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(In)justiça, violência e memória

O que se oculta pelo esquecimento, tornará a repetir-se pela impunidade


Castor M.M. Bartolomé Ruiz1

Introdução
“No modo de produção burguês, a indelével herança mimética de toda a práxis é
abandonada ao esquecimento. Os homens obcecados pela civilização só se percebem
de si próprios traços miméticos, que se tornaram tabus, em certos gestos e
comportamentos que encontram nos outros e que se destacam em seu mundo
racionalizado como resíduos isolados e traços rudimentares verdadeiramente
vergonhosos. O que repele por sua estranheza é, na verdade, demasiado familiar”2

A epígrafe de Adorno que inicia este texto aponta para um dos objetivos do
ensaio: a relação entre mimetismo da violência e justiça anamnética. Propomos
inicialmente umas considerações sobre os conceitos de justiça e a historicidade. Ambos
conceitos, justiça e historicidade, têm permanecido na tradição ocidental, especialmente
na modernidade, como contraditórios. Ao amparo dessa aparente incompatibilidade, foi
elevado o imenso edifício da justiça procedimental moderna como se fosse a única
possibilidade de fazer justiça. Propomos um outro caminho, ou seja, a formalidade dos
procedimentos e sua pretensa universalidade são necessários de forma subsidiaria e não
suficiente. O prioritário da justiça deve ser procurado na historicidade das vítimas, na
sua alteridade negada pela injustiça sofrida. O universalismo procedimental da justiça
formal contempla as vítimas como uma parte do processo e não como o referente ético
do justo. Aqui subjaz uma questão neurálgica que vem a questionar a onipotência da
justiça procedimental e demanda uma atenção especial para a historicidade das vítimas
como critério de justiça.
Se toda injustiça e uma forma de violência, o ponto central da nossa reflexão se
tece entorno da cumplicidade que une a violência com a potência mimética. Toda justiça
de transição se confronta com violências históricas de grande calado, barbáries que têm
que ser julgadas para pensar em novos contextos justos. Para pensarmos uma efetiva
                                                                                                                       
1
Dr. Filosofia. Pesquisador do Programa de Pós-Graduação Filosofia, UNISINOS. Coordenador Cátedra
Unesco – Unisinos de Direitos Humanos e violência, governo e governança.
2
ADORNO, Theodor W. e HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro; Zahar,
2006 p. 150
justiça de transição haveremos de desvendar e confrontar os elos ocultos que vinculam a
perpetuação da violência com sua potência mimética. Só políticas efetivas que consigam
neutralizar a potência mimética da violência conseguiram implementar uma efetiva
justiça de transição. Mas como neutralizar a mimese da violência?
Num terceiro momento, nos propomos a desenvolver a relação que existe entre
esquecimento e mimese da violência, assim como as falsas soluções pretendidas pelas
políticas de esquecimento como forma de superação da violência ou de efetivação da
justiça. No contraste com o esquecimento, desenvolvemos um estudo sobre a
potencialidade da memória para neutralizar o mimetismo da violência. Ainda indicamos
a necessária relação que vincula a memória com a justiça, tendo como referente ético a
memória das vítimas. É o que denominamos de justiça anamnética ou justiça do outro.

Alguns paradoxos da historicidade da justiça


1. A justiça se diz de forma histórica. Qualquer teoria da justiça deve remeter à
genealogia de suas práticas. Não existe a justiça em abstrato, ela se exerce como prática
de poder que regula as relações sociais e os interesses em jogo. Por isso, os critérios
para uma justiça de transição, ou justiça transicional, hão de se confrontar, ainda mais
enfaticamente, com as experiências históricas de injustiça que os reclamam. Longe de
encontrarmos princípios transcendentais acabados para aplicar a qualquer tipo de
justiça, incluída a justiça de transição, somos desafiados a remeter o sentido da justiça
às experiências históricas de injustiça sofrida. A justiça existe como prática discursiva
correlativa à injustiça sofrida pelas vítimas.
Já Aristóteles compreendeu que o poder existe em relação ao outro e só é justo
quando visa a justiça do outro3. A justiça, para ser justa, não pode se dobrar à lógica do
incremento ou preservação do poder (individual ou corporativo), senão que tem que
visar a reparação da injustiça cometida. O justo da justiça se expressa como reparação
das injustiças. A justiça não se identifica com um ou vários princípios transcendentais
que se aplicam ao particular, ela é uma prática dos sujeitos correlata ao modo de
organizar suas relações e interesses.
                                                                                                                       
3
É conveniente registrar que já Aristóteles percebeu esta singularidade da justiça como a virtude que
existe em relação ao outro. “A justiça é no grau supremo a completa virtude. É completa porque aquele
que a possui pode aplicá-la em relação aos outros, e não só a si mesmo [...] Por tal razão, a justiça
parece ser, entre todas as demais virtudes, a única que constitui um bem estranho, um bem para os
outros, e não para si próprio, porque se exerce em relação aos outros ...” ARISTÓTELES. Ética a
Nicómaco. Madri: Austral, 1983, p. 172.
As teorias da justiça -enquanto discursos - podem “ajustar-se”, ou serem
ajustadas, ao jogo de forças e interesses. Uma boa teoria da justiça não garante uma
justiça efetiva. Em qualquer hipótese, a justiça é uma prática de nossa liberdade. Ela é a
forma como justificamos ser livres 4 . Os princípios formais da justiça podem ser
direcionados para vários tipos de práticas. Podem replicar o formalismo da lei e
inclusive, amparados no formalismo da legalidade, podem chegar a legitimar injustiças
graves, como de fato ocorre muitas vezes. Mas os princípios formais também podem se
utilizar para fazer justiça aos injustiçados5. As verdades de qualquer discurso estão
submetidas ao jogo de sentidos e aos interesses em jogo. A justiça, como prática
histórica, não escapa aos jogos de poder6.
2. No contexto das sociedades pós-metafísicas e no âmbito da relatividade das
práticas históricas em que nos encontramos, a referência objetiva que temos para julgar
o justo da justiça é a alteridade humana7. Esta afigura-se como a referência ética
primeira que interpela os jogos de inter-esses ego-istas do individual apresentando-se
como instância julgadora de nossas práticas e valores. A alteridade humana é uma
exterioridade irredutível ao sentido, ela julga todo sentido. As práticas de justiça, para
definir o que é justo em cada circunstância, haverão de se remeter permanentemente à
alteridade dos injustiçados.
Dizer que a justiça está implicada, como prática, na rede do poder, não significa
que deva ser injusta ou serva dos interesses dominantes. A condição histórica da justiça
interpela, em primeiro lugar, à responsabilidade de nossos atos. Ela nos responsabiliza
diretamente por nossas ações, que existem correlacionadas a um outro. A justiça não se
afere de a priori meta-históricos, ela decorre das nossas práticas, opções e decisões. Sua
                                                                                                                       
