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CASO 01

As dimensões material e procedimental do direito ao


meio ambiente equilibrado
18 de fevereiro de 2017, 8h00

Por Álvaro Luiz Valery Mirra

A Constituição brasileira de 1988, como é de conhecimento generalizado, estabeleceu,


no artigo 225, caput, que ―todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado (...)‖. Segundo se tem entendido, tal direito comporta análise sob os pontos
de vista material e procedimental (ou instrumental). São dois aspectos indissociáveis do
direito ao meio ambiente.

Do ponto de vista material, cumpre ressaltar inicialmente que o direito ao meio


ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental. Embora não incluído
no catálogo dos direitos fundamentais do Título II da Constituição, o direito ao meio
ambiente apresenta, efetivamente, o traço de fundamentalidade, dada a sua vinculação à
preservação da vida e da dignidade humana[1], núcleo essencial dos direitos
humanos[2].

Com efeito, ninguém contesta hoje em dia que o atual quadro de destruição ambiental
no mundo compromete a possibilidade de uma existência digna para a humanidade e
põe em risco a própria vida humana[3]. Por essa razão, afirma Nicolao Dino, uma sadia
qualidade de vida, com a manutenção de padrões estáveis de dignidade e bem-estar
social, não prescinde de um ambiente saudável e ecologicamente equilibrado[4].

Além disso, o direito ao meio ambiente é um direito fundamental de terceira geração


ou dimensão[5], incluído entre os chamados ―direitos de solidariedade‖ ou ―direitos dos
povos‖. E, como tal, o direito ao meio ambiente é ao mesmo tempo individual e
coletivo[6] e interessa a toda a humanidade.

De fato, como direito de solidariedade, o direito ao meio ambiente desprende-se, em um


primeiro momento, de acordo com Ingo Wolfgang Sarlet, da figura do homem
indivíduo como seu titular, destinando-se, muito mais, à proteção de grupos humanos e
coletividades[7]. Trata-se de um direito de titularidade coletiva ou difusa, que tem como
destinatário precípuo o gênero humano[8].

É esse, inclusive, o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal sobre a


matéria[9].

Não obstante, porém, tal dimensão coletiva e difusa do direito ao meio ambiente,
importa ressalvar que o seu perfil individual resta igualmente preservado, na medida em
que o objeto final é, também, a proteção da vida, da qualidade de vida e da dignidade do
homem na sua individualidade[10].

Como direito fundamental, ainda, o direito ao meio ambiente ecologicamente


equilibrado é inalienável, indisponível, irrenunciável e imprescritível[11].
Ressalte-se que referidos predicados do direito ao meio ambiente vêm acentuados na
Constituição Federal pelo reconhecimento da dimensão intergeracional da preservação
da qualidade ambiental, onde esta última se dá no interesse não só das gerações
presentes como também das gerações futuras[12]. À evidência, devido a esse
compromisso com as gerações futuras, não podem os titulares atuais do direito em
questão aliená-lo, dele dispor ou a ele renunciar. Do mesmo modo, por força do perfil
intertemporal do direito ao meio ambiente, as pretensões a ele relacionadas são
imprescritíveis, sob pena de restar comprometido o exercício do direito pelas gerações
que nos sucederem[13].

Na condição de direito de terceira geração, o direito ao meio ambiente apresenta-se,


simultaneamente, como direito de defesa e direito prestacional[14]. Por via de
consequência, impõem-se aos sujeitos passivos — no caso, tanto ao poder público
quanto aos particulares — uma abstenção, um não fazer, consistente em não degradar a
qualidade ambiental, e, ao mesmo tempo, uma prestação positiva, um fazer, no sentido
da defesa e recuperação da qualidade ambiental degradada[15], tendentes, em ambas as
situações, à obtenção e à manutenção de um status previamente definido no texto
constitucional: o meio ambiente ecologicamente equilibrado[16].

A dimensão procedimental, por sua vez, traduz, de acordo com Jorge Miranda, a
superação da visão meramente estática dos direitos fundamentais, calcada apenas no seu
conteúdo material, pela adoção, em acréscimo, de uma visão dinâmica, por meio da
consideração dos mecanismos pertinentes à sua implementação e efetivação[17].

Reconhece-se, nessa ótica, como esclarece o ministro Herman Benjamin, que a simples
consagração de direitos fundamentais nas Constituições não assegura, por si só e
automaticamente, o quadro de tutela almejado, fazendo-se imprescindíveis, também,
direitos fundamentais procedimentais, para fins de concretização dos direitos em seu
aspecto material[18].

Em tal perspectiva, é ainda a doutrina do ministro Herman Benjamin, o direito ao meio


ambiente, como direito primário, material, enseja o aparecimento de outros direitos,
derivados, de caráter procedimental ou instrumental, não menos fundamentais,
consistentes no direito à informação ambiental, no direito à participação pública
ambiental e no direito de acesso à justiça ambiental[19]. Isso significa que, no enfoque
procedimental, o direito ao meio ambiente se exerce por intermédio de determinados
instrumentos legais, institucionalizados com vistas a assegurar o seu gozo. São, como
referido, procedimentos que garantem a todos adequada informação em assuntos de
meio ambiente, ampla participação pública na defesa da qualidade ambiental e efetivo
acesso à justiça para prevenção, cessação, correção e reparação de degradações
ambientais[20].

Daí dizer-se que os direitos à informação ambiental, à participação pública ambiental e


ao acesso à Justiça em matéria ambiental são corolários, ou seja, consectários lógicos do
direito fundamental ao meio ambiente, sem os quais este último não se concretiza.

A relevância da dimensão procedimental do direito ao meio ambiente tem sido objeto de


afirmação internacional, seja em instrumentos de âmbito universal, seja em
instrumentos regionais, com ênfase aos três direitos acima aludidos.
Expressivo, no ponto, o Princípio 10 da Declaração das Nações Unidas sobre Meio
Ambiente e Desenvolvimento, adotada na Conferência do Rio de Janeiro de 1992:

―A melhor maneira de tratar de questões ambientais é assegurar a


participação, no nível apropriado, de todos os cidadãos interessados. No
nível nacional, cada indivíduo deve ter acesso adequado a informações
relativas ao meio ambiente de que disponham as autoridades públicas,
inclusive informações sobre materiais e atividades perigosas em suas
comunidades, bem como a oportunidade de participar em processos de
tomada de decisões. Os Estados devem facilitar e estimular a
conscientização e a participação pública, colocando a informação à
disposição de todos. Deve ser propiciado acesso efetivo a mecanismos
judiciais e administrativos, inclusive no que diz respeito à compensação e
reparação de danos‖.

Na esteira do caminho aberto pela Declaração do Rio, sobreveio a convenção


internacional sobre o acesso à informação, a participação do público nos processos
decisórios e o acesso à Justiça em matéria ambiental, celebrada na cidade de Aarhus, na
Dinamarca, em 1998. Embora se trate de um tratado de âmbito europeu, elaborado sob
os auspícios da Comissão Econômica para a Europa das Nações Unidas, o certo é que a
sua importância ultrapassa a esfera de interesse das partes contratantes, devido ao fato
de constituir o texto de natureza mandatória mais completo e atualizado sobre a
matéria[21] e de relacionar, expressamente, a implementação dos direitos à informação,
à participação e ao acesso à Justiça em matéria ambiental com a efetivação do direito
fundamental ao meio ambiente. Ademais, a convenção em questão está aberta à
ratificação por parte de todo e qualquer Estado integrante do sistema das Nações
Unidas.

Mais recentemente, ainda, a questão dos direitos procedimentais de acesso à


informação, à participação pública e à Justiça, decorrentes do direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado, assumiu grande importância no âmbito da América Latina
e do Caribe. Tanto é assim que a Comissão Econômica para América Latina e Caribe —
Cepal, órgão igualmente integrante das Nações Unidas, propôs e passou a coordenar um
acordo regional sobre a matéria[22].

Trata-se, como é fácil de perceber, de um acordo de grande importância para os países


latino-americanos e caribenhos, suscetível de colocá-los no mais alto patamar do Direito
Internacional do Meio Ambiente e de incrementar, na condição de standard mínimo, a
realização, nas respectivas ordens internas, do direito ao meio ambiente sadio e
ecologicamente equilibrado, pela via da garantia dos direitos de acesso à informação, à
participação pública e à Justiça em matéria ambiental. Bem por isso, espera-se, como
vem sendo preconizado por diversos órgãos e entidades da sociedade civil[23], que o
nosso acordo regional assuma, à semelhança da Convenção de Aarhus, a forma de
instrumento mandatório, com aquela imperatividade jurídica própria dos tratados e
convenções internacionais, indo muito além de um documento com as características de
soft law.

No âmbito interno nacional, o Brasil dispõe já há vários anos de mecanismos


institucionais que permitem relativo acesso à informação e à participação nos processos
decisórios ambientais, como os da lei concernente ao acesso público aos dados e
informações existentes nos órgãos e entidades integrantes do Sistema Nacional de Meio
Ambiente (Lei 10.650/2003), as audiências públicas para a discussão de estudos de
impacto ambiental, a participação de indivíduos e entes intermediários em órgãos
colegiados dotados de poderes normativos (por exemplo, o Conama – Conselho
Nacional de Meio Ambiente) e a publicidade inerente os processos de licenciamento
ambiental. Ademais, o sistema constitucional e infraconstitucional pátrio tem diversos
instrumentos processuais capazes de propiciar o acesso participativo à Justiça em
matéria ambiental (ação popular, ação civil pública, mandado de segurança coletivo,
ação declaratória de inconstitucionalidade de leis e atos normativos).

Todos esses institutos, como é fácil de perceber, tenderiam a ser reforçados e


aperfeiçoados com a elaboração do tratado regional latino-americano e caribenho
referido e o intercâmbio com os diversos países signatários que forçosamente dele
decorreria.

[1] SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 3ª ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 129; FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos
Fundamentais e Proteção do Ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no
marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2008, p. 57 e ss.
[2] COMPARATO, Fábio Konder. Os problemas fundamentais da sociedade brasileira
e os direitos humanos. In: COMPARATO, Fábio Konder. Para Viver a Democracia.
São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 36; ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos
Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2004, p.
50.
[3] MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Participação, Processo Civil e Defesa do Meio
Ambiente. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011, p. 103 e ss.
[4] COSTA NETO, Nicolao Dino de Castro e. Proteção Jurídica do Meio Ambiente.
Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 17.
[5] Sobre o tema, com ampla referência doutrinária, FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos
Fundamentais e Proteção do Ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no
marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito, cit., p. 142 e ss.
[6] SILVA, Solange Teles da. Direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado: avanços e desafios. Revista de Direito Ambiental, n. 48, p. 230.
[7] Op. cit., p. 53.
[8] SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 54; LAFER, Celso. A reconstrução dos
direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988, p. 131.
[9] STF – MS 22.164-0/SP – j. 30/10/1995 – rel. min. Celso de Mello.
[10] SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 59.
[11] BENJAMIN, Antônio Herman V. Constitucionalização do ambiente e ecologização
da Constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José
Rubens Morato (Orgs.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 6ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2015, p. 124; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires;
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva,
2007, p. 232.
[12] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 107.
[13] BENJAMIN, Antônio Herman V., op. cit., p. 126.
[14] MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: direito e dever
fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 115 e 121;
FENSTERSEIFER, Tiago, op. cit., p. 185 e ss.
[15] MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: direitos fundamentais. 3ª ed.
Coimbra: Coimbra Ed., 2000, t. 4, p. 542; BARROSO, Luís Roberto. A proteção do
meio ambiente na Constituição brasileira. Revista Forense, v. 317, p. 167; FERREIRA
FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Saraiva,
1995, p. 66; MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 107-108.
[16] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, op. cit., p. 66; MIRRA, Álvaro Luiz
Valery, op. cit., p. 107-108.
[17] Op. cit., p. 93-94.
[18] Op. cit., p. 126.
[19] Op. cit., p. 126-129. Ainda: CAPPELLI, Sílvia. Acesso à Justiça, à informação e
participação popular em temas ambientais. In: LEITE, José Rubens Morato; DANTAS,
Marcelo Buzaglo (Orgs.). Aspectos Processuais do Direito Ambiental. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2003, p. 276-309; DÉJEANT-PONS, Maguelonne. Le droit de
l‘homme à l‘environnement en tant que droit procédural. In: DÉJEANT-PONS,
Maguelonne; PALLEMAERTS, Marc. Droits de l’homme et environnement.
Strasbourg: Conseil de l‘Europe, 2002, p. 21.
[20] BLANCO-URIBE QUINTERO, Alberto. La definición del derecho-deber
individual y colectivo al ambiente en derecho comparado. Caracas: Tribunal Supremo
de Justicia, 2005, p. 72.
[21] FURRIELA, Rachel Biderman. Democracia, Cidadania e Proteção do Meio
Ambiente. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2002, p. 38.
[22] Sobre o acordo regional em questão, acessar
http://www.cepal.org/es/temas/principio-10. Ainda: CAPPELLI, Sílvia. Elementos
esenciales para el acuerdo regional en el acceso a la justicia (acesso pelo mesmo site).
A 6ª Sessão de negociação do acordo ocorrerá em Brasília-DF, no período de 20 a 24 de
março de 2017.
[23] BORN, Rubens Harry. Oportunidades e desafios na 2ª etapa de negociação de
acordo internacional sobre direitos à informação, à participação e à justiça em matéria
ambiental (http://www.esquel.org.br/images/stories/Pdfs/aviso-artigo2.pdf). Assim,
também, têm se pronunciado, entre outros, no Brasil, a Associação Brasileira dos
Membros do Ministério Público do Meio Ambiente (Abrampa), a Fundação Grupo
Esquel Brasil, o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), a
Associação Artigo 19 Brasil, o Instituto O Direito Por Um Planeta Verde e o Fórum
Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento.

