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Com efeito, ninguém contesta hoje em dia que o atual quadro de destruição ambiental
no mundo compromete a possibilidade de uma existência digna para a humanidade e
põe em risco a própria vida humana[3]. Por essa razão, afirma Nicolao Dino, uma sadia
qualidade de vida, com a manutenção de padrões estáveis de dignidade e bem-estar
social, não prescinde de um ambiente saudável e ecologicamente equilibrado[4].
Não obstante, porém, tal dimensão coletiva e difusa do direito ao meio ambiente,
importa ressalvar que o seu perfil individual resta igualmente preservado, na medida em
que o objeto final é, também, a proteção da vida, da qualidade de vida e da dignidade do
homem na sua individualidade[10].
A dimensão procedimental, por sua vez, traduz, de acordo com Jorge Miranda, a
superação da visão meramente estática dos direitos fundamentais, calcada apenas no seu
conteúdo material, pela adoção, em acréscimo, de uma visão dinâmica, por meio da
consideração dos mecanismos pertinentes à sua implementação e efetivação[17].
Reconhece-se, nessa ótica, como esclarece o ministro Herman Benjamin, que a simples
consagração de direitos fundamentais nas Constituições não assegura, por si só e
automaticamente, o quadro de tutela almejado, fazendo-se imprescindíveis, também,
direitos fundamentais procedimentais, para fins de concretização dos direitos em seu
aspecto material[18].
[1] SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 3ª ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 129; FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos
Fundamentais e Proteção do Ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no
marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2008, p. 57 e ss.
[2] COMPARATO, Fábio Konder. Os problemas fundamentais da sociedade brasileira
e os direitos humanos. In: COMPARATO, Fábio Konder. Para Viver a Democracia.
São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 36; ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos
Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2004, p.
50.
[3] MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Participação, Processo Civil e Defesa do Meio
Ambiente. São Paulo: Letras Jurídicas, 2011, p. 103 e ss.
[4] COSTA NETO, Nicolao Dino de Castro e. Proteção Jurídica do Meio Ambiente.
Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 17.
[5] Sobre o tema, com ampla referência doutrinária, FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos
Fundamentais e Proteção do Ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no
marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito, cit., p. 142 e ss.
[6] SILVA, Solange Teles da. Direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado: avanços e desafios. Revista de Direito Ambiental, n. 48, p. 230.
[7] Op. cit., p. 53.
[8] SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 54; LAFER, Celso. A reconstrução dos
direitos humanos: um diálogo com o pensamento de Hannah Arendt. São Paulo:
Companhia das Letras, 1988, p. 131.
[9] STF – MS 22.164-0/SP – j. 30/10/1995 – rel. min. Celso de Mello.
[10] SARLET, Ingo Wolfgang, op. cit., p. 59.
[11] BENJAMIN, Antônio Herman V. Constitucionalização do ambiente e ecologização
da Constituição brasileira. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José
Rubens Morato (Orgs.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 6ª ed. São Paulo:
Saraiva, 2015, p. 124; MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires;
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva,
2007, p. 232.
[12] MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 107.
[13] BENJAMIN, Antônio Herman V., op. cit., p. 126.
[14] MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: direito e dever
fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 115 e 121;
FENSTERSEIFER, Tiago, op. cit., p. 185 e ss.
[15] MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional: direitos fundamentais. 3ª ed.
Coimbra: Coimbra Ed., 2000, t. 4, p. 542; BARROSO, Luís Roberto. A proteção do
meio ambiente na Constituição brasileira. Revista Forense, v. 317, p. 167; FERREIRA
FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Saraiva,
1995, p. 66; MIRRA, Álvaro Luiz Valery, op. cit., p. 107-108.
[16] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, op. cit., p. 66; MIRRA, Álvaro Luiz
Valery, op. cit., p. 107-108.
[17] Op. cit., p. 93-94.
[18] Op. cit., p. 126.
[19] Op. cit., p. 126-129. Ainda: CAPPELLI, Sílvia. Acesso à Justiça, à informação e
participação popular em temas ambientais. In: LEITE, José Rubens Morato; DANTAS,
Marcelo Buzaglo (Orgs.). Aspectos Processuais do Direito Ambiental. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2003, p. 276-309; DÉJEANT-PONS, Maguelonne. Le droit de
l‘homme à l‘environnement en tant que droit procédural. In: DÉJEANT-PONS,
Maguelonne; PALLEMAERTS, Marc. Droits de l’homme et environnement.
Strasbourg: Conseil de l‘Europe, 2002, p. 21.
[20] BLANCO-URIBE QUINTERO, Alberto. La definición del derecho-deber
individual y colectivo al ambiente en derecho comparado. Caracas: Tribunal Supremo
de Justicia, 2005, p. 72.
[21] FURRIELA, Rachel Biderman. Democracia, Cidadania e Proteção do Meio
Ambiente. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2002, p. 38.
[22] Sobre o acordo regional em questão, acessar
http://www.cepal.org/es/temas/principio-10. Ainda: CAPPELLI, Sílvia. Elementos
esenciales para el acuerdo regional en el acceso a la justicia (acesso pelo mesmo site).
A 6ª Sessão de negociação do acordo ocorrerá em Brasília-DF, no período de 20 a 24 de
março de 2017.
[23] BORN, Rubens Harry. Oportunidades e desafios na 2ª etapa de negociação de
acordo internacional sobre direitos à informação, à participação e à justiça em matéria
ambiental (http://www.esquel.org.br/images/stories/Pdfs/aviso-artigo2.pdf). Assim,
também, têm se pronunciado, entre outros, no Brasil, a Associação Brasileira dos
Membros do Ministério Público do Meio Ambiente (Abrampa), a Fundação Grupo
Esquel Brasil, o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), a
Associação Artigo 19 Brasil, o Instituto O Direito Por Um Planeta Verde e o Fórum
Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e Desenvolvimento.
Álvaro Luiz Valery Mirra é juiz de Direito em São Paulo, doutor em Direito Processual
pela USP, especialista em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade
de Estrasburgo (França), coordenador adjunto da área de Direito Urbanístico e
Ambiental da Escola Paulista da Magistratura e membro do instituto O Direito Por Um
Planeta Verde e da Associação dos Professores de Direito Ambiental do Brasil.