4
Esta é a tese que desenvolve Emmanuel Levinas ao fazer da justiça o critério da liberdade: “No último
caso, justificar a liberdade não é demonstrá-la, mas torná-la justa.” LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e
Infinito. Lisboa: Ed. 70, 2000, p. 70.
5
MATE, Reyes. Tratado de la injusticia. Barcelona: Anthropos, 2011
6
Neste contexto pode-se interpretar a constatação de Nietzsche quando afirma que a justiça sempre
permanece além do direito, sendo um privilégio do poderoso. NIETZSCHE, F. Genealogia da moral. São
Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 62. O problema de Nietzsche (e/ou dos intérpretes) é quando se
pretende elevar tal constatação (e crítica) empírica a tese “transcendental”. Em tal caso, a justiça é
identificada com a força. Justo é aquilo que tem força para se impor como tal. É o caminho que também
foi demarcado e percorrido por Hobbes e seus seguidores.
7
Levinas é o pensador que tem desenvolvido com mais ênfase a preeminência da alteridade como critério
de justiça irredutível a categorias cognitivas ou transcendentais. “A verdade liga-se assim à relação
social, que é justiça. A justiça consiste em reconhecer em outrem o meu mestre. A igualdade entre
pessoas nada significa por si mesma. Tem um sentido econômico e supõe o dinheiro e assenta já na
justiça – que, bem ordenada, começa por outrem. É o reconhecimento do seu privilégio de outrem, e da
sua autoridade, acesso a outrem fora da retórica que é manha, domínio e exploração. É, nesse sentido,
ultrapassagem da retórica e justiça coincidem”. LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito. Lisboa:
Ed. &0, 2000, p. 59.
historicidade nos torna radicalmente responsáveis pelo modo como a concebemos e
implementamos. Não podemos deduzir o justo da justiça dos meros princípios
transcendentais abstratos ou de procedimentos formais universais, nem podemos
transferir para a racionalidade universal ou à natureza humana a nossa responsabilidade
por eles. Os princípios e procedimentos podem nos auxiliar nos critérios do justo, mas o
justo da justiça tem que ser aferido da alteridade do injustiçado, ou seja, o justo é
relativo à injustiça cometida e que deve ser reparada. Por isso nós somos responsáveis,
também, pelo tipo de princípios e procedimentos que elaboramos para ministrar a
justiça. Eles não se deduzem de forma abstrata, formal e neutra de categorias meta-
históricas.
Afirmar uma certa relatividade dos princípios e procedimentos – eles são
relativos à alteridade injustiçada - não significa cair num relativismo absoluto, nem
negar a sua importância enquanto técnicas para administrar justamente a justiça. Pelo
contrário, a sua relatividade significa afirmá-los em relação ao outro injustiçado, a
vítima. Os princípios e procedimentos da justiça são relacionais, ou seja, relativos à
alteridade humana do injustiçado. Eles não existem de forma pura, abstrata, neutra ou
transcendental. Eles não são meramente aferíveis pela pura dedução racional dos
princípios. Para que a justiça seja justa, eles devem existir. Isso significa que devem
estabelecer-se procedimentos justos para ministrar justiça, mas não podemos derivar o
justo da justiça dos procedimentos que a ministram. O jogo da racionalidade é muito
importante para deliberar as melhores condições da justiça, mas não ela, a
racionalidade, não substitui nossa responsabilidade por determinar o que é justo.
O justo da justiça se encontra vinculado à vontade histórica que o constitui,
porém o justo não é assimilável ao mero jogo de interesses e forças da vontade; como
habitualmente ocorre quando se identifica o justo com a ordem estabelecida e esta com
a lei que a delimita. O justo da justiça é correlativo à alteridade das vítimas injustiçadas.
Este é o paradoxo da justiça: existe como prática histórica dos sujeitos, mas não é
redutível a ela. O justo da justiça remete à alteridade dos injustiçados.
3. A condição histórica da justiça não nos leva necessariamente para o
relativismo ético, em que a força se torna a norma do que é justo. A historicidade da
justiça não significa condená-la a um vazio ético de sentido. A justiça não perambula no
relativismo errante do jogo implicativo de fins e procedimentos. A justiça dos fins e dos
procedimentos não se esgota no círculo aporético de uns e outros. O critério ético da
justiça não pode mais ser procurado nos princípios ius naturalistas dos fins justos nem
nos meios legítimos dos procedimentos corretos. A historicidade da justiça não tem por
que se deslizar para o vazio imprevisível do relativismo ético e seu conseqüente
niilismo.
Como sabemos por tristes experiências históricas, o critério de validade de todo
relativismo absoluto é a violência. Quando se invoca o puro relativismo como critério
ético, a violência se torna o único critério de justiça, tal e como Hobbes, Carl Smitt e
seguidores o pensaram.
Longe do relativismo niilista, o justo da justiça é correlativo à injustiça sofrida
pelas vítimas. Ou seja, o justo da justiça remete à alteridade ferida das vítimas da
injustiça8. A justiça, sendo histórica, tem seu referente ético na alteridade ferida do
outro. Todas as formas de justiça, para conseguir ser justas, hão de reportar-se à
alteridade humana, em especial à alteridade ferida das vítimas. Daí deriva que o
objetivo primeiro da justiça é reparar a condição injustiçada das vítimas e não a mera
preservação da ordem pelo cumprimento da lei, como define a justiça procedimental. A
função procedimental da justiça é um momento segundo (secundário) a respeito do seu
objetivo principal que é: fazer justiça às vítimas. Isso nos torna também responsáveis
pelos procedimentos que utilizamos para ministrar justiça às vítimas, já que eles não são
neutros nem universais absolutos9.
O paradoxal do relativismo histórico da justiça se implica no paradoxo que exige
um relativo universalismo dos procedimentos. Não se pode abdicar de um “tipo de
universalismo” dos procedimentos, porém esse universalismo é relativo à efetivação da
justiça para as vítimas. A validade do universalismo dos procedimentos é aferida da sua
efetiva implementação da justiça para os injustiçados. Caso contrário, haverá que mudar
os procedimentos e seus critérios de universalidade. Um certo universalismo dos
procedimentos é necessário, mas ele é sempre relativo ao contexto histórico em que se
aplica, e tem que se mostrar aberto a sua transformação quando os procedimentos não
mais consigam fazer uma efetiva justiça às vítimas.
A condição histórica da justiça, embora relativize todos os (pretendidos)
princípios transcendentais, não nega a validade (nem a possibilidade) do justo. A
historicidade mostra a condição paradoxal da justiça que sendo relativa aos contextos

                                                                                                                       
8
MARDONES, José Maria e MATE, Reyes (org.) La ética ante las víctimas. Barcelona: Anthropos,
2003.
9
ZAMORA, José Antonio. “La provocación de las víctimas. A vueltas con la filosofía de la historia”. In.
SUCASAS, Alberto e ZAMORA, José Antonio. (org.). Memoria-política-justicia. Madri: Trotta, 2010,
p.. 109-130.
históricos, tem como referente do justo uma exterioridade que a interpela: a alteridade
injustiçada das vítimas.
A sua historicidade desafia a liberdade e compromete a responsabilidade dos
sujeitos envolvidos. Tal responsabilidade se desenvolve sempre em relação à alteridade
humana - em especial às vítimas da injustiça -, e não à preservação da ordem, que
também é subsidiária da alteridade humana. A justiça é uma prática histórica em que os
sujeitos são responsáveis pelas deliberações criadas10. A responsabilidade da justiça se
mede em referência ao outro (que é singular e histórico) e não a princípios abstratos.
Ela é uma prática que se justifica (como justa) em relação à responsabilidade (e aos
efeitos) sobre o outro, especialmente o outro que é vitima da injustiça.
A condição histórica da alteridade ferida da vítima emerge como referência
paradoxalmente universal e histórica da justiça11. Práxis justa é aquela que repara a
injustiça. A reparação se torna, então, o modo justo de implementar a justiça das
vítimas. O fato ou a política que provocaram a injustiça e a alteridade vitimada ficam
julgados pelas conseqüências nefastas sobre a vida humana. Por isso toda justiça há de
ser uma justiça a partir das vítimas, ou seja, uma justiça das vítimas.

Mimese e violência
4. Toda injustiça é numa forma de violência contra o outro. Uma das maiores
dificuldades para pensarmos uma efetiva justiça das vítimas advém dos dispositivos de
invisibilização que as tornam elementos prescindíveis para a justiça. A invisibilidade
das vítimas é produzida por inúmeros meios, entre eles destacamos os dispositivos de
naturalização da violência. Ao naturalizar a violência se naturalizam as vítimas e se
inviabiliza uma justiça efetiva.

A justiça de transição tem a responsabilidade de julgar contextos históricos de


violência extrema. Partimos da tese de que a violência não é um fato pontual que
desaparece totalmente ao cessar o ato violento. A violência não se apaga
sincronicamente ao virar a página do tempo, ela tem uma persistência diacrônica cujos
efeitos perduram no tempo. A lógica do tempo linear não se aplica à violência, seu

                                                                                                                       
10
É neste sentido que Levinas afirma: “No último caso, justificar a liberdade não é demonstrá-la mas
torná-la justa.”. LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Ed. 70, 2000 p. 70.
11
Alain Badiou alerta que a vítima não é reconhecida por ser um mero corpo sofredor. Ela é portadora de
uma certa universalidade. Com isso, a importância da vítima vai além da sua visibilidade (midiática) a
qual depende de uma decisão política que reconheça sua condição (de injustiçada). Nessa encruzilhada, o
reconhecimento da vítima e o da justiça estão atrelados à posição política que as nomeia Cf. Id. Op. Cit.
passado não se apaga com o mero passar do tempo e continua presente de muitas
formas. Os efeitos da violência persistem mesmo quando termina o ato violento. Os
desdobramentos da violência perpassam a linearidade do tempo provocando efeitos
dificilmente mensuráveis pela lógica cronológica de um tempo seqüencial. Na violência
vigora um outro tempo, seus efeitos ecoam além do ato violento para limites
imprevisíveis.

A violência possui uma consistência tal que contamina as estruturas, instituições


e pessoas com quem de uma ou outra forma entra em contato. Ela não desaparece
quando finaliza o ato violento, pelo contrário permanece latejante como potência ativa
nos sujeitos e sociedades que contaminou. Esse potencial contaminante e auto-
reprodutor da violência remete ao que pode se denominar de potência mimética12. Para
entendermos criticamente a história de violência e barbárie que assola nosso continente,
assim como para pensar estratégias que possam neutralizar a violência de Estado, temos
que analisar as entranhas da Górgona, ou seja, sua potência mimética.

Como entender a potência mimética da violência? Como neutralizá-la? Como a


potência mimética da violência afeta a uma justiça transicional? Estas são questões
neurálgicas correlatas com a que denominamos de justiça das vítimas. A violência não
se apaga ao finalizar o ato violento e seus efeitos atuam na forma de eco contaminante
das relações sociais deixando seqüelas indeléveis nas vítimas e nos violadores. O caráter
inconcluso de toda violência costura uma linha de continuidade entre a violência do
passado e nossa violência presente. Embora nos pareça imperceptível, essa linha
alimenta muitas das condutas violências que atualmente nos apavoram. Ela tem um
poder contagiante nas condutas e contaminante das instituições13. É a potência mimética
da violência que induz os sujeitos e as instituições a repeti-la como algo impulsivo,
natural, normalizando os comportamentos violentos como atos naturais.

5. A potência mimética da violência manifesta-se nas formas históricas que a


implementam. Dado que a violência social contemporânea é correlativa ao modo
instrumental de governar a vida humana, ela se torna cada vez mais uma violência
                                                                                                                       
12
Concordamos com Rene Girard a respeito da potência mimética da violência e sua grande influência
nas culturas, comportamentos e instituições sociais. Porém discordamos do caráter naturalista e
compulsório que Girard outorga à mimese da violência. Cf. Id. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e
Terra/UNESP, 2008; Id. O bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004.
13
Temos que considerar, neste ponto, a pertinência das análises de Rene Girard sobre a potência
contagiante da mimese, uma vez que: “este desejo coincide com o contágio impuro”. GIRARD, Rene. A
violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra/UNESP, 2008, p. 188.
biopolítica. É uma violência instrumental e estrutural que objetiva a vida humana e a
captura como objeto de controle e governo. A biopolítica utiliza a violência nas doses
necessárias para controlar as vidas dos grupos sociais perigosos e eliminar de forma
cirúrgica os que considera uma ameaça contra a ordem14. A violência biopolítica se
legitima como necessária para defesa da ordem. Ela elimina, de forma preventiva,
aqueles indivíduos ou grupos que são ameaças potenciais ou reais. O que identifica a
violência biopolítica é sua racionalidade estratégica. A potência mimética da violência
se manifesta na lógica biopolítica através dos dispositivos de controle social. O aumento
daquela reforça a legitimação e o incremento destes. A justiça transicional deverá levar
em conta a dupla característica, mimética e biopolítica, da violência moderna e
contemporânea.

