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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 24: 105-121 JUN.

2005

FEDERALISMO, DESENHO CONSTITUCIONAL E


INSTITUIÇÕES FEDERATIVAS NO BRASIL
PÓS-1988

Celina Souza

RESUMO

O artigo analisa os dispositivos constitucionais relativos ao federalismo ao longo da história constitucio


nal brasileira, buscando conciliar a análise sobre como o federalismo brasileiro funciona na prática e os
dispositivos constitucionais que se aplicam a essa instituição. São descritos os diversos desenhos constitu
cionais da federação brasileira, focalizando principalmente a Constituição Federal de 1988 e suas emen
das. O artigo argumenta que os principais constrangimentos enfrentados hoje pelo federalismo brasileiro
decorrem mais da dificuldade dos governos de redirecionar o rumo de certas políticas públicas e de lidar
com questões macro-econômicas não-antecipadas pelos constituintes de 1988 do que de problemas decor
rentes do desenho constitucional.
PALAVRAS-CHAVE: federalismo; constitucionalismo; Brasil.
federalismo, tais como as
dinâmicas da economia política, da competição
I. INTRODUÇÃO partidária e da chamada cultura política, as mani
festações territoriais do federalismo requerem
Há mais de um século, o Brasil adotou a
uma análise não apenas de sua aplicação prática,
forma federativa de divisão territorial de
mas também do ponto de vista das constituições.
governo. Ao longo desse tempo, o país conviveu
Es sas manifestações territoriais dizem respeito à
com grande varie dade de arranjos federativos e
di visão de competências entre os entes
experimentou perí odos de autoritarismo e de
constitutivos e no poder Legislativo, ao papel do
regime democrático. Durante a vigência das sete
poder Judiciá rio, à alocação de recursos fiscais
constituições que re geram as instituições
e de responsa bilidades entre os entes
brasileiras após a República, as regras relativas
constitutivos da federa ção e suas garantias
ao federalismo fizeram parte integrante do corpo
constitucionais.
constitucional – daí a impor tância de estudar-se
o federalismo brasileiro as sociando-o ao tema A análise do federalismo brasileiro ainda esta
do constitucionalismo. Pela interseção entre as belece escassas ligações com a teoria constituci
regras que regem o federalis mo e sua onal propriamente dita e também raramente foca
constitucionalização, torna-se importante liza as instituições políticas estabelecidas consti
atender à convocação de Dearlove (apud tucionalmente que regem o federalismo. Embora
EVANS, 2001) de “trazer a constituição de aspectos importantes do sistema político brasilei
volta” como foco dos trabalhos sobre ro que influenciam a divisão territorial de poder
federalismo no âmbito da Ciência Política. Isso e de governo sejam objeto de vários análises por
porque a teoria constitu cional busca respostas cientistas políticos, inclusive norte-americanos,
para questões políticas fundamentais que afetam tais como as realizadas sobre o sistema presiden
os entes constitutivos da federação, tais como cial e o sistema eleitoral, outras questões que in
“quem governa, como se governa e quem fluenciam o federalismo e que foram
deveria governar” (EVANS, 2001). constituciona lizadas, tais como o sistema fiscal,
permanecem pouco analisadas pela Ciência
Apesar das controvérsias sobre as principais 1
características dos sistemas federativos, existe Política . Devido à importância que a
um consenso de que essa instituição tem duas descentralização assumiu no
dimen sões principais: desenho constitucional e
divisão territorial de poder governamental. 1
Embora ou tros fatores e instituições também Para uma excelente análise sobre a contribuição da
Ciên cia Política para o entendimento do federalismo
sejam objeto de análise sob a ótica do
brasileiro, ver Almeida (2001).
em 18 de maio de 2005
Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 24, p. 105-121, jun.
105
2005
Recebido em 10 de dezembro de 2004 Aprovado
FEDERALISMO, DESENHO CONSTITUCIONAL E INSTITUIÇÕES FEDERATIVAS