CASO 01
Podemos afirmar, entre esse cipoal de iniciativas positivas para a fixação do conceito de
Responsabilidade Social Empresarial, que provavelmente a contribuição mais
importante tenha sido a apresentação, pela Comissão das Comunidades Europeias, em
julho de 2001, do chamado Livro Verde (o documento pode ser consultado em:
www.csreurope.org), que define a RSE como ―a integração voluntária de preocupações
sociais e ambientais por parte das empresas nas suas operações e na intersecção com
outras partes interessadas‖.
É importante frisar que esse documento traz relevantes diretrizes quanto às formas de
gestão (a) interna: relacionada com os trabalhadores; e (b) externa: relativa aos
multistakeholders, ou seja, investidores, parceiros comerciais, fornecedores, clientes e
credores.
No primeiro aspecto, vale destacar que as práticas socialmente responsáveis são fixadas
no que diz respeito à saúde e segurança dos trabalhadores, sempre os tratando como
pessoas e cidadãos. Na gestão de mudança, são priorizados direitos e condições em
casos de fusão, incorporação e outras formas de troca de controle administrativo da
empresa, no investimento no capital humano e outras práticas relacionadas ao bem-estar
e dignidade do trabalhador.
Cumpre destacar que o mais interessante de todo esse procedimento equilibrado e ético
de gestão comportamental tem em vista um elemento que lhe é indispensável: a
voluntariedade deste processo de ―boas práticas‖, que serve de composto material
imprescindível à RSE. Além da voluntariedade, é importante evidenciar o conteúdo
dessas chamadas boas práticas. Esse comportamento, socialmente responsável, não se
resume nem se limita à observância das leis, até porque todos os cidadãos e empresas,
de modo geral, estão vinculados a essa obrigação. Também não exige que as empresas
exerçam pura e simplesmente filantropia ou caridade pública. A RSE transcende ao
básico.
Para colocar em prática essas medidas, as empresas têm à mão instrumentos individuais
de materialização desses valores e medidas. São os regulamentos, além dos chamados
códigos de conduta e de ética, que atuam como uma espécie de ―declaração formal de
valores e práticas comerciais‖ de uma empresa e, por vezes, também dos seus
fornecedores.
Dessa maneira, percebe-se que empresa socialmente responsável é aquela que impõe
práticas que se integram àquilo que se chama função promocional do Direito. E esse
sistema, pautado na função promocional, nada mais faz do que promover a integração
de vários agentes de suporte que compõem o conteúdo da responsabilidade social, uma
vez que entrelaça (chamamos isso de ―competência cruzada‖) sistemas de todo um
universo social. Isso vai além do simples vetor econômico de lucro que, regra geral,
rege as empresas, passando por outros, como: sistema jurídico, econômico, político,
social, cultural e científico. Traduz-se, finalmente, numa espécie de ―consciência da
empresa‖, que autorregulará seu comportamento sustentável para um bem maior, que é
a sociedade da qual faz parte e à qual tem a obrigação moral, ética e social de servir.
A atividade empresarial no Brasil é vitimada por uma nefasta cultura comum que coloca
o seu agente, o empresário[1], como um vilão, explorador do trabalho e que visa
unicamente o acúmulo de riqueza[2].
A questão é que, muito mais que o lucro, a empresa cumpre uma função social das mais
relevantes, a qual, dada a sua importância, está inserida na própria Carta Constitucional
de 1988.
Deve ser observado, ainda, que o próprio legislador infraconstitucional brasileiro, antes
mesmo de todos os comandos constitucionais supra citados, já na Lei das Sociedades
Anônimas (Lei 6.404/76), nos artigo 116, parágrafo único e 154, se pronunciava sobre o
cumprimento de uma função social por parte das sociedades empresárias
[...]
Artigo 154. O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe
conferem para lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências
do bem público e da função social da empresa".
Também a Lei de Recuperação Judicial (Lei 11.101/2005), em seu artigo 47, que
fundamenta o próprio instituto da recuperação também reconhece a função social da
empresa e a necessidade de preservação da mesma.
"Na medida em que a empresa tem relevante função social, já que gera riqueza
econômica, cria empregos e rendas e, desta forma, contribui para o crescimento e
desenvolvimento socioeconômico do país, deve ser preservada sempre que for
possível. O princípio da preservação da empresa que, há muito tempo é aplicado
pela jurisprudência de nossos tribunais, tem fundamento constitucional, haja vista
que nossa Constituição Federal, ao regular a ordem econômica, impõe a
observância dos postulados da função social da propriedade (artigo 170, III), vale
dizer, dos meios de produção ou em outras palavras: função social da empresa. O
mesmo dispositivo constitucional estabelece o princípio da busca pelo pleno
emprego (inciso VIII), o que só poderá ser atingido se as empresas forem
preservadas. (...)"[6].
Percebe-se, assim, o reconhecimento pela Corte Suprema brasileira e pela doutrina, não
somente que efetivamente as sociedades empresárias têm uma função social a cumprir,
mas também, que essa função social reveste-se de grande importância no contexto do
modelo econômico-político-social brasileiro, inclusive sendo garantida a proteção à
existência das mesmas.
No já referido Projeto de Lei do Novo Código Comercial (PL 1.572/11), seu artigo 7º
também traz expressamente a importância da empresa dentro do contexto social[7].
Nesse toar, a função social da empresa, ao tempo em que se exterioriza, ou seja, em que
se apresenta com um efetivo elemento de atuação social, também serve de base para
fundamentar a própria necessidade de preservação das sociedades empresárias, até
porque, não há como as sociedades empresárias cumprirem uma função social se elas,
sociedades, não existirem.
A função social da empresa possui (ou deveria possuir), dessa forma, um duplo sentido,
que vincula(sse) não só a atividade empresarial, mas também o Estado, que deveria
reconhecer essa função social em sua relação para com as empresas. Defendo que às
empresas cabe buscar no Judiciário este reconhecimento[11] que, antes de tudo, e como
já referido, é um direito que se reveste de constitucionalidade.
Urge, pois, que os falsos paradigmas sejam quebrados, que a verdade seja exaltada, que
a realidade se descortine, para que todos, e em especial o Estado, possam efetivamente
compreender a verdadeira função social da empresa e a sua essencialidade para a
existência da sociedade.