Álvaro Luiz Valery Mirra é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito Processual
pela USP, especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade
de Estrasburgo (França), coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e
Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um
Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.
CASO 01

Revista Consultor Jurídico, 18 de fevereiro de 2017, 8h00

Mundo moderno pede responsabilidade social


12 de dezembro de 2009, 8h04

Por Antonio Carlos Aguiar e Marcel Tadeu Silva

O conceito de responsabilidade social das empresas é atual e imprescindível para uma


inserção ética e socialmente justificável das instituições no mundo moderno. A
responsabilidade que exercem no seio da sociedade, como bem destaca a Constituição
Federal, tem ampla abrangência e composição multidisciplinar. Designa as efetivas
funções exercidas no tocante a valores sociais concretos, como os direitos humanos, o
direito do trabalho e o meio ambiente.

O termo, na forma anglo-saxônica, Corporate Social Responsibility (CSR), é recorrente,


em especial nas empresas multinacionais e de maior dimensão. Observa um novo
critério não-financeiro de avaliação, onde são aferidos, entre outros importantes
aspectos, a obediência às normas jurídicas vigentes no país de atuação, respeitando,
portanto, o Estado de Direito. Observa outros pontos de importância social equivalente,
como ―gestão de recursos humanos, a cultura da empresa, a escolha dos parceiros
sociais e das tecnologias, e obriga a uma abordagem integrada das várias dimensões da
empresa‖, conforme ressalta a professora portuguesa Catarina Serra, da Universidade do
Minho.

O desenvolvimento sustentável foi inicialmente identificado em 1987, quando o


relatório final dos trabalhos da Comissão Mundial das Nações Unidas para o Ambiente
e o Desenvolvimento (Comissão Brundtland) destacou que o desenvolvimento
sustentável é aquele que responde às necessidades do presente sem comprometer a
capacidade das gerações futuras, de responderem às suas próprias necessidades.

Em junho de 2001, o Conselho Europeu, reunido em Gotemburgo (Suécia), aprovou a


Estratégia para Desenvolvimento Sustentável, baseada no princípio de que os efeitos
econômicos, sociais e ambientais de todas as políticas devem ser analisados de forma
coordenada e tidos em conta no processo de decisão. E, em setembro de 2002, em
Johanesburgo, em reunião mundial sobre desenvolvimento sustentável, promovida pela
ONU, o então dirigente maior da entidade, Kofi Annan, foi enfático ao pronunciar as
seguintes palavras: ―Não estamos a pedir às empresas para fazerem algo diferente da
sua atividade normal; estamos a pedir-lhes que façam a sua atividade normal de forma
diferente‖.

Esse ―iter‖ de atuação diferenciada vem ganhando corpo principalmente na Europa,


onde se verificam iniciativas salutares, que têm o propósito de divulgar o conceito entre
os membros da comunidade jurídica europeia.

Podemos afirmar, entre esse cipoal de iniciativas positivas para a fixação do conceito de
Responsabilidade Social Empresarial, que provavelmente a contribuição mais
importante tenha sido a apresentação, pela Comissão das Comunidades Europeias, em
julho de 2001, do chamado Livro Verde (o documento pode ser consultado em:
www.csreurope.org), que define a RSE como ―a integração voluntária de preocupações
sociais e ambientais por parte das empresas nas suas operações e na intersecção com
outras partes interessadas‖.

É importante frisar que esse documento traz relevantes diretrizes quanto às formas de
gestão (a) interna: relacionada com os trabalhadores; e (b) externa: relativa aos
multistakeholders, ou seja, investidores, parceiros comerciais, fornecedores, clientes e
credores.

No primeiro aspecto, vale destacar que as práticas socialmente responsáveis são fixadas
no que diz respeito à saúde e segurança dos trabalhadores, sempre os tratando como
pessoas e cidadãos. Na gestão de mudança, são priorizados direitos e condições em
casos de fusão, incorporação e outras formas de troca de controle administrativo da
empresa, no investimento no capital humano e outras práticas relacionadas ao bem-estar
e dignidade do trabalhador.

Na outra ponta, práticas ambientais corretas, gestão de recursos naturais explorados no


processo de produção, respeito, transparência e lealdade com a concorrência fazem
parte do espectro de critérios sociais e ecológicos na agenda diretiva da empresa,
relativa ao seu desenvolvimento econômico e estrutural sustentável.

Cumpre destacar que o mais interessante de todo esse procedimento equilibrado e ético
de gestão comportamental tem em vista um elemento que lhe é indispensável: a
voluntariedade deste processo de ―boas práticas‖, que serve de composto material
imprescindível à RSE. Além da voluntariedade, é importante evidenciar o conteúdo
dessas chamadas boas práticas. Esse comportamento, socialmente responsável, não se
resume nem se limita à observância das leis, até porque todos os cidadãos e empresas,
de modo geral, estão vinculados a essa obrigação. Também não exige que as empresas
exerçam pura e simplesmente filantropia ou caridade pública. A RSE transcende ao
básico.

Na verdade, o que se busca, quando se fala em boas práticas em responsabilização


social, é a institucionalização desse conjunto de comportamentos, para que produzam
efeitos na reputação da empresa e sirvam à mudança de valores da própria sociedade em
que esta está inserida.

Obviamente, no médio e longo prazo, esse conjunto comportamental de boas práticas


agirá sobre a rentabilidade da empresa, com repercussões nos preços (mais altos) dos
produtos — os chamados ―preços éticos‖. Os consumidores suportariam esses custos, na
medida em que tais práticas se reverteriam em vantagens sustentáveis a todos, sejam de
natureza humana, sejam com melhoras sensíveis à vida cotidiana e do próprio planeta.
Surgirá, portanto, disso tudo, um novo ser social — o cidadão/consumidor pessoal e
socialmente responsável.

Para colocar em prática essas medidas, as empresas têm à mão instrumentos individuais
de materialização desses valores e medidas. São os regulamentos, além dos chamados
códigos de conduta e de ética, que atuam como uma espécie de ―declaração formal de
valores e práticas comerciais‖ de uma empresa e, por vezes, também dos seus
fornecedores.
Dessa maneira, percebe-se que empresa socialmente responsável é aquela que impõe
práticas que se integram àquilo que se chama função promocional do Direito. E esse
sistema, pautado na função promocional, nada mais faz do que promover a integração
de vários agentes de suporte que compõem o conteúdo da responsabilidade social, uma
vez que entrelaça (chamamos isso de ―competência cruzada‖) sistemas de todo um
universo social. Isso vai além do simples vetor econômico de lucro que, regra geral,
rege as empresas, passando por outros, como: sistema jurídico, econômico, político,
social, cultural e científico. Traduz-se, finalmente, numa espécie de ―consciência da
empresa‖, que autorregulará seu comportamento sustentável para um bem maior, que é
a sociedade da qual faz parte e à qual tem a obrigação moral, ética e social de servir.

Antonio Carlos Aguiar é advogado e sócio do escritório Peixoto e Cury Advogados

Marcel Tadeu Silva é especialista em Direito do Trabalho e sócio do escritório Peixoto e


Cury Advogados.
CASO 04
Estado tem obrigação constitucional de reconhecer
função social da empresa
27 de novembro de 2016, 7h30

Por Francisco Soares Campelo Filho

A atividade empresarial no Brasil é vitimada por uma nefasta cultura comum que coloca
o seu agente, o empresário[1], como um vilão, explorador do trabalho e que visa
unicamente o acúmulo de riqueza[2].

É preciso, contudo, desmistificar esse pensamento secular (medieval), considerando


que, na verdade, a atividade empresarial cumpre uma função social essencial para o
desenvolvimento socioeconômico do país, em que pese o lucro[3] ser algo inerente
àquela própria atividade, e isso é por demais óbvio, porque não se empreende uma
atividade empresária, onde se investe tempo e capital, sem que a obtenção de lucro não
esteja dentre os seus objetivos.

A questão é que, muito mais que o lucro, a empresa cumpre uma função social das mais
relevantes, a qual, dada a sua importância, está inserida na própria Carta Constitucional
de 1988.

De fato, em análise à vigente Constituição brasileira depreende-se que o legislador


constituinte reconheceu a importância da atividade empresarial, podendo-se inferir que
função social da empresa é (deve ser) alcançada na medida em que se observa a
solidariedade (Constituição, artigo 3°, inciso I), a promoção da justiça social
(Constituição, artigo 170, caput), se respeita a livre iniciativa (Constituição, artigo 170,
caput, e artigo 1°, inciso IV), se busca o pleno emprego (Constituição, artigo 170, inciso
VIII) e a redução das desigualdades sociais (Constituição, artigo 170, inciso VII),
reconhece o valor social do trabalho (Constituição, artigo 1°, inciso IV) e da dignidade
da pessoa humana (Constituição, artigo 1°, inciso III), enfim.

É preciso ressaltar que a os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa estão


elencados como princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito (artigo 1º,
IV, da Constituição de 1988), ou seja, são fundamentos, base, servindo de estrutura de
sustentação do modelo (neo)liberal e social (não)intervencionista escolhido pelo
legislador constituinte[4].

Deve ser observado, ainda, que o próprio legislador infraconstitucional brasileiro, antes
mesmo de todos os comandos constitucionais supra citados, já na Lei das Sociedades
Anônimas (Lei 6.404/76), nos artigo 116, parágrafo único e 154, se pronunciava sobre o
cumprimento de uma função social por parte das sociedades empresárias

"Artigo 116. [...]


Parágrafo único. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a
companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e
responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela
trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve
lealmente respeitar e atender.

[...]

Artigo 154. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe
conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências
do bem público e da função social da empresa".

Também a Lei de Recuperação Judicial (Lei 11.101/2005), em seu artigo 47, que
fundamenta o próprio instituto da recuperação também reconhece a função social da
empresa e a necessidade de preservação da mesma.

"Artigo 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da


situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a
manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses
dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o
estímulo à atividade econômica".

O Supremo Tribunal Federal, através de acórdão de relatoria do ministro Cezar Peluso,


nos autos do Agravo de Instrumento 831.020, publicado no DJe-158, de 13 de agosto de
2012[5], ensina que o direito de propriedade, seja material ou imaterial, deve ser
exercício observando-se a função social da empresa, e ainda ressaltando que a
observância da função social do direito que se exerce encontra-se disseminada por toda
a Carta Magna.