Brasil posterior a 1988, a maioria dos trabalhos 2


focaliza o federalismo mais como sinônimo de Sobre as diferenças entre o constitucionalismo da Euro
descentralização, aliando-se ao que Gibson pa continental e dos Estados Unidos, ver Rosenfeld
(2000).
(2004) classificou como a escola do federalismo
como descentralização, do que associando o
federalis mo a uma ordem política e
constitucional com especificidades próprias. 106
Muitos trabalhos tam bém analisam as relações problema do federalismo brasileiro e os dados
que se estabelecem en tre esferas de governos, mostram que a concentração econômica regional
focalizando as chamadas relações aumentou nos anos 1990, após leve declínio re
intergovernamentais, também como re sultado gistrado durante o regime militar. Tal declínio
da emergência de políticas descentraliza das, não deve ser creditado, todavia, à centralização
mas sobretudo pelo considerável aumento de fiscal daquele regime nem à sua característica
programas “intergovernamentalizados”, autoritá ria, mas sim às altas taxas de
tendência observada na maioria dos países crescimento econô mico registradas por quase
federais e unitá rios. uma década, de cerca de 10% a. a., que
permitiram aos formuladores de políticas
O sistema federal foi introduzido em 1889 e públicas a adoção de políticas volta das para
detalhado na Constituição de 1891. Como sabe amenizar o desequilíbrio econômico en tre as
mos, e diferentemente de muitas federações, a regiões.
brasileira nunca foi uma resposta às clivagens
sociais decorrentes de conflitos étnicos, Este artigo busca suprir a lacuna da ainda es
lingüísticos ou religiosos. Movimentos separatis cassa atenção ao desenho constitucional do fede
tas ocorreram apenas durante o período colonial ralismo no Brasil nos trabalhos da Ciência Políti
e no início do século XIX a unidade do país não ca. Nesse sentido, o artigo busca conciliar a aná
era questionada. Por isso, as constituições brasi lise sobre como o federalismo brasileiro
leiras não prevêem regras para a secessão e a de funciona na prática com os dispositivos
1988 ainda estabelece que nenhuma emenda constitucionais que a ele aplicam-se, apesar do
cons titucional pode abolir a “forma federativa alerta de Riker (1975), de que, para entendermos
de Esta do”. Dado que a unidade do país não se o funcionamento dos sistemas federais, não é
constitui em ameaça, as constituições sempre necessário compreender a estrutura
declararam que “todo o poder emana do povo” e constitucional, mas sim as forças re ais do
não da na ção, do Estado ou das unidades sistema político, os sistemas de partidos
constitutivas da federação, como ocorre em nacionais, as práticas políticas e as estruturas do
muitos países fede rais, sinalizando que o poder econômico. No entanto, dada a carência
sistema federativo brasilei ro está assentado no de trabalhos na Ciência Política voltados para
princípio do individualismo e não no das “trazer a constituição de volta”, e embora
instituições coletivas. Nesse sentido, o concordando com Riker – que a estrutura
constitucionalismo brasileiro aproxima-se da tra constitucional não prediz, por si só, o impacto
dição norte-americana, em que, baseada na con causal das institui ções federais ou a dinâmica
cepção lockeana, os direitos fundamentais têm política interna das federações –, a descrição e a
sua origem nos indivíduos, distanciando-se da análise da estrutura constitucional pode
tradi ção da Europa continental, onde o Estado é ajudar-nos a compreender melhor como o
2 federalismo opera, principalmen te em um país
a fon te dos direitos fundamentais .
como o Brasil, que possui uma história
A federação foi criada a partir das 20 provín constitucional complexa e onde o federa lismo
cias herdadas do sistema unitário, contando hoje sempre assumiu realce nos dispositivos
com 26 estados, o Distrito Federal e 5 561 muni constitucionais.
cípios, distribuídos em cinco regiões. Existe um
O artigo descreve os diversos desenhos cons
consenso de que as heterogeneidades econômi
titucionais da federação brasileira, focalizando
cas entre as regiões constituem-se no principal prin cipalmente a Constituição Federal de 1988 e
suas emendas. Argumento, em consonância com macro-econômicas não antecipadas pelos
Riker, que os principais constrangimentos constituintes de 1988 do que de problemas
enfrentados hoje pelo federalismo brasileiro decorrentes do desenho constitucio nal. Isso
decorrem, em par te, mais da dificuldade dos mostra que existe uma distância entre os
governos de redirecionar o rumo de certas dispositivos constitucionais e as circunstâncias
políticas públicas e de lidar com questões políticas e econômicas, com as últimas prevale
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(2004, p. 14) argumenta, ainda, que a assimetria de
poder entre os entes constitutivos da federação, ou seja,
cendo sobre os mandamentos constitucionais. os estados, tem sido largamente ignorada nas análises
Argumento, ainda, que esse desenho acomoda as teóricas dos sistemas federais, mais influenciadas pelos
conflitos intergovernamentais, ou seja, entre o governo
clivagens regionais existentes no território, que federal e as esferas subnacionais.
geram, também, formas assimétricas de distribui
4
3 Esta seção é uma versão resumida de artigo publicado
ção de poder territorial .
anteriormente; ver Souza (2001a).
O artigo está dividido em seis seções. A ção pelo federalismo, apesar de ser inspirada na
próxi ma descreve os dispositivos experiência dos EUA, não foi uma simples cópia
constitucionais so bre a federação inscritos nas daquele sistema porque sua adoção foi precedida
constituições anteri ores à de 1988, enquanto a de debates e porque as elites regionais eram favo
seção seguinte focali za a Constituição em vigor. ráveis à descentralização, vista como sendo al
A seção IV analisa os princípios constitucionais cançável por um sistema federal e não por um
da federação; a V trata da estrutura e do sistema unitário. Apesar de algumas instituições
funcionamento do sistema fede rativo, norte-americanas como o sistema
detalhando suas principais instituições do ponto presidencialista, o federalismo e o controle de
de vista constitucional; a VI é dedicada ao constitucionalidade terem sido adotadas como