[1] O atual Código Civil brasileiro, no artigo 966, conceitua empresário como sendo
aquele que exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção
ou a circulação de bens ou de serviços.
[2] A cultura do empresário vilão surge de equívocos seculares como o jargão
ideológico-dogmático-religioso de que "lucro é pecado", por exemplo! Outras falácias,
como a que enxerga no empresário um detentor de capital e explorador do trabalho,
somam-se ao longo do tempo e terminam por contribuir para esta distorcida análise.
Ver: http://www.administradores.com.br/artigos/negocios/no-brasil-lucrar-e-
pecado/64100/. O presidente do Brasil, Michel Temer, declarou em evento do
agronegócio em São Paulo que "ter lucro não é pecado", confirmando ser este ainda um
pensamento que aflige o Brasil.
Ver: http://www.noticiasagricolas.com.br/noticias/agronegocio/175828-ter-lucro-nao-e-
pecado-diz-temer-ao-agronegocio.html#.WDNvdoWcFAg.
[3] No projeto de lei do Novo Código Comercial (PL 1.572/11), seu artigo 5º já
estabelece que o lucro decorre do princípio da liberdade de iniciativa, sendo o principal
fator de motivação da iniciativa privada:
O período de submissão de contribuições ao Debate Público sobre o Projeto de Novo
Código Comercial foi encerrado em 01/07/2012.
O período de submissão de contribuições ao Debate Público sobre o Projeto de Novo
Código Comercial foi encerrado em 01/07/2012.
Artigo 5º. Decorre do princípio da liberdade de iniciativa o reconhecimento por este
Código:
I - da imprescindibilidade, no sistema capitalista, da empresa privada para o
atendimento das necessidades de cada um e de todos;
II - do lucro obtido com a exploração regular e lícita de empresa como o principal fator
de motivação da iniciativa privada;
III - da importância, para toda a sociedade, da proteção jurídica liberada ao investimento
privado feito com vistas ao fornecimento de produtos e serviços, na criação,
consolidação ou ampliação de mercados consumidores e desenvolvimento econômico
do país; e
IV - da empresa privada como importante polo gerador de postos de trabalho e tributos,
bem como fomentador de riqueza local, regional, nacional e global.
[4] Quanto à esta questão do modelo econômico-político adotado pela Constituição
Federal de 1988, Eros Grau, ao interpretar e criticar a ordem econômica, traz uma série
de posicionamentos doutrinários, inclusive anteriores à própria Constituição, concluindo
que: (1) a ordem econômica na Constituição de 1988 consagra um regime de mercado
organizado (...) optando pelo tipo liberal do processo econômico (...), mas que o Estado
adota uma posição que corresponde à do neoliberalismo ou social-liberalismo, com a
defesa da livre iniciativa; (2) contempla a economia de mercado; e (3) a Constituição é
capitalista, mas a liberdade é admitida enquanto exercida no interesse da justiça social e
confere prioridade aos valores do trabalho humano sobre todos os demais valores da
economia de mercado. Eros grau traz ainda outros posicionamentos sobre a matéria.
(Ver: GRAU, Eros. A ordem Econômica na Constituição de 1988. 16ª ed. Ver. E atual.
Malheiros. São Paulo, 2014. pp. 177-189.
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Autos do Agravo de Instrumento AI 831.020
RJ, publicado no DJe-158, de 13 de agosto de 2012. Disponível em:
http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/22296205/agravo-de-instrumento-ai-831020-rj-
stf.
[6] CALÇAS, Manoel Pereira. A Nova Lei de Recuperação de Empresas e Falências:
Repercussão no Direito do Trabalho (Lei 11.101, de fevereiro de 2005). Revista do
Tribunal Superior do Trabalho. Ano 73. N. 4. out/dez 2007, p. 40.
[7] Artigo 7º. A empresa cumpre sua função social ao gerar empregos, tributos e
riqueza, ao contribuir para o desenvolvimento econômico, social e cultural da
comunidade em que atua, de sua região ou do país, ao adotar práticas empresariais
sustentáveis visando à proteção do meio ambiente e ao respeitar os direitos dos
consumidores, desde que com estrita obediência às leis a que se encontra sujeita.
[8] Sobre a relação entre o Estado e a iniciativa privada, ver minha dissertação de
mestrado: A função social da empresa como condição de possibilidade de sustentação
do Estado social no mundo globalizado. Disponível em:
http://www.repositorio.jesuita.org.br/bitstream/handle/UNISINOS/4814/FRANCISCO
%20SOARES%20CAMPELO%20FILHO_.pdf?sequence=1&isAllowed=y
[9] Ver meu artigo Reflexos da globalização econômica sobre as sociedades
empresárias: uma necessária simbiose entre Estado e empresas ou o destino
apocalíptico que se aproxima no horizonte. In Revista Direito Hoje, n. X, Imagem
Brasil, Teresina-PI, 2014.
[10] Ver decisão do STF: Mantidas obrigações a escolas particulares previstas no
Estatuto da Pessoa com Deficiência.
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=304439
[11] Sobre esse tema, há a necessidade de uma análise profunda e que poderá ser objeto
de outro estudo.
Algumas expressões no Direito funcionam como verdadeiros ―abre-te Sésamo‖, eis que
têm sido utilizadas para justificar dos mais variados e contraditórios posicionamentos. A
―função social da empresa‖ é uma delas.
A expressão é tão vaga que na maioria das vezes é definida de forma denotativa, sendo
enumeradas situações em que uma empresa cumpre ou não sua função social.
Genericamente, costuma-se dizer que não cumpre sua função social aquela que polui o
meio ambiente, que desrespeita os consumidores, que paga parcos salários; de outra
banda, cumpre com sua função social a empresa que tem um projeto de
desenvolvimento sustentável, aliando à perseguição do lucro, projetos ambientalmente
adequados, programas de valorização dos funcionários, etc..
De uma maneira geral, relaciona-se a função social da empresa com a função social do
contrato (isso para a hipótese de atividade empresarial desenvolvida por sociedades
empresárias, não abarcando, portanto, os empresários individuais) e com a função social
da propriedade. Na legislação, a expressão ganha assento principalmente na Lei das
Sociedades Anônimas e na Lei de Recuperação e Falências.