Manoel Pereira Calças, ao realçar a importância da função social da empresa, e a


necessidade de sua preservação, traz instrutiva contribuição:

"Na medida em que a empresa tem relevante função social, já que gera riqueza
econômica, cria empregos e rendas e, desta forma, contribui para o crescimento e
desenvolvimento socioeconômico do país, deve ser preservada sempre que for
possível. O princípio da preservação da empresa que, há muito tempo é aplicado
pela jurisprudência de nossos tribunais, tem fundamento constitucional, haja vista
que nossa Constituição Federal, ao regular a ordem econômica, impõe a
observância dos postulados da função social da propriedade (artigo 170, III), vale
dizer, dos meios de produção ou em outras palavras: função social da empresa. O
mesmo dispositivo constitucional estabelece o princípio da busca pelo pleno
emprego (inciso VIII), o que só poderá ser atingido se as empresas forem
preservadas. (...)"[6].

Percebe-se, assim, o reconhecimento pela Corte Suprema brasileira e pela doutrina, não
somente que efetivamente as sociedades empresárias têm uma função social a cumprir,
mas também, que essa função social reveste-se de grande importância no contexto do
modelo econômico-político-social brasileiro, inclusive sendo garantida a proteção à
existência das mesmas.
No já referido Projeto de Lei do Novo Código Comercial (PL 1.572/11), seu artigo 7º
também traz expressamente a importância da empresa dentro do contexto social[7].

Nesse toar, a função social da empresa, ao tempo em que se exterioriza, ou seja, em que
se apresenta com um efetivo elemento de atuação social, também serve de base para
fundamentar a própria necessidade de preservação das sociedades empresárias, até
porque, não há como as sociedades empresárias cumprirem uma função social se elas,
sociedades, não existirem.

O ponto fulcral, contudo, é que o reconhecimento da função social da empresa está


muito mais voltado para o cumprimento de obrigações por parte das sociedades
empresárias do que pelo reconhecimento e respeito de todos, especialmente do Estado,
no que tange à importância das empresas para à própria manutenção do Estado
Democrático de Direito capitalista.

Difícil compreender as razões do Estado em desconhecer na atividade empresária um


importante e fundamental agente social. Basta observar que são as empresas as que
absorvem a maior parte da mão de obra disponível, diminuindo o desemprego via de
consequência. São as empresas as que mais recolhem tributos aos cofres do Estado, os
quais permitem que este possa realizar as suas políticas públicas (o que não vem
ocorrendo, infelizmente). E são também as empresas as que, através de diversas
obrigações sociais que realizam, terminam por substituir e aliviar parte da
responsabilidade social do Estado. Assim, forçoso é reconhecer que a iniciativa privada
cumpre uma importante função social, e que por isso mesmo deveria contar com uma
maior atenção do Estado[8].

Nesse diapasão, o Estado deveria urgentemente repensar a sua relação com as


sociedades empresariais, pois ao invés de uma relação parasitária deveria ser simbiótica
(em seu sentido positivo, por óbvio), tal como tenho sugerido, no sentido de que um
necessariamente depende do auxílio do outro[9]. Afinal, quantas não são as obrigações
impostas pelo Estado à inciativa privada? Obrigações que vão muito além o
recolhimento de tributos e de encargos, mas que transcendem a esfera de contribuição
direta[10].

A função social da empresa possui (ou deveria possuir), dessa forma, um duplo sentido,
que vincula(sse) não só a atividade empresarial, mas também o Estado, que deveria
reconhecer essa função social em sua relação para com as empresas. Defendo que às
empresas cabe buscar no Judiciário este reconhecimento[11] que, antes de tudo, e como
já referido, é um direito que se reveste de constitucionalidade.

Urge, pois, que os falsos paradigmas sejam quebrados, que a verdade seja exaltada, que
a realidade se descortine, para que todos, e em especial o Estado, possam efetivamente
compreender a verdadeira função social da empresa e a sua essencialidade para a
existência da sociedade.

[1] O atual Código Civil brasileiro, no artigo 966, conceitua empresário como sendo
aquele que exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção
ou a circulação de bens ou de serviços.
[2] A cultura do empresário vilão surge de equívocos seculares como o jargão
ideológico-dogmático-religioso de que "lucro é pecado", por exemplo! Outras falácias,
como a que enxerga no empresário um detentor de capital e explorador do trabalho,
somam-se ao longo do tempo e terminam por contribuir para esta distorcida análise.
Ver: http://www.administradores.com.br/artigos/negocios/no-brasil-lucrar-e-
pecado/64100/. O presidente do Brasil, Michel Temer, declarou em evento do
agronegócio em São Paulo que "ter lucro não é pecado", confirmando ser este ainda um
pensamento que aflige o Brasil.
Ver: http://www.noticiasagricolas.com.br/noticias/agronegocio/175828-ter-lucro-nao-e-
pecado-diz-temer-ao-agronegocio.html#.WDNvdoWcFAg.
[3] No projeto de lei do Novo Código Comercial (PL 1.572/11), seu artigo 5º já
estabelece que o lucro decorre do princípio da liberdade de iniciativa, sendo o principal
fator de motivação da iniciativa privada:
O período de submissão de contribuições ao Debate Público sobre o Projeto de Novo
Código Comercial foi encerrado em 01/07/2012.
O período de submissão de contribuições ao Debate Público sobre o Projeto de Novo
Código Comercial foi encerrado em 01/07/2012.
Artigo 5º. Decorre do princípio da liberdade de iniciativa o reconhecimento por este
Código:
I - da imprescindibilidade, no sistema capitalista, da empresa privada para o
atendimento das necessidades de cada um e de todos;
II - do lucro obtido com a exploração regular e lícita de empresa como o principal fator
de motivação da iniciativa privada;
III - da importância, para toda a sociedade, da proteção jurídica liberada ao investimento
privado feito com vistas ao fornecimento de produtos e serviços, na criação,
consolidação ou ampliação de mercados consumidores e desenvolvimento econômico
do país; e
IV - da empresa privada como importante polo gerador de postos de trabalho e tributos,
bem como fomentador de riqueza local, regional, nacional e global.
[4] Quanto à esta questão do modelo econômico-político adotado pela Constituição
Federal de 1988, Eros Grau, ao interpretar e criticar a ordem econômica, traz uma série
de posicionamentos doutrinários, inclusive anteriores à própria Constituição, concluindo
que: (1) a ordem econômica na Constituição de 1988 consagra um regime de mercado
organizado (...) optando pelo tipo liberal do processo econômico (...), mas que o Estado
adota uma posição que corresponde à do neoliberalismo ou social-liberalismo, com a
defesa da livre iniciativa; (2) contempla a economia de mercado; e (3) a Constituição é
capitalista, mas a liberdade é admitida enquanto exercida no interesse da justiça social e
confere prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da
economia de mercado. Eros grau traz ainda outros posicionamentos sobre a matéria.
(Ver: GRAU, Eros. A ordem Econômica na Constituição de 1988. 16ª ed. Ver. E atual.
Malheiros. São Paulo, 2014. pp. 177-189.
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Autos do Agravo de Instrumento AI 831.020
RJ, publicado no DJe-158, de 13 de agosto de 2012. Disponível em:
http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22296205/agravo-de-instrumento-ai-831020-rj-
stf.
[6] CALÇAS, Manoel Pereira. A Nova Lei de Recuperação de Empresas e Falências:
Repercussão no Direito do Trabalho (Lei 11.101, de fevereiro de 2005). Revista do
Tribunal Superior do Trabalho. Ano 73. N. 4. out/dez 2007, p. 40.
[7] Artigo 7º. A empresa cumpre sua função social ao gerar empregos, tributos e
riqueza, ao contribuir para o desenvolvimento econômico, social e cultural da
comunidade em que atua, de sua região ou do país, ao adotar práticas empresariais
sustentáveis visando à proteção do meio ambiente e ao respeitar os direitos dos
consumidores, desde que com estrita obediência às leis a que se encontra sujeita.
[8] Sobre a relação entre o Estado e a iniciativa privada, ver minha dissertação de
mestrado: A função social da empresa como condição de possibilidade de sustentação
do Estado social no mundo globalizado. Disponível em:
http://www.repositorio.jesuita.org.br/bitstream/handle/UNISINOS/4814/FRANCISCO
%20SOARES%20CAMPELO%20FILHO_.pdf?sequence=1&isAllowed=y
[9] Ver meu artigo Reflexos da globalização econômica sobre as sociedades
empresárias: uma necessária simbiose entre Estado e empresas ou o destino
apocalíptico que se aproxima no horizonte. In Revista Direito Hoje, n. X, Imagem
Brasil, Teresina-PI, 2014.
[10] Ver decisão do STF: Mantidas obrigações a escolas particulares previstas no
Estatuto da Pessoa com Deficiência.
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=304439
[11] Sobre esse tema, há a necessidade de uma análise profunda e que poderá ser objeto
de outro estudo.

Francisco Soares Campelo Filho é advogado, mestre em Direito pela Universidade do


Vale do Rio dos Sinos (RS). Membro da Comissão Nacional de Educação Jurídica do
Conselho Federal da OAB. Professor da Escola Superior da Magistratura do Estado do
Piauí (ESMEPI).

Revista Consultor Jurídico, 27 de novembro de 2016, 7h30


CASO 05
Função social da empresa é valor e não norma jurídica
25 de outubro de 2012, 8h00

Por Henrique Cavalheiro Ricci

Algumas expressões no Direito funcionam como verdadeiros ―abre-te Sésamo‖, eis que
têm sido utilizadas para justificar dos mais variados e contraditórios posicionamentos. A
―função social da empresa‖ é uma delas.

A questão é: O que é função social da empresa? Em termos jurídicos, há uma função


social a ser cumprida pela empresa? Se sim, qual o efeito de seu descumprimento?

A expressão é tão vaga que na maioria das vezes é definida de forma denotativa, sendo
enumeradas situações em que uma empresa cumpre ou não sua função social.
Genericamente, costuma-se dizer que não cumpre sua função social aquela que polui o
meio ambiente, que desrespeita os consumidores, que paga parcos salários; de outra
banda, cumpre com sua função social a empresa que tem um projeto de
desenvolvimento sustentável, aliando à perseguição do lucro, projetos ambientalmente
adequados, programas de valorização dos funcionários, etc..

De uma maneira geral, relaciona-se a função social da empresa com a função social do
contrato (isso para a hipótese de atividade empresarial desenvolvida por sociedades
empresárias, não abarcando, portanto, os empresários individuais) e com a função social
da propriedade. Na legislação, a expressão ganha assento principalmente na Lei das
Sociedades Anônimas e na Lei de Recuperação e Falências.

Tratando-se de atividade empresarial, inegável sua íntima relação com os princípios do


artigo 170, da Constituição: ―A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho
humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme
os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I — soberania nacional;
II — propriedade privada; III — função social da propriedade; IV — livre concorrência;
V — defesa do consumidor; VI — defesa do meio ambiente, inclusive mediante
tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de
seus processos de elaboração e prestação; VII — redução das desigualdades regionais e
sociais; VIII — busca do pleno emprego; IX — tratamento favorecido para as empresas
brasileiras de capital nacional de pequeno porte. IX — tratamento favorecido para as
empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e
administração no país.‖

Assim, cumpre com a função social da empresa o empresário (sociedade ou individual)


que, no desempenho de sua atividade, mantém obediência aos sobreditos princípios; em
linhas gerais, essa, portanto, é a função social da empresa.
Pois bem. Em termos jurídicos, há uma função social a ser cumprida pela empresa? Em
outras palavras, qual o caráter normativo de tal expressão? A função social da empresa
vincula a atividade do empresário? Trata-se de norma jurídica em sentido estrito?

Falar que a função social da empresa ocorre quando esta obedece às regras ambientais,
respeita os direitos trabalhistas e do consumidor, não pratica ato de concorrência
desleal, não atribuiu a ela conteúdo jurídico algum, pois sempre se estará a justificar a
função social da empresa no com base em outras normas.

Em outras palavras: Qual a consequência, fora de tais áreas do Direito (trabalhista,


ambienta, etc.), para o empresário que não cumpre a função social da empresa? Simples,
nenhuma.

Quando a Lei das Sociedades Anônimas determina que o acionista controlador ―deve
usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função
social‖ (artigo 116, parágrafo único) ou que ―o administrador deve exercer as
atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da
companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa‖
(artigo 154), igualmente está a direcionar o seu comando aos sobreditos princípios.
Aliás, tirando a obediência aos já citados ramos do Direito, o que seria específica e
objetivamente o cumprimento da função social da empresa patrocinada por uma
sociedade anônima?