financiamento das instâncias federativas; a seção uma das bases das ins tituições políticas
VII discute brevemente as principais mudanças brasileiras e, apesar da influên cia, mais tarde,
constitucionais que afetam as esferas de governo das constituições de Weimar e do México na
e a última seção apresenta algumas conclusões. constitucionalização dos direitos soci ais, o
Brasil construiu sua própria história consti
II. FEDERALISMO NAS CONSTITUIÇÕES
4 tucional ao longo da elaboração de suas sete
ANTERIORES A 1988 cons tituições.
O desenho do federalismo brasileiro pode ser A primeira Constituição escrita do Brasil foi
mais bem compreendido por meio de uma breve promulgada em 1824, após a independência de
descrição das constituições anteriores a 1988. Portugal. Essa Constituição delegou poderes ad
Isso porque as constituições refletiram as ministrativos às então 16 províncias. Embora as
barganhas políticas e territoriais que ocorreram províncias não contassem com autonomia políti
ao longo da nossa história. Além disso, essas ca formal ou informal, essa delegação foi inter
constituições, enquanto refletiam as mudanças pretada como abrindo o caminho para uma
nos regimes po líticos, também mantiveram ou futura federação.
fortaleceram mui tos dispositivos constitucionais
das constituições anteriores, com poucas A Constituição de 1891, promulgada após a
exceções. República, seguiu a promessa descentralizadora
do mote republicano: centralização, secessão;
Debates sobre a divisão territorial de poder ti descentralização, unidade. Por essa Constituição,
veram início muito antes do fim da era colonial e recursos públicos foram canalizados para alguns
o principal objetivo do movimento republicano poucos estados, mostrando que a federação bra
era o federalismo e não a liberdade, como nos sileira nasceu sob a égide da concentração de re
mos tram os historiadores (CARVALHO, 1993). cursos em poucos estados e escassas relações
No entanto, federalismo (associado à existiam entre os entes constitutivos da federa
descentralização) e liberdade eram tratados ção, caracterizando esse período como o de uma
como sinônimos. A op federação isolada.
Esse isolamento foi interrompido em 1930,
com o golpe de Vargas. Um das primeiras medi
3
Esse argumento está mais elaborado em Souza (1997; das após o golpe foi perdoar as dívidas dos esta
2002; 2003). Gibson e Falleti (2004) desenvolvem o mes dos com a União, inclusive a maior de todas, a
mo argumento para a constituição e para os futuros de São Paulo, contraída por força dos subsídios
desdo bramentos da Argentina como federação. Gibson
ao café, pacificando, assim, os possíveis como a política dos gover nadores, a
desconten tamentos das elites regionais (LOVE, sobre-representação dos estados me nos
1993). Em 1932, Vargas aprovou uma reforma populosos permanece como um dos meca
eleitoral, que, entre outras medidas, aumentou a nismos voltados para o amortecimento das
representação política dos estados menos
populosos na Câmara dos Deputados. Concebida
como forma de con trabalançar o poder de 107
alguns poucos estados, no que ficou conhecida
FEDERALISMO, DESENHO CONSTITUCIONAL E INSTITUIÇÕES FEDERATIVAS
Com o retorno do regime democrático, nova
heterogeneidades regionais e como forma de aco Constituição foi escrita, a de 1946. Inicialmente
modar as assimetrias de poder entre unidades influenciada por ideais liberais, eles não prevale
territoriais que registram grandes diferenças eco ceram devido ao reconhecimento de que era pre
nômicas. ciso perseguir rápido crescimento econômico
sob a égide do governo federal. No entanto,
A Constituição de 1934, escrita como resulta como democracia e descentralização foram
do do golpe de 1930, introduziu a tendência à transforman do-se, ao longo da história, em
constitucionalização de questões sócio-econômi “afinidades eletivas”,
cas e expandiu as relações intergovernamentais
pela autorização para que o governo federal con
cedesse às instâncias subnacionais recursos e as 108
sistência técnica. Aos municípios foram assegu os recursos para os governos locais foram privi
rados recursos próprios, que seriam por eles legiados vis-à-vis os dos estados . A
5
coletados, passando também a receber parcela de Constituição de 1946 introduziu o primeiro
um imposto estadual. A peculiaridade dessa mecanismo de trans ferências
Cons tituição frente às demais é que o Senado intergovernamentais da esfera federal para as
Federal foi reduzido a órgão colaborador da municipais, excluídos os estados, na ten tativa de
Câmara dos Deputados. diminuir os desequilíbrios verticais de receita,
A constituição seguinte foi promulgada por mas o critério de transferência não con tinha
Vargas, em 1937, após o golpe militar por ele nenhum mecanismo de equalização fiscal, dado
lide rado. Vargas fechou o Congresso Nacional e que consistia em dividir o montante a ser
as assembléias estaduais e substituiu os transferido pelo número de municípios
governado res eleitos por interventores. Existe existentes (REZENDE, 1976, p. 238). A questão
um consenso de que uma das principais razões dos desequilíbrios horizontais também foi
do golpe seria neutralizar a importância dos parcialmente introduzida pela destinação de
interesses regionais a fim de construir a unidade recursos federais para as regiões
política e administra tiva necessária para economicamente mais pobres. Essas medidas, no
promover a chamada moder nização social e entanto, tiveram efeito reduzi do devido ao
econômica do país. Um dos atos mais crescimento das atividades federais, ao aumento
simbólicos de Vargas contra os interesses do número de novos municípios, à inflação e ao
regionais foi queimar todas as bandeiras não-pagamento das quotas federais aos
estaduais em praça pública. Os governos municípios (MAHAR, 1976, p. 241).
subnacionais per deram receitas para a esfera
A Constituição de 1946 ainda manteve a mar
federal mas a mais importante medida foi
ca de ter sido a de vida mais longa da história
delegar ao governo federal a competência para constitucional brasileira. Seus dispositivos e o re
legislar sobre as relações fis cais externas e entre
gime democrático por ela regulado sobreviveram
os estados. Ao negar aos governos estaduais o a várias crises políticas: suicídio de Vargas, re