Falar que a função social da empresa ocorre quando esta obedece às regras ambientais,
respeita os direitos trabalhistas e do consumidor, não pratica ato de concorrência
desleal, não atribuiu a ela conteúdo jurídico algum, pois sempre se estará a justificar a
função social da empresa no com base em outras normas.
Quando a Lei das Sociedades Anônimas determina que o acionista controlador ―deve
usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função
social‖ (artigo 116, parágrafo único) ou que ―o administrador deve exercer as
atribuições que a lei e o estatuto lhe conferem para lograr os fins e no interesse da
companhia, satisfeitas as exigências do bem público e da função social da empresa‖
(artigo 154), igualmente está a direcionar o seu comando aos sobreditos princípios.
Aliás, tirando a obediência aos já citados ramos do Direito, o que seria específica e
objetivamente o cumprimento da função social da empresa patrocinada por uma
sociedade anônima?
Ou seja, função social da empresa não tem conteúdo normativo (no sentido de não ser
norma jurídica em sentido estrito), não vincula condutas, não é de obediência
obrigatória aos empresários, pelo menos não à luz do sistema jurídico em vigor. Muito
diferente com o que ocorre com a função social do contrato, que pode ser anulado caso
viole sua função social, ou da propriedade imobiliária urbana e rural, que podem ser
perdidas caso, igualmente, não cumpram com sua função social.
Tenho para mim que o Direito reconhece e pressupõe a função social da empresa, ou
seja, toma a empresa como bem jurídico na medida em que esta tem uma função social,
gerando riquezas, empregos, tributos. A proteção que é dada a empresa demonstra que o
legislador pressupõe tal valor (função social da empresa) ao legislar. A atividade
empresarial é, inclusive, elemento de pacificação social e de manutenção do Estado, já
que garante empregos e abastece o erário.
Prova disso é a redação do artigo 47, da Lei de Recuperação e Falências, que dispõe: ―A
recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise
econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora,
do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a
preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.‖
Note que o indigitado dispositivo toma a função social da empresa como pressuposto à
existência do próprio instituto da recuperação. Explico: como a empresa (atividade
econômica) tem uma função social a ser cumprida, é necessária a sua preservação, daí o
artigo 47 e o instituto da recuperação, pois, com a preservação da empresa, será
promovida sua função social.
Não se está a negar a função social da empresa, apenas não identifico o caráter
normativo de tal expressão, no sentido de vincular a conduta do empresário à frente da
atividade empresarial. Normas ambientais, do consumidor, de concorrência,
trabalhistas, essas, sim, vinculam a atividade empresarial.
Além das sanções previstas no Direito Ambiental, qual outra consequência imposta ao
empresário que no desempenho de sua atividade empresarial poluiu o meio ambiente?
Não poderia ele, por exemplo, obter o benefício da recuperação judicial, por,
supostamente, descumprir a função social da empresa?
Caso Pinheirinho
O que aconteceu na localidade conhecida por Pinheirinho, em São José dos Campos,
município que possui um dos maiores orçamentos per capita do Brasil, pode ser
considerado uma das maiores agressões aos Direitos Humanos da história recente em
nosso país.
Querem dizer que tudo se deu em nome da lei, mas com tal argumento confere-se ao
Direito uma instrumentalidade para o cometimento de atrocidades e, pior, tenta-se fazer
com que todos os cidadãos sejam cúmplices do fato. Só que o Direito não o corrobora.
Senão vejamos.
Na base jurídica do ato cometido está, dizem, o direito de propriedade. Um terreno foi
invadido, obstruindo-se o direito da posse tranqüila ao seu titular, e, portanto, precisa
ser desocupado. Simples assim.
Desse ponto de vista, a ocupação, para fins de moradia, de uma terra improdutiva,
abandonada, sobre a qual o proprietário não exerce o direito de posse, que não serve
sequer ao lazer e que pela sua localidade e tamanho precisa, necessariamente, atender a
uma finalidade social, não é mera invasão. Trata-se, em verdade, de uma ação política
que visa pôr à prova a eficácia dos preceitos constitucionais, cabendo esclarecer que
essa não é uma temática exclusiva do meio rural já que as normas jurídicas mencionadas
não fazem essa diferenciação e também a Constituição de 1988 passou a admitir o
usucapião de imóveis urbanos (artigo 183).
Assim, diante de uma ocupação dessa natureza compete ao proprietário, que pretenda
recuperar a posse da terra, com o pressuposto que de fato a exerça, demonstrar que sua
propriedade cumpre uma função social, tendo direito, inclusive, a uma decisão liminar,
proferida logo no início do processo judicial, quando o esbulho tenha ocorrido a menos
de um ano e um dia da propositura da ação possessória. Vale reforçar: como
fundamento da ação não basta demonstrar o título de propriedade. Deve-se demonstrar a
posse e provar que a propriedade cumpre uma função social.
Ocorre que hoje a área transformou-se em um dos muitos bairros pobres de São
Paulo, logo, a partir da inação do Estado em criar as condições de moradia para
milhares de pessoas que vivem na rua, sem teto próprio, estas, por extrema
necessidade, acabaram por praticar o ato de desapropriação indireta do imóvel,
repartindo o espaço de forma a permitir uma moradia minimamente digna.
No corpo de sua sentença, Amable cita várias outras decisões com igual teor.
a) O particular que tem sua propriedade invadida por mais de cinco mil pessoas
que, se desalojadas, não terão para onde ir, deve buscar do Poder Público a
indenização a que faz jus decorrentes da desapropriação indireta. Entretanto, a
reintegração de posse não deve ser deferida, em homenagem ao princípio da
função social que a propriedade tem, nos termos do artigo 2º, IV, da Lei 4.132/62
e artigo 5º, inciso XXIII, da Constituição Federal.
(....)
...tecnicamente a sentença não merece reparos. Mas o direito evolui, situação que,
particularmente, atingiu o direito de propriedade. Não é mais possível idealizar a
proteção desse direito no interesse exclusivo do particular, pois hoje princípios da
função social da propriedade aguardam proteção mais efetiva. Não fora isso, a
função do Judiciário, de solucionar conflitos de interesse, não pode desprezar a
necessidade de por fim ao embate posto nos autos, mas de impedir, com a decisão
dada, que outras lides venham a acontecer.