Assim, a rigor, sua própria juridicidade é absolutamente questionável, mantendo-se a


vagueza de seu conteúdo e permanecendo como ―abre-te Sésamo‖ interpretativo, hábil a
justificar qualquer tipo de interpretação e qualquer tipo de decisão judicial.

A ausência de caráter normativo — norma jurídica em sentido estrito — da função


social da empresa se demonstra pela própria definição que tem sido atribuída a tal
expressão, todas elas baseadas em outras normas (ambientais, concorrenciais, etc.). Não
há um exemplo sequer de violação da função social da empresa em termos jurídicos.
Todas as supostas violações se voltam para os campos ambiental, trabalhista,
consumerista, concorrencial, etc.. Insisto, não há uma sanção específica sequer para o
empresário que não cumpre com a função social da empresa.

Ou seja, função social da empresa não tem conteúdo normativo (no sentido de não ser
norma jurídica em sentido estrito), não vincula condutas, não é de obediência
obrigatória aos empresários, pelo menos não à luz do sistema jurídico em vigor. Muito
diferente com o que ocorre com a função social do contrato, que pode ser anulado caso
viole sua função social, ou da propriedade imobiliária urbana e rural, que podem ser
perdidas caso, igualmente, não cumpram com sua função social.

Tenho para mim que o Direito reconhece e pressupõe a função social da empresa, ou
seja, toma a empresa como bem jurídico na medida em que esta tem uma função social,
gerando riquezas, empregos, tributos. A proteção que é dada a empresa demonstra que o
legislador pressupõe tal valor (função social da empresa) ao legislar. A atividade
empresarial é, inclusive, elemento de pacificação social e de manutenção do Estado, já
que garante empregos e abastece o erário.
Prova disso é a redação do artigo 47, da Lei de Recuperação e Falências, que dispõe: ―A
recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise
econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora,
do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a
preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.‖

Note que o indigitado dispositivo toma a função social da empresa como pressuposto à
existência do próprio instituto da recuperação. Explico: como a empresa (atividade
econômica) tem uma função social a ser cumprida, é necessária a sua preservação, daí o
artigo 47 e o instituto da recuperação, pois, com a preservação da empresa, será
promovida sua função social.

Não se está a negar a função social da empresa, apenas não identifico o caráter
normativo de tal expressão, no sentido de vincular a conduta do empresário à frente da
atividade empresarial. Normas ambientais, do consumidor, de concorrência,
trabalhistas, essas, sim, vinculam a atividade empresarial.

Além das sanções previstas no Direito Ambiental, qual outra consequência imposta ao
empresário que no desempenho de sua atividade empresarial poluiu o meio ambiente?
Não poderia ele, por exemplo, obter o benefício da recuperação judicial, por,
supostamente, descumprir a função social da empresa?

E os empresários que promovem demissões em massa, além das correspondentes


indenizações trabalhistas, sofrerão alguma sanção específica pela violação à função
social da empresa? E o tão falado lucro excessivo das montadoras de veículos
brasileiras, pode ser atacado judicialmente, através de uma ação civil pública, por
exemplo, por violar a função social da empresa?

É evidente que o empresário no desempenho da atividade empresarial deve pautar-se na


boa-fé, probidade, no respeito às normas ambientais, consumeristas, trabalhistas,
concorrenciais, tributárias, enfim... O que se está a defender é que não há propriamente
um dever de obediência à função social da empresa, exatamente porque essa não prevê
sanções ou ditames próprios, basta ver que toda vez que se fala em função social se faz
com base nos já citados princípios do artigo 170, da Constituição.

Função social da empresa, portanto, é um valor em nome do qual se fala — um


pressuposto, por exemplo, levado em consideração pelo legislador quando editou a Lei
de Recuperação e Falência, contudo, à luz do sistema jurídico em vigor, não tem força
normativa, de modo a impor condutas obrigatórias ou proibidas aos empresários
(individuais ou sociedades).

Obviamente não estou a negar a importância da empresa e sua função social


(reconhecida pelo sistema jurídico), pelo contrário, a vida acadêmica e a militância na
advocacia só têm me demonstrado quão importante é a atividade empresarial. A ideia
foi apenas demonstrar que a função social da empresa, por si só, não tem o condão de
vincular a atividade empresarial, ao menos não isoladamente — dissociada dos outros
ramos do Direito já citados e ao menos não à luz do ordenamento em vigor.

Henrique Cavalheiro Ricci é advogado do escritório Medina & Guimarães Advogados


Associados e professor de Direito Falimentar na PUC-PR.
CASO 06

Revista Consultor Jurídico, 25 de outubro de 2012, 8h00

Caso Pinheirinho

Direito de propriedade deve atender à função social


30 de janeiro de 2012, 15h56

Por Jorge Luiz Souto Maior

Eu não tenho onde morar


É por isso que eu moro na areia
Eu nasci pequenininho
Como todo mundo nasceu
Todo mundo mora direito
Quem mora torto sou eu

(Dorival Caymmi - Eu Não Tenho Onde Morar - 1960)

O que aconteceu na localidade conhecida por Pinheirinho, em São José dos Campos,
município que possui um dos maiores orçamentos per capita do Brasil, pode ser
considerado uma das maiores agressões aos Direitos Humanos da história recente em
nosso país.

Querem dizer que tudo se deu em nome da lei, mas com tal argumento confere-se ao
Direito uma instrumentalidade para o cometimento de atrocidades e, pior, tenta-se fazer
com que todos os cidadãos sejam cúmplices do fato. Só que o Direito não o corrobora.
Senão vejamos.

Na base jurídica do ato cometido está, dizem, o direito de propriedade. Um terreno foi
invadido, obstruindo-se o direito da posse tranqüila ao seu titular, e, portanto, precisa
ser desocupado. Simples assim.

Mas, o direito de propriedade, conforme previsto constitucionalmente, deve atender à


sua função social (artigo 5º, inciso XXIII, da CF). Sem esse pressuposto nenhum direito
de propriedade pode ser exercido.

A Constituição, ainda, garante a todos os cidadãos, como preceito fundamental, o


direito à moradia (artigo 6º, inserto no Título II, do Capítulo II, da CF).

Desse ponto de vista, a ocupação, para fins de moradia, de uma terra improdutiva,
abandonada, sobre a qual o proprietário não exerce o direito de posse, que não serve
sequer ao lazer e que pela sua localidade e tamanho precisa, necessariamente, atender a
uma finalidade social, não é mera invasão. Trata-se, em verdade, de uma ação política
que visa pôr à prova a eficácia dos preceitos constitucionais, cabendo esclarecer que
essa não é uma temática exclusiva do meio rural já que as normas jurídicas mencionadas
não fazem essa diferenciação e também a Constituição de 1988 passou a admitir o
usucapião de imóveis urbanos (artigo 183).
Assim, diante de uma ocupação dessa natureza compete ao proprietário, que pretenda
recuperar a posse da terra, com o pressuposto que de fato a exerça, demonstrar que sua
propriedade cumpre uma função social, tendo direito, inclusive, a uma decisão liminar,
proferida logo no início do processo judicial, quando o esbulho tenha ocorrido a menos
de um ano e um dia da propositura da ação possessória. Vale reforçar: como
fundamento da ação não basta demonstrar o título de propriedade. Deve-se demonstrar a
posse e provar que a propriedade cumpre uma função social.

Do contrário, a ocupação representa uma desapropriação indireta do imóvel, que


recupera a função social da propriedade, agindo o particular em substituição ao Estado,
que se mostra inerte em duplo sentido: no aspecto da realização de políticas públicas
efetivas de construção de moradias dignas para todos; e no que tange à exigência plena
das finalidades sociais das propriedades privadas. Nesse caso, confere-se ao proprietário
a possibilidade de acionar judicialmente o Estado para pleitear o recebimento de
indenização equivalente ao valor de mercado do imóvel, que, então, deve ser
desapropriado para atender sua função social. Vide, a propósito, decisão proferida no
Processo 1.0000.00.271812-0/000(1), da 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de
Minas Gerais, relator desembargador Garcia Leão, que julgou procedente o pedido do
proprietário de receber indenização do Estado pela desapropriação. Quando
propriedades rurais ou urbanas, cuja posse não é exercida por seu titular, e que não
atendem função social alguma, estando apta a tanto, passam a ser ocupadas por cidadãos
que não têm onde morar, também os respectivos proprietários são atingidos pela inércia
do Estado, vez que só existem cidadãos prontos para o ato em questão porque o Estado
não cumpre a sua obrigação constitucional.

Várias, são, aliás, as decisões da Justiça do Estado de São Paulo no sentido da


afirmação da função social da propriedade, aplicada em situações análogas à do
Pinheirinho. Em sentença proferida pelo juiz Amable Lopez Soto, em janeiro de 2006,
nos autos do processo 007.96.318877-9, em trâmite na Vara Cível do Fórum Regional
VII de Itaquera, restou consignado:

Ocorre que hoje a área transformou-se em um dos muitos bairros pobres de São
Paulo, logo, a partir da inação do Estado em criar as condições de moradia para
milhares de pessoas que vivem na rua, sem teto próprio, estas, por extrema
necessidade, acabaram por praticar o ato de desapropriação indireta do imóvel,
repartindo o espaço de forma a permitir uma moradia minimamente digna.

A partir da inação do Estado parte da população fez uso de um dos instrumentos


que, a princípio, só ao Estado é permitido, o de desapropriação indireta de área
que não cumpria sua função social.

Ao final, julgando improcedente o pedido de reintegração, concluiu:

Enfim, o que se tem nestes autos é uma verdadeira impossibilidade de


reintegração de posse ante o tempo e a situação hoje existente, cabendo ao autor,
como forma de não se empobrecer sem justa causa e, ante a responsabilidade do
Estado, propor a ação de reparação que permita recompor, pela via da
indenização, seu patrimônio.

No corpo de sua sentença, Amable cita várias outras decisões com igual teor.
a) O particular que tem sua propriedade invadida por mais de cinco mil pessoas
que, se desalojadas, não terão para onde ir, deve buscar do Poder Público a
indenização a que faz jus decorrentes da desapropriação indireta. Entretanto, a
reintegração de posse não deve ser deferida, em homenagem ao princípio da
função social que a propriedade tem, nos termos do artigo 2º, IV, da Lei 4.132/62
e artigo 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal.

(....)

...tecnicamente a sentença não merece reparos. Mas o direito evolui, situação que,
particularmente, atingiu o direito de propriedade. Não é mais possível idealizar a
proteção desse direito no interesse exclusivo do particular, pois hoje princípios da
função social da propriedade aguardam proteção mais efetiva. Não fora isso, a
função do Judiciário, de solucionar conflitos de interesse, não pode desprezar a
necessidade de por fim ao embate posto nos autos, mas de impedir, com a decisão
dada, que outras lides venham a acontecer.

Está em estudo um litígio entre um particular que teve suas terras inutilizadas
invadidas e um grupo de mais de cinco mil famílias que ali se instalaram por não
ter outro lugar para ficar.

Retiradas do local, por certo deverão ocupar outro. Se particular, novo conflito
será criado. Se públicas, também o Poder Público, em tese, tem direito de
recuperá-las. O certo é que, para qualquer local onde sejam essas pessoas levadas,
o mesmo problema que aqui aparentemente se resolve será novamente criado.
Sequer condenar os requeridos a flutuar é possível, pois em tese o espaço aéreo
sobre um imóvel pertence ao dono da superfície (artigo 526 do CC).

Quando o Poder Público, responsável pela proteção de todos os cidadãos,


inclusive dos aqui requeridos, permite durante muito tempo que muitos se
instalem em determinado local, há de ser reconhecida a desapropriação indireta. É
o sacrifício do um proprietário, indenizado, entretanto, por toda a sociedade, que
servirá de solução a um conflito que se eternizaria com a simples determinação de
sua desocupação.

Entendido que o imóvel foi, de forma indireta, desapropriado, não caberia a ação
possessória que tem por finalidade recuperar a posse em decorrência da
propriedade. Mas, tendo havido perda desta, para o interesse público em disputa,
a pretensão deve ser tão somente indenizatória contra o Poder Público
responsável pela política urbana.