direito de decidir sobre um dos mais importantes
núncia de Jânio Quadros e posse de João
aspectos de sua vida eco nômica, ou seja, a Goulart. No entanto, não foi capaz de sobreviver
definição das regras de trocas de mercadorias,
à crise econômica e política iniciada em meados
Vargas pavimentou o caminho para a dos anos 1960.
industrialização. Os desequilíbrios finan ceiros
entre os estados não só persistiram mas O golpe de 1964 colocou o Brasil na rota dos
aumentaram: em 1945, três estados concentra regimes autoritários que passaram a governar a
vam mais de 70% das receitas estaduais América Latina nos anos 1960. Paradoxalmente,
(MAHAR, 1976, p. 415). os militares não promulgaram imediatamente
uma nova Constituição, embora tenham feito demonstraram Medeiros (1986) e Ames (1987),
várias emendas à Constituição de 1946. A nova os governantes subnacionais foram gran des
Consti tuição do regime só foi promulgada em legitimadores do regime militar e contribuí ram
1967 e em 1969 uma longa emenda para formar as coalizões necessárias à sua longa
constitucional foi edita da. Como se sabe, a sobrevivência.
Constituição de 1967-1969 e a reforma tributária
de 1966 centralizaram na es fera federal poder
político e tributário, afetando o federalismo e
5
suas instituições. Isso não signifi cou, todavia, a Sobre a influência das demandas municipais na consti
eliminação do poder dos governa dores nem dos tuinte de 1946, ver Melo (1993).
prefeitos das principais capitais. Como
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carta constitucional gerou entusiasmo e
otimismo sobre o futuro do país e durante 20
No entanto, apesar da centralização dos recur meses o Congresso Nacional e Brasília foram o
sos financeiros, foi a reforma tributária dos mili centro da vida política brasileira, promo vendo
tares que promoveu o primeiro sistema de trans um visível exercício de participação políti ca. As
ferência intergovernamental de recursos da esfe regras de funcionamento da Assembléia
ra federal para as subnacionais, por meio dos Nacional Constituinte já sinalizavam que a elabo
fun dos de participação (Fundo de Participação ração da Constituição seria um processo bottom
dos Estados (FPE) e Fundo de Participação dos up, dado que não haveria apenas uma comissão
Mu nicípios (FPM)). O critério de distribuição para propor uma primeira versão da
aban donou a repartição uniforme entre os entes Constituição, mas sim 24 subcomissões, que
constitutivos, passando a incorporar o objetivo mais tarde consti tuiriam oito comissões, seguida
de maior equalização fiscal pela adoção do de uma comissão
critério de população e inverso da renda per de sistematização, que contava com 97 parlamen
capita. No regi me militar, as esferas tares, e sessões plenárias com duas rodadas de
subnacionais também rece biam as chamadas votações nominais. Outras inovações foram a
transferências negociadas, que cresceram per missão para o recebimento de propostas de
significativamente no período. fora do Congresso, caso contassem com a
Muitos trabalhos foram produzidos sobre os assinatura de 30 mil eleitores, e o envio de
6
efeitos da centralização fiscal sobre o federalis sugestões pelo correio .
mo. Esses trabalhos podem ser divididos em
dois grupos. Um primeiro grupo, que se A Constituição de 1988 foi a mais detalhada
concentrou nas contas públicas, mostrou que a de todas as constituições brasileiras. Quando
posição fi nanceira dos municípios havia apro vada, continha 245 artigos e mais 70 no
capítulo sobre as Disposições Constitucionais
melhorado no pe ríodo, ao contrário do que
aconteceu com os es tados (GRAHAM, 1987; Transitóri as. Com as emendas constitucionais
posteriores, o texto constitucional foi expandido
SERRA & AFONSO, 1991). Outro grupo
interpretou a dependência política e financeira e para 250 arti gos no corpo constitucional e para
94 nas Dispo sições Constitucionais Transitórias,
de políticas públicas dos entes subnacionais
como um rompimento do re gime federativo e da número se melhante aos das constituições da
Índia e da Áfri ca do Sul. A tendência à
federação (MELLO, 1976) ou como o exemplo
de uma federação mais for mal, que mascarava a constitucionalização de questões consideradas
importantes pode ser, por tanto, parcialmente
existência de um Estado unitário (SELCHER,
1989). creditada às incertezas decor rentes das
mudanças de regime político ocorridas nesses
III. A CONSTITUIÇÃO DE 1988 três países. No caso do Brasil, também parece
A redemocratização trouxe como uma de refletir uma reação ao descaso do regime
suas principais bandeiras a “restauração” do anterior em relação aos dispositivos e constrangi
7
federalis mo e a descentralização por meio da mentos constitucionais . Dessa tendência à
elaboração de uma nova constituição. Esse constitucionalização resultou uma Constituição
compromisso fa zia parte do Manifesto à Nação que regula não apenas princípios, regras e
divulgado pelos partidos que compunham a direitos – individuais, coletivos e sociais –, mas
chamada Aliança De mocrática, constituída em também um amplo leque de políticas públicas.
torno da candidatura presidencial de Tancredo A questão sobre a divisão “ótima” entre o
Neves. O compromisso de elaborar uma nova que deve ou não ser constitucionalizado é
matéria de amplo debate, principalmente entre cunstâncias mudam.
8
juristas e eco nomistas da área fiscal . O debate
é importante porque envolve a decisão sobre que 6 Para mais detalhes sobre esse processo, ver Souza
matérias de vem ser objeto de quorum (2001b).
qualificado ou de supermaiorias, que matérias 7
Esse argumento é do ex-Senador Waldek Ornelas,
ficam excluídas do processo político (as
desen volvido no seminário sobre federalismo realizado
cláusulas pétreas das cons tituições) e quais as na Uni versidade de São Paulo em novembro de 2002.
que ficam submetidas às de cisões majoritárias, 8
ou seja, aquelas que devem ser objeto de leis Sobre esse debate entre juristas norte-americanos, ver
ordinárias. Além do mais, o tema da Valente (2001).
constitucionalização remete também à capaci
dade do governo de implementar os dispositivos
constitucionais e como proceder quando as cir 109
FEDERALISMO, DESENHO CONSTITUCIONAL E INSTITUIÇÕES FEDERATIVAS
decisório.