Está em estudo um litígio entre um particular que teve suas terras inutilizadas
invadidas e um grupo de mais de cinco mil famílias que ali se instalaram por não
ter outro lugar para ficar.
Retiradas do local, por certo deverão ocupar outro. Se particular, novo conflito
será criado. Se públicas, também o Poder Público, em tese, tem direito de
recuperá-las. O certo é que, para qualquer local onde sejam essas pessoas levadas,
o mesmo problema que aqui aparentemente se resolve será novamente criado.
Sequer condenar os requeridos a flutuar é possível, pois em tese o espaço aéreo
sobre um imóvel pertence ao dono da superfície (artigo 526 do CC).
Entendido que o imóvel foi, de forma indireta, desapropriado, não caberia a ação
possessória que tem por finalidade recuperar a posse em decorrência da
propriedade. Mas, tendo havido perda desta, para o interesse público em disputa,
a pretensão deve ser tão somente indenizatória contra o Poder Público
responsável pela política urbana.
Não é razoável que para proteção da posse de uma empresa seja destruído um
bairro inteiro numa verdadeira operação de guerra, desencadeada pelo Estado,
quando existe outra solução mais afinada com o interesse social, isto é, a
desapropriação do imóvel com o pagamento da indenização a quem faça.
(Magistrado Mário Dacache, autos do processo n. 2.122/95, juízo cível do Fórum
Regional VII de Itaquera)
c) No caso dos autos a coisa reivindicada não é concreta, nem mesmo existente. É
uma ficção.
Para o direito, contudo, a existência física da coisa não é fator decisivo, consoante
se verifica dos mencionados incisos I e III do artigo 78 do CC (de 1.916). O
fundamental é que a coisa seja funcionalmente dirigida a um finalidade viável,
jurídica e economicamente. Pense-se no que ocorre com a denominada
desapropriação indireta. (…)
Não se pode esquecer, ademais, que o Estado atual é o Estado de Direito Social e neste
sentido rege-se, juridicamente, pela obrigação de garantir a eficácia dos direitos sociais,
constitucionalmente consagrados, não lhe cabendo, portanto, assegurar o direito de
propriedade numa perspectiva meramente liberal, até porque também esse direito está
vinculado a cumprir uma função social e isso não é retórica, tratando-se de expressão
inequívoca da lei.
Não se tratou, pois, de mera invasão, mas de ato político organizado para extrair o
Estado de sua inércia e para buscar a eficácia dos preceitos constitucionais do direito à
moradia e da função social da propriedade. Não se tratou, igualmente, de ato de pessoas
espertas, que quiseram se aproveitar da situação, passando à frente na fila dos milhões
de brasileiros que também não têm onde morar, pois, como bem ponderou Ricardo
Boechat, comentando o assunto, nenhum esperto tem como projeto de vida morar em
um terreno ocupado, em precárias condições habitacionais. Os espertos estão em outros
lugares, bem mais confortáveis, por certo. Os ocupantes do Pinheirinho são, ao
contrário, pessoas injustiçadas e sofridas, vítimas da inércia de governantes que insistem
em tratar as estruturas do Estado fora da perspectiva do Direito Social e do respeito aos
Direitos Humanos. Claro, como insistiram em mostrar os autores da agressão, lá
também havia consumidores de drogas e até alguns objetos frutos de furto, mas isso em
nada altera a configuração jurídica refletida na situação, até porque drogas se
consumem, infelizmente, por todos os cantos e o encontro de objetos furtados não
representa, por si, identificação de autoria do crime e, de todo modo, a pena pelo furto
não é a perda do direito à moradia. É forçoso reconhecer, portanto, que aquelas pessoas
foram vitimadas pela histórica péssima distribuição de renda que reina em nosso país.
Nossa profunda injustiça social está na base do fenômeno e não pode ser negligenciada.
Mas, admitamos que toda essa análise jurídica esteja errada, que nada disso justifique o
ato cometido pelos cidadãos que se tornaram, pela ocupação, moradores do Pinheirinho.
Partamos do princípio de que um erro não justifica o outro e que não se corrige a
ilegalidade da inércia do Estado com outra ilegalidade, cometida pelo particular.
Reconheçamos, enfim, que houve um ato ilegal pela ―invasão‖ e que a autoridade do
ordenamento jurídico precisava mesmo ser recomposta.
No caso Pinheiro esse entrelace de direitos foi solenemente ignorado, a começar pelos
aspectos processuais. A ação política da ocupação do terreno teve início em 2004. No
mesmo ano, o proprietário do imóvel, a massa falida da empresa Selecta, ingressou com
a ação de reintegração, mas não obteve decisão liminar favorável à sua pretensão.
Interpôs, então, recurso denominado agravo de instrumento, tendo conseguido, junto à
16ª Câmara do Tribunal de Justiça, a concessão da liminar para a reintegração. Mas, tal
decisão, em virtude de vícios processuais formais, foi cassada, mediante mandado de
segurança, impetrado pelos moradores. O processo, então, prosseguiu seus trâmites
normais, com diversos embates jurídicos, sendo que em 2010 a nulidade do meio
processual utilizado pela Massa Falida para tentar reformar a decisão que negou a
liminar foi confirmada pelo Superior Tribunal de Justiça, prevalecendo, então, a decisão
inicial, que negou a liminar de reintegração.
Nesse meio tempo, a ocupação foi se organizando ainda mais e se consolidou com a
constituição de uma Associação de Moradores, que urbanizou o local com a formação
de ruas, praças e a divisão do terreno em lotes com 250 metros quadrados, obedecendo-
se, ainda, a regra, fixada pela Associação, de uma família por terreno. Formou-se no
lugar um autêntico bairro, com novos moradores, pessoas oriundas da comunidade
local, São José dos Campos, trabalhadores com ocupações diversas e também, é claro,
desempregados, que para lá se dirigiam e investiam na construção de suas casas, agindo
de tal forma, com boa-fé, principalmente em razão do aceno dado pelas três esferas do
poder, Federal, Estadual e Municipal, em torno da possibilidade concreta da
regularização da situação. Representantes das esferas do Poder visitaram por diversas
vezes a comunidade.