Os bens indiretamente expropriados, porque aproveitados para fins de


necessidade, utilidade pública, ou de interesse social, não podem ser reavidos in
natura, impossível vindicar o próprio bem, a ação cujo fundamento é o direito de
propriedade, visa, precipuamente, à prestação do equivalente da coisa
desapropriada, que é a indenização... (STF, RTJ 61/389). (José Luis Gavião de
Almeida, Acórdão proferido na apelação n. 823.916-7, J. 27/08/02 – RT
811/243):
b) A Prefeitura do Município, reconhecendo a existência do problema social
ínsito nesta ação e em duas outras de áreas contíguas que tramitam nas duas
outras varas cíveis deste foro, ajuizou ação de desapropriação ora em trâmite na 5ª
Vara da Fazenda Pública.

Pretende-se regularizar a situação de fato já consolidada no tempo (os réus


ocupam o imóvel, no mínimo, desde 1.994), mediante pagamento de indenização
a quem de direito.

Não é razoável que para proteção da posse de uma empresa seja destruído um
bairro inteiro numa verdadeira operação de guerra, desencadeada pelo Estado,
quando existe outra solução mais afinada com o interesse social, isto é, a
desapropriação do imóvel com o pagamento da indenização a quem faça.
(Magistrado Mário Dacache, autos do processo n. 2.122/95, juízo cível do Fórum
Regional VII de Itaquera)

c) No caso dos autos a coisa reivindicada não é concreta, nem mesmo existente. É
uma ficção.

Os lotes de terreno reivindicados e o próprio loteamento não passam, há muito


tempo, de mera abstração jurídica. A realidade urbana é outra. A favela já tem
vida própria, está, repita-se, dotada de equipamentos urbanos. Lá vivem muitas
centenas, ou milhares de pessoas. (…) Lá existe uma outra realidade urbana, com
vida própria, com os direitos civis sendo exercitados com naturalidade. O
comércio está presente, serviços são prestados, barracos são vendidos,
comprados, alugados, tudo a mostrar que o primitivo loteamento só tem vida no
papel. (…).

Loteamentos e lotes urbanos são fatos e realidades urbanísticas. Só existem,


efetivamente, dentro do contexto urbanístico. Se são tragados por uma favela
consolidada, por força de uma certa erosão social, deixam de existir como
loteamento e lotes.

A realidade concreta prepondera sobre a 'pseudo-realidade jurídico-cartorária'.


Esta não pode subsistir em razão da perda do objeto do direito de propriedade. Se
um cataclisma, se uma erosão física, provocada pela natureza, pelo homem ou por
ambos, faz perecer o imóvel, perde-se o direito de propriedade.

É verdade que a coisa, o terreno, ainda existe fisicamente.

Para o direito, contudo, a existência física da coisa não é fator decisivo, consoante
se verifica dos mencionados incisos I e III do artigo 78 do CC (de 1.916). O
fundamental é que a coisa seja funcionalmente dirigida a um finalidade viável,
jurídica e economicamente. Pense-se no que ocorre com a denominada
desapropriação indireta. (…)

Por aí se vê que a dimensão simplesmente normativa do Direito é inseparável do


conteúdo ético social do mesmo, deixando a certeza de que a solução que se
revela impossível do ponto de vista social é igualmente impossível do ponto de
vista jurídico. (…)
O princípio da função social atua no conteúdo do direito. E, dentre os poderes
inerentes ao domínio, previstos no artigo 524 do Código Civil (usar, fruir, dispor
e reivindicar), o princípio da função social introduz outro interesse (social) que
pode não coincidir com os interesses do proprietário. (…)

Assim, o referido princípio torna o direito de propriedade, de certa forma,


conflitivo consigo próprio, cabendo ao Judiciário dar-lhe a necessária e serena
eficácia nos litígios graves que lhe são submetidos‖ (apCiv. 212.726-1-8-SP, j.
16.12.1994, Desembargador José Osório)

Não se pode esquecer, ademais, que o Estado atual é o Estado de Direito Social e neste
sentido rege-se, juridicamente, pela obrigação de garantir a eficácia dos direitos sociais,
constitucionalmente consagrados, não lhe cabendo, portanto, assegurar o direito de
propriedade numa perspectiva meramente liberal, até porque também esse direito está
vinculado a cumprir uma função social e isso não é retórica, tratando-se de expressão
inequívoca da lei.

Em resumo, instalado um tal conflito de ocupação, cabe ao Estado assumir sua


responsabilidade perante o problema, desapropriando o imóvel para o fim de integrá-lo
a um projeto habitacional, e não fingir que não faz parte do problema, vendo a situação
como mero embate entre particulares e, pior, impor uma solução que atenda,
exclusivamente, o interesse do direito de propriedade, numa perspectiva liberal,
passando por cima de vários outros valores integrados ao ordenamento jurídico como
Direitos Fundamentais.

No caso do Pinheirinho o que se viu foi um profundo desrespeito à ordem jurídica.

Entendamos o caso: em 2004, em São José dos Campos, um terreno urbano de um


milhão e trezentos mil metros quadrados, foi ocupado por algumas famílias, para fins de
moradia. O terreno pertencia a uma empresa falida, Selecta, e estava abandonado. Até
antes da ocupação o terreno não cumpria função social alguma. As famílias em questão
eram vítimas do déficit imobiliário daquele município, numa situação inconcebível, já
que São José dos Campos é uma das cidades mais ricas do Brasil.

Não se tratou, pois, de mera invasão, mas de ato político organizado para extrair o
Estado de sua inércia e para buscar a eficácia dos preceitos constitucionais do direito à
moradia e da função social da propriedade. Não se tratou, igualmente, de ato de pessoas
espertas, que quiseram se aproveitar da situação, passando à frente na fila dos milhões
de brasileiros que também não têm onde morar, pois, como bem ponderou Ricardo
Boechat, comentando o assunto, nenhum esperto tem como projeto de vida morar em
um terreno ocupado, em precárias condições habitacionais. Os espertos estão em outros
lugares, bem mais confortáveis, por certo. Os ocupantes do Pinheirinho são, ao
contrário, pessoas injustiçadas e sofridas, vítimas da inércia de governantes que insistem
em tratar as estruturas do Estado fora da perspectiva do Direito Social e do respeito aos
Direitos Humanos. Claro, como insistiram em mostrar os autores da agressão, lá
também havia consumidores de drogas e até alguns objetos frutos de furto, mas isso em
nada altera a configuração jurídica refletida na situação, até porque drogas se
consumem, infelizmente, por todos os cantos e o encontro de objetos furtados não
representa, por si, identificação de autoria do crime e, de todo modo, a pena pelo furto
não é a perda do direito à moradia. É forçoso reconhecer, portanto, que aquelas pessoas
foram vitimadas pela histórica péssima distribuição de renda que reina em nosso país.
Nossa profunda injustiça social está na base do fenômeno e não pode ser negligenciada.

Mas, admitamos que toda essa análise jurídica esteja errada, que nada disso justifique o
ato cometido pelos cidadãos que se tornaram, pela ocupação, moradores do Pinheirinho.
Partamos do princípio de que um erro não justifica o outro e que não se corrige a
ilegalidade da inércia do Estado com outra ilegalidade, cometida pelo particular.
Reconheçamos, enfim, que houve um ato ilegal pela ―invasão‖ e que a autoridade do
ordenamento jurídico precisava mesmo ser recomposta.

O problema é que para que a recomposição da realidade anterior todas as inserções


jurídicas do fato consumado precisavam ser consideradas. Quando se coloca em pauta a
autoridade do ordenamento jurídico é do todo jurídico que se fala e não de um aspecto
único e isolado. Assim, mesmo abstraindo as noções de que a ocupação para moradia
não se trata de mera invasão e de que a retomada da posse precisa passar pelo crivo da
avaliação da função social da propriedade, a efetivação do direito do proprietário de
reaver a posse do imóvel deve ser confrontado com outros direitos que porventura
estejam em jogo na situação fática existente. O ato da reintegração, por conseguinte, não
pode ser feito de forma a atingir a integridade física das pessoas, mesmo se tratadas,
juridicamente, como ―invasoras‖, conforme já fixado pelo STJ em decisão proferida em
pedido de intervenção federal no Estado do Mato Grosso, requerida pela massa falida de
Provalle Incorporadora Ltda., por não haver o Governador daquela unidade federativa
atendido requisição de força policial do Juízo de Direito da Vara de Falências e
Concordatas de Goiânia para dar cumprimento a mandado de reintegração de posse em
área de 492.403 m²:

EMENTA DIREITO CONSTITUCIONAL. INTERVENÇÃO FEDERAL.


ORDEM JUDICIAL. CUMPRIMENTO. APARATO POLICIAL. ESTADO
MEMBRO. OMISSÃO (NEGATIVA). PRINCÍPIO DA
PROPORCIONALIDADE. PONDERAÇÃO DE VALORES. APLICAÇÃO. 1 -
O princípio da proporcionalidade tem aplicação em todas as espécies de atos dos
poderes constituídos, apto a vincular o legislador, o administrador e o juiz,
notadamente em tema de intervenção federal, onde pretende-se a atuação da
União na autonomia dos entes federativos. 2 - Aplicação do princípio ao caso
concreto, em ordem a impedir a retirada forçada de mais 1000 famílias de um
bairro inteiro, que já existe há mais de dez anos. Prevalência da dignidade da
pessoa humana em face do direito de propriedade. Resolução do impasse por
outros meios menos traumáticos. 3 - Pedido indeferido. (INTERVENÇÃO
FEDERAL Nº 92 - MT (2005⁄0020476-3) - RELATOR: MINISTRO
FERNANDO GONÇALVES)

No caso Pinheiro esse entrelace de direitos foi solenemente ignorado, a começar pelos
aspectos processuais. A ação política da ocupação do terreno teve início em 2004. No
mesmo ano, o proprietário do imóvel, a massa falida da empresa Selecta, ingressou com
a ação de reintegração, mas não obteve decisão liminar favorável à sua pretensão.
Interpôs, então, recurso denominado agravo de instrumento, tendo conseguido, junto à
16ª Câmara do Tribunal de Justiça, a concessão da liminar para a reintegração. Mas, tal
decisão, em virtude de vícios processuais formais, foi cassada, mediante mandado de
segurança, impetrado pelos moradores. O processo, então, prosseguiu seus trâmites
normais, com diversos embates jurídicos, sendo que em 2010 a nulidade do meio
processual utilizado pela Massa Falida para tentar reformar a decisão que negou a
liminar foi confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça, prevalecendo, então, a decisão
inicial, que negou a liminar de reintegração.

Nesse meio tempo, a ocupação foi se organizando ainda mais e se consolidou com a
constituição de uma Associação de Moradores, que urbanizou o local com a formação
de ruas, praças e a divisão do terreno em lotes com 250 metros quadrados, obedecendo-
se, ainda, a regra, fixada pela Associação, de uma família por terreno. Formou-se no
lugar um autêntico bairro, com novos moradores, pessoas oriundas da comunidade
local, São José dos Campos, trabalhadores com ocupações diversas e também, é claro,
desempregados, que para lá se dirigiam e investiam na construção de suas casas, agindo
de tal forma, com boa-fé, principalmente em razão do aceno dado pelas três esferas do
poder, Federal, Estadual e Municipal, em torno da possibilidade concreta da
regularização da situação. Representantes das esferas do Poder visitaram por diversas
vezes a comunidade.

E, de repente, em julho de 2011, uma nova juíza atuando no processo, tendo ciência da
definição da questão pelo STJ, que consolidava a situação favorável aos moradores,
concede liminar para a reintegração de posse, sem motivação específica baseada em fato
novo.

É isso mesmo. O que se viu no Pinheirinho teve por fundamento uma decisão liminar,
concedida sete anos e meio depois do ingresso da ação de reintegração, não se
considerando a alteração fática havida no local, que, em verdade, apenas reforçava as
razões para a rejeição da reintegração, ainda mais em sede de decisão liminar. É
evidente, pois, a impropriedade da medida, de caráter liminar, insista-se, diante do
tempo já decorrido, que eliminou a urgência para esse tipo de solução para um conflito
tão complexo, estando, ademais, ultrapassado, há muito, o requisito do ano e dia, e,
sobretudo, em razão da profunda alteração fática advinda no local desde o início do
processo. Segundo o Censo realizado pela própria Prefeitura de São José dos Campos,
já viviam no local 1.577 famílias, ou, mais precisamente, 5.488 pessoas, sendo 2.615
com idade entre 0 e 18 anos. Além disso, o assentamento, ou bairro como também era
tratado, continha 81 pontos comerciais, seis templos religiosos e um galpão
comunitário.