A Constituição de 1988 apresenta algumas pe Em algumas questões, a Constituição de


culiaridades em relação às constituições anterio 1988 contrastou com as anteriores,
res. A primeira é que não foi produto de um principalmente nos seguintes aspectos: (a) na
texto desenhado por especialistas, especialmente provisão de mais re cursos para as esferas
juris tas, como aconteceu em 1891 e em 1934, subnacionais; (b) na ex pansão dos controles
nem se espelhou em constituições anteriores, institucionais e societais sobre os três níveis de
como em 1946. A segunda é que as constituições governo, pelo aumento das
anteriores foram o resultado de um processo de
ruptura po lítica que já ocorrera, ao passo que
em 1988 sua elaboração ocorreu ainda como
parte do proces so de transição democrática 9
Sobre esse ponto, ver Limongi (1989).
(WERNECK VIANNA, 1999). A terceira
10
inovação, e mais dire tamente relacionada com o Segundo levantamento de Rosenn (1990, p. 778), a
federalismo, é que aos constituintes foi Constituição requeria a elaboração de 285 leis ordinárias
permitido decidir sobre a manu tenção ou não do e 41 complementares.
sistema federativo, proibido na convocação das
constituintes anteriores. 110
competências dos poderes Legislativo e Judiciá
Embora a Constituição de 1988 não tenha
sido precedida de debates sistemáticos como nos rio e pelo reconhecimento dos movimentos soci
EUA, reunidos em ensaios que ficaram ais e de organismos não-governamentais como
9 atores legítimos de controle dos governos e (c)
conhecidos como O federalista , houve ampla pela universalização de alguns serviços sociais,
divulgação de sua pauta e do trabalho da em particular a saúde pública, antes restrita aos
Comissão Afonso Arinos, que a precedeu. tra balhadores do mercado formal, tendo como
Ademais, suas regras foram ca pazes de prin cípio diretivo a descentralização e a
conciliar os interesses de novos e velhos atores participação dos usuários.
políticos e grupos de interesse. Essa opção pela
conciliação pode ser também um dos fatores No entanto, a Constituição de 1988
explicativos de por que a Constituição tornou-se conservou certas características das
tão detalhada e por que contém muitos dispositi constituições anterio res, tais como (a) a
vos que requerem regulamentação posterior, ape tendência à constitucio nalização de muitas
sar de seu alto nível de detalhe, alguns exigindo questões, mantida nas emen das constitucionais
10
leis complementares e outros leis ordinárias . O aprovadas posteriormente; (b) o fortalecimento
dos governos locais vis-à-vis os estados; (c) a
consenso foi o caminho possível pela ausência
de uma clara maioria partidária ou ideológica. tendência à adoção de regras uni formes para as
esferas subnacionais, em especial as instâncias
Devido às razões acima expostas, os constitu estaduais, dificultando a adoção de políticas
intes tiveram vários incentivos para desenhar próximas de suas prioridades, e (d) a
uma federação em que o poder governamental impossibilidade de avançar em políticas voltadas
foi des centralizado e em que vários centros de para a diminuição dos desequilíbrios regionais,
poder, embora assimétricos, tornaram-se apesar da existência de mecanismos constitucio
legitimados para tomar parte do processo nais que ou não foram operacionalizados ou são
insuficientes para uma efetiva política de seus próprios poderes legislativos e os níveis fe
equalização fiscal. deral e estaduais têm seus próprios poderes judi
ciários. Os estados são representados no Senado
IV. PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA FE
Federal mas não no Executivo, embora informal
DERAÇÃO
mente se mantenha a tradição de assegurar a re
11 presentação dos interesses de vários estados no
IV.1. Federalismo
poder Executivo federal por meio da indicação
Diferentemente de muitas federações, a brasi para cargos, os quais combinam, em geral,
leira, assim como a belga, é um sistema de três filiação
níveis (triplo federalismo) porque incorporou os
municípios, juntamente com os estados, como
partes integrantes da federação, refletindo uma
longa tradição de autonomia municipal e de es
11
casso controle dos estados sobre as questões lo Para uma visão das principais características
cais. institucionais dos países federais, ver Griffiths (2002).

