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FLORESTAN FERNANDES

(Organizador)

COMUNIDADE E
SOCIEDADE
Leituras sobre problemas conceituais,
metodológicos e de aplicação

COMPANHIA EDITORA NACIONAL


EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
SÃo PAULO
6 — Comunidade e sociedade como
entidades típico-ideais
FERDINAND TÕNNIES (*)

DETERMINAÇÃO GERAL
DOS CONCEITOS PRINCIPAIS

I — Relações entre as vontades humanas Comunidade e Socie-


dade na linguagem. As vontades humanas se encontram em re-
lações múltiplas entre si. Cada uma dessas relações é uma ação
recíproca que, enquanto exercida de um lado, é suportada ou
recebida do outro. Essas ações se apresentam de tal maneira que
tendem ou à conservação ou à destruição da vontade ou do ser
opostos: são positivas ou negativas. A presente teoria e os objetos
de sua pesquisa concernirão apenas às relações reciprocamente
positivas. Cada uma dessas relações representa uma unidade na
pluralidade e uma pluralidade na unidade. Compõe-se de exigên-
cias, compensações e ações que passam e repassam e que são
consideradas como expressões das vontades e de suas forças. O
grupo formado por essa relação positiva, enquanto ser ou objeto
que age de uma maneira homogênea para dentro ou para fora,
chama-se uma associação.
A própria relação e, conseqüentemente, a associação, podem
ser compreendidas ou como uma vida real e orgânica — é então
a essência da comunidade — ou como uma representação virtual
e mecânica — é então o conceito da sociedade. O emprego das
palavras escolhidas demonstrará que elas estão fundadas num uso
análogo da língua alemã, mas, até o presente, a terminologia eru-

(*) Ferdinand Tõnnies, Communauté et sociètè (trad. do alemão para o


francês por J. Leif), PUF, 1944, pp. 3-5, 9-11, 19-23, 39-41, 45-47, 49-53. Tradu-
ção de Carlos Rizzi.
Distinções e contrastes conceituais básicos — 97

dita as utiliza indiferentemente e confunde-as arbitrariamente. É


preciso que algumas notas preliminares coloquem a oposição como
um dado. Tudo o que é confiante, íntimo, que vive exclusiva-
mente junto, é compreendido como a vida em comunidade (assim
pensamos). A sociedade é o que é público, é o mundo. Ao con-
trário, o homem se encontra em comunidade com os seus desde
o nascimento, unido a eles tanto no bem como no mal. Entra-se
na sociedade como em terra estrangeira. Adverte-se o adolescente
contra a má sociedade, mas a expressão "má comunidade" soa
como uma contradição. Os juristas falam, é verdade, de sociedade
doméstica, mas o fato é que eles retêm apenas o conceito social
da relação. A comunidade doméstica, ao contrário, com suas ações
infinitas sobre a alma humana, é experimentada por cada um
daqueles que participam dela. Por essa razão, os noivos sabem
que entram no casamento como numa plena comunidade de vida
(communio totius ifitae). Uma sociedade de vida é uma expressão
contraditória em seus próprios termos. Permanece-se em compa-
nhia, mas ninguém pode permanecer em comunidade com outro.
É-se admitido na comunidade religiosa; as sociedades religiosas
existem unicamente como as outras associações, em vista de um
fim qualquer, para o Estado, e esse fim, na teoria, encontra-se
fora delas. Existem comunidades de línguas, costumes, fé, mas
existem também sociedades do trabalho, da viagem, das ciências.
As sociedades comerciais são, desse ponto de vista, particular-
mente significativas; mesmo devendo existir confiança e comu-
nidade entre os membros, não se poderia falar, entretanto, de uma
comunidade comercial. A associação dos dois nomes: comunidade
de ação, seria intolerável. Entretanto, há a comunidade de pro-
priedade: de campos, bosques, pastagens. A comunidade de bens
entre os esposos não será chamada sociedade de bens. Por isso
é que são estabelecidas muitas distinções. Em um sentido geral,
poder-se-á falar de uma comunidade que engloba toda humani-
dade, tal como o quer a Igreja. Mas a sociedade humana é com-
preendida como uma pura justaposição de indivíduos indepen-
dentes uns dos outros. Por outro lado, quando se trata, em um
sentido erudito, da sociedade de um país por oposição ao Estado,
pode-se aceitar esse termo, o qual encontrará então sua signifi-
98 — Comunidade e sociedade

cação apenas com relação à comunidade do povo. Como coisa


e como nome, comunidade é velho, sociedade é novo. Um autor
que estudou, de todos os pontos de vista, as disciplinas políticas,
reconheceu isso sem ser necessário aprofundar-se muito: "Toda
idéia de sociedade, em seu sentido social e político", diz Blunt-
schli (Staatsworterbuch, IV), "encontra um fundamento natural
nos costumes e nas considerações do Terceiro Estado. Na reali-
dade, não é um conceito popular, mas sempre um conceito do
Terceiro Estado. A sociedade tornou-se a fonte e, ao mesmo tempo,
a expressão de tendências e julgamentos gerais: onde a cultura
urbana produz sempre flores e frutos, aí aparece também a socie-
dade como órgão indispensável. O país, entretanto, conhece-os
muito pouco." Por outro lado, sempre se valorizou a vida do
campo, porque nela a comunidade é mais forte e mais viva entre
os homens: a comunidade é a vida comum, verdadeira e durável;
a sociedade é somente passageira e aparente. E, numa certa me-
dida, pode-se compreender a comunidade como um organismo
vivo, e a sociedade como um agregado mecânico e artificial (...).