Bem se vê que a questão envolvia um feixe enorme de direitos, não estando em jogo
única e exclusivamente o direito de propriedade da massa falida. Assim, ainda que fosse
para privilegiar o direito de propriedade da massa falida, sem a necessidade de justificá-
lo pelo pressuposto da finalidade social, haver-se-ia, no mínimo, que assegurar que
outros direitos não fossem, simplesmente, desprezados.

O ato da desocupação, portanto, mesmo se considerada legítima, deveria ser precedido


de uma organização tal que permitisse a preservação dos demais direitos envolvidos.
Ainda que os moradores se apresentassem armados, dispostos a lutar contra a ordem
judicial, as negociações, com todos os meios institucionais possíveis, deveriam conduzir
à solução da situação. E, ademais, era o que se anunciava, tanto que a própria massa
falida assinou documento, levado ao processo da falência, aceitando a prorrogação da
efetivação da ordem de reintegração. No Pinheirinho houve até festa para comemorar a
reabertura das negociações, que não se encaminhavam, propriamente, em torno da
forma de reintegração, mas na direção, enfim, da desapropriação por atuação direta da
Federação, o que talvez não interessasse aos propósitos especulativos locais e às
pretensões eleitorais dos governos do Estado e do Município.

Assim, o que se verificou na seqüência, já no dia seguinte, foi uma reviravolta


inexplicável da postura do Judiciário frente às possibilidades de negociação e a
utilização da ―trégua‖ como estratégia para desarmar os moradores, possibilitando a
concretização da violência policial, típica de uma guerra, contra os cidadãos do
Pinheirinho, ação esta que já estava preparada, por certo, há muitos dias, diante de seu
vulto, e que vai ficar para os anais da nossa história, em razão dos efeitos produzidos,
como uma das maiores aberrações humanitárias já vistas, ainda que os seus
comandantes a queiram apontar como uma ação ―limpa‖, conforme assinalado pelo juiz
Rodrigo Capez, assessor da presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo: ―Pelo
Poder Judiciário, representando a presidência do TJ, gostaríamos de expressar nosso
agradecimento pelo belo trabalho executado pela Polícia Militar. Uma ação bem
planejada e muito bem executada. Para aqueles que imaginavam que haveria um novo
Eldorado do Carajás, um massacre, essa ação limpa demonstrou que esses temores eram
absolutamente infundados. Hoje se cumpre a reintegração de posse"[1].

Em concreto, o Poder Judiciário e o Governo do Estado de São Paulo se uniram contra


os moradores do Pinheirinho, tratando-os como inimigos. Não cola o argumento da
defesa da legalidade e do resgate da autoridade do ordenamento jurídico, como visto. E
mesmo que houvesse, repita-se, por que, depois de quase oito anos de uma situação
consolidada, em que um terreno baldio, que servia à especulação imobiliária, foi
transformado em um bairro de moradores de baixa renda, teve-se tanta pressa para
devolver a posse do terreno à massa falida? Por que, para chegar a esse objetivo,
mobilizar 2 mil policiais militares, helicópteros, cães e armas de todo tipo (ainda que
menos letais)? Por que expulsar, de forma abrupta e violenta, pessoas de suas casas na
calada da noite de um domingo, fazendo com que essas pessoas deixassem para trás
seus pertences, utensílios, roupas e até documentos? Por que fazer tudo isso sem
qualquer preocupação com a condição humana dessas pessoas, conduzindo-as a abrigos
improvisados, sem condições minimamente dignas de sobrevivência? (As imagens dos
abrigos falam por si e tendo constatado a situação in loco posso assegurar que as
imagens não refletem o total drama vivido por aquelas pessoas). Por que submeter essas
pessoas, nos abrigos, ao uso de pulseiras com cores diferentes, para que pudessem ser
identificadas como moradoras do Pinheirinho? Por que deixarem crianças e jovens
assistirem tamanha brutalidade contra seus pais? Que mal essas crianças cometeram?
Que tamanho mal, ademais, cometeram todos aqueles que lá estavam à procura de um
lugar para morar, sendo certo que não era um lugar nenhum pouco glamoroso? Por que
passar um trator por cima das casas e estabelecimentos comerciais que foram
construídos no local ao longo de oito anos de consolidação do bairro?

Tudo isso para entregar o terreno a uma massa falida, que nunca se preocupou com a
função social daquela propriedade e que certamente não vai exercer a posse sobre o
terreno?

Ora, em nenhuma ponderação de valores que se faça da situação vivenciada, atendendo


os pressupostos da razoabilidade e da proporcionalidade, vai se chegar ao peso que foi
dado ao interesse da massa falida, valendo acrescentar que a empresa em questão,
Selecta, proprietária do imóvel, também ela, nunca cumpriu qualquer função social,
jamais tendo produzido um alfinete sequer, vez que foi constituída apenas para servir de
fachada nas intermediações de negociações imobiliárias das empresas de um grupo
econômico. No processo de falência respectivo, inclusive, não há credores trabalhistas
ou quirografários. O único credor é o próprio Estado, sobretudo o município de São
José dos Campos, com relação à dívida de IPTU, em torno de R$14 milhões.

Alguma razão não muito clara, que pode ser, por hipótese, um melindre entre as esferas
de Poder Estadual e Federal, já que uma autorizava a reintegração e a outra a recusava,
ou que pode ser a necessidade do governo estadual de afirmar sua autoridade diante dos
movimentos sociais, sobretudo diante do alcance eleitoral que a questão atingiu, foi
determinante para que a Justiça Estadual, em ato que chegou a ser reivindicado pelo
Presidente do Tribunal, que enviou assessor direto para cuidar do assunto, passasse por
cima de todos os Direitos Humanos envolvidos e determinasse a reintegração da posse,
sendo auxiliada, com a maior presteza possível, pelo governo Estadual, que, com a
intervenção direta do próprio governador, autorizou a instauração de uma ação de
guerra contra os cidadãos do Pinheirinho.

É isso mesmo. Os nossos co-cidadãos foram vítimas de uma ação militar típica de
guerra, que foi programada durante quatro meses, conforme reconheceu, em recente
entrevista, a juíza do processo de reintegração, e que, por isso mesmo, precisou ser
executada passando por cima até do acordo judicial assinado pelas partes, no processo
da falência, em torno da suspensão da reintegração. E um dado extremamente
importante deve ser destacado, que torna a origem da ação policial, a mando do estado
de São Paulo, ainda mais questionável: em entrevista ao Jornal, O Vale, a juíza do
processo de reintegração, que concedeu a liminar, confessou que o ato policial não
estava plenamente sob o seu controle e que sabia dos riscos que estava impondo aos
moradores do Pinheirinho. Disse ela, textualmente: ―A operação me surpreendeu,
positivamente.‖

Seja como for, o fato é que os cidadãos do Pinheirinho foram tratados como inimigos do
Estado. Foram presos sem processo, já que ficaram várias horas impossibilitados de sair
do assentamento, enquanto a Polícia mantinha luta aberta contra moradores do bairro
vizinho que se insurgiram contra ação policial intentada no local. Foram marcados
como se estivessem em um campo de concentração. Foram desalojados. Foram
conduzidos, por força, a um local inabitável, sem qualquer condição de higiene, não
tendo havido, inclusive, qualquer cuidado especial com crianças, idosos e doentes. Ou
seja, foram profundamente agredidos em sua dignidade. Registre-se, a propósito, que se
trata de princípio fundamental da República Federativa do Brasil a proteção da
dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, CF) e que constituem objetivos
fundamentais da República ―construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o
desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação‖ (artigo 3º,
CF), valendo lembrar, ainda, que o Brasil deve reger-se nas suas relações internacionais
pela ―prevalência dos direitos humanos‖ (artigo 4º, inciso II, CF).

Os moradores do Pinheirinho, inclusive, tiveram o seu direito de propriedade, com


relação aos seus pertences, desrespeitado e continuam, ainda hoje, sem que o Estado
reconheça sua responsabilidade quanto ao problema do qual tudo se originou: a ausência
de moradia.
Em concreto, aquelas pessoas, que de boa-fé puderam acreditar em um projeto de vida,
por mais precário que fosse, com a formação do Pinheirinho, estão agora mendigando
local para se alojar e, de certo modo, estão sendo tratadas como animais.

E o pior disso tudo é que essa situação foi imposta pelas forças institucionalizadas do
Estado, cuja função seria a de, em primeiro plano, proteger o cidadão. E, ademais, quem
vai pagar pela operação realizada? Os custos da operação serão calculados e inseridos
no processo? Certamente não e a sociedade como um todo, portanto, arcará com a
despesa que se fez necessária para a prática do ato destinado à defesa da posse de um
terreno privado e que, ao mesmo tempo, soterrou vários Direitos Humanos. Vai se dizer
que o governo estadual colaborou com a Justiça para a efetivação de uma ordem
judicial, mas esse mesmo governo não se tem mostrado nenhum pouco colaborador no
que se refere às decisões judiciais que visam o resgate da autoridade dos direitos sociais
de incontáveis cidadãos. O estado de São Paulo deve cerca de R$ 20 bilhões em
precatórios, que se arrastam interminavelmente, sendo R$ 15 bilhões a título de créditos
trabalhistas e previdenciários.

A questão mais relevante que se apresenta, de todo modo, é: o que fazer agora?

Solidarizar-se com os ex-moradores do Pinheirinho é importante, mas não basta.

É preciso que a autoridade do ordenamento jurídico, visto de forma integral, seja


imediatamente recobrada. Há urgência na prevenção e reparação dos direitos, que foram
desrespeitados, dos, agora, ―ex-moradores‖ do Pinheirinho.

Se o Estado se mostrou eficiente para preservar o direito de propriedade, cumpre-lhe,


presentemente, demonstrar a mesma presteza para garantir a essas pessoas uma moradia
digna e para reparar as agressões de que foram vítimas. Essa eficiência, alias, seria
necessariamente antecedente à reintegração manus militaris operada, mas deve, enfim,
ser operada. Assim, em razão de sua inércia perante o problema e por terem, pela
própria inação, induzido os moradores do Pinheirinho a acreditarem na viabilidade do
assentamento, e por terem sido completamente incapazes de construir uma solução para
o problema, jogando tudo nas mãos do Judiciário, devem ser responsabilizados o
município de São José dos Campos, o estado de São Paulo e mesmo o Governo Federal,
sendo que o Judiciário, nas ações judiciais que venham a ser movidas, deve, mostrando
que sua eficácia não tem lado, conceder liminar para obrigar os entes mencionados a
pagarem indenização aos desalojados pelos danos pessoais experimentados,
considerando a forma como foram tratados, assim como para determinar às esferas de
poder competentes a construção imediata de casas com, no mínimo, o mesmo padrão
que essas pessoas possuíam, com todos os seus utensílios, garantindo-lhes, enquanto a
obra não for concluída, uma ajuda de custo para moradia e alimentação, sob pena de
multa e demais conseqüências legais por desobediência à ordem judicial, mobilizando,
para fazer cumprir a decisão garantidora dos Direitos Humanos, se necessário, o mesmo
aparato policial utilizado na ação de reintegração de posse. E o terreno para tanto? Bom,
cumpre aos entes públicos encontrá-lo!

Independente disso, a questão deve ser levada, imediatamente, à Comissão


Interamericana de Direitos Humanos, para que o Estado brasileiro não reste impune, em
suas relações internacionais, da grave agressão aos Direitos Humanos que permitiu
ocorrer em seu território, conforme preconizado no Manifesto de Juristas, organizado
pelo professor Fábio Konder Comparato e o procurador do Estado de São Paulo, Márcio
Sotelo Felippe[2].

E se nada disso puder ocorrer? E se for apenas um devaneio acreditar que tais respostas
jurídicas possam ser dadas à presente situação? Sem que outras medidas, igualmente
eficazes para reparar os Direitos Humanos agredidos, se apresentem, há se questionar,
então, se não é hora de re-fundar o Brasil, a começar pelo impeachment dos
responsáveis pelas atrocidades identificadas no caso do Pinheirinho, não sendo demais
lembrar que no caso do estado de São Paulo o fato se insere em um contexto
determinado de enfrentamento aos movimentos sociais, de desrespeito às liberdades
democráticas e de ataque à pobreza por meio de força bruta.