E, de repente, em julho de 2011, uma nova juíza atuando no processo, tendo ciência da
definição da questão pelo STJ, que consolidava a situação favorável aos moradores,
concede liminar para a reintegração de posse, sem motivação específica baseada em fato
novo.
É isso mesmo. O que se viu no Pinheirinho teve por fundamento uma decisão liminar,
concedida sete anos e meio depois do ingresso da ação de reintegração, não se
considerando a alteração fática havida no local, que, em verdade, apenas reforçava as
razões para a rejeição da reintegração, ainda mais em sede de decisão liminar. É
evidente, pois, a impropriedade da medida, de caráter liminar, insista-se, diante do
tempo já decorrido, que eliminou a urgência para esse tipo de solução para um conflito
tão complexo, estando, ademais, ultrapassado, há muito, o requisito do ano e dia, e,
sobretudo, em razão da profunda alteração fática advinda no local desde o início do
processo. Segundo o Censo realizado pela própria Prefeitura de São José dos Campos,
já viviam no local 1.577 famílias, ou, mais precisamente, 5.488 pessoas, sendo 2.615
com idade entre 0 e 18 anos. Além disso, o assentamento, ou bairro como também era
tratado, continha 81 pontos comerciais, seis templos religiosos e um galpão
comunitário.
Bem se vê que a questão envolvia um feixe enorme de direitos, não estando em jogo
única e exclusivamente o direito de propriedade da massa falida. Assim, ainda que fosse
para privilegiar o direito de propriedade da massa falida, sem a necessidade de justificá-
lo pelo pressuposto da finalidade social, haver-se-ia, no mínimo, que assegurar que
outros direitos não fossem, simplesmente, desprezados.
Tudo isso para entregar o terreno a uma massa falida, que nunca se preocupou com a
função social daquela propriedade e que certamente não vai exercer a posse sobre o
terreno?
Alguma razão não muito clara, que pode ser, por hipótese, um melindre entre as esferas
de Poder Estadual e Federal, já que uma autorizava a reintegração e a outra a recusava,
ou que pode ser a necessidade do governo estadual de afirmar sua autoridade diante dos
movimentos sociais, sobretudo diante do alcance eleitoral que a questão atingiu, foi
determinante para que a Justiça Estadual, em ato que chegou a ser reivindicado pelo
Presidente do Tribunal, que enviou assessor direto para cuidar do assunto, passasse por
cima de todos os Direitos Humanos envolvidos e determinasse a reintegração da posse,
sendo auxiliada, com a maior presteza possível, pelo governo Estadual, que, com a
intervenção direta do próprio governador, autorizou a instauração de uma ação de
guerra contra os cidadãos do Pinheirinho.
É isso mesmo. Os nossos co-cidadãos foram vítimas de uma ação militar típica de
guerra, que foi programada durante quatro meses, conforme reconheceu, em recente
entrevista, a juíza do processo de reintegração, e que, por isso mesmo, precisou ser
executada passando por cima até do acordo judicial assinado pelas partes, no processo
da falência, em torno da suspensão da reintegração. E um dado extremamente
importante deve ser destacado, que torna a origem da ação policial, a mando do estado
de São Paulo, ainda mais questionável: em entrevista ao Jornal, O Vale, a juíza do
processo de reintegração, que concedeu a liminar, confessou que o ato policial não
estava plenamente sob o seu controle e que sabia dos riscos que estava impondo aos
moradores do Pinheirinho. Disse ela, textualmente: ―A operação me surpreendeu,
positivamente.‖
Seja como for, o fato é que os cidadãos do Pinheirinho foram tratados como inimigos do
Estado. Foram presos sem processo, já que ficaram várias horas impossibilitados de sair
do assentamento, enquanto a Polícia mantinha luta aberta contra moradores do bairro
vizinho que se insurgiram contra ação policial intentada no local. Foram marcados
como se estivessem em um campo de concentração. Foram desalojados. Foram
conduzidos, por força, a um local inabitável, sem qualquer condição de higiene, não
tendo havido, inclusive, qualquer cuidado especial com crianças, idosos e doentes. Ou
seja, foram profundamente agredidos em sua dignidade. Registre-se, a propósito, que se
trata de princípio fundamental da República Federativa do Brasil a proteção da
dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, CF) e que constituem objetivos
fundamentais da República ―construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o
desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de
origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação‖ (artigo 3º,
CF), valendo lembrar, ainda, que o Brasil deve reger-se nas suas relações internacionais
pela ―prevalência dos direitos humanos‖ (artigo 4º, inciso II, CF).
E o pior disso tudo é que essa situação foi imposta pelas forças institucionalizadas do
Estado, cuja função seria a de, em primeiro plano, proteger o cidadão. E, ademais, quem
vai pagar pela operação realizada? Os custos da operação serão calculados e inseridos
no processo? Certamente não e a sociedade como um todo, portanto, arcará com a
despesa que se fez necessária para a prática do ato destinado à defesa da posse de um
terreno privado e que, ao mesmo tempo, soterrou vários Direitos Humanos. Vai se dizer
que o governo estadual colaborou com a Justiça para a efetivação de uma ordem
judicial, mas esse mesmo governo não se tem mostrado nenhum pouco colaborador no
que se refere às decisões judiciais que visam o resgate da autoridade dos direitos sociais
de incontáveis cidadãos. O estado de São Paulo deve cerca de R$ 20 bilhões em
precatórios, que se arrastam interminavelmente, sendo R$ 15 bilhões a título de créditos
trabalhistas e previdenciários.
A questão mais relevante que se apresenta, de todo modo, é: o que fazer agora?
E se nada disso puder ocorrer? E se for apenas um devaneio acreditar que tais respostas
jurídicas possam ser dadas à presente situação? Sem que outras medidas, igualmente
eficazes para reparar os Direitos Humanos agredidos, se apresentem, há se questionar,
então, se não é hora de re-fundar o Brasil, a começar pelo impeachment dos
responsáveis pelas atrocidades identificadas no caso do Pinheirinho, não sendo demais
lembrar que no caso do estado de São Paulo o fato se insere em um contexto
determinado de enfrentamento aos movimentos sociais, de desrespeito às liberdades
democráticas e de ataque à pobreza por meio de força bruta.