Como se sabe, os três níveis de governo têm


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constituições anteriores, em particular para os
municípios, su perior a outros países em
partidária com os interesses das lideranças esta desenvolvimento.
duais que integram a coalizão de apoio ao poder
Executivo federal. IV.2. Estatuto dos entes constitutivos
Apesar de a Constituição de 1988 ter Do ponto de vista constitucional, todas as uni
reduzido o número de casos em que o governo dades constitutivas possuem poderes e compe
federal pode intervir nos estados e os estados tências iguais, como ocorre nos EUA e no Méxi
nos municípios, o instituto da intervenção ainda co. Nesse sentido, o Brasil adotou um modelo de
vigora, embora sujeito à aprovação legislativa. federalismo simétrico em uma federação
Pedidos para a pre sença do Exército nas assimétrica. Dois fatores fortalecem ainda mais
grandes cidades por força de questões como o esse modelo simétrico. O primeiro é que as re
aumento da violência e gre ves das polícias gras sobre as competências, recursos e políticas
militares estaduais têm reacendido o debate públicas das entidades subnacionais são
sobre a intervenção, que, no caso brasi leiro, capítulos detalhados da Constituição, deixando
inclui um dispositivo que desestimula seu uso, pouca mar gem de manobra para iniciativas
dado que emendas constitucionais são proi bidas específicas. O segundo é que o Supremo
na vigência da intervenção. Tribunal Federal (STF)
vem decidindo sistematicamente que as constitui
Desde a promulgação da Constituição de ções e as leis estaduais reflitam os dispositivos
1988, outorgar o rótulo de centralizado ou federais ou são monopólios federais, o que
descentrali zado ao federalismo brasileiro parece impõe uma hierarquia das normas
não dar conta da sua atual complexidade. A constitucionais e le gais, apesar da Constituição
federação tem sido marcada por políticas não explicitar tal prin cípio. Como argumentam
públicas federais que se impõem às instâncias Oscar Vilhena e Werneck Vianna (1999), todo
subnacionais, mas que são aprovadas pelo 12
Direito relevante é um Direi to federal . Os
Congresso Nacional e por limita ções na
capacidade de legislar sobre políticas pró prias – estados acabam sendo quase ape nas entes
gestores do Direito federal.
esta última também constrangida por de cisões
do poder Judiciário. Além do mais, poucas Diferentemente de federações como a Austrá
competências constitucionais exclusivas são lia, Índia, México, Suíça e EUA, onde emendas
alocadas aos estados e municípios, como tam à Constituição federal devem ser ratificadas
bém ocorre em outros países em desenvolvimen pelas assembléias estaduais ou via referendo,
to, tais como o México e a África do Sul. Por essa exi gência não existe no Brasil, onde se
outro lado, estados e municípios possuem auto assume que os representantes dos estados no
nomia administrativa considerável, responsabili Senado Federal são os guardiões dos interesses
dades pela implementação de políticas estaduais.
aprovadas na esfera federal, inclusive muitas por
Apesar de os estados terem constituições pró
emendas constitucionais, e uma parcela dos
prias, todas aprovadas em 1989, e apesar de as
recursos pú blicos poucas vezes concedida pelas
regras constitucionais federais estabelecerem
que essas constituições deveriam “obedecer aos detalhada. A União de tém o maior e o mais
prin cípios” da Constituição federal, a maioria importante leque de compe tências exclusivas.
das constituições estaduais é uma mera repetição Apesar da competência resi dual ser dos estados,
dos mandamentos federais. As poucas tentativas tal como nos EUA, Austrália e México, o alto
de criar regras não explicitamente especificadas nível de detalhe da Constituição de 1988 deixa
pela Constituição federal, mas não proibidas, pouco espaço para o exercício da competência
foram declaradas inconstitucionais pelo STF. residual.
Isso se deve menos ao fato de que a
No que se refere às competências concorren
Constituição de 1988 ser extremamente
tes, os constituintes de 1988 fizeram uma clara
detalhada e mais à interpretação do STF,
referida acima, de que as constituições e as leis
estaduais devem ser subsumidas pelo que dis
põe a legislação federal. 12
O argumento de Oscar Vilhena foi desenvolvido em
IV.3. Distribuição de competências entre os um seminário sobre federalismo ocorrido na
entes constitutivos Universidade de São Paulo em novembro de 2002.

