobramento da mimese da violência que a perpetua
como prática social.
A justiça anamnética vai além do ressentimento. Seu objetivo não é aplicar a lei
do talião59, senão restaurar as vítimas na sua condição de alteridade negada. A punição
dos culpáveis é o segundo aspecto da justiça, não por ressentimento, mas para
esclarecimento público do mal cometido. A punição tem por objetivo não deixar impune
a barbárie. Após o devido processo e sentença, cabe pensar o perdão como ato político
de reconciliação, mas não de esquecimento. Quando pensamos na justiça histórica, esta
só poderá realizar-se como memória e reparação a todas as vítimas. Há algo de
imponderável na justiça histórica que a torna um clamor por reparação do irreparável60.
57
Reyes Mate tem desenvolvido amplamente este conceito de justiça anamnética ao longo de sua vasta
obra. Cf. Id. “La mirada da vítima”. Estudios de Deusto Vol 50/1, Bilbao: Deusto, janeiro-junho 2002, p.
230-243. Cf. também MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz. São Leopoldo: Harmonia, 2005.
58
Sobre a justiça anamnética cf. MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz. São Leopoldo: Nova Harmonia,
2005.
59
Mahatma Gandhi avisou que a violência do olho por olho só termina quando todos estivermos cegos
60
Horhkeimer já desenvolveu a tese de que o crime é evidente a quem o comete e a quem o sofre
(vitimário e vítima), mas para que ele seja acessível às gerações futuras será necessário alguém que dele
faça memória. Sem a memória o crime se apagará no esquecimento da história. Admite Horkheimer que
só Deus poderá conservar as injustiças olvidadas e deste modo fazer justiça (divina) aos injustiçados da
história. Ainda termina sua reflexão com uma grave questão: “Pode-se se admitir isto e não obstante
levar uma vida sem Deus? Tal é a pergunta da filosofia”. Id. Apuntes. 1950-1969. Caracas: Monte Ávila,
1976, p. 16.
Sociedades traumatizadas pela violência aderem com facilidade tanto a reações
violentas descontroladas de ressentimento, como também se submetem servilmente ao
autoritarismo amedrontadas pelo medo. Hobbes já apontou que o medo é uma técnica
biopolítica importante quando “bem” utilizada pelos governantes para conduzir as
populações amedrontadas pela violência.
O paradoxo da violência traumatiza é que o trauma não supera senão que recalca
a violência nos sujeitos. O trauma tem aparência da esquecimento; na maioria dos casos
parece ter olvidado o que aconteceu, mas o olvido é fictício. O trauma recalca nos
porões da subjetividade e da sociedade a violência não assumida. O trauma e o recalque
se retroalimentam e provocam a manutenção do dispositivo mimético da violência. O
trauma e o recalque se superam por atos de memória. A memória pode desarmar os
traumas da violência e seus recalques. A memória, dolorosa sempre, da violência
sofrida desmancha a consistência do trauma e repõe aos sujeitos e à sociedade ante a
possibilidade de confrontar-se com seu passado traumático. A exposição do trauma feita
pela memória desarma, em grande parte, a sombra mimética da violência. Algo que os
atos formais de esquecimento não conseguem fazer quando se alicerçam em políticas de
esquecimento. Neste caso, contribuem para manter recalcada a violência no trauma e o
mimetismo permanece latente pronto para agir na normalização da violência.
61
Sobre as dificuldades e possibilidades políticas do perdão cf. o último capítulo, “O difícil perdão” de:
RICOEUR, Paul. A memória a história e o esquecimento.Campinas: Unicamp, 2007.
62
cf. ZAMORA, Jose A. ( Org.). El perdón y su dimensión política. In. MADINA, Eduardo; MATE,
Reyes… (org) El perdón, virtud política. En torno a Primo Levi. Barcelona: Anthropos, 2008, p. 57-80
63
GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar –para uma justiça internacional.
Lisboa: Inst. Piaget, 2004.
64
Destacamos a posição de Derrida de que o perdão é incondicional, radical no sentido semântico de que
se perdoa o imperdoável ou não existe o perdão. “Por acaso não tem que manter que um perdão digno
desse nome, se é que alguma vez se realiza, deve perdoar o imperdoável, e isso sem nenhuma
condição?”. cf. DERRIDA, Jacques. “El perdón”. In: In. MADINA, Eduardo; MATE, Reyes… (org) El
perdón, virtud política. En torno a Primo Levi. Barcelona: Anthropos, 2008, p. 123.
A justiça de transição, para ser justa, haverá de ser, de alguma forma, uma
justiça anamnética, uma justiça do Outro. Ou seja, uma justiça a partir das vítimas. No
processo de justiça anamnética, os atos de memória, os monumentos de memória são
quesitos imprescindíveis para neutralizar a violência mimética que permanece recalcada
nos porões das instituições e na sombra do inconsciente humano. A memória pessoal e
institucional é pré-requisito da justiça. Não pode haver justiça sem memória da
injustiça. A memória da barbárie é necessária para que se inicie o devido processo de
julgamento social e histórico do acontecido. Ao reclamar a instituição da comissão da
verdade, a criação de memoriais da violência, o registro público em praças, ruas,
monumentos dos nomes dos vitimados (e não dos ditadores e torturadores como ainda
ocorre em nosso país), ao exigir o julgamento, ainda que de difícil execução no nosso
país, dos responsáveis da barbárie, não se está querendo vingança, nem se está
pretendendo revanche. Os objetivos da justiça anamnética são: neutralizar o potencial
mimético da violência e fazer justiça histórica às vítimas. Pois, o que se oculta pelo
esquecimento, tornará a repetir-se pela impunidade.