TEORIA DA COMUNIDADE

I — Formas embrionárias. A teoria da comunidade se deduz,


segundo as determinações da unidade completa das vontades hu-
manas, de um estado primitivo e natural que, apesar de uma
separação empírica e que se conserva através desta, caracteriza-se
diversamente segundo a natureza das relações necessárias e deter-
minadas entre os diferentes indivíduos que dependem uns dos
outros. A fonte comum dessas relações é a vida vegetativa, que
começa com o nascimento. É um fato que as vontades humanas
são e permanecem unidas, ou assim se tornam necessariamente,
na medida em que cada um corresponde a uma disposição cor-
poral que resulta de sua origem ou do sexo. Esta associação, con-
siderada como uma afirmação imediata e recíproca, apresenta-se,
da maneira mais vigorosa, nas três espécies de relações seguintes:
1) a relação entre uma mãe e seu filho;
2) a relação entre homem e mulher, enquanto esposos, relação
Distinções e contrastes conceituais básicos — 99

que deve ser compreendida num sentido natural ou, comu-


mente, animal;
3) a relação entre irmãos e irmãs, isto é, entre filhos que se
reconhecem como descendentes de uma mesma mãe.
Quando, em cada relação de descendentes de uma mesma ori-
gem, o germe, ou tendência, e a força, fundamentados na vontade,
puderem ser representados por uma comunidade, então esses três
casos são os mais fortes e os mais significativos quanto às possi-
bilidades de desenvolvimento do germe. Entretanto, cada um de
uma maneira particular:
A) A relação maternal é a mais profunda, fundada no ins-
tinto ou no prazer; nesse caso, é possível apreender a passagem
de uma associação corporal e espiritual a uma associação pura-
mente espiritual, e esta última leva tanto mais àquela quanto
mais próxima estiver de sua origem. Esta relação exige um longo
tempo durante o qual a mãe está encarregada da alimentação,
proteção e conduta do recém-nascido até que ele seja capaz de
se alimentar, proteger-se e conduzir-se por si mesmo. Mas, durante
esse tempo de progresso, a mesma relação perde em necessidade
e chega a um ponto de separação cada vez mais provável; to-
davia, esta última tendência pode ser suprimida ou combatida
por outros elementos, em particular pelo hábito de viver em
conjunto, pela lembrança das alegrias ocorridas e, sobretudo,
quando o filho reconhece a preocupação e os cuidados maternais.
Mas a essas relações recíprocas e imediatas se juntam circunstân-
cias gerais exteriores, que se associam a elas indiretamente: de-
sejo, hábito, lembrança de objetos do círculo social inicialmente
agradáveis ou que se tornaram agradáveis, saudades de pessoas
conhecidas, amáveis e serviçais, como o pai quando vive no lar,
ou os irmãos e irmãs da mãe, ou do filho, etc.
B) O instinto sexual não exige, de maneira alguma, vida co-
mum durável. De início, ele conduz menos facilmente para uma
aliança recíproca do que para uma sujeição da mulher, a qual,
devido à sua fraqueza natural, pode tornar-se objeto de uma pura
possessão ou ver-se rebaixada à escravidão. É por essa razão que
as relações entre esposos, consideradas como independentes dos.
100 — Comunidade e sociedade

laços de parentesco e como contendo todas forças sociais, devem


ser conservadas pelo hábito de viver junto para transformar-se
numa relação durável e num mútuo acordo. A isso se juntam,
bem entendido, os outros fatores de consolidação já citados, par-
ticularmente a relação para com os filhos gerados como proprie-
dade comum e, em seguida, uma relação geral para com os bens
comuns e para com o governo da casa.
C) Não existe, entre irmãos e irmãs, harmonia tão espontânea,
tão instintiva e conhecimento íntimo tão natural como entre mãe
e filho, ou como entre seres unidos de sexos diferentes, ainda que
este último caso possa coincidir com o dos irmãos e irmãs, pois
não faltam razões para crer que essa harmonia se apresentou
numerosas vezes, em muitas raças, numa época primitiva da hu-
manidade. A esse propósito, é preciso lembrar que, naquela
época, a descendência era contada do lado materno e que nome
e sentimento fraternais se encontravam espalhados no mesmo
grau que o parentesco de primos, e isso de maneira tão geral
que o sentido estrito, como em muitos outros casos, só se tornou
o sentido próprio a partir de uma concepção mais tardia. Entre-
tanto, devido a um desenvolvimento regular nos agrupamentos dos
povos mais importantes, o casamento e as relações entre irmãos
e irmãs e, posteriormente (na prática exótica), não a aliança e o
laço de sangue, mas a aliança e o parentesco de clã, se excluem
com rigor absoluto. Assim, o amor fraternal, que se fundamenta
ainda no laço do sangue, pode ser apresentado como a mais hu-
mana das relações entre os homens. Observa-se também, compa-
rando-se as outras duas formas de relações, que onde o instinto
é mais fraco, a reflexão parece cooperar mais fortemente para a
gênese, conservação e consolidação dos laços do coração. Pois, se
foi provado que os filhos da mesma mãe, pelo fato de viverem
e permanecerem com ela e juntos, associam necessariamente em
sua lembrança a pessoa e a vida dos outros a todas impressões
de acontecimentos agradáveis, com exceção das razões de hosti-
lidade capazes de entravar essas tendências, então esse grupo é
constituído mais cedo, mais forte e mais estreitamente, e isso tam-
bém na medida em que for ameaçado pelo exterior e pelas cir-
cunstâncias que contribuem para tornar mais unida a comunidade
Distinções e contrastes conceituais básicos — 101

de luta e de ação. Em seguida, o hábito torna essa vida ainda


mais fácil e atraente. De irmãos pode-se esperar, portanto, no
mais alto grau possível, uniformidade de existência e de forças,
da qual podem resultar, em seguida, as diferenças de inteligên-
cia ou de experiência enquanto fatores puramente pessoais ou
mentais (...).