As constituições brasileiras sempre


detalharam as competências dos três níveis de
governo, em bora a de 1988 seja a mais 111
FEDERALISMO, DESENHO CONSTITUCIONAL E INSTITUIÇÕES FEDERATIVAS

opção pelo princípio de que a responsabilidade TABELA 1 – COMPETÊNCIAS CONCORRENTES


pela provisão da maioria dos serviços públicos, mero de competências concorrentes, na prática
em especial os sociais, é comum aos três níveis, existem grandes distâncias entre o que prevê a
13
como mostra a Tabela 1 . Isso gera debates Constituição e sua aplicação. O objetivo do fede
acalora dos sobre qual nível é responsável por ralismo cooperativo está longe de ser alcançado
qual políti ca ou serviço público. Tal debate, que por duas razões principais. A primeira está nas
resulta, muitas vezes, em trocas de acusações diferentes capacidades dos governos
entre governantes, desconsidera que os subnacionais de implementarem políticas
constituintes optaram por uma divisão públicas, dadas as enormes desigualdades
institucional de trabalho entre os entes financeiras, técnicas e de gestão existentes. A
federativos claramente comparti lhada, segunda está na ausência de mecanismos
sinalizando que o federalismo brasileiro te ria constitucionais ou institucionais que estimulem a
um caráter mais cooperativo do que dual ou cooperação, tornando o sistema alta mente
competitivo. No entanto, e apesar do grande nú competitivo.

ESFERA DE GOVERNO SERVIÇO/ATIVIDADE

Federal-estadual-local Saúde e assistência pública


(competências partilhadas) Assistência aos portadores de deficiência
Preservação do patrimônio histórico, artístico, cultural, paisagens
naturais notáveis e sítios arqueológicos
Proteção do meio ambiente e dos recursos naturais
Cultura, educação e ciência
Preservação das florestas, da fauna e da flora
Agropecuária e abastecimento alimentar
Habitação e saneamento
Combate à pobreza e aos fatores de marginalização
social Exploração das atividades hídricas e minerais
Segurança do trânsito
Políticas para pequenas empresas
Turismo e lazer

FONTE: Brasil (1988).


petências legislativas e de jurisdição do governo
federal, ao mesmo tempo em que aumentaram o
Diante do exposto, pode-se afirmar que a lógi leque das competências concorrentes.
ca que rege a distribuição de competências entre
A questão das competências remete à pergun
os entes constitutivos da federação é paradoxal. ta de como o poder dos chefes dos poderes exe
Por um lado, os constituintes decidiram reduzir cutivos federal e estaduais está formal e informal
os recursos financeiros federais vis-à-vis os ou mente distribuído na federação brasileira após a
tros dois níveis de governo, situação que foi par redemocratização. A literatura é controversa so
cialmente revertida ao longo dos últimos anos. bre esse ponto. Uma corrente, representada pelos
Por outro lado, os constituintes aumentaram as trabalhos de Abrúcio (1998), Mainwaring
com (1999), Ames (2000) e Stepan (2000),
argumenta que a federação é dominada pelos
interesses estaduais. Várias são os argumentos
apresentados, mas a maioria das razões
13
A existência de grande número de competências parti explicativas recai sobre o de senho das
lhadas entre diferentes níveis de governo não é uma instituições políticas brasileiras, que ele va o
peculi aridade brasileira. Pesquisa realizada pela poder informal que os governadores exer cem
Universidade Pompeu Fabru, de Barcelona, identificou sobre os parlamentares de seus estados no
que a jurisdição sobre programas sociais é altamente Congresso Nacional. Essa corrente associa essa
compartilhada entre a esfera federal, os estados e os
municípios, principalmente na Alemanha, no Canadá, na
Austrália, na Suíça e nos EUA (AGRANOFF, 2003).