O caso Pinheirinho foi muito grave e a sociedade brasileira como um todo está
desafiada a encontrar soluções que recomponham, imediatamente, a credibilidade na
eficácia do Estado Democrático de Direito Social, instituído constitucionalmente.
Pois é, já passou mesmo da hora de alterar a base cultural em torno das questões sociais
para reescrevermos nossa história.
[1]. http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2012/01/25/pm-e-justica-
restituem-posse-de-pinheirinho-e-exaltam-operacao.htm
[2]. http://www.viomundo.com.br/denuncias/juristas-e-entidades-comprometidos-com-
a-democracia-denunciam-caso-pinheirinho-a-oea.html
Jorge Luiz Souto Maior é juiz do trabalho, titular da 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí
(SP), livre-docente em Direito do Trabalho pela USP e membro da Associação Juízes
para a Democracia.
CASO 07
Estado da Economia
A propriedade rural, para cumprir sua função social, portanto, para ser
constitucionalmente garantida, deve cumprir simultaneamente todos os requisitos
previstos nos incisos do artigo 186 da Constituição
Uma das grandes questões trazidas pelo debate sobre a função social da propriedade
está ligada à possibilidade de um instituto jurídico, sem que haja qualquer modificação
da lei, mudar a própria natureza econômica. Houve inegavelmente uma mudança do
substrato da propriedade, apesar das normas civis não terem se modificado, ao
contrário, pois os códigos civis definem propriedade com o conceito liberal ainda hoje.
O instituto jurídico da propriedade teve um rico desenvolvimento em um tempo
relativamente curto, ocorrendo uma total mudança econômica e social sem que
houvesse mudado consideravelmente sua definição jurídico-legislativa, ao menos sob o
ângulo do direito civil[1]. Podemos perceber, assim, uma dupla possibilidade de
evolução jurídica: a mudança da norma e a mudança da função. Para Karl Renner, a
ciência jurídica deve estudar no presente de que modo isso ocorre, de que modo um
condiciona o outro, com que regularidade ocorre.
O fato é que aos institutos jurídicos de uma época cabe cumprir funções gerais. Se
considerarmos absolutamente todos os efeitos que um instituto jurídico exercita sobre a
sociedade em seu complexo, as funções particulares se fundem numa única função
social. Dessa maneira, podemos concluir, ainda de acordo com Karl Renner, que o
direito é um todo articulado, determinado pelas exigências da sociedade, cujo
ordenamento é dotado de caráter orgânico. Os institutos jurídicos, enquanto parte do
todo, estão, por esse motivo, em uma relação de conexão mais ou menos estreita uns
com os outros. Tais conexões não se travam apenas no complexo normativo, mas
também em uma função. A natureza orgânica do ordenamento jurídico, assim,
demonstra que todos os institutos do direito privado estão em conexão com o direito
público, sendo que não podem ser eficazes e não podem ser compreendidos sem
considerações de direito público. A propriedade é ineficaz sem o ordenamento jurídico à
sua volta, sendo conformada pelas disposições de direito público[2].
Quando se fala em função social, não se está fazendo referência às limitações negativas
do direito de propriedade, que atingem o exercício do direito de propriedade, não a sua
substância. As transformações pelas quais passou o instituto da propriedade não se
restringem ao esvaziamento dos poderes do proprietário ou à redução do volume do
direito de propriedade, de acordo com as limitações legais. Se fosse assim, o conteúdo
do direito de propriedade não teria sido alterado, passando a função social a ser apenas
mais uma limitação. A mudança ocorrida foi de mentalidade, deixando o exercício do
direito de propriedade de ser absoluto. A função social é mais do que uma limitação.
Trata-se de uma concepção que se consubstancia no fundamento, razão e justificação da
propriedade.
Deste modo, a função social da propriedade rural está vinculada à tutela do meio-
ambiente, prevista também no artigo 225 da Constituição. Caso a propriedade seja
explorada em detrimento da preservação do meio-ambiente, estará sendo utilizada em
prejuízo de toda a sociedade, o que é constitucionalmente inadmissível.
A função social da propriedade, cujo conteúdo essencial está determinado pelo artigo
186, deve ser observada por todos os tipos de propriedade de bens de produção[9]
garantidos pela Constituição de 1988. Não há propriedade, enquanto bem de produção,
que escape ao pressuposto da função social, nem mesmo a propriedade produtiva do
artigo 185, II. Afinal, a própria Constituição de 1988 determina que a propriedade
produtiva deve cumprir sua função social, ao determinar a função social da propriedade
como um dos princípios da ordem econômica (artigo 170, III) e, ao prever, no parágrafo
único do mesmo artigo 185, que a lei deverá fixar normas para o cumprimento dos
requisitos relativos à função social da propriedade produtiva. E estas normas não
podem, de forma alguma, contrariar o disposto no artigo 186 da mesma Constituição.
Não basta, portanto, que a terra seja produtiva para ser garantida constitucionalmente. A
propriedade, mesmo produtiva, tem que cumprir sua função social. A propriedade rural
está garantida constitucionalmente contra a desapropriação para fins de reforma agrária
se for produtiva e cumprir sua função social. A produtividade é apenas um dos
requisitos da garantia constitucional da propriedade. A propriedade produtiva é
insuscetível de desapropriação por cumprir as exigências constitucionais, ou seja, desde
que cumpra sua função social.
Pode-se afirmar que nem toda propriedade privada constitui um direito fundamental
garantido pela Constituição. A função social da propriedade consiste no dever
fundamental de o proprietário dar à propriedade privada uma destinação social
adequada constitucionalmente, ou, nas palavras de Fábio Konder Comparato, consiste
em um poder-dever do proprietário, sancionável pela ordem jurídica[10]. A propriedade
que não cumpre sua função social não se justifica, portanto, não é passível de proteção
constitucional.
[1] Cf. Karl RENNER, Die Rechtsinstitute des Privatrechts und Ihre soziale Funktion:
Ein Beitrag zur Kritik des Bürgerlichen Rechts, Stuttgart, Gustav Fischer Verlag, 1965,
pp. 46-47, 73-81, 172-174 e 202-204.
[2] Vide Karl RENNER, Die Rechtsinstitute des Privatrechts und Ihre soziale Funktion
cit., pp. 68-71.