O caso Pinheirinho foi muito grave e a sociedade brasileira como um todo está
desafiada a encontrar soluções que recomponham, imediatamente, a credibilidade na
eficácia do Estado Democrático de Direito Social, instituído constitucionalmente.

O maior risco que vislumbro em situações como esta é o da produção, e acatamento, de


argumentos que tentam legitimar as atrocidades verificadas, desconsiderando-as
enquanto tais ou as justificando por intermédio do Direito, como se os atores não
fossem responsáveis pelos seus atos, apresentando-se apenas como espécies de escravos
de uma imposição legislativa. Essa racionalidade é destruidora dos vínculos de
solidariedade, desvirtua a finalidade social e humanística do Direito e das estruturas de
poder, gera a perda da própria consciência humana e, no caso específico do Brasil,
acaba servindo para preservar, sem possibilidade concreta de oposição, a injustiça social
que assola a maior parte da população brasileira. A falta de moradia e o desrespeito à
dignidade humana das classes economicamente menos favorecidas, aliás, chegam a
fazer parte da cultura nacional. E, ―se o senhor num tá lembrado, dá licença de contá.
Ali onde agora está esse adifício arto era uma casa véia, um palacete assobradado. Foi
ali, seu moço, que eu, mato Grosso e o Joça, construímo nossa maloca. Mas um dia,
nóis nem pode se alembrá, veio os home c'as ferramenta, o dono mandô derrubá.
Peguemo todas nossas coisa, e fumo pro meio da rua apreciá a demolição. Que tristeza
que nóis sentia, cada táuba que caía, doía no coração. Matogrosso quis gritá, mas em
cima eu falei: ‗Os home tá com a razão, nóis arranja outro lugá‘. Só se conformemo
quando o Joca falô: ‗Deus dá o frio conforme o cobertô‘. E hoje nóis pega as paia nas
grama dos jardim, e pra esquecê nóis cantemo assim: Saudosa maloca, maloca querida,
qui dim donde nóis passemo os dias feliz da nossa vida.‖[3]

Uma cultura, ao mesmo tempo, de insensibilidade e de resignação com a injustiça, que o


próprio Adoniran Barbosa, em 1969, tentou mudar, com nova música, Despejo na
Favela, a qual, no entanto, não restou tão difundida quanto a primeira:

Quando o oficial de justiça chegou


Lá na favela
E contra seu desejo
Entregou prá seu Narciso
Um aviso prá uma ordem de despejo, assinada seu Doutor
Assim dizia a petição:
Dentro de dez dias quero a favela vazia e os barracos todos no chão
É uma ordem superior,
Ôôôôôôôô, meu senhor, é uma ordem superior
Não tem nada não seu Doutor,
Não tem nada não
Amanhã mesmo vou deixar meu barracão
Não tem nada não seu Doutor
Vou sair daqui
Prá não ouvir o ronco do trator
Prá mim não tem problema
Em qualquer canto me arrumo
De qualquer jeito me ajeito
Depois o que eu tenho é tão pouco
Minha mudança é tão pequena que cabe no bolso de trás
Mas essa gente aí, hein, como é que faz????

Pois é, já passou mesmo da hora de alterar a base cultural em torno das questões sociais
para reescrevermos nossa história.

[1]. http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/01/25/pm-e-justica-
restituem-posse-de-pinheirinho-e-exaltam-operacao.htm

[2]. http://www.viomundo.com.br/denuncias/juristas-e-entidades-comprometidos-com-
a-democracia-denunciam-caso-pinheirinho-a-oea.html

[3]. Adoniran Barbosa, ―Saudosa Maloca‖, 1951.

Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho, titular da 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí
(SP), livre-docente em Direito do Trabalho pela USP e membro da Associação Juízes
para a Democracia.
CASO 07

Revista Consultor Jurídico, 30 de janeiro de 2012, 15h56

Estado da Economia

Propriedade que descumpre função social não tem


proteção constitucional
6 de dezembro de 2015, 8h00

Por Gilberto Bercovici

A propriedade rural, para cumprir sua função social, portanto, para ser
constitucionalmente garantida, deve cumprir simultaneamente todos os requisitos
previstos nos incisos do artigo 186 da Constituição

Uma das grandes questões trazidas pelo debate sobre a função social da propriedade
está ligada à possibilidade de um instituto jurídico, sem que haja qualquer modificação
da lei, mudar a própria natureza econômica. Houve inegavelmente uma mudança do
substrato da propriedade, apesar das normas civis não terem se modificado, ao
contrário, pois os códigos civis definem propriedade com o conceito liberal ainda hoje.
O instituto jurídico da propriedade teve um rico desenvolvimento em um tempo
relativamente curto, ocorrendo uma total mudança econômica e social sem que
houvesse mudado consideravelmente sua definição jurídico-legislativa, ao menos sob o
ângulo do direito civil[1]. Podemos perceber, assim, uma dupla possibilidade de
evolução jurídica: a mudança da norma e a mudança da função. Para Karl Renner, a
ciência jurídica deve estudar no presente de que modo isso ocorre, de que modo um
condiciona o outro, com que regularidade ocorre.

O fato é que aos institutos jurídicos de uma época cabe cumprir funções gerais. Se
considerarmos absolutamente todos os efeitos que um instituto jurídico exercita sobre a
sociedade em seu complexo, as funções particulares se fundem numa única função
social. Dessa maneira, podemos concluir, ainda de acordo com Karl Renner, que o
direito é um todo articulado, determinado pelas exigências da sociedade, cujo
ordenamento é dotado de caráter orgânico. Os institutos jurídicos, enquanto parte do
todo, estão, por esse motivo, em uma relação de conexão mais ou menos estreita uns
com os outros. Tais conexões não se travam apenas no complexo normativo, mas
também em uma função. A natureza orgânica do ordenamento jurídico, assim,
demonstra que todos os institutos do direito privado estão em conexão com o direito
público, sendo que não podem ser eficazes e não podem ser compreendidos sem
considerações de direito público. A propriedade é ineficaz sem o ordenamento jurídico à
sua volta, sendo conformada pelas disposições de direito público[2].

Quando se fala em função social, não se está fazendo referência às limitações negativas
do direito de propriedade, que atingem o exercício do direito de propriedade, não a sua
substância. As transformações pelas quais passou o instituto da propriedade não se
restringem ao esvaziamento dos poderes do proprietário ou à redução do volume do
direito de propriedade, de acordo com as limitações legais. Se fosse assim, o conteúdo
do direito de propriedade não teria sido alterado, passando a função social a ser apenas
mais uma limitação. A mudança ocorrida foi de mentalidade, deixando o exercício do
direito de propriedade de ser absoluto. A função social é mais do que uma limitação.
Trata-se de uma concepção que se consubstancia no fundamento, razão e justificação da
propriedade.

A função social da propriedade não tem inspiração socialista, antes é um conceito


próprio do regime capitalista, que legitima o lucro e a propriedade privada dos bens de
produção, ao configurar a execução da atividade do produtor de riquezas, dentro de
certos parâmetros constitucionais, como exercida dentro do interesse geral. A função
social passou a integrar o conceito de propriedade, justificando-a e legitimando-a. A
função é o poder de dar à propriedade determinado destino, de vinculá-la a um objetivo.
O qualificativo social indica que esse objetivo corresponde ao interesse coletivo, não ao
interesse do proprietário. A função social corresponde, para Fábio Konder Comparato, a
um poder-dever do proprietário, sancionável pela ordem jurídica. Desta maneira, há um
condicionamento do poder a uma finalidade. A função social da propriedade impõe ao
proprietário o dever de exercê-la, atuando como fonte de comportamentos positivos[3].

O artigo 186 da Constituição da República[4] especificou o sentido constitucionalmente


conferido ao princípio da função social da propriedade, já previsto nos artigos 5º, XXIII
e 170, III, dotando-o de conteúdo positivo mais preciso. A propriedade rural, para
cumprir sua função social, portanto, para ser constitucionalmente garantida, deve
cumprir simultaneamente todos os requisitos previstos nos incisos do artigo 186 da
Constituição.

A utilização adequada dos recursos naturais, a preservação do meio ambiente e a


observância da legislação trabalhista são, portanto, requisitos essenciais para o
cumprimento da função social da propriedade. Nem poderia ser diferente, pois a
valorização do trabalho humano é fundamento da ordem econômica constitucional
(artigo 170, caput) e a defesa do meio ambiente é também princípio desta mesma ordem
econômica (artigo 170, VI). A Constituição nada mais faz no artigo 186 que projetar
espacialmente os fundamentos e princípios da ordem econômica na regulação da
propriedade rural.

Deste modo, a função social da propriedade rural está vinculada à tutela do meio-
ambiente, prevista também no artigo 225 da Constituição. Caso a propriedade seja
explorada em detrimento da preservação do meio-ambiente, estará sendo utilizada em
prejuízo de toda a sociedade, o que é constitucionalmente inadmissível.

No tocante ao respeito à legislação trabalhista, devo ressaltar a importância da


valorização do trabalho humano, como corolário da dignidade da pessoa humana, como
fundamento da ordem econômica constitucional (artigo 170, caput) e do valor social do
trabalho como fundamento da República (artigo 1º, IV). A República Federativa do
Brasil está fundada, entre outros, na dignidade da pessoa humana e no valor social do
trabalho. A proteção constitucional da propriedade só pode se realizar enquanto
respeitadora e garantidora destes fundamentos.

Propriedade na qual não se respeita a legislação trabalhista, ou na qual se atenta, na


exploração da mão de obra, contra a dignidade da pessoa humana, como no caso da
propriedade rural em que se emprega o inadmissível trabalho escravo, não tem proteção
constitucional, pois não cumpre com sua função social. Não fosse suficiente o disposto
no artigo 186, o artigo 243 da Constituição de 1988[5] reforça ainda mais o objetivo de
combater todas as formas de exploração do trabalho análogas à escravidão no meio rural
no Brasil.

A observância dos requisitos do artigo 186 da Constituição, portanto, é essencial para


que a propriedade rural cumpra sua função social e que tenha direito à proteção
constitucional. Estes requisitos, como prescreve o próprio texto constitucional, devem
ser observados simultaneamente, não parcialmente, para configurar a realização do
preceito constitucional da função social da propriedade rural. Deste modo, o imóvel
rural que desrespeita a legislação ambiental e trabalhista, de acordo com o disposto no
artigo 186, II, III e IV da Constituição da República de 1988, não cumpre sua função
social, sendo passível de desapropriação para fins de reforma agrária, nos termos do
artigo 184.

Em relação à propriedade produtiva, prevista no artigo 185, II[6] da Constituição, a


discussão é mais complexa. José Afonso da Silva, por exemplo, entende que a
Constituição garante um tratamento especial para a propriedade produtiva,
estabelecendo uma proibição absoluta de desapropriação para fins de reforma
agrária[7].

Discordo deste posicionamento do ilustre constitucionalista. O próprio conceito de


―propriedade produtiva‖ da Constituição de 1988 não é puramente econômico. A
produtividade protegida pelo texto constitucional não é apenas a produtividade
econômica, mas esta no que significa de socialmente útil, no que contribui para a
coletividade, em suma, no que efetivamente cumpre de sua função social.

Analisando o texto constitucional anterior, Celso Antônio Bandeira de Mello já


destacava que a função social da propriedade não comporta apenas conteúdo
econômico, associado exclusivamente à produtividade, mas tem seu conteúdo vinculado
a objetivos de justiça social, buscando uma maior igualdade material e a ampliação das
oportunidades para todos[8]. Se a Carta de 1969 tinha esta interpretação, com muito
mais razão deve-se entender o aproveitamento racional e adequado, previsto no artigo
186, I da Constituição de 1988, como produtividade e utilidade social.