DIGNIDADE E ENCARGO -
A DESIGUALDADE E SEUS LIMITES

Toda dignidade, enquanto liberdade e honra particulares e


mais amplas, deve ser considerada como um domínio determi-
nado da vontade e deve provir da esfera geral e uniforme da
vontade da comunidade. Assim, ela tem por obrigação o encargo,
enquanto liberdade e honra particulares e mais restritas. Toda
dignidade pode ser considerada como encargo e todo encargo
como dignidade, ao menos numa certa medida. A esfera da von-
tade comum é uma massa de determinada força, poder e direito,
uma soma de querer e poder enquanto obrigação e dever. É por
essa razão que se apresentam a natureza e o conteúdo de todas
esferas das vontades derivadas, nas quais direito e obrigação são
os dois lados correspondentes da mesma coisa, nada mais que as
modalidades subjetivas de uma mesma substância objetiva de
direito e de força. Desse modo, existem e nascem desigualdades
reais no interior da comunidade, tanto pelas obrigações e pelos
direitos amplos e restritos, como pela própria vontade da comu-
nidade. No entanto, elas podem estender-se somente até um de-
terminado limite, pois além desse limite cessa a existência da o>
munidade enquanto unidade das diferenças: de um lado (para
cima), porque a força do direito pessoal torna-se muito grande
e, conseqüentemente, sua ligação com a força do direito geral
torna-se indiferente e sem valor; de outro lado (para baixo),
porque a força própria torna-se muito pequena e sua ligação,
irreal e sem valor. Quanto menos os homens ficarem em contato
uns com os outros, associados à mesma comunidade, mais eles se
comportarão uns com relação aos outros como sujeitos livres de-
pendentes de sua vontade e de seu poder próprios, E essa liber-
102 — Comunidade e sociedade
dade é tanto maior quanto menos dependente, quanto menos
experimentada pela vontade pessoal previamente determinada e
quando, conseqüentemente, essa vontade menos depender de uma
vontade comunitária qualquer. Pois, para a natureza e formação
de qualquer hábito individual ou de qualquer maneira de sen-
tir, existe, enquanto fator importante e fora das forças e das
tendências congênitas, alguma vontade comum, educadora e dire-
triz; essa vontade pode ser, em particular, o espírito de família,
ou também qualquer espírito semelhante ao espírito de família
ou que age à sua maneira.

VONTADE COMUM - COMPREENSÃO -


DIREITO NATURAL - LÍNGUA
- LÍNGUA MATERNA - CONCÓRDIA

Deve-se entender por compreensão (consensus) sentimentos


recíprocos comuns e associados, enquanto vontade própria de
uma comunidade. A compreensão representa a força e a simpatia
sociais particulares que associam os homens enquanto membros
de um todo. E, pelo fato de toda tendência do homem estar unida
à razão e supor as disposições da língua, a compreensão pode
também ser considerada como a significação e a razão das con-
dições da língua. Conseqüentemente, entre o progenitor e seu
filho, por exemplo, ela existe apenas na medida em que o filho
é dotado da língua e de uma vontade razoável. Em outras pala-
vras, tudo o que pertence à significação de uma relação comuni-
tária e que tem um sentido nela e para ela própria representa
seu direito, isto é, é respeitado como a vontade realmente exis-
tente da maioria dos associados. Portanto, na medida em que
corresponder à sua verdadeira natureza e às suas forças, na me-
dida em que o gozo e o trabalho forem distintos e, sobretudo,
na medida em que de um lado existir o mando e, de outro, a
obediência, esse direito é um direito natural, uma regra da vida
comum que determina o domínio ou a função de cada vontade,
uma soma de obrigações e de prerrogativas. A compreensão, por-
tanto, baseia-se num conhecimento íntimo uns dos. outros, na
Distinções e contrastes conceituais básicos — 103

medida em que ela é condicionada por uma participação direta


de um ser na vida dos outros pela inclinação de partilhar suas
alegrias e sofrimentos; ela exige essa participação ou essa incli-
nação. E ela é tanto mais verdadeira quanto mais se assemelharem
as constituições e as experiências, ou quanto mais o natural, o
caráter e as maneiras de pensar forem da mesma natureza, ou
de natureza homogênea. O verdadeiro órgão da compreensão,
onde ela desenvolve e forma sua existência, é a própria língua,
em sua expressão comunicativa e receptiva de gestos e de sons
que traduzem a dor e o prazer, o medo e o desejo e todos os
outros sentimentos ou emoções. Gomo se sabe, a língua não foi
inventada à maneira de um objeto, nem convencionada como um
meio para se fazer compreender, mas ela é uma harmonia viva
por seu conteúdo e por sua forma. Semelhante a todos os outros
meios de exteriorização conhecidos, sua expressão é conseqüência
involuntária de sentimentos profundos e de pensamentos predo-
minantes, e não vem de uma intenção de se comunicar, como no
caso de um meio artificial que se baseasse numa incompreensão
natural, mesmo se a língua fosse, entre aqueles que a compreen-
dem, utilizada como um simples sistema de sinais ou à maneira
de outros sinais convencionais. Sem dúvida, todas essas demons-
trações podem também se apresentar como manifestações de sen-
timentos hostis ou benevolentes. Isto é tão verdadeiro que se é
tentado a formular a seguinte proposição geral: os sentimentos
ou inclinações hostis ou benevolentes são submetidos às mesmas
condições ou a condições análogas. Mas é preciso distinguir total-
mente aqui a inimizade proveniente da ruptura ou do relaxa-
mento de ligações que existem naturalmente, dessa espécie de
inimizade que se funda no desconhecimento, na incompreensão e
na desconfiança. Todas as duas são instintivas, mas a primeira é
natural da cólera, do ódio e do despeito, a segunda é natural
do medo, da aversão, da repulsa; a primeira é aguda, a segunda
crônica. Seguramente, a língua, como todas outras mediações da
alma, não se originou nem de uma nem de outra inimizade, que
são apenas estados extraordinários e patológicos, mas sim da con-
fiança, da profundidade do sentimento, do amor e, sobretudo,
104 — Comunidade e sociedade