Nas sociedades latino-americanas, a potência mimética da violência


desenvolveu-se de modo peculiar. A violência do genocídio indígena e da escravidão de
afro-descendentes foram os atos constituintes destas sociedades. A barbárie está na
origem genealógica de nossas sociedades latino-americanas. A violência a ela associada
sempre foi legitimada como parte inevitável do avanço da civilização. A violência
biopolítica dos Estados modernos se legitima como atos de governo inevitáveis para
manter a ordem e acelerar o progresso15. O contexto estrutural de legitimação da
violência biopolítica propicia a perpetuação da mimese da violência como técnica
legítima de governo. A mimese de violência biopolítica, se não for neutralizada, conduz
inexoravelmente ao autoritarismo16. Os Estados autoritários se auto-identificam como
portadores do monopólio da violência arbitrária em nome da segurança da sociedade e
da defesa da ordem.

                                                                                                                       
14
Foi Michel Foucault quem desenvolveu amplos estudos sobre a relação entre biopolítica e violência.
“Parece-me que um dos fenômenos fundamentais do século XIX, é o que poderia denominar a assunção
da vida pelo poder: se vocês preferirem,uma tomada do poder sobre o homem enquanto ser vivo, uma
espécie de estatização do biológico ou, pelo menos, uma certa inclinação que conduz ao que se poderia
chamar de estatização do biológico”, cf. FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo:
Martins Fontes, 2000, p. 286-287.
15
Walter Benjamin na sua tese sétima sobre o conceito de história adverte: “[...] nunca houve um
monumento de cultura que não fosse também um monumento de barbárie. E, assim como a cultura não
está isenta da barbárie, não o é, tampouco, o processo de transmissão da cultura.”. BENJAMIN,
Walter. “Sobre o conceito de história”. Id. Obras escolhidas. Magia e técnica,arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1996, p. 225.
16
Há que se levar em conta a tese de Rene Girard: “O desejo liga-se à violência triunfante; ele se esforça
desesperadamente por dominar e encarnar esta violência irresistível”. GIRARD, Rene. A violência e o
sagrado. São Paulo: Paz e Terra/UNESP, 2008, p. 191.
A violência é a sombra de injustiça. Toda injustiça encarna um tipo de violência.
A violência do nosso presente se conecta, de uma ou outra forma, com a violência
histórica mal resolvida. Ela remete à injustiça histórica justificada como ato legítimo.
Para pensar criticamente a desconstrução de uma sociedade violenta, com agentes
violentos, instituições violentas, valores e hábitos sociais violentos, haverá que procurar
sua gênese para além do imediatismo do presente. Há algo de intangível na nossa
história de violência que dificulta sua neutralização e a perpetua como sombra da nossa
realidade social latino-americana. Os estados de exceção vividos nas últimas décadas do
século XX no conjunto dos países do cone sul latino-americano, não devem ser lidos
como meros episódios pontuais da violência histórica. Sua lógica violenta conecta-se
com uma violência histórica mal resolvida que contamina, ainda, as instituições e os
comportamentos de nossa sociedade17.

6. Como entender a mimese? A mimese é uma pulsão que tende a repetir aquilo
que a origina ou ainda imitar aquilo com o qual se relaciona. O que caracteriza a
mimese é a reprodução imitativa do comportamento externo. Não concordamos com a
tese de Rene Girard de que a mimese seja essencialmente violenta, embora
concordamos que a violência é essencialmente mimética. A mimese é uma dimensão do
comportamento humano aberta para muitas possibilidades de ser18. O comportamento
humano é, em grande parte, mimético. Como todo o humano, a mimese é paradoxal.
Walter Benjamin analisou a capacidade mimética do ser humano como uma
característica própria de nossa aprendizagem. No ser humano, segundo Benjamin, a
mimese é correlativa à produção das semelhanças. Por isso, nenhuma das principais
faculdades humanas escapa à mimese19. A (re)produção das semelhanças do que vemos,
pensamos, sentimos e agimos está perpassada pela condição mimética. Para Benjamin, a
própria mimese não se impõe como uma pulsão abstrata no comportamento humano,
senão que: “Esta faculdade (a mimese) têm uma história, tanto no sentido filogenético

                                                                                                                       
17
VIOLA, Solon. “As sombras do tempo entre Cronos e Kairos e as andanças da memória e do
esquecimento”. IN. RUIZ, Castor Bartolomé. Justiça e memória II. Direito a justiça, memória e
reparação, a condição humana nos estados de exceção. Passo Fundo: IFIBE/LEIRIA, 2012, p. 153-166
18
A diferença de Rene Girard, entendemos que todo desejo humano é, também, uma produção simbólica
de sentido que possibilita sua reconstituição para além da mera mimese. Sobre este ponto cf. RUIZ,
Castor M.M. Bartolomé. Por uma crítica ética da violência. São Leopoldo: Unisinos, 2009, p. 87-112.
19
. “A natureza engendra semelhanças: basta pensar na mímica. Mas é o homem que tem a capacidade
suprema de produzir as semelhanças. Na verdade, talvez não haja nenhuma de suas funções superiores
que não seja decisivamente co-determinada pela faculdade mimética”. BENJAMIN, Walter. “A doutrina
das semelhanças”. In. Id. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996,
p. 108.
como ontogenético”20. Desde os primórdios de nossa infância apreendemos de forma
imitativa, mimética. Muito do que somos como pessoa é construído pela mimese.

O caráter histórico, ao mesmo tempo relativo e constituinte, abre a mimese para


a possibilidade de sua reconstituição significativa e simbólica. Essa abertura indica a
responsabilidade que temos ao propor ou impor determinadas práticas que tenderão à
imitação mimética dos outros. A mimese, muito mais do que uma simples imitação, se
explica como uma capacidade humana de produzir as semelhanças, de fazer o
semelhante, de fazer-se semelhante 21. A mimese, por definição, produz um impulso que
tende a imitar um comportamento como se fosse algo natural 22.

A potência mimética da violência possui uma especial conotação, ela tende a


reproduzir como normais as semelhanças da violência. Torna a conduta das pessoas e
das instituições semelhantemente violentas. A mimese naturaliza o comportamento,
neste caso violento, e o reproduz de forma inconsciente como algo normal. Ela
normaliza a violência tornando-a um componente normal da vida social ou uma tática
natural para o governo institucional. A mimese da violência replica sua semelhança nas
atitudes e valores ao ponto de torná-los normais. O dispositivo mimético normalizador
da violência lhe confere um caráter natural, induzindo a sua (re)produção como algo
normal/natural.

A tendência mimética tende a reproduzir a violência praticada ou sofrida como


se fosse uma forma de ação e reação instintiva (natural) do ser humano. A violência,
uma vez praticada ou até sofrida, desencadeia no sujeito e na sociedade uma espécie de
instinto violento que tende a reproduzi-la e perpetuá-la como prática normalizada da
conduta humana. A potência mimética tende a naturalizar a violência como um ato de
normalidade. A normalização é inerente à potência mimética e torna a violência algo
natural23. Os dispositivos de normalização operam na mimese da violência transferindo-
                                                                                                                       
20
BENJAMIN, Walter. Op. Cit. p. 108
21
GEBAUER, G.; WULF, C. Mimese na Cultura. São Paulo, Annablume, 2004.
22
“capacidade mimética desempenha uma função em quase todas as áreas humanas da ação, da
imaginação, do falar e do pensar, e representa uma condição imprescindível à vida social”. GEBAUER,
G.; WULF, C. Mimese na Cultura. São Paulo: Annablume, 2004, p. 21.
23
Embora mantenhamos uma discordância de princípios com Rene Girard sobre sua tese do naturalismo
da violência e o desejo mimético a ela supostamente associado, reconhecemos a importância de seus
estudos sobre o estreito relacionamento que existe entre desejo-mimetismo e violência e que lhes confere
uma aparência de natural: “Há no homem, no nível do desejo, uma tendência mimética que vem do mais
essencial dele mesmo, frequentemente retomada e fortificada pelas vozes de fora. O homem não pode
obedecer ao imperativo ‘ imite-me’, que ressoa por toda parte, sem se ver imediatamente remetido a um
‘não me imite’ inexplicável, que vai mergulhá-lo no desespero e fazer dele o escravo de um carrasco na
lhe um aparente caráter de norma natural do comportamento humano. Na sombra de
todo dispositivo naturalista da violência atua a potência mimética que o normaliza. Esta
impulsiona a auto-reprodução da violência através da imitação do semelhante como se
fosse uma atitude normal dos sujeitos e norma das instituições24. A normalização da
violência consagra a tese de que a violência gera violência, desencadeando a violência
como atitude normal da conduta pessoal e norma das práticas institucionais. O resultado
dessa espiral é a normalização da violência e sua legitimação como uma realidade
inexorável da natureza humana. Nessa condição, ela se pratica como se fosse um
comportamento natural da escala social e institucional. Inclusive, quando naturalizada, a
violência tende a ser exaltada como valor social.

O que escapa ao naturalismo da violência é que a mimese oculta sua gênese


histórica, que lhe outorga essa aparência de naturalidade. A violência naturalizada se
apresenta como algo fatal, embora ela nada seja do que uma prática social produzida em
condições históricas determinadas. No outro lado do naturalismo mimético da violência
opera a replicação das semelhanças miméticas na forma de espiral destruidora da
alteridade humana. Imersos nesta lógica, o único freio possível para uma violência
naturalizada é uma violência maior, uma violência absoluta. O Leviatã é a sombra que
acompanha a violência naturalizada. A mimese, ao naturalizar a violência, a legitima
como uma estratégia biopolítica inevitável de governo25. Se quisermos neutralizar o
potencial destrutivo de qualquer violência teremos que alcançar essa potência mimética
que a naturaliza ao ponto de normalizá-la no comportamento habitual e estratégia
institucional.