A função social da propriedade, cujo conteúdo essencial está determinado pelo artigo
186, deve ser observada por todos os tipos de propriedade de bens de produção[9]
garantidos pela Constituição de 1988. Não há propriedade, enquanto bem de produção,
que escape ao pressuposto da função social, nem mesmo a propriedade produtiva do
artigo 185, II. Afinal, a própria Constituição de 1988 determina que a propriedade
produtiva deve cumprir sua função social, ao determinar a função social da propriedade
como um dos princípios da ordem econômica (artigo 170, III) e, ao prever, no parágrafo
único do mesmo artigo 185, que a lei deverá fixar normas para o cumprimento dos
requisitos relativos à função social da propriedade produtiva. E estas normas não
podem, de forma alguma, contrariar o disposto no artigo 186 da mesma Constituição.

Não basta, portanto, que a terra seja produtiva para ser garantida constitucionalmente. A
propriedade, mesmo produtiva, tem que cumprir sua função social. A propriedade rural
está garantida constitucionalmente contra a desapropriação para fins de reforma agrária
se for produtiva e cumprir sua função social. A produtividade é apenas um dos
requisitos da garantia constitucional da propriedade. A propriedade produtiva é
insuscetível de desapropriação por cumprir as exigências constitucionais, ou seja, desde
que cumpra sua função social.

Pode-se afirmar que nem toda propriedade privada constitui um direito fundamental
garantido pela Constituição. A função social da propriedade consiste no dever
fundamental de o proprietário dar à propriedade privada uma destinação social
adequada constitucionalmente, ou, nas palavras de Fábio Konder Comparato, consiste
em um poder-dever do proprietário, sancionável pela ordem jurídica[10]. A propriedade
que não cumpre sua função social não se justifica, portanto, não é passível de proteção
constitucional.

[1] Cf. Karl RENNER, Die Rechtsinstitute des Privatrechts und Ihre soziale Funktion:
Ein Beitrag zur Kritik des Bürgerlichen Rechts, Stuttgart, Gustav Fischer Verlag, 1965,
pp. 46-47, 73-81, 172-174 e 202-204.
[2] Vide Karl RENNER, Die Rechtsinstitute des Privatrechts und Ihre soziale Funktion
cit., pp. 68-71.
[3] Vide, por todos, Fábio Konder COMPARATO, ―Função Social da Propriedade dos
Bens de Produção‖, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro
nº 63, julho/setembro de 1986, pp. 75-76 e Orlando GOMES, ―A Função Social da
Propriedade‖, Boletim da Faculdade de Direito: Estudos em Homenagem ao Prof. Dr.
A. Ferrer-Correia, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1989, pp. 424-426 e 431-432.
[4] Artigo 186 da Constituição de 1988: ―A função social é cumprida quando a
propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência
estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio
ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV –
exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores‖.
[5] Artigo 243 da Constituição (redação alterada pela Emenda Constitucional nº 81, de
05 de junho de 2014): ―As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País
onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de
trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a
programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem
prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art.
5º. Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em
decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho
escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na
forma da lei‖.
[6] Artigo 185 da Constituição de 1988: ―São insuscetíveis de desapropriação para fins
de reforma agrária: I – a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei,
desde que seu proprietário não possua outra; II – a propriedade produtiva. Parágrafo
único – A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para
o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social‖.
[7] José Afonso da SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, 17ª ed, São Paulo,
Malheiros, 2000, p. 794. Esta argumentação é reproduzida literalmente no recente
comentário à Constituição publicado por este autor. Vide José Afonso da SILVA,
Comentário Contextual à Constituição, São Paulo, Malheiros, 2005, p. 747.
[8] Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO, ―Novos Aspectos da Função Social da
Propriedade no Direito Público‖, Revista de Direito Público nº 84, outubro/dezembro de
1987, pp. 43-45.
[9] Para a distinção entre bens de consumo e bens de produção, vide Fábio Konder
COMPARATO, ―Função Social da Propriedade dos Bens de Produção‖ cit., pp. 72-73 e
75-76.
[10] Fábio Konder COMPARATO, ―Função Social da Propriedade dos Bens de
Produção‖ cit., pp. 75-76 e 79 e Fábio Konder COMPARATO, ―Direitos e Deveres
Fundamentais Em Matéria de Propriedade‖ in Alberto do AMARAL Junior & Cláudia
PERRONE-MOISÉS (orgs.), O Cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos
do Homem, São Paulo, EDUSP, 1999, pp. 382-383.

Gilberto Bercovici é advogado, professor titular de Direito Econômico e Economia


Política da USP e professor do Mackenzie.

Revista Consultor Jurídico, 6 de dezembro de 2015, 8h00


CASO 08

Quais as consequências da aprovação da terceirização


da mão de obra?
23 de abril de 2017, 11h22

Por José Maria Arruda de Andrade

A lei que trata da terceirização da mão de obra em uma empresa foi aprovada há pouco
(Lei 13.429/2017). Trata-se de tema delicado do ponto de vista do choque de forças
entre centrais sindicais, empregadores (prestadores de serviços) e tomadoras de
serviços.

Toda empresa, ao perseguir seus objetivos econômicos, pode contar com uma força de
trabalho própria e com a atuação de outras empresas prestadoras de serviços (e, às
vezes, até de profissionais autônomos).

Aspectos envolvendo a terceirização com cessão de mão de obra, contudo, por estarem
próximos de uma relação direta com a tomadora de serviços, geraram muitas situações
de insegurança jurídica para todas as partes envolvidas.

Na década de setenta do século passado, houve a criação de uma lei para regular a
figura bem específica do empregado temporário (Lei nº. 6.019/1974), que nada mais é
do que a contratação de uma empresa especializada em cessão de empregados para
atender à necessidade de substituição dos trabalhadores da tomadora ou ao acréscimo
extraordinário de serviços.

Com isso, a modalidade de empregado temporário permite à tomadora a substituição da


mão de obra própria por outra, terceirizada, em prazo determinado. Apesar dessa
regulação pontual, as empresas tomadoras de serviços enfrentavam outras dificuldades
operacionais nas situações não contempladas na legislação, sobretudo a de saber quais
os limites na contratação de força de mão de obra de outras empresas sem que se
configurasse vínculo trabalhista entre a tomadora dos serviços e os empregados cedidos
pela prestadora.

Por ausência de regras claras sobre essa modalidade de contratação mais ampla, a
Justiça do Trabalho analisava as situações em busca de eventuais fatores suficientes
para caracterizar o vínculo direto de emprego e acabou por construir um critério de
classificação que, por fim, restou sendo aplicado de forma quase mecânica: se o
trabalhador cedido estivesse na contratante e desenvolvesse funções relacionadas à
atividade fim da empresa, então se presumiria o vínculo.

Pois bem, os projetos que estavam sendo noticiados com muita atenção pela imprensa e
que pretendiam estabelecer regras mais claras sobre a contratação de mão de obra
terceirizada se valeram da técnica ou estratégia de alterar, justamente, a lei da década de
1974, que apenas tratava da específica figura do contrato temporário, como forma de
albergar outras situações de terceirização que seriam consideradas juridicamente
válidas.
Como se sabe, havia um projeto do Senado que estipulava uma série de limitações ao
exercício da terceirização e estava prestes a ser aprovado, quando a Câmara dos
Deputados retomou outro projeto mais antigo, do governo Fernando Henrique Cardoso,
e o aprovou. Esse último projeto (PL nº 4.302/98), com três vetos presidenciais, acabou
sancionado e promulgado como Lei 13.429/2017, que inseriu e revogou trechos da
antiga lei.

Uma característica fundamental da lei, tal como se encontra atualmente, é a existência


de dois regimes jurídicos distintos; de um lado, a contratação de trabalhador temporário
(uma situação bem específica e pontual), e, de outro, a contratação de empresa que
presta serviços a terceiros.

A principal inovação legislativa foi, sem dúvida, a permissão legal da terceirização das
funções exercidas pelos empregados de uma empresa independentemente da natureza da
atividade (fim ou meio).

A responsabilidade da tomadora de serviços, em relação as dívidas relacionadas aos


terceirizados, é subsidiária, o que significa que a tomadora só poderá ser obrigada a
pagar aqueles valores devidos pela cedente de mão de obra que não honrar seus débitos.
Havia o temor das empresas de que se adotasse o regime de responsabilidade solidária,
mais gravoso, em que não se impõe a ordem de preferência na cobrança de débitos.

A quarteirização (subcontratação de trabalhadores de uma outra empresa) foi admitida


expressamente pela lei, quando se trata de contratação de empresas prestadoras de
serviços a terceiros.

Em relação ao regime do trabalho temporário, houve o aumento do prazo máximo de


contrato de trabalhador temporário (180 dias, prorrogáveis por, no máximo, mais 90
dias, ambos não necessariamente consecutivos).

Pontos sensíveis nessa alteração legislativa podem ser assinalados e têm sido alvo de
acalorados debates. Com a atual configuração legal, pode haver tratamento desigual
entre os trabalhadores terceirizados e aqueles que são da própria empresa tomadora de
serviços. Há uma garantia mínima de garantia das condições de segurança, higiene e
salubridade dos terceirizados, mas o atendimento médico, ambulatorial e de refeição
disponíveis aos empregados da contratante será obrigatório tão somente no caso de
trabalhadores temporários, sendo facultativo nos casos de contratação de empresa
prestadora a terceiros.

Há, ainda, um fator sindical em jogo. Os funcionários terceirizados serão vinculados a


sindicatos da atividade de sua empresa original e não os daquela em que ele exercer a
função (um empregado cedido a uma instituição financeira, portanto, estará vinculado
ao sindicato das empresas cedentes de mão de obra temporária, por exemplo).

Como balanço crítico da inovação legislativa, pode-se afirmar que a segurança jurídica
e a expectativa de aumento de produtividade representam o maior avanço desta medida.

Os tomadores de serviços e os respectivos prestadores, contudo, ainda enfrentarão certas


questões que se põem, como a pressão de sindicatos, já que as salvaguardas dos
terceirizados previstas na lei são genéricas.
Há, ainda, pontos a serem aprofundados, como a possibilidade de uso da terceirização
por sociedades de economia mista ou empresas públicas, quando essas desenvolvem
atividade econômica típica da iniciativa privada (art. 173, II da Constituição) e os
limites da prestação de serviços realizada diretamente ou também por sócio da empresa
cedente, já que nem todas representam terceirização propriamente dita.

Por fim, podemos lembrar que, desde os economistas políticos clássicos, no capitalismo,
as principais tensões se apresentam entre as duas principais categorias de agentes, os
trabalhadores e aqueles que invertem seu dinheiro em capital, em prol de uma atividade
econômica (capitalistas).

Os enfrentamentos e tensões entre as duas classes está no cerne da economia e do


direito. Mesmo em épocas em que se falava em produzir regras que assegurassem a
livre iniciativa, essa liberdade nunca foi total, tanto que as primeiras leis a regular as
relações de trabalho o fizeram no sentido de se proibir a vadiagem e o pagamento acima
de determinado valor (salário máximo), com pena para os que recebessem acima de tal
valor e para os que o pagassem.

Intervenções legislativas e busca por ampliação de direitos e liberdades estão na história


do direito. Certamente, a legislação trabalhista brasileira impõe uma série de
dificuldades e custos à atividade empresarial. Não há dúvidas que muitas fraudes
trabalhistas são cometidas diuturnamente.

O vácuo normativo acerca dos limites da licitude da contratação de terceirizados por


parte das empresas acabou sendo preenchido por jurisprudência (Súmula 331 do
Tribunal Superior do Trabalho), o que nem sempre é o melhor caminho para se regrar
condutas. Em situações como essas, a falta de previsibilidade econômica e de segurança
jurídica acabavam por criar péssimo cenário de investimento.

Nesse sentido, não há dúvida que as inovações legais contribuem para criar alguns
parâmetros mínimos para o tema.

Há, contudo, que se observar se o instrumento legal será utilizado para permitir a
terceirização de setores de uma empresa ou se será alvo apenas de um planejamento
antissindical, ao se afastar sindicatos mais estruturados, e de custos, ao se ganhar na
escala pelo tratamento diferenciado entre empregados e terceirizados.

José Maria Arruda de Andrade é professor associado de Direito Econômico e Economia


Política da USP, livre-docente e doutor pela FDUSP, sócio da Gaia, Silva, Gaede &
Associados. Foi secretário-adjunto da secretaria de Política Econômica do Ministério da
Fazenda e pesquisador visitante no Instituto Max-Planck de Inovação e Concorrência
em Munique (Alemanha).

Revista Consultor Jurídico, 23 de abril de 2017, 11h22

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