dessa relação profunda entre mãe e filho: a língua materna deve


nascer e desenvolver-se da maneira mais fácil e viva.
De fato, a unidade e a possibilidade de uma comunidade das
vontades humanas se apresentam, em primeiro lugar e de maneira
mais imediata, nos laços do sangue; em segundo lugar, na aproxi-
mação espacial e, finalmente, para os homens, na aproximação
espiritual. É nesta classificação, portanto, que devemos procurar
as raízes de todas as relações (associações). Daí nós construímos
as leis principais da comunidade: 1) Pais e esposos se amam
reciprocamente ou se habituam facilmente uns aos outros, falam
e pensam juntos de bom grado e freqüentemente; da mesma
forma os vizinhos e outros amigos; 2) Entre aqueles que se amam
(etc.), existe a compreensão; 3) Aqueles que se amam e se com-
preendem permanecem e moram juntos, regulam sua vida co-
mum. A forma geral da vontade comum determinante, tornada
tão natural como a própria língua e que, em conseqüência, con-
tém compreensões muito diversas, cujas formas são fixadas por
suas regras, eu chamo concórdia (concórdia: como uma aliança
cordial e uma harmonia). Compreensão e concórdia, portanto, são
a mesma coisa: vontade comum em suas formas elementares, com-
preendida como compreensão em suas relações e ações particula-
res, como concórdia em sua força e natureza gerais.

ESTRUTURA DAS UNIDADES NATURAIS

Resulta do que precede que a compreensão é a expressão mais


simples da existência íntima e da verdade de toda vida real, ha-
bitação e ação comuns. Portanto, ela é de importância geral e
primordial para a vida doméstica; visto que o princípio dessa
vida doméstica se encontra na aliança harmoniosa homem-mulher
com o fim de educar seus descendentes, assim o casamento tem,
mais particularmente, esse sentido (de compreensão) como relação
durável. O acordo tácito, como também pode-se chamar, no que
concerne às obrigações e aos direitos, ao bem e ao mal, pode ser
comparado a uma convenção, a um pacto, mas somente para
fazer-se ressaltar com maior vigor o contraste. Pode-se dizer, da
Distinções e contrastes conceituais básicos — 105

mesma maneira, que o sentido das palavras seja o mesmo que o


dos sinais convencionais e reflexos; no entanto, é o contrário. Con-
venção ou pacto é uma unidade fabricada, decidida, promessa
recíproca que supõe, em conseqüência, a língua assim como uma
visão e aceitação recíprocas de ações futuras propostas, as quais
devem ser expressas em conceitos claros. Tal acordo, quando a
própria ação é determinada implicitamente, pode também ser
implícito, isto é, como se fosse obtido; pode então, por acidente,
ser tácito. Mas, a compreensão é muda por natureza, pois seu
conteúdo é inexprimível, infinito, incompreensível. Assim como
a língua não é convencionada, se bem que, por ela, numerosos
sistemas de sinais possam ser fixados como conceitos, assim a con-
córdia não pode ser construída, embora isso seja também possível
por meio de muitas outras espécies de convenções. Compreensão
e concórdia crescem e florescem, quando suas condições são favo-
ráveis, de determinados princípios. Assim como uma planta nasce
de outra, uma casa (como família) descende de outra, assim tam-
bém o casamento é proveniente da concórdia e dos costumes. Eles
são sempre precedidos não somente de fatos semelhantes que os
condicionam e os criam, mas também de fatos gerais neles con-
tidos e na maneira como se apresentam. Essa comunidade de
vontade existe também nos maiores grupamentos como expressão
psicológica da ligação do sangue, embora mais dissimulada e apa-
recendo entre os indivíduos apenas sob a forma orgânica. Como
a generalidade de uma língua comum aproxima e une os senti-
mentos humanos enquanto possibilidade real de compreensão da
palavra, da mesma forma existe um espírito comum, e mais ainda,
suas manifestações mais altas, costumes e fé comuns, que penetram
nos membros de um povo, símbolos de sua unidade e da con-
córdia de sua vida, embora sem certeza, mas que nele e dele se
estendem com crescente intensidade e alcançam plenamente todas
as divisões e ramos de uma raça; e, sobretudo, de maneira mais
perfeita, as famílias cujo parentesco remonta à formação primi-
tiva e importante de uma associação orgânica dos seres, pelo
sangue ou por aliança, que a família é antes de ser a família,
momento em que ela já possui uma realidade semelhante à sua.
Mas, a partir desses grupos, e por cima deles, formam-se, como
106 — Comunidade e sociedade