112
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 24: 105-121 JUN. 2005
os escassos canais de negociação intergoverna
mental encontravam-se bloqueados. Nessa fase,
divisão informal e formal de poder a problemas o Congresso Nacional exerceu o papel de media
14
de governabilidade e à paralisia decisória . dor desses conflitos. Um exemplo claro, relatado
Outra corrente analisa a divisão de poder den por Kugelmas, Sallum Júnior e Graeff (1989),
tro da federação como fragmentada entre vários ocorreu nas negociações do primeiro orçamento
centros de poder, embora com capacidades desi federal aprovado após as mudanças promovidas
guais, mas que competem entre si. A partir dessa pela Constituição, quando o poder Executivo fe
perspectiva, os governos federal e estaduais par deral incluiu entre suas receitas parcela advinda
tilham o poder de deliberar sobre questões que da cobrança das dívidas estaduais, medida con
15 testada pelos governadores. O impasse foi
afetam seus interesses . Essa visão argumenta intermediado pela Comissão de Orçamento do
que após a redemocratização a divisão formal e Congresso pela falta de entendimento entre os
informal de poder entre os poderes executivos
federal e estaduais passou por três fases. A pri
meira foi fortemente marcada pelo papel crucial
que os governadores eleitos em 1982 exerceram 14
Sobre o debate da relação entre as instituições
na campanha das Diretas Já, tornando-os uns políticas brasileiras e a governabilidade, ver Palermo
dos principais fiadores da redemocratização (2000).
(SALLUM JÚNIOR, 1996), daí resultando a 15
grande influên cia dos interesses subnacionais na Ver, entre outros, Souza (1997; 2001b; 2002). Embora
não tratando diretamente da divisão de poder entre os en
constituinte de 1987-1988. A segunda fase foi
tes constitutivos da federação, os trabalhos de Argelina
marcada pelas di ficuldades iniciais de Figueiredo e de Fernando Limongi demonstram o
adaptação dos representan tes dos entes sucesso do Executivo federal em fazer aprovar no
federativos às novas regras consti tucionais. Congresso Naci onal questões do seu interesse. Ver,
Nessa fase, a disputa entre os interes ses dos principalmente
governadores legitimados pelas eleições de 1986 poderes executivos federal e estaduais. A
e de um Presidente que carecia de legi timidade terceira fase iniciou-se com o sucesso do Plano
e que se colocara, sistematicamente, contra as Real no controle da inflação, quando o governo
decisões tomadas pelos constituintes, foi por federal começou a recuperar suas perdas de
mim classificada como a de uma “arena receitas. Essas três fases mostram que os
competitiva paralisada” (SOUZA, 1997), porque poderes execu tivos das duas esferas
governamentais não eram nem são atores descentralização e de rela ções
passivos e que a divisão de poder dentro da intergovernamentais. Dado que a teoria do
federação brasileira sinaliza a existência de federalismo não incorpora a situação de espaços
conflitos e negociações em torno dos interes ses territoriais que possuem garantias
dos entes federados. constitucionais próprias, inclusive tributárias,
como é o caso dos municípios brasileiros, os
Na visão de muitos juristas, a divisão de
conceitos de relações intergovernamentais e
poder favorece a União devido ao seu papel
descentralização-centraliza ção seriam os mais
central na definição de políticas, à carência de
apropriados para analisar situ ações como a
recursos fi nanceiros de muitos estados e ao
brasileira, tornando-se de crucial importância
excessivo poder de legislar, que promove
para o melhor entendimento de como o
uniformidade nos gover nos e nas políticas
16 federalismo atua na prática. O uso desses dois
estaduais . conceitos pode iluminar a análise sobre a distri
Outros analistas argumentam que a divisão buição de poder territorial em países como o Bra
de poder favorece ao governo local, que vem sil, onde os municípios assumem papel de desta
expan dindo sua autonomia ao longo da história. que, não apenas pela existência de políticas des
Essa interpretação, todavia, não encontra centralizas, mas pelo seu relativo descolamento
fundamenta ção na teoria do federalismo, que da jurisdição dos estados.
considera ape nas as esferas federal e estadual de Nenhum mecanismo ou instituição regulando
governo. As sim, a relativa importância as relações intergovernamentais está previsto na
financeira do municí pio brasileiro e seu papel Constituição de 1988. O parágrafo único do arti
de principal provedor de importantes políticas go 23 estabelece que “lei complementar fixará
sociais não é matéria pro priamente concernente normas para a cooperação entre a União e os Es
à teoria do federalismo e sim dos conceitos de

16
Figueiredo e Limongi (1999). Ver, entre outros, Bercovici (2003).113

FEDERALISMO, DESENHO CONSTITUCIONAL E INSTITUIÇÕES FEDERATIVAS


competitivo e sem canais institucionais de
intermediação de interesses e de negociação de
tados, Distrito Federal e os Municípios, tendo conflitos.
em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do
bem estar em âmbito nacional” (BRASIL, Já que nosso sistema federativo é altamente
1988). No entanto, tal lei nunca foi proposta competitivo, como são resolvidos os conflitos
pelo poder Exe cutivo ao Congresso Nacional e entre esferas de governo? Cabe ao STF esse pa
não existem si nais de que esteja na agenda dos pel pela sua competência de controle de
entes governa mentais. Isso não significa, constitucionalidade, por meio das ações diretas
todavia, que as rela ções intergovernamentais de inconstitucionalidade (ADINs). A lista de
são inexistentes. Os governos subnacionais institui ções que podem propor ADINs foi
partilham recursos fede rais, os municípios consideravel mente ampliada pela Constituição
partilham parcelas de impos tos estaduais e de 1988: Presi dente da República; mesas do
existem várias políticas sociais, particularmente Senado Federal, da Câmara dos Deputados e das
saúde e educação fundamental, que contam com assembléias legislativas; governadores;
diretrizes e recursos federais mas são Procurador-Geral da República; Conselho
implementadas principalmente pelos municí Federal da Ordem dos Ad vogados do Brasil;
pios. No entanto, com exceção das áreas acima partido político com represen tação no
referidas, as relações intergovernamentais são al Congresso Nacional e confederação sin dical ou
tamente competitivas, tanto vertical como hori entidade de classe de âmbito nacional. Os
zontalmente, e marcadas pelo conflito. Mecanis governadores são os mais ativos proponentes de
mos cooperativos tendem a depender de iniciati ADINs, mas grande parte das ações ocorreu em
vas federais . Apesar de a Constituição prover 1990,