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Chico Buarque - Construção

Construção é uma das músicas mais aclamadas de Chico Buarque: ela


já foi eleita como a melhor música brasileira de todos os tempos
pela revista Rolling Stone e o motivo de tanto sucesso não é segredo
pra ninguém.

Ela possui uma montagem rítmica singular, letra enigmática e uma


crítica social fortíssima e, apesar de ter sido composta na década de
70, ainda hoje faz muito sentido.

O disco que traz a música Construção foi composto enquanto Chico


Buarque vivia fora do Brasil devido à ditadura militar, De volta ao país,
ele chegou pronto para lançar um dos trabalhos mais críticos e
conceituais de toda sua história.

Análise da música

Construção conta a história de um homem que sofre um acidente


durante o trabalho. Em quatro momentos distintos, a narrativa nos
permite entender passo a passo o que aconteceu durante o dia do
trabalhador até a tragédia final.

Existem várias teorias que tentam explicar o significado da música,


principalmente pelo modo como ela foi organizada.

Uma delas afirma que a troca das palavras na hora de repetir a história
é uma forma de generalizar, mostrando que o acontecimento narrado
é algo comum e acontece diariamente.

Outra teoria diz que a música apresenta três formas diferentes de contar
a mesma história, para mostrar que a interpretação sobre a situação
pode ser bem diferente de acordo com quem narra.
Chico Buarque já disse que não teve intenção de direcionar sua música
para nenhuma dessas interpretações - a ideia era mesmo montar uma
composição em blocos, como uma construção, por isso o uso das
palavras com mesma sonoridade no fim das frases.

Análise da primeira parte


Amou daquela vez como se fosse a última
Beijou sua mulher como se fosse a última
E cada filho seu como se fosse o único
E atravessou a rua com seu passo tímido

A música começa com o início do dia do trabalhador, que se despede de


sua mulher e de seus filhos e sai de casa.

Subiu a construção como se fosse máquina


Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico
Seus olhos embotados de cimento e lágrima

Chegando ao trabalho na construção, o homem sobe e começa a


trabalhar como se fosse máquina. essa afirmação pode significar duas
coisas: ele trabalhava de maneira mecânica, repetindo movimentos já
treinados.

Ou, em outra explicação, ele era desumanizado e trabalhava em


condições precárias, fazendo um trabalho mais pesado do que o corpo
humano é capaz de suportar.

A palavra embotado significa algo que perdeu a energia, o vigor ou a


sensibilidade. em seus olhos embotados de cimento e lágrima podemos
entender que a rotina sofrida fez com que o olhar do homem perdesse a
vivacidade.

Sentou pra descansar como se fosse sábado


Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe
Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago
Dançou e gargalhou como se ouvisse música

No meio de um dia de semana, ele parou para descansar como se fosse


sábado, sem se importar com o fato de ter que trabalhar.

Comeu e bebeu o que tinha como se fossem as melhores coisas do


mundo (e como se fizessem ele se sentir melhor do que era). No fim,
ficou bêbado, dançou e riu como se tivesse algum motivo para se
alegrar.

E tropeçou no céu como se fosse um Bêbado


E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão, atrapalhando o tráfego.

Por acidente, ele tropeça e cai, como se fosse um bêbado e não um


trabalhador. No fim, ele cai na contramão, ou seja, no lugar errado, e
tudo o que faz é atrapalhar.

Análise da segunda parte

A segunda parte da música repete exatamente a mesma estrutura da


primeira, alterando apenas as últimas palavras de cada verso. Apesar
da mudança parecer pequena, o sentido fica bem diferente.

Amou daquela vez como se fosse o último


Beijou sua mulher como se fosse a única
E cada filho seu como se fosse o pródigo
E atravessou a rua com seu passo bêbado

Ao contrário da parte anterior, nessa versão o homem já sai de casa um


pouco bêbado. As palavras alteradas fazem com que o personagem
pareça mais despreocupado e até irresponsável.
Subiu a construção como se fosse sólido
Ergueu no patamar quatro paredes mágicas
Tijolo com tijolo num desenho lógico
Seus olhos embotados de cimento e tráfego

Ele sobe a construção e trabalha de forma rápida, quase como mágica,


apenas seguindo a lógica que já conhece. Enquanto isso, seus olhos se
dividem entre o cimento e o trânsito.

Sentou pra descansar como se fosse um príncipe


Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo
Bebeu e soluçou como se fosse máquina
Dançou e gargalhou como se fosse o próximo

E tropeçou no céu como se ouvisse música


E flutuou no ar como se fosse sábado
E se acabou no chão feito um pacote tímido
Agonizou no meio do passeio náufrago
Morreu na contramão atrapalhando o público

De certa forma, a segunda parte da música trata o caso com menos


seriedade que a primeira. Já sabemos que talvez essa não fosse a
intenção de Chico, mas os versos com as palavras trocadas parecem
colocar mais culpa na vítima.

Análise da terceira parte

Por fim, na terceira vez a história é resumida, com dez versos a menos
e novamente com as palavras finais trocadas.

Amou daquela vez como se fosse máquina


Beijou sua mulher como se fosse lógico
Ergueu no patamar quatro paredes flácidas
Sentou pra descansar como se fosse um pássaro
E flutuou no ar como se fosse um príncipe
E se acabou no chão feito um pacote bêbado
Morreu na contramão atrapalhando o sábado

Os dois últimos versos dessa parte são os mais cruéis da história,


resumindo o homem a alguém que, por irresponsabilidade, caiu no
meio da rua e atrapalhou o dia dos outros.

Por outro lado, esse resumo também pode ser visto como uma forma de
tornar a história mais impessoal e generalizar a situação.

Análise da quarta parte

Por fim, Chico termina Construção com três estrofes emprestadas de


outra música, Deus Lhe Pague. Nesse contexto, a segunda música
parece entrar como uma resposta do trabalhador que acabou de morrer
a quem o culpou por atrapalhar o sábado.

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir
A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir
Por me deixar respirar, por me deixar existir
Deus lhe pague

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir


Pela fumaça e a desgraça que a gente tem que tossir
Pelos andaimes pingentes que a gente tem que cair
Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir


E pelas moscas bicheiras a nos beijar e cobrir
E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir
Deus lhe pague
Essa parte é uma ironia, em que o narrador agradece por aquilo que
é seu por direito, e até pelas coisas ruins que ele tem que suportar no
dia a dia.

A forte crítica social em Construção

No início da década de 70, o Brasil tinha milhares de pessoas migrando,


saindo do interior em direção às grandes capitais em busca de trabalho
e melhores condições de vida.

Chegando nas cidades, entretanto, encontravam uma situação bem


diferente do imaginado: era difícil conseguir trabalho fixo e as
condições não eram assim tão boas.

Como consequência desse e de outros fatores, a história narrada em


Construção se repetia na vida de várias pessoas.

A crítica trazida pela música é exatamente essa: pessoas morrem


todos os dias por causa de condições ruins de trabalho (e de vida),
e no fim elas acabam se tornando nada mais do que um incômodo para
quem tenta seguir com a rotina apressada. Uma crítica bem profunda e
sempre atual, né?

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