suas modificações, os complexos determinados pelo solo que nós


distinguimos segundo a seguinte classificação geral: a) o país;
&) a região ou província, e a representação mais íntima desses
complexos; c) a aldeia. A cidade se desenvolve em parte fora e
em parte ao lado da aldeia, e encontra seu acabamento não nos
objetos naturais, mas num espírito comum que lhe mantém a
coesão; segundo sua aparência exterior, ela é apenas uma grande
aldeia, uma pluralidade de aldeias vizinhas ou uma aldeia cer-
cada com muros, mas que reina como um todo sobre a região
circunvizinha e que forma, em associação com esta, uma nova
organização da província com uma extensão maior no país, e
que transforma uma estirpe, um povo. Entretanto, no interior
da cidade se formam, como seus produtos e frutos próprios, a
associação do trabalho, a corporação ou corpo de ofício, a asso-
ciação do culto, a confraria e a comunidade religiosa; esta comu-
nidade religiosa é, ao mesmo tempo, a última e mais alta mani-
festação da qual a idéia de comunidade é capaz. Mas também,
de maneira semelhante, qualquer cidade, aldeia, povo, estirpe,
geração ou família, pode ser representado ou compreendido como
uma espécie particular de corporação ou de comunidade religiosa.
Inversamente, todas essas diferentes formações estão contidas ou
provêm da idéia de família, enquanto expressão geral da reali-
dade comunitária (...).

TEORIA E SOCIEDADE

Fundamento negativo — Igualdade de valor — O julgamento


objetivo. Segundo a teoria da sociedade, esta é um grupo de
homens que, vivendo e permanecendo de maneira pacífica uns
ao lado dos outros, como na comunidade, não estão organica-
mente unidos mas organicamente separados; enquanto que na
comunidade estão unidos, apesar de toda separação, na sociedade
estão separados, apesar de toda ligação. Não existem aqui ativi-
dades que poderiam ser derivadas de uma unidade a priori e de
maneira necessária; as quais, portanto, na medida em que são
produzidas pelo indivíduo, exprimem nele a vontade e o espírito
Distinções e contrastes conceituais básicos — 107

dessa unidade, realizando-se pois para aqueles que estão associa-


dos como para si mesmo. Aqui, cada um é para si e está em um
estado de tensão em face de todos os outros. Os domínios da
atividade e do poder estão claramente limitados uns com relação
aos outros, de tal maneira que cada um os defende diante do
outro, o contato e a entrada que são considerados como ação
inimiga. Tal conduta negativa é normal e é o fundamento da
posição desses "sujeitos-forcas" uns com relação aos outros, e
caracteriza a sociedade no estado de paz. Ninguém fará alguma
coisa para o outro, ninguém desejará conceder ou dar alguma
coisa ao outro, a não ser em troca de um serviço ou de um dom
estimado pelo menos como equivalente ao seu. E é mesmo neces-
sário que o dom ou serviço lhe sejam mais úteis que o que ele
dá, pois somente o recebimento de alguma coisa que lhe pareça
melhor o decidirá a fazer o bem. Mas, se cada qual tiver essa
vontade, é evidente que a coisa a para o sujeito B pode ser melhor
que a (coisa ò; do mesmo modo, a coisa b para o sujeito A pode
ser melhor que a coisa a. Mas, segundo essas relações, a não pode
ser melhor que b, nem b melhor que a ao mesmo tempo. Assim
se coloca o problema: em que sentido, em geral, pode-se falar de
bem ou de valor de coisas que dependem de tais relações? A isso
se pode responder: na representação aqui dada, todos os bens são
supostos separados, como seus sujeitos; o que alguém possui e
do qual desfruta, ele o faz de uma maneira exclusiva com relação
a todos os outros; na realidade, não existe aqui bem comum. Tal
bem pode existir por ficção dos sujeitos; entretanto, essa ficção
só é possível pela construção de um sujeito comum com uma von-
tade imaginada, ao qual deve relacionar-se esse valor comum.
Entretanto, tais ficções não são inventadas sem uma razão sufi-
ciente. Essa razão já existe no simples ato da doação ou recebi-
mento de um objeto, na medida em que ocorrer assim, um con-
tato e a constituição de um domínio comum desejado pelos dois
sujeitos, domínio que persiste durante o tempo da "transação";
este tempo pode ser considerado como muito curto, ou igual a
zero, mas pode ser também representado como prolongado à
vontade. Durante esse tempo, tal parte que se destaca, por exem-
plo, do domínio de A, cessou inteiramente de estar sujeita à sua
108 — Comunidade e sociedade

vontade e poder; ela não começou ainda a estar inteiramente


sujeita à vontade e ao poder de B: está ainda sob o domínio
parcial de A e já sob o domínio parcial de B. Essa parte é de-
pendente dos dois sujeitos na medida em que suas vontades esti-
verem igualmente dirigidas por ela, como é o caso enquanto dura
a vontade de dar e receber. Ela é um bem comum, um valor
social. A vontade comum em relação com esse ato e que a ele
se encontra unida pode ser considerada agora como um todo,
que exige ser completada por cada um até o término do ato
duplo. Ela deve ser considerada como uma unidade enquanto
for compreendida como sujeito ou enquanto se lhe atribuir um
sujeito; pois é a mesma coisa pensar algo como existente ou
objeto e pensá-lo como unidade. Entretanto, devemos distinguir
aqui, com cuidado, se tal ens-fictivum existe apenas para a teoria,
e por quanto tempo, ou então se existe também no pensamento
de seus próprios sujeitos para um determinado fim (o que supõe,
aliás, o fato de eles já serem capazes de uma vontade e ação
comuns); pois é ainda outra coisa quando eles são representados
como participantes da causalidade de tudo que é objetivo no
sentido científico (na medida em que ele é, aqui, o que todos
devem pensar nas condições dadas). Sem dúvida, é preciso com-
preender que cada ato da doação e do recebimento, da maneira
indicada, deve conter implicitamente uma vontade social. Por
outro lado, essa ação não é concebível sem seu fundamento ou fim,
isto é, a contrapartida suposta e conseqüentemente o recebimen-
to; mas já que esta última ação está por sua vez condicionada
da mesma maneira, nenhuma pode preceder a outra, elas devem
coincidir no tempo, exprimir de maneira diferente o mesmo pen-
samento: o recebimento é igual ao abandono de determinada
quantidade; de modo que, a própria troca, como ato único, é
o conteúdo da vontade social fictícia. Com relação a esta mesma
vontade, os bens ou valores trocados são equivalentes. Seu jul-
gamento é expresso pela equivalência; ele é válido para os dois
sujeitos na medida em que eles o fixarem em seu acordo e,
conseqüentemente, é válido também unicamente enquanto durar
a troca. Para que ele seja, assim delimitado, objetivo ou univer-
Distinções e contrastes conceituais básicos — 109