[3] Vide, por todos, Fábio Konder COMPARATO, ―Função Social da Propriedade dos
Bens de Produção‖, Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro
nº 63, julho/setembro de 1986, pp. 75-76 e Orlando GOMES, ―A Função Social da
Propriedade‖, Boletim da Faculdade de Direito: Estudos em Homenagem ao Prof. Dr.
A. Ferrer-Correia, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1989, pp. 424-426 e 431-432.
[4] Artigo 186 da Constituição de 1988: ―A função social é cumprida quando a
propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência
estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio
ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV –
exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores‖.
[5] Artigo 243 da Constituição (redação alterada pela Emenda Constitucional nº 81, de
05 de junho de 2014): ―As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País
onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de
trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a
programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem
prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art.
5º. Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em
decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho
escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na
forma da lei‖.
[6] Artigo 185 da Constituição de 1988: ―São insuscetíveis de desapropriação para fins
de reforma agrária: I – a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei,
desde que seu proprietário não possua outra; II – a propriedade produtiva. Parágrafo
único – A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para
o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social‖.
[7] José Afonso da SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, 17ª ed, São Paulo,
Malheiros, 2000, p. 794. Esta argumentação é reproduzida literalmente no recente
comentário à Constituição publicado por este autor. Vide José Afonso da SILVA,
Comentário Contextual à Constituição, São Paulo, Malheiros, 2005, p. 747.
[8] Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO, ―Novos Aspectos da Função Social da
Propriedade no Direito Público‖, Revista de Direito Público nº 84, outubro/dezembro de
1987, pp. 43-45.
[9] Para a distinção entre bens de consumo e bens de produção, vide Fábio Konder
COMPARATO, ―Função Social da Propriedade dos Bens de Produção‖ cit., pp. 72-73 e
75-76.
[10] Fábio Konder COMPARATO, ―Função Social da Propriedade dos Bens de
Produção‖ cit., pp. 75-76 e 79 e Fábio Konder COMPARATO, ―Direitos e Deveres
Fundamentais Em Matéria de Propriedade‖ in Alberto do AMARAL Junior & Cláudia
PERRONE-MOISÉS (orgs.), O Cinqüentenário da Declaração Universal dos Direitos
do Homem, São Paulo, EDUSP, 1999, pp. 382-383.
A lei que trata da terceirização da mão de obra em uma empresa foi aprovada há pouco
(Lei 13.429/2017). Trata-se de tema delicado do ponto de vista do choque de forças
entre centrais sindicais, empregadores (prestadores de serviços) e tomadoras de
serviços.
Toda empresa, ao perseguir seus objetivos econômicos, pode contar com uma força de
trabalho própria e com a atuação de outras empresas prestadoras de serviços (e, às
vezes, até de profissionais autônomos).
Aspectos envolvendo a terceirização com cessão de mão de obra, contudo, por estarem
próximos de uma relação direta com a tomadora de serviços, geraram muitas situações
de insegurança jurídica para todas as partes envolvidas.
Na década de setenta do século passado, houve a criação de uma lei para regular a
figura bem específica do empregado temporário (Lei nº. 6.019/1974), que nada mais é
do que a contratação de uma empresa especializada em cessão de empregados para
atender à necessidade de substituição dos trabalhadores da tomadora ou ao acréscimo
extraordinário de serviços.
Por ausência de regras claras sobre essa modalidade de contratação mais ampla, a
Justiça do Trabalho analisava as situações em busca de eventuais fatores suficientes
para caracterizar o vínculo direto de emprego e acabou por construir um critério de
classificação que, por fim, restou sendo aplicado de forma quase mecânica: se o
trabalhador cedido estivesse na contratante e desenvolvesse funções relacionadas à
atividade fim da empresa, então se presumiria o vínculo.
Pois bem, os projetos que estavam sendo noticiados com muita atenção pela imprensa e
que pretendiam estabelecer regras mais claras sobre a contratação de mão de obra
terceirizada se valeram da técnica ou estratégia de alterar, justamente, a lei da década de
1974, que apenas tratava da específica figura do contrato temporário, como forma de
albergar outras situações de terceirização que seriam consideradas juridicamente
válidas.
Como se sabe, havia um projeto do Senado que estipulava uma série de limitações ao
exercício da terceirização e estava prestes a ser aprovado, quando a Câmara dos
Deputados retomou outro projeto mais antigo, do governo Fernando Henrique Cardoso,
e o aprovou. Esse último projeto (PL nº 4.302/98), com três vetos presidenciais, acabou
sancionado e promulgado como Lei 13.429/2017, que inseriu e revogou trechos da
antiga lei.
A principal inovação legislativa foi, sem dúvida, a permissão legal da terceirização das
funções exercidas pelos empregados de uma empresa independentemente da natureza da
atividade (fim ou meio).
Pontos sensíveis nessa alteração legislativa podem ser assinalados e têm sido alvo de
acalorados debates. Com a atual configuração legal, pode haver tratamento desigual
entre os trabalhadores terceirizados e aqueles que são da própria empresa tomadora de
serviços. Há uma garantia mínima de garantia das condições de segurança, higiene e
salubridade dos terceirizados, mas o atendimento médico, ambulatorial e de refeição
disponíveis aos empregados da contratante será obrigatório tão somente no caso de
trabalhadores temporários, sendo facultativo nos casos de contratação de empresa
prestadora a terceiros.
Como balanço crítico da inovação legislativa, pode-se afirmar que a segurança jurídica
e a expectativa de aumento de produtividade representam o maior avanço desta medida.
Por fim, podemos lembrar que, desde os economistas políticos clássicos, no capitalismo,
as principais tensões se apresentam entre as duas principais categorias de agentes, os
trabalhadores e aqueles que invertem seu dinheiro em capital, em prol de uma atividade
econômica (capitalistas).
Nesse sentido, não há dúvida que as inovações legais contribuem para criar alguns
parâmetros mínimos para o tema.
Há, contudo, que se observar se o instrumento legal será utilizado para permitir a
terceirização de setores de uma empresa ou se será alvo apenas de um planejamento
antissindical, ao se afastar sindicatos mais estruturados, e de custos, ao se ganhar na
escala pelo tratamento diferenciado entre empregados e terceirizados.