Alguns paradoxos da mimese da violência

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           
maioria das vezes involuntário.” GIRARD, Rene. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e
Terra/UNESP, 2008, p. 186
24
Destacamos a ênfase que Benjamin outorga à capacidade mimética do ser humano como possibilidade
de repetir as semelhanças, que no caso da violência implica numa reprodução de si mesma na compulsão
inicial de reproduzir as semelhanças: “O dom de ser semelhante, do qual dispomos, nada mais é que um
fraco resíduo da violenta compulsão, a que estava sujeito o homem, de tornar-se semelhante e de agir
segundo a lei da semelhança”. BENJAMIN, Walter. “A doutrina das semelhanças”. In. Id. Obras
escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 113.
25
Uma das derivações biopolíticas da potência mimética é a teoria do sacrifício necessário. Muitas das
perseguições, torturas e mortes de opositores se legitimam como parte do sacrifício necessário para salvar
o corpo social de um perigo que o ameaça. No contexto dos regimes autoritários, violentos por natureza,
as teses do sacrificialismo de Girard adquirem nova coloração: “Apenas a perspectiva do fora, aquela
que vê a reciprocidade e a identidade e que nega a diferença pode identificar o mecanismo da resolução
violenta, o segredo da unanimidade refeita contra a vítima expiatória” GIRARD, Rene. A violência e o
sagrado. São Paulo: Paz e Terra/UNESP, 2008, p. 211.
7. Uma reflexão sobre a justiça de transição exige um estudo crítico da
violência. A transição remete sempre a um contexto de violência a ser superado de
forma justa.

Para avançar numa teoria crítica da violência se faz necessário realizar uma
distinção conceitual entre agressividade e violência. Ambos conceitos são habitualmente
confundidos como sinônimos, o que leva a uma indistinção conceitual e real entre
agressividade e violência26, e como conseqüência à legitimação do naturalismo da
violência.

É aceitável a tese defendida pela maioria dos etólogos e biólogos de que a


agressividade é um instinto natural próprio de todos os seres vivos, incluído o ser
humano. Ele tem funções vitais importantes, sem ela a vida se encontraria anulada pelas
dificuldades externas. Porém, a agressividade, no ser humano, não necessariamente tem
que derivar em violência porque ambas são realidades conexas porém diferenciadas.

O ser humano é o único ser vivo com abertura para a alteridade. Tal abertura
criou dentro uma fenda no humano entre subjetividade e alteridade possibilitando a
existência de ambas. Sem a fratura que cindiu a naturalidade compulsiva do instinto
natural, o humano seria uma mera espécie animal, mas não seria humano, no sentido
que hoje o conhecemos. A fratura da compulsão naturalista abriu o ser humano para o
Outro como alteridade distinta de si, instituindo a possibilidade de perceber-se como
sujeito diferenciado do outro e do mundo. A emergência da subjetividade se faz a partir
da abertura para a alteridade. Sem esta, a alteridade, não é possível aquela, a
subjetividade. Entre ambas persiste o vão da fratura humana que vincula o ser humano
com o mundo através do sentido e não mais da pulsão compulsiva da natureza. O
sentido é sempre uma construção simbólica das pulsões e das impressões. A abertura
para alteridade institui uma distância entre subjetividade e natureza que possibilita ao
ser humano significar simbolicamente seus instintos.

A agressividade é vivenciada pelo ser humano como pulsão natural que deve ser
significada simbolicamente. Como todas as pulsões, a agressividade está submetida à
                                                                                                                       
26
A indistinção entre agressividade e violência está presente na obra de Sigmund Freud, que utiliza de
forma indistinta os dois conceitos. Afirma, entre outros exemplos, que o instinto de auto-preservação, que
é de natureza erótica, deve ter a sua disposição a agressividade para atingir esse propósito. A indistinção
leva-o a concluir que a violência, assim como a agressividade, é um instinto natural e como conseqüência
irrefreável. Cf. FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro, Imago, Edições Standard,
Tomo XXI , 1969.
significação do sentido que a pessoa e sociedade devem dar para ela. A agressividade,
no ser humano, não se impõe de forma unívoca, senão que como todos os instintos
naturais, para ser humano, passa necessariamente pelo filtro da significação simbólica.
A mediação simbólica possibilita ao ser humano não ser mero receptor passivo da sua
natureza e se tornar um sujeito criativo de suas ações. A agressividade, sendo um
instinto natural, pode ser significada, por exemplo, na forma de esforço, superação de
obstáculos, crescimento pessoal, enfrentamento das dificuldades, etc27. A agressividade
pode ser canalizada simbolicamente na forma de potencia que habilita para a superação
das dificuldades, porém essa potência não tem porque ele ser violenta28. O ser humano é
único ser vivo que tem a potencialidade de dobrar-se sobre sua própria natureza sem
negá-la, porém tem o poder de nessa dobra mediar os instintos da natureza
transformando-os em ações simbólicas. Esta mediação simbólica possibilita distinguir o
instinto da agressividade da ação violenta.

A violência se distingue da agressividade porque aquela é um ato intencional


que visa a destruição da alteridade humana. Enquanto a agressividade se caracteriza por
seu naturalismo, a intencionalidade é a característica inerente à violência. A
agressividade é impulsiva, até compulsiva, a violência é mediada pela intencionalidade.
Sem intencionalidade não há violência, no sentido estrito do termo. Por sua vez, a
violência vai sempre dirigida para destruir, de alguma forma, a alteridade humana.
Intencionalidade e negação do outro são os dois elementos que identificam o ato
violento e o diferenciam da mera agressividade.

Enquanto a agressividade pode ser canalizada, no ser humano, de forma


construtiva, a violência existe como produtora de vítimas. Ela requer a intencionalidade
e a negação da alteridade do outro. Por isso os animais, que não podem significar
intencionalmente seus atos, são agressivos, mas não conseguem ser violentos. Por sua
vez, há muitos atos agressivos que destroem coisas, mas só os atos violentos atingem o

                                                                                                                       
27
Neste sentido que pode ser compreendida a obra de Marcuse, Herbert. Eros e civilização. Rio de
Janeiro: LTC, 1999. Na qual faz uma releitura das posições de Freud mostrando aberturas construtivas do
instinto agressivo.
28
Um outro exemplo da indistinção entre agressividade e violência encontra-se na obra de LORENZ,
Konrad. A agressão: uma história natural do mal. Lisboa: Relógio d´Agua, 2003. Nesta obra Lorenz,
premio Nobel, criador da etologia, defende a agressividade como um instinto natural de todos os seres
vivos com uma função necessária para a sobrevivência. A indistinção entre agressividade e violência,
leva-o a concluir que a violência é natural e que só de forma parcial, ou seja, cultural, poderemos evitar
todos seus efeitos destrutivos.
ser humano. A violência, a diferença da agressividade, existe correlativamente à
negação total ou parcial da alteridade humana.

A violência produz vítimas. Não há violência sem vítimas, nem vítimas sem
violência. A condição de vítima não é algo subjetivo, como pretendia Nietzsche. Se
assim for e quando isso acontecer, estamos perante um mecanismo falacioso de
manipulação do outro. Nestes casos se tornam procedentes a maioria das críticas
nietzschianas às falsas vitimas. Mas a vítima existe contra sua vontade e sofre uma
condição objetiva de violência provocada pela injustiça. A injustiça e a violência
produzem vítimas, que estão nessa condição de forma involuntária porque, de alguma
forma, sofreram uma negação objetiva da sua condição humana. A vítima é o lado
perverso (objetivo) da injustiça e da violência. Eis porque a vítima também se torna o
critério ético e político para julgar a injustiça e a violência sofridas.

8. O primeiro efeito da mimese da violência, por efeito da repetição, é a


naturalização da destruição do outro ser humano. Ainda que a condição da vítima seja o
critério ético para julgar a injustiça e a violência, aquela – a vítima - não está isenta da
contaminação do potencial mimético da violência. O potencial contaminante da
potência mimética também pode afetar as vítimas da violência de modo a induzi-las a
reproduzir como algo normal aquilo mesmo que sofreram. O caráter normalizador do
mimetismo induz, em alguns casos, a que as vítimas da violência tendam a reproduzir
nos outros a mesma violência que eles sofreram em algum momento. A reprodução
mimética do semelhante induz a algumas vítimas a se tornarem violentas como uma
forma de reação à violência sofrida. Esta potencia contaminante do mimetismo violento
talvez esteja por trás de muita violência familiar e violência de gênero em que crianças
que um dia foram violentadas, quando adultos, tendem a violentar os outros. Homens e
mulheres que quando crianças viram a violência familiar como algo normal, podem
repeti-la mimeticamente. De igual forma, grupos sociais ou étnicos que sofreram
violência estrutural durante longos períodos, podem ter uma tendência a produzir a
violência como prática normal de vingança “justa”. A barbárie e a crueldade de muitos
dos genocídios ocorridos entre Hutus e Tutsis (Ruanda), Croatas-Sérvios-Albaneses
(Iugoslávia), não se explicam suficientemente por meros interesses políticos. Em alguns
casos, os que foram vítimas da violência em um momento tornam-se sádicos violadores
dos outros.
Estes casos nos instigam a explorar criticamente a incidência do potencial
contaminante do mimetismo da violência, para pensar práticas apropriadas para sua
neutralização. O mimetismo da violência pode naturalizá-la de tal forma que os sujeitos
percam a distância crítica de suas próprias reações. O mimetismo normaliza as condutas
ao extremo dos sujeitos perderem grande parte do distanciamento crítico de seus
próprios atos, induzindo-os a praticar como normalidade instintiva aquilo que sofreram
como perversão violadora.

9. A potência mimética da violência repercute principalmente sobre o


violentador ou vitimário. Ninguém pratica a violência de forma imune para si mesmo.
O violento não se coloca acima de seus atos como um sujeito externo que transcende
todas as conseqüências. Ele também será afetado pela própria violência. A mimese
replica a violência sobre a subjetividade do violador afetando, em primeiro lugar, sua
sensibilidade humana para com o outro.

A potência mimética naturaliza a violência tornando-a, para o violador, um ato


normal. A normalização da violência replica numa progressiva desumanização do
violador de modo que a cada ato violento tende a perder a sensibilidade humana sobre o
sofrimento do outro. A prática mimética da violência desumaniza o violento ao ponto
dele perder a capacidade de ver no outro um semelhante. O violador, a cada ato
violento, apaga na vítima as feições de um ser humano, de um semelhante, tornando-a
um objeto vazio de sentido. A vitima, para o violador, não tem rosto29. A mimese
corrói, no violador, o seu reconhecimento da alteridade humana do outro. A mimese da
violência embrutece a cada ato violento a consciência do violador ao extremo de poder
transformar o sadismo em prazer. O embrutecimento mimético da violência pode
transformar o sofrimento do outro vitimado num prazer sádico. A história guarda
terríveis experiências das seqüelas sádicas que o mimetismo da violência pode produzir.
As barbáries cometidas nos últimos estados de exceção ao longo de toda América
Latina são inexplicáveis senão pelo embrutecimento dos torturadores que fizeram da

                                                                                                                       
29
Levinas desenvolveu a importância do rosto como categoria ética através da qual a alteridade humana
se revela. A manifestação do rosto é a não violência, sua negação é a pura violência. “O rosto onde se
apresenta o Outro – absolutamente outro – não nega o Mesmo, não o violenta como opinião ou
autoridade ou o sobrenatural taumatúrgico. Fica à medida de quem o acolhe, mantém-se terrestre. Essa
apresentação é a não-violência por excelência, porque em vez de ferir a minha liberdade, chama-a á
responsabilidade e implanta-a. Não violência, ela mantém a pluralidade do Mesmo de do Outro”
LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Ed. 70, 2000, p. 181-182.
tortura um ato de normalidade. O torturador é também um produto da violência30. O
embrutecimento de sua sensibilidade, a normalidade com que violenta os outros, o
sadismo do prazer que sente ao violentar os outros é o resultado de uma subjetividade
desumanizada pela própria violência que ele comete.

O paradoxal é que o embrutecimento desumanizador que a mimese violenta


provoca no violador torna-se condição necessária para que este seja e continue a ser um
violento. Para que alguém possa cometer violência contra o outro como algo normal, há
de sofrer um processo corrosivo da sua sensibilidade humana. Isso significa que, por
exemplo, o torturador há de ser fabricado. As escolas de tortura submetem aos
potenciais candidatos a um longo processo de embrutecimento cuja técnica principal é
interiorizar o mimetismo da violência como algo normal31. O torturador, como todo
violento, não pode ver no outro um semelhante. Ele tem que apagar todos os rasgos
humanos do rosto do outro até convertê-lo num objeto indesejável. Esse processo de
apagamento do rosto do outro é trabalhado através de repetição mimética da violência.
Quem não for capaz de embrutecer-se ao ponto de deixar de ver no outro um
semelhante, não será um bom torturador e deverá desistir. Esta é a triste trajetória
“pedagógica” da Escola das Américas que nos EEUU treinou milhares de torturadores
latino-americanos que semearam o terror de Estado como uma prática normal de
governo biopolítico.

10. A perversão do paradoxo mimético da violência não se pára por um mero ato
externo da vontade do sujeito ou das instituições políticas. A prática da tortura não foi
anulada pelo fato de que o estado de exceção acabou no Brasil. A potencia mimética da
violência que normalizou a tortura como prática de governo, continua a normalizá-la na
sua reprodução mimética em muitos agentes do Estado32. Estes continuam a reproduzir
aquilo que aprenderam de seus superiores e colegas como uma réplica mimética das
semelhanças. A atual prática da tortura no Brasil, sob novas formas e métodos
evidentemente, responde ao efeito mimético da violência que não foi neutralizado de
forma eficiente, porque sempre foi negado. A negação e o esquecimento, como veremos
a continuação, se tornam condição necessária para a reprodução mimética da violência.

                                                                                                                       
30
BURIHAN, Eduardo Arantes. A tortura como crime próprio. SP: Juarez de Oliveira, 2008.
31
GARZÓN, Baltasar; ROMERO, Vicente. El alma de los verdugos. Buenos Aires: Del Nuevo
Extremo/RBA, 2008.
32
RIBEIRO da Cunha, Paulo. “Militares e anistia no Brasil: um dueto desarmônico”. In: TELES, Edson e
VLADIMIR, Safatle. O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010, P. 15-40
As próprias instituições, incluído o Estado, não estão imunes ao mimetismo da
violência. Quando esta se naturaliza como forma de governo, sua prática tende a
perpetuar-se nas sombras dos aparatos do Estado como uma prática normal de (re)ação
com a cidadania ou com os grupos considerados perigosos.

As políticas de esquecimento e negação da violência institucional contribuem,


como veremos a seguir, para potencializar a reprodução mimética da violência nos
aparelhos do Estado. A conjugação, dentro do Estado, da potência mimética com o
monopólio legal da violência engrena uma perigosa maquinaria biopolítica de controle
social. As ditaduras militares latino-americanas são um preclaro exemplo da utilização
biopolítica dessa combinação 33 . As atuais democracias conseguiram substituir os
governos autoritários por governos eleitos, porém, em especial no Brasil, não
conseguiram desarmar a dinâmica da violência de Estado, em concreto a prática da
tortura, como algo normal.

Como neutralizar a mimese da violência?

11. A análise anterior a respeito do mimetismo da violência nos coloca perante o


desafio de pensarmos meios eficientes para sua neutralização. A elaboração de uma
justiça de transição há de levar em conta a questão: quais são as estratégias que
conseguem desarmar o mimetismo da violência? Dificilmente poderá se implementar
uma justiça de transição se concomitantemente não se consegue neutralizar o potencial
mimético desencadeado pela violência no regime anterior. A transição justa exige
neutralizar com eficiência os dispositivos miméticos da violência e da injustiça a ela
associada. A efetiva justiça de transição exige desarmar o mimetismo da violência

Num primeiro momento, cabe apontar algumas falsas soluções propostas para
superar o mimetismo da violência. Há uma lógica biopolítica imersa no mimetismo da
violência que não é captada pelo discurso racionalista, o que torna os discursos formais
do direito insuficientes para neutralizar o mimetismo da violência. Os meros
procedimentos formais, sejam jurídicos ou políticos, de mudanças leis e instituições
dificilmente conseguem atingir o núcleo dinamizador da potência mimética da
violência. Embora a mudança de procedimentos e câmbios institucionais ou de regime
                                                                                                                       
33
Este seria um dispositivo imunitário que a biopolítica utiliza como mecanismo para sacrificar umas
vidas, que considerar ameaçadoras, para preservar as vidas normais. Sobre a dimensão da biopolítica cf.
ESPOSITO, Roberto. Immunitas. Protección y negación de la vida. Madrid: Amorrurtu, 2005
sejam importantes e até necessários para as mudanças sociais, eles por si só não
conseguem exaurir as exigências de uma justiça de transição e são incapazes de
desarmar o potencial mimético da violência. Os atos formais por si só não produzem a
efetiva justiça de transição nem desarmam o potencial mimético da violência. Não foi,
por exemplo, o ato legal de libertar os escravos que eliminou todas as seqüelas da
escravidão no Brasil, nem propiciou sequer um mínimo de justiça às vítimas dessa
barbárie. Muitas transições foram meras transações negociadas entre interesses
dominantes sem levar em contas as vítimas e a reparação das injustiças e violências
contra elas cometidas. A mera mudança de regime, de ditadura para democracia formal,
não é suficiente para realizar uma justiça de transição efetiva, já que ficam impunes
muitos dos delitos e barbáries cometidos pela ditadura 34. Seus agentes continuam
inseridos nos aparatos do Estado, contaminando mimeticamente outros agentes com as
práticas da violência impunemente praticada. A mimese da violência não fica
neutralizada por leis ou decretos formais, ela sobrevive oculta nas práticas dos agentes e
instituições que contaminou anteriormente35.

A mera mudança formal de regime sem uma real justiça de transição deixa a
injustiça cometida contra as vítimas como um saldo colateral a ser pago à “história dos
vencedores”. Uma transição que não leve em conta justiça das vítimas, comete contra
estas uma dupla injustiça condenando-as como um sacrifício necessário para
contemporizar com os vencedores36.

   12. Uma outra prática política amplamente utilizada nos contextos violentos de
transição são os atos formais de esquecimento. O esquecimento inviabiliza uma
autêntica justiça de transição, e contribui para potencializar a reprodução mimética da
violência

O esquecimento, longe de apagar a mimese da violência, se constitui em sua


principal alavanca, pois a violência nunca se apaga por um esquecimento formal. Os
                                                                                                                       
34
BLANK, Theodore, Measuring Transitional Justice in Latin America. Ottawa: Carleton University,
Centre for Security and Defence Studies, WP 06, 2007
35
BICKFORD, Louis. Transitional justice. In HORVITZ, Leslie Alan; CATHEFORD, Christopher.
Macmillan encyclopedia of genocide and crimes against humanity. Nova Iorque: Facts on File, 2004, p.
1045-1047.
36
As vítimas são muitas vezes utilizadas politicamente como moeda de câmbio nas “transações” sociais.
Elas servem como bode expiatório inevitável para preservar a “tranquilidade” da ordem presente. Neste
sentido, a teoria do bode expiatório continua a ser utilizada como técnica biopolítica para justificar o mal
mínimo necessário para preservar a ordem social presente. GIRARD, Rene. O bode expiatório. São
Paulo: Paulos, 2004
atos formais de esquecimento contribuem para uma perpetuação da potência mimética
da violência. A violência nunca esquece, ela sobrevive mimeticamente. Por isso a
amnésia política se torna seu aliado estratégico.

A potência mimética da violência não fica anulada por um ato formal de


esquecimento, ela permanece recalcada na subjetividade dos violadores e nos porões
das instituições. O esquecimento político não é real porque não anula a potência
mimética da violência. Ele contribui para possibilitar que a violência subsista recalcada
nas sombras das instituições. O recalque, neste caso, age como um dispositivo
antropológico com eficiência política. Ele consegue manter oculta a mimese da
violência no marco dos atos formais de esquecimento. A violência que se oculta
recalcada pelo esquecimento formal instiga a continuação de práticas violentas nas
instituições e nas pessoas por ela contaminadas. O recalque possibilita que no
subterrâneo da aparente “normalidade” institucional do Estado de direito se perpetuem
como normais as práticas de violência e tortura como se fossem meios “eficientes” de
governo e polícia. Os agentes contaminados pelo potencial mimético da violência
encontram nos atos de esquecimento formal a justificativa institucional necessária para
a continuação da violência.

O esquecimento formal é público, mas o recalque é clandestino. A ocultação


possibilita a sobrevivência da potência mimética da violência nos porões das
instituições. A violência recalcada, seja nas subjetividades ou nas instituições, constitui
uma potência destrutiva pronta para agir. Os atos formais de esquecimento possibilitam
que a violência subsista recalcada porque não se faz memória nem reconhecimento
público dela. A amnésia pública da violência contribui para que esta continue
praticando-se como ato mimético normalizado. Há uma correlação estreita da amnésia
com a repetição mimética da violência.

Os atos políticos de esquecimento partem do suposto de que a temporalidade


linear conseguirá apagar naturalmente as seqüelas da violência e da injustiça. Porém, a
violência e a injustiça persistem numa temporalidade não linear, mas diacrônica37. O
mero transcurso da temporalidade linear não apaga a potência mimética da violência, só
a oculta. O tempo sincrônico oculta sob aparência de esquecimento a contaminação
                                                                                                                       
37
TOSSI, Giuseppe. “Memória, história e esquecimento. A função educativa da memória histórica”. In.
RUIZ, Castor Bartolomé. Justiça e memória II. Direito a justiça, memória e reparação, a condição
humana nos estados de exceção. Passo Fundo: IFIBE/LEIRIA, 2012, p. 177-196
mimética da violência38. Pessoas e instituições contaminadas pela mimese da violência
tendem a reproduzi-la, quando ficou recalcada na personalidade e nas estruturas. O
passo do tempo só contribui para que a violência encontre novos meios de implementar-
se. A existência oculta da mimese contribui para que a violência se canalize por outros
meios. Oo passo do tempo estimula a mudança dos tipos de violência, mas dificilmente
neutraliza sua potência mimética39.  

A diacronia da injustiça e da violência questiona algumas das pretensões do


contratualismo. Os atos formais que instituem um ponto zero da sociedade mediante o
acordo formal de um contrato, novas constituições, etc., têm a tendência a esquecer
programaticamente o passado40.  Os atos constitucionais contratualistas tendem a pensar
que a sociedade se institui por um ato voluntarista dos sujeitos desse momento. Mas
toda sociedade carrega consigo sua história, e com ela as marcas da violência estrutural
mal resolvida e das injustiças históricas não restauradas. A vida humana é diacrônica, o
passado é parte constitutiva de nosso presente. Os atos contratualistas, ao instituir
políticas de esquecimento histórico, contribuem para que a injustiça histórica e a
violência estrutural se perpetuem além dos marcos institucionais. O Brasil é um claro
exemplo disso. A justiça das vítimas questiona a capacidade do mero
procedimentalismo formal para criar processos efetivos de transição. São necessárias
políticas de memória e reparação da injustiça histórica para conseguir uma transição
efetiva da injustiça histórica e da violência estrutural41.

As sociedades latino-americanas em geral, e no Brasil em particular, estão


marcadas por uma sucessão histórica de barbáries institucionais desde seu ato
fundacional: o genocídio indígena e africano. As políticas de esquecimento nunca
desarmaram o potencial mimético da violência, pelo contrário contribuíram para a
banalização da barbárie. Os inúmeros atos de esquecimento político formal só
                                                                                                                       
38
Sobre este ponto cf. GAGNEBIN, Jeanne Marie. “O preço de uma reconciliação extorquida”, In.
TELES. Edson e SAFATLE, Vladimir. O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010, p. 177-186.
39
Neste ponto remetemos aos estudos de Benjamin, em especial suas Teses sobre filosofia da história. Na
tese V, diz: “A verdadeira imagem do passado perpassa veloz. O passado só se deixa fixar, como
imagem que relampeja irreversivelmente, no momento que é reconhecido”. Id. Magia e técnica, arte e
política. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 224.
40
Compartilhamos com Reyes Mate que “o traço mais característico da justiça moderna – traço que
comparte com a justiça dos antigos – é a alergia ao passado.”. MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz.
São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005, p. 267.
41
Neste ponto remetemos a GARCIA, Luciana Silvana. “Nada é impossível de mudar. Julgamento das
violações de direitos humanos ocorridas na ditadura brasileira”. In: RUIZ, Castor Bartolomé. Justiça e
memória II. Direito a justiça, memória e reparação, a condição humana nos estados de exceção. Passo
Fundo: IFIBE/LEIRIA, 2012, p. 227-252.
contribuíram para negar as barbáries históricas cometidas, o que possibilitou que a
barbárie tomasse o rosto de normalidade em nossas sociedades. As políticas de
esquecimento banalizaram a barbárie ao extremo de conviver com a violência extrema e
os Estados de exceção como algo natural de nosso contexto social. Os atos formais de
esquecimento contribuíram de forma decisiva para que a banalização da barbárie se
perpetuasse ao longo dos séculos como atos normais de governo42.

A potência anamnética da justiça ante a potência mimética violência

13. Uma secreta voz ecoa desde a fundura dos tempos clamando por uma justiça
devida, por uma verdade não dita e por uma memória negada. É voz das vítimas da
injustiça histórica que subsiste como potência e memória de uma justiça a ser feita. As
políticas de esquecimento, além de não neutralizar o potencial mimético da violência,
cometem uma segunda injustiça contra as vítimas apagando-as da história. Ao
desconhecer a injustiça sofrida negam a sua existência como vítimas e as condenam ao
esquecimento definitivo, sua segunda morte43.

A mimese da violência estimulada pelas políticas de esquecimento encontra seu


freio na memória. A potência mimética da violência utiliza-se da amnésia para auto-
reproduzir-se. A anamnese consegue neutralizar a mimese pois a potência anamnética
tem a possibilidade de desconstruir o potencial auto-reprodutor da potência mimética.
De que modo acontece isso? Como a memória consegue neutralizar a potência
mimética da violência?

Na memória existe uma potência anamnética que possibilita trazer para o


presente aquilo que permanece oculto no passado44. A anámnese tem uma potência
diacrônica que permite aceder aos porões da mimese violenta trazendo à luz aquilo que
                                                                                                                       
42
Um exemplo das conseqüências das políticas de esquecimento se recolhe no trabalho de. MOREIRA
DA SILVA FILHO, José Carlos. “Amicus Curiae no Caso da Guerrilha do Araguaia perante a Corte
internamericana de Direitos Humanos”. RUIZ, Castor Bartolomé. Justiça e memória II. Direito a justiça,
memória e reparação, a condição humana nos estados de exceção. Passo Fundo: IFIBE/LEIRIA, 2012,
p. 273-294
43
As teses de filosofia da história de Walter Benjamin insistem neste ponto na sua tese VI Sobre o
conceito de História: “[...] O dom de despertar no passado centelhas de esperança é privilégio exclusivo
do historiador convencido de que também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E
esse inimigo não tem cessado de vencer”. Id. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense,
1996, p. 225.
44
Benjamin percebe no passado potencialidades ocultas para redimir o presente. A memória tem a
responsabilidade de resgatar essas potencialidades e torná-las projeto político. Na Tese II Sobre o
conceito de História: “... O passado traz consigo um indicador secreto que o remete à redenção. Acaso
não sentimos a lufada do mesmo ar que respiraram aqueles que nos precederam?”Id. Magia e técnica,
arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 223.
permanecia recalcado. Há na memória uma potência anamnética capaz de desmascarar a
pretensa naturalidade da mimese violenta45.

Num primeiro momento, a anamnese resgata o acontecimento do passado e o


presentifica como um acontecimento da atualidade. Ela consegue recompor na
atualidade os traços do passado. Ela costura as pontes do passado com o presente,
tornando o passado parte de nosso presente46. A violência ocultada pelo recalque do
esquecimento formal encontra-se exposta pela potência anamnética ao debate de sua
barbárie.

O ponto de referência ética que a anamnese utiliza para questionar a potência


mimética da violência é a condição das vítimas. A exposição pública da barbárie é o
começo da neutralização de sua potência mimética. O debate político da violência
provocado pela potencia anamnética das vítimas expõe publicamente lado oculto do seu
mimetismo. A alteridade negada das vítimas é o critério ético a ser utilizado pela
potência anamnética para desmascarar o pretenso naturalismo da potência mimética.

Os atos de memória atualizam as barbáries da violência como um meio eficiente


para evitar a sua repetição. A violência esquecida formalmente tende a repetir-se como
ato de normalidade. O dispositivo naturalizador da violência mimética fica
desconstruído quando confrontado com a memória da barbárie cometida contra as
vítimas. Quando a potência mimética da violência é contrastada com a alteridade
negada das vítimas, sua capacidade auto-reprodutiva se inibe e neutraliza47. Quando
exposta pela memória, a potência mimética da violência perde seu potencial
contaminante. As pessoas e instituições que atualizam a violência com atos de memória
a partir das vítimas, conseguem inibir o potencial de contágio da mimese violenta. As
políticas de memória, ao expor as conseqüências histórias da violência, desarmam a
potência contaminante de sua mimese48. As políticas de memória da violência histórica
inibem sua utilização como dispositivo biopolítico de governo das populações. Os atos
de memória inibem a barbárie, as políticas de esquecimento a perpetuam.

                                                                                                                       
45
Neste sentido que Reyes Mate fala de uma razão anamnética. Cf. MATE, Reyes. Memórias de
Auschwitz. São Leopoldo: Nova Harmonia, 2005, p. 145-176.
46
 Sobre a relação entre memória e história, cf. RICOEUR, Paul. A memória a história e o
esquecimento.Campinas: Unicamp, 2007.  
47
ZAFFARONI, Eugénio Raúl. La palabra de los muertos. Buenos Aires: Ed. Ediar, 2011
48
ZAMORA, José Antonio e MATE, Reyes (org.) Justicia y memoria. Hacia una teoria de la justicia
anamnética. Barcelona: Anthropos, 2011.
Justiça das vitimas: uma justiça anamnética, uma justiça do Outro.
14. O desarme do potencial mimético da violência é concomitante com a justiça
das vítimas. Cada modelo de justiça requisita seus métodos. A perspectiva de uma
justiça a partir das vítimas requer, como condição de possibilidade, a memória. Ela é
uma justiça pensada a partir do outro. O outro, a vítima, interpela o sentido da justiça
para que esta se adéqüe à realidade histórica da injustiça sofrida. É o Outro vitimado
que se torna o critério da justiça. A condição história da injustiça exige que a justiça
seja feita em referência às particularidades sofridas pelo outro injustiçado, a vítima.
Como indicamos inicialmente, a justiça é histórica e sua historicidade exige que seja
relativa à condição das vítimas.
A justiça a partir das vítimas estabelece uma nova relação com o passado49. Uma
relação diacrônica em que o tempo deixa de ser linear. O utilitarismo dominante na
ideologia do progresso reduziu o tempo a uma mera sucessão inevitável dos
acontecimentos. A visão linear do tempo sepulta os acontecimentos do passado num
amontoado de eventos progressivos em que a facticidade do presente se impõe como
releitura dominante dos interesses das elites dominantes. Quem tem o poder de fabricar
o sentido do presente (a elite social) esvazia de sentido os atos de injustiça contra os
vencidos e se auto legitima executores do progresso da história 50. A visão linear do
tempo favorece uma história dos vencedores, na terminologia de Walter Benjamin.
Para o tempo linear, o passado passou e não tem mais sentido que a
rememoração cultural da história. Na lógica linear, o presente existe de forma absoluta.
Na racionalidade cronológica o sentido do acontecimento passado se reduz à
emotividade da mera lembrança ou à erudição dos registros históricos. A compreensão
linear do tempo esvai a insignificância do passado na preeminência do presente. O
tempo que importa é o agora, o qual parece existir independente do passado que lhe
precedeu51.

                                                                                                                       
49
Como diz Pierre Nora, "A verdadeira percepção do passado consiste em considerar que ele não era
verdadeiramente passado". NORA, Pierre (og.). Les lieux de Mémoire.Paris: Gallimard. Vol I, 1984. p.
18.
50
“A Idéia de um progresso da humanidade na história é inseparável da idéia de uma marcha no interior
de um tempo vazio e homogêneo. A crítica da idéia dessa marcha tem como pressuposto a crítica da
idéia dessa marcha”.BENJAMIN, Walter. Ib. Tese 13 Sentido da história, p. 299.
51
Desafiando esta concepção linear e plana da temporalidade Benjamin escreve: “A história é objeto de
uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vaio, mas um tempo saturado da ‘agoras’[...]”
BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história “. Id. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e
política. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 229.
A modernidade utilizou-se da visão linear do tempo para construir o mito do
progresso inexorável da história. Este seria um principio natural da racionalidade
histórica que impulsiona os acontecimentos desde um passado, sempre inferior e
obscuro, para um futuro sempre promissor. Nessa linearidade, o futuro é garantido pela
lei do progresso histórico. Para tal lei o passado é sempre algo que deve superar-se. Na
história agiria uma espécie de dialética progressista que anula os efeitos negativos do
passado abrindo o presente como o momento único importante do futuro que se
avizinha. Nessa tese, a única justiça viável é a instituída pelo contratualismo
procedimental que faz de cada momento histórico um ponto zero da história. Na visão
linear do progresso, o sofrimento das vítimas é interpretado como um efeito colateral
inevitável e até benéfico quando visto desde a ótica do presente52.
Porém, ao pensarmos a justiça desde as vítimas, uma justiça do outro, o passado
ressurge com uma potência significativa que interpela a auto-suficiência do presente.
Qualquer presente existe sobre os lastres do seu passado. E nenhum presente pode
deixar de ser o que o passado lhe legou53. A temporalidade existe como expressão do
fazer humano, por isso não há sociedade nem pessoa que possa olhar para seu presente
senão a partir do seu passado. O que somos está condicionado pelo que fizemos ou
sofremos. Tudo o que passou está vivo no presente que nos constitui, nada do que
aconteceu se perdeu para sempre. A diacronicidade da temporalidade presentifica, para
as vítimas, a injustiça passada como seqüelas que não foram reparadas. As vítimas da
injustiça existem nessa condição enquanto não houver uma justa reparação da injustiça
cometida. A condição de vítima é correlativa à perpetuação da injustiça no tempo.

                                                                                                                       
52
São diversos os pensadores que legitimaram, de uma ou de outra forma, a existência das vítimas como
efeito natural da história, porém um do que mais influenciou foi sem dúvida Hegel: “Mas quando se trata
de um fim em si e por si, o que se chama ventura ou infortúnio deste ou daquele indivíduo particular não
pode ser tomado como momento da ordem racional do universo. Aqui não é o interesse nem a paixão
individual que exigem satisfação, mas a razão, o direito, a liberdade.” HEGEL, G. W. F. A razão na
história. Lisboa: Edições 70, 1995. p. 36. Cabe destacar notáveis pensadores contemporâneos que se
filiam à racionalidade do mercado como lógica inexorável da história que exige o inevitável sacrifício de
vítimas: Hayek, Friedrich. O caminho da servidão. Bibliex Cooperativa, 1991; Nozick, Robert. Anarquia,
estado e utopia. São Paulo: Zahar, 1991; Milton Friedman. Capitalismo e liberdade. São Paulo: Nova
Cultural 1998 .
53
“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-
se de uma reminiscência, tal como ela lampeja no momento de um perigo[...]” BENJAMIN, Walter.
“Sobre o conceito de história”. Id. Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1996, p. 224.
15. Enquanto a injustiça persistir, a vítima continuará submetida a tal condição
de alteridade negada. A condição de vítima é um estado que deve ser superado, pelo
próprio bem da pessoa vitimada. Mas como fazê-lo? Como abandonar a condição de
vítima produzida pelos acontecimentos de um passado inesquecível?
O acontecimento ocorrido é inevitável, porém muitas das suas conseqüências são
reparáveis54. Se a injustiça sofrida não tem como ser anulada enquanto acontecimento
histórico, as condições provocadas pela injustiça podem ser mudadas. Essa é a
responsabilidade da justiça histórica. Só uma justiça que restaure, no possível, a
alteridade ferida poderá contornar o peso injuriante desse passado. As vítimas são um
produto das injustiças passadas. Uma justiça a partir das vítimas remete o presente ao
acontecimento da injustiça passada numa relação de imediatismo diacrônico em que o
acontecimento passado existe como presente. As vítimas da história e a história das
vítimas é parte constitutiva do presente e da justiça exigida. É como “escovar a história
a contrapelo”55. Nada do que passou nos é alheio. A barbárie da injustiça passada nos
interpela responsabilizando-nos a fazer justiça.
As vítimas históricas se tornaram invisíveis para a temporalidade linear por
diversos artifícios. Políticas de esquecimento foram amplamente lavradas como versões
oficiais de uma história dos vencedores. Inclusive a justiça procedimental, ainda que
tenha sua validade enquanto procedimento subsidiário da justiça, muito tem contribuído
a ocultar as feridas da injustiça histórica56. Uma justiça de transição há de tomar a
perspectiva das vítimas como critério ético do justo. Só uma justiça a partir das vítimas
tem a possibilidade de retirar o manto de sua invisibilidade tecido pelo
procedimentalismo sobre as injustiças históricas. Para que a vítima se torne um
referente ético da justiça são necessárias práticas de memória que neutralizem as
estratégias de esquecimento.
Neste contexto, a memória, sob a forma de anamnese, é o recurso das vítimas
contra o esquecimento amnésico da injustiça histórica. Desde tempos imemoriais ambas
dimensões (anamnese e amnésia) se confrontam numa disputa de poder para definir
hermeneuticamente o sentido do justo na história e no presente. A invocação da

                                                                                                                       
54
ALASTUEY DOBÓN, M. Carmen. La reparación a la víctima en el marco de las sanciones penales.
Valencia: Tirant lo Blanch, 2000.
55
Tese 7. BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. Id. Obras escolhidas. Magia e técnica,
arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 225.
56
O paradoxal do esquecimento é que, como afirma Reyes Mate, : “Sem memória não há, pois, injustiça,
mas tampouco justiça”. Id. Tratado de la injusticia. Barcelona: Trotta, 2011, p.292.
memória anamnética 57 ou do esquecimento amnésico são estratégias de poder das
vítimas para reivindicar justiça ou dos verdugos para legitimar seu estatus no presente.

Esclarecimentos e paradoxos da justiça anamnética

16. A modo conclusivo, cabe fazer alguns esclarecimentos paradoxais sobre a justiça
anamnética58. Primeiramente registrar que a potência da anamnese que neutraliza a
potência mimética não advêm do ressentimento, senão da justiça. Não há como negar
que atos de memória podem conduzir a práticas de ressentimento em que a vingança
aparece como alternativa. Mas não é o ressentimento que desativa a potência mimética
da violência. Pelo contrário, o ressentimento, sob qualquer forma, tende a legitimar e
ativar novas formas de violência, ou ainda fazer da violência o caminho único da
transição. O ressentimento é um desdobramento da mimese da violência que a perpetua
como prática social.

A justiça anamnética vai além do ressentimento. Seu objetivo não é aplicar a lei
do talião59, senão restaurar as vítimas na sua condição de alteridade negada. A punição
dos culpáveis é o segundo aspecto da justiça, não por ressentimento, mas para
esclarecimento público do mal cometido. A punição tem por objetivo não deixar impune
a barbárie. Após o devido processo e sentença, cabe pensar o perdão como ato político
de reconciliação, mas não de esquecimento. Quando pensamos na justiça histórica, esta
só poderá realizar-se como memória e reparação a todas as vítimas. Há algo de
imponderável na justiça histórica que a torna um clamor por reparação do irreparável60.

Muitas formas de ressentimento estão associadas ao trauma. Ambas


experiências, ressentimento e trauma, impedem os sujeitos distanciar-se das seqüelas da
violência. A memória tem o papel de recompor o trauma e desarmar o ressentimento.

                                                                                                                       
57
Reyes Mate tem desenvolvido amplamente este conceito de justiça anamnética ao longo de sua vasta
obra. Cf. Id. “La mirada da vítima”. Estudios de Deusto Vol 50/1, Bilbao: Deusto, janeiro-junho 2002, p.
230-243. Cf. também MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz. São Leopoldo: Harmonia, 2005.
58
Sobre a justiça anamnética cf. MATE, Reyes. Memórias de Auschwitz. São Leopoldo: Nova Harmonia,
2005.
59
Mahatma Gandhi avisou que a violência do olho por olho só termina quando todos estivermos cegos
60
Horhkeimer já desenvolveu a tese de que o crime é evidente a quem o comete e a quem o sofre
(vitimário e vítima), mas para que ele seja acessível às gerações futuras será necessário alguém que dele
faça memória. Sem a memória o crime se apagará no esquecimento da história. Admite Horkheimer que
só Deus poderá conservar as injustiças olvidadas e deste modo fazer justiça (divina) aos injustiçados da
história. Ainda termina sua reflexão com uma grave questão: “Pode-se se admitir isto e não obstante
levar uma vida sem Deus? Tal é a pergunta da filosofia”. Id. Apuntes. 1950-1969. Caracas: Monte Ávila,
1976, p. 16.
Sociedades traumatizadas pela violência aderem com facilidade tanto a reações
violentas descontroladas de ressentimento, como também se submetem servilmente ao
autoritarismo amedrontadas pelo medo. Hobbes já apontou que o medo é uma técnica
biopolítica importante quando “bem” utilizada pelos governantes para conduzir as
populações amedrontadas pela violência.

O paradoxo da violência traumatiza é que o trauma não supera senão que recalca
a violência nos sujeitos. O trauma tem aparência da esquecimento; na maioria dos casos
parece ter olvidado o que aconteceu, mas o olvido é fictício. O trauma recalca nos
porões da subjetividade e da sociedade a violência não assumida. O trauma e o recalque
se retroalimentam e provocam a manutenção do dispositivo mimético da violência. O
trauma e o recalque se superam por atos de memória. A memória pode desarmar os
traumas da violência e seus recalques. A memória, dolorosa sempre, da violência
sofrida desmancha a consistência do trauma e repõe aos sujeitos e à sociedade ante a
possibilidade de confrontar-se com seu passado traumático. A exposição do trauma feita
pela memória desarma, em grande parte, a sombra mimética da violência. Algo que os
atos formais de esquecimento não conseguem fazer quando se alicerçam em políticas de
esquecimento. Neste caso, contribuem para manter recalcada a violência no trauma e o
mimetismo permanece latente pronto para agir na normalização da violência.

17. Um desdobramento da justiça anmanética diz respeito a sua relação com o


perdão. É um tema complexo que requer maior espaço para ser desenvolvido, porém a
modo de sinalização do problema podemos indicar que, se houver possibilidade do
perdão, só a memória pode perdoar. Só a memória pode anistiar. O olvido não pode
perdoar porque não lembra. O esquecimento simplesmente nega a realidade da violência
o que lhe inabilita para instituir qualquer forma de perdão. Eivado de um conjunto de
condições históricas exigíveis, é possível pensar uma justiça das vítimas com perdão.
Mas não é possível pensar nem a justiça nem o perdão sem a memória do acontecido. O
perdão sem memória inviabiliza justiça e como conseqüência se converte num ato
arbitrário ou ingênuo que não contribui para neutralizar a mimese da violência. Só a
potência anamnética poderá fazer justiça histórica às vítimas, e ainda desarmar a
potência mimética da violência. Só se poderá se falar em anistia ou perdão como
resultado final de um processo de justiça anamnética.
No marco deste debate convém diferenciar entre perdão e anistia. O perdão
sempre será direito das vítimas, é algo pessoal e até certo ponto intransferível. O perdão
diz respeito à consciência sofrida e humilhada das vítimas e atinge dimensões psíquicas,
vitais e morais em que a vítima tem pleno direito e liberdade para decidir até que ponto
pode ou não perdoar.

O Estado poderá, como máximo, anistiar legalmente, mas não perdoar


moralmente61. O perdão é uma prerrogativa ética das vítimas, que pode ter uma grande
importância política, a depender dos contextos históricos62. Só quem sofreu o trauma da
violência tem a possibilidade de perdoar como ato moral e político extremo. De igual
modo, as vítimas da violência também têm o direito de nunca perdoar63. O perdão é uma
dimensão ética (e teológica) com potencialidades políticas nos contextos de
reconciliação. Mas corresponde às vítimas a iniciativa e o direito do perdoar ou não64. O
Estado poderá anistiar ou não legalmente, mas não tem a prerrogativa do perdão.

Em qualquer das hipóteses, a efetivação do perdão pessoal ou da anistia


institucional só poderão acontecer, para que haja uma efetiva justiça de transição,
através de um ato de memória histórica do acontecido. Só a rememoração possibilita a
superação do trauma da violência. Só a potência anamnética pode desconstruir o poder
mimético da violência. A justiça anamnética exige o devido processo. Os torturadores
hão de ser julgados, processados e condenados. Só depois do devido processo e da
sentença emitida é que se poderá falar na pertinência política da anistia e no direito
moral do perdão. Tanto o perdão como a anistia exigem justiça, e a justiça devida às
vítimas exige o direito à memória e verdade das violências cometidas. A transição não
pode ser feita ao preço da justiça, e a justiça de transição exige, como parte inerente do
justo, o julgamento da verdade e memória do acontecido.

                                                                                                                       
61
Sobre as dificuldades e possibilidades políticas do perdão cf. o último capítulo, “O difícil perdão” de:
RICOEUR, Paul. A memória a história e o esquecimento.Campinas: Unicamp, 2007.
62
cf. ZAMORA, Jose A. ( Org.). El perdón y su dimensión política. In. MADINA, Eduardo; MATE,
Reyes… (org) El perdón, virtud política. En torno a Primo Levi. Barcelona: Anthropos, 2008, p. 57-80
63
GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar –para uma justiça internacional.
Lisboa: Inst. Piaget, 2004.
64
Destacamos a posição de Derrida de que o perdão é incondicional, radical no sentido semântico de que
se perdoa o imperdoável ou não existe o perdão. “Por acaso não tem que manter que um perdão digno
desse nome, se é que alguma vez se realiza, deve perdoar o imperdoável, e isso sem nenhuma
condição?”. cf. DERRIDA, Jacques. “El perdón”. In: In. MADINA, Eduardo; MATE, Reyes… (org) El
perdón, virtud política. En torno a Primo Levi. Barcelona: Anthropos, 2008, p. 123.
A justiça de transição, para ser justa, haverá de ser, de alguma forma, uma
justiça anamnética, uma justiça do Outro. Ou seja, uma justiça a partir das vítimas. No
processo de justiça anamnética, os atos de memória, os monumentos de memória são
quesitos imprescindíveis para neutralizar a violência mimética que permanece recalcada
nos porões das instituições e na sombra do inconsciente humano. A memória pessoal e
institucional é pré-requisito da justiça. Não pode haver justiça sem memória da
injustiça. A memória da barbárie é necessária para que se inicie o devido processo de
julgamento social e histórico do acontecido. Ao reclamar a instituição da comissão da
verdade, a criação de memoriais da violência, o registro público em praças, ruas,
monumentos dos nomes dos vitimados (e não dos ditadores e torturadores como ainda
ocorre em nosso país), ao exigir o julgamento, ainda que de difícil execução no nosso
país, dos responsáveis da barbárie, não se está querendo vingança, nem se está
pretendendo revanche. Os objetivos da justiça anamnética são: neutralizar o potencial
mimético da violência e fazer justiça histórica às vítimas. Pois, o que se oculta pelo
esquecimento, tornará a repetir-se pela impunidade.

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