salmente válido, ele deve aparecer como um julgamento feito por


todos. E todos devem ter essa vontade única; a vontade de troca
se generaliza; todos participam do ato particular e o confirmam,
e ele se torna absolutamente público. Pelo contrário, a generali-
dade pode também recusar esse ato particular: ela declara que
A não é igual a E, mas sim menor ou maior que B, isto é, que
os objetos não são trocados segundo seu valor real. O valor real
existe com relação a todos, pensado como um bem social comum,
e é constatado quando ninguém faz uma apreciação positiva ou
negativa de um dos objetos com relação ao outro. Ele é razoável,
justo, real, e todos estão de acordo com ele, não por acaso, mas
de maneira necessária; portanto, todos concordam com ele e po-
dem se considerar como associados na pessoa do juiz que julga,
que pesa e que sabe, que torna o julgamento objetivo. Todos
devem reconhecer esse julgamento objetivo e dirigir-se segundo
ele, na medida em que tiverem uma razão e um pensamento
objetivo, empregando em conseqüência a mesma medida e pesando
com a mesma balança (...).

O CONTRATO - DIVIDA E EXIGÊNCIA -


PARTILHA DA PROPRIEDADE

A vontade comum em cada troca, na medida em que esta úl-


tima é considerada como um ato social, chama-se contrato. Ele
é resultante de duas vontades divergentes que, num ponto, se
cruzam. Ele dura até o término da troca, pede e exige os dois
atos que constituem essa troca, mas cada um desses atos pode
decompor-se numa série de atos parciais. Como ele se relaciona
sempre a atos possíveis, esvazia-se de seu conteúdo e cessa assim
que esses atos se esgotam ou se tornam impossíveis: o primeiro
caso representa o término, o segundo a ruptura do contrato. A
vontade particular que entra no contrato se relaciona ou à sua
ação presente e real — como na doação de mercadoria ou de
dinheiro —, ou à sua ação futura ou possível, mesmo que se trate
de um excedente que é pensado, em sua totalidade, como pre-

9 Comunidade
110 — Comunidade e sociedade

sente, conseqüentemente como contendo algo da doação ou do


resto de mercadoria ou de dinheiro, ou que toda essa ação, com
seu início, seja projetada para um momento distante (o prazo);
de modo que, seja para a parte, seja para o todo, a pura vontade
deva ser dada e aceita. A pura vontade pode também ser evi-
dente de outras maneiras, porém somente será certa quando for
expressa em palavra. Dá-se então a palavra no lugar da coisa.
Ela tem, para aquele que recebe, o valor da coisa na medida
em que a associação da palavra e da coisa é necessária, portanto
na medida em que para ele a reclamação desta última é certa.
Ela não tem valor como "penhor", pois não se pode desfrutar
dela e nem vendê-la como coisa. Mas eqüivale ao abandono ideal
da próxima coisa; o contratante, ao qual esta coisa deve voltar,
recebeu pleno direito sobre ela, o único direito que ele pode
obter por sua própria vontade (e cujo poder atual eqüivaleria ao
fundo natural da propriedade real), precisamente pela vontade
geral social. A sociedade, incapaz de examinar cada caso, presume
no que concerne ao abandono condicionado pela troca, e a troca
de objetos equivalentes. Isso significa apenas que, na sociedade
bem compreendida, não somente a situação atual de cada um, mas
também cada troca e conseqüentemente cada promessa são confor-
mes à vontade de todos, isto é, são consideradas como legais, por-
tanto como geradoras de obrigação. Mas isso exige primeiramente
o acordo do credor, pois somente por sua vontade uma coisa que
lhe pertence (unicamente segundo a base da troca) pode permane-
cer em mãos de outro. Seu acordo pode ser considerado como a
promessa real que ele consente que o objeto ali permaneça e de
onde não retirará antes do prazo. Mas, em geral, quando cada pro-
messa é considerada como uma doação futura de um objeto de
troca, esta troca é então semelhante a uma doação presente, para
um tempo determinado, de uma propriedade condicionada apenas
pela vontade do contrato, e que, como "dívida" do proprietário
com relação a seu "credor", representa uma propriedade negativa,
precisamente a necessidade de ceder o devido por um prazo de-
terminado. A propriedade positiva, no sentido social, é, ao con-
trário, a liberdade absoluta (não compromissada) de dispor de
Distinções e contrastes conceituais básicos — 111

seu bem com relação a cada um durante tempo ilimitado. O


devido é também uma propriedade real para o devedor com re-
lação a cada terceiro, mesmo após o prazo de vencimento (e nisso
se baseia a proteção abstrata da possessão no sistema social do
direito), e, do mesmo modo, com relação ao credor até esse prazo.
É por isso que ele é limitado apenas com relação ao prazo e
somente pela necessidade do pagamento, isto é, termina com este
último. Do mesmo modo, a propriedade do credor sobre o mesmo
objeto, a qual, a partir do prazo, é absoluta contra todos, en-
contra-se até aí negada com todas suas conseqüências pelo direito
do devedor; assim limitada ela se chama "crédito" com relação
ao devedor, como liberdade ou direito de obrigá-lo a pagar a
partir do prazo de vencimento. Conseqüentemente, ela é uma
propriedade comum e partilhada durante o intervalo, enquanto
que a plena possessão pertence ao credor, excetuando-se a dispo-
sição provisória que pertence ao devedor (...).

A ATIVIDADE NA PROMESSA - O DIREITO


DE EXIGI-LA - ASSOCIAÇÃO -
DIREITO NATURAL - CONVENÇÃO

Mas, em cada troca, um objeto eventual pode ser substituído


por uma atividade. A própria atividade é dada e aceita como
um serviço. Como um objeto, ela deve ser útil ou agradável
àquele que a recebe. Então essa atividade é considerada como
uma mercadoria cuja produção e consumo coincidem tempora-
riamente. Enquanto um serviço não for prestado, mas somente
prometido (por oposição à coisa não dada mas somente prome-
tida), a ação é feita de maneira correspondente. Ela pertence de
direito ao credor; após o prazo, ele pode obrigar legalmente o
promitente a realizar o serviço, como pode obrigar legalmente o
devedor ou um terceiro proprietário a entregar uma coisa devida
ou tomá-la por força. Um serviço devido só pode ser obtido por
obrigação. Entretanto, a promessa de um serviço pode ser tanto
bilateral como unilateral, e resultará daí um direito de obrigação
112 — Comunidade e sociedade

conforme. Em conseqüência, nesse sentido, várias pessoas podem


se unir exteriormente por um serviço igual onde cada qual des-
fruta do serviço real do outro como de uma ajuda. Finalmente,
várias pessoas podem entrar em acordo para considerar sua asso-
ciação como um ser existente e independente, de natureza indi-
vidual semelhante à sua, e para atribuir a essa pessoa fictícia
uma vontade particular e a capacidade de comércio, capacidade
de concluir contratos e obrigações. Essa pessoa, como todos os
outros conteúdos possíveis de contratos, só pode entretanto ser
considerada como realmente objetiva na medida em que a socie-
dade parece participar dela e, em conseqüência, confirmar nela
sua existência. Somente assim ela se torna um sujeito da ordem
legal da coletividade e chama-se uma sociedade, uma associação
ou qualquer outro nome semelhante. O conteúdo natural de tal
ordem pode ser resumido nesta fórmula única: pacta esse obser-
vanda, isto é, os contratos devem ser observados, o que supõe
implicitamente uma situação de esferas ou de domínios de von-
tades separadas, cujo contorno real é aceito ou garantido, de
modo que uma mudança aceita e, conseqüentemente legal, de
cada esfera, só pode ocorrer seja a favor, seja contra o arbítrio
de domínios situados fora do sistema, ou ainda no interior do
sistema, apenas por contratos, isto é, com o acordo de todos. Tal
unanimidade de vontades é, segundo sua natureza, momentânea,
limitada, de modo que a mudança, como vir-a-ser da nova si-
tuação, não deve ter duração. Assim, .a regra superior que per-
mite a cada um agir no interior de seu domínio como quiser,
mas não fora dele, não sofreu modificação. Mas, onde existe um
domínio comum, como na obrigação durável e na sociedade, a
própria liberdade, como conteúdo dos direitos, deve ser parti-
lhada a fim de corresponder a esses direitos, ou então deve ser
criada uma nova liberdade artificial e fictícia. A forma simples
da vontade social comum, na medida em que estabelece esse
direito natural, eu a chamo convenção. Determinações positivas
e regras de todas espécies podem ser reconhecidas como conven-
cionais, as quais, segundo sua origem, são de estilo totalmente
diferente, se bem que "convenção" é compreendida muitas vezes
Distinções e contrastes conceituais básicos — 113

como sinônimo de usos e costumes. Mas tudo o que é conforme


ao uso e costume é convencional na medida em que é desejado
e recebido como sendo de utilidade geral e na medida em que
a utilidade geral é desejada e recebida por cada um como sua
utilidade própria. Não é mais aceito nem desejado por causa da
tradição, como herança sagrada dos antepassados. Portanto, os
nomes, costumes e usos não são mais apropriados.

A SOCIEDADE CIVIL - O HOMEM COMO COMERCIANTE


- CONCORRÊNCIA GERAL - A SOCIEDADE EM SEU
SENTIDO MORAL

A sociedade, portanto, pela convenção e pelo direito de um


agregado, é compreendida como uma soma de indivíduos naturais
e artificiais, cujas vontades e domínios se encontram em associa-
ções numerosas, mas que permanecem, entretanto, independentes
uns dos outros e sem ação interior recíproca. Aqui se situa por-
tanto a descrição geral da "sociedade civil" ou "sociedade mer-
cantil", cuja economia política é aplicada para conhecer a natu-
reza e as ações, um estado no qual, segundo a expressão de Adam
Smith, "cada um é um comerciante". Em conseqüência, onde
indivíduos propriamente comerciantes, negócios ou sociedades e
companhias se opõem uns aos outros no tráfico comercial e finan-
ceiro internacional ou nacional, a natureza da sociedade se apre-
senta como num extrato, reflete-se como num espelho côncavo.
Pois a generalidade desse estado não é, de nenhuma maneira
como o imaginara o célebre Schotte, a decorrência direta e ver-
dadeira no novo fato de o trabalho ser dividido e os produtos
trocados. Ela é, antes de tudo, um fim longínquo, com relação
ao qual o desenvolvimento da sociedade deve ser compreendido;
e, em nosso sentido, a existência de uma sociedade, em um deter-
minado momento, ,é real na medida em que esse fim é atingido.
Portanto, esta existência é sempre algo que evolui, que deve ser
considerado como o sujeito da vontade ou da razão geral; e, ao
mesmo tempo (como sabemos), como um sujeito fictício e nomi-
114 — Comunidade e sociedade

nal, que flutua no ar tal como saiu das cabeças de seus suportes
conscientes, que estendem as mãos por cima de todas distâncias,
fronteiras e idéias, desejosos de troca, e que consideram essa per-
feição especulativa como o único país, a única cidade, onde todos
cavaleiros de indústria e aventureiros merchant adventurers
têm um real interesse comum. Assim, a generalidade social é
representada, como a ficção do dinheiro o é pelo metal ou pelo
papel, por toda terra ou por um território delimitado de qual-
quer maneira; pois, nessa compreensão, é preciso fazer abstração
de todas as relações primitivas e naturais dos homens uns com
relação aos outros. A possibilidade de uma relação social supõe
apenas uma pluralidade de pessoas, capazes de produzir e, em
conseqüência, de prometer. A sociedade como coletividade, sobre
a qual deve estender-se um sistema convencional de regras, é,
segundo sua idéia, ilimitada: ela ultrapassa continuamente suas
fronteiras reais ou fortuitas. E como cada pessoa procura nela sua
vantagem própria e aprova as outras somente na medida e pelo
tempo em que estas desejam a mesma vantagem que ela própria,
a relação de todos para com todos, antes e fora da convenção,
e também antes e fora de cada contrato particular, pode ser
compreendida como uma hostilidade em potência ou como uma
guerra latente, excetuando-se os acordos das vontades, como
também os pactos e os tratados de paz. E nisso reside a única
concepção adequada de todas as realidades do tráfico e do comér-
cio, onde todos os direitos e obrigações podem se relacionar a puras
determinações de bens e de valores e sobre a qual, em conseqüên-
cia, deve repousar qualquer teoria do puro direito privado ou
(compreendido no sentido social) do direito natural, mesmo que a
teoria ignore esse direito natural. Compradores e vendedores, em
seus diversos aspectos, situam-se sempre uns com relação aos
outros de tal maneira que cada um deseja e tenta dar o menos
possível de seu próprio bem, e obter o mais possível o bem do
outro. E os verdadeiros comerciantes e negociantes percorrem
diversos caminhos e, durante esse percurso, cada um procura ul-
trapassar o outro e, se possível, classificar-se em primeiro lugar:
procuram obter a colocação de sua mercadoria e a maior quau-
Distinções e contrastes conceituais básicos — 115

tidade possível dessa mercadoria; em conseqüência, eles procuram


repelir-se mutuamente e fazer com que o outro caia, e a perda
de um é ao mesmo tempo o ganho do outro, como em cada troca
particular, na medida em que os proprietários não troquem va-
lores realmente iguais. Isso é a concorrência geral, que ocorre em
muitos outros domínios, mas em nenhuma outra parte tão clara
e conscientemente como no comércio, ao qual em conseqüência
limita-se o emprego da palavra, e que numerosos derrotistas já
descreveram como a ilustração da guerra de todos contra todos,
e que um grande pensador considerou como sendo o estado na-
tural e geral da natureza humana. Mas a concorrência leva tam-
bém em si, como todas as formas dessa guerra, a possibilidade de
seu fim. Também esses inimigos, ainda que dificilmente, decidem
em certas situações como sendo vantajoso aumentarem, permane-
cerem tranqüilos ou mesmo se associarem em vista de um fim
comum (em primeiro lugar e, no mais das vezes, contra um
rival comum). Assim, a concorrência é limitada e transformada
em aliança. E, por analogia com essas relações que se baseiam na
troca de valores materiais, pode-se compreender qualquer sócia-
bilidade convencional cuja regra superior é a cortesia: uma troca
de palavras e de favores na qual cada um parece estar no lugar
de todos e onde todos parecem estimar cada um como seu seme-
lhante, mas onde, na realidade, cada um pensa em si mesmo e
se preocupa, ao contrário, em fazer triunfar entre os outros seu
ponto de vista e suas vantagens. Tudo o que um mostra de
agradável ao outro, ele espera e mesmo exige ao menos um equi-
valente e, em conseqüência, pesa exatamente seus serviços, lison-
jas, presentes, etc., como se fossem determinar os efeitos desejados.
Contratos não formais desse gênero são constantemente concluí-
dos e muitos são incessantemente rejeitados nessa sucessão pelo
pequeno número dos felizes e poderosos. Como, em geral, todas
as condições sociais se fundamentam na comparação de serviços
possíveis ou propostos, aparece claramente aqui porque as rela-
ções referentes a objetos visíveis e materiais e porque atividades
puras e palavras só podem ser impropriamente o fundamento
dessa comparação. Por oposição, a comunidade, como ligação de
116 — Comunidade e sociedade

"sangue", é primeiramente a relação dos corpos que se exprimem


em ações e palavras; as relações comuns com relação aos objetos
são de natureza secundária, não sendo esses objetos tão comer-
cializados quanto possuídos e utilizados em comum. A sociedade
é, no sentido que podemos chamar moral, condicionada comple-
tamente por suas relações com o Estado, o qual, até o momento,
não é objeto do presente estudo, pois a sociedade econômica
deve ser considerada como precedendo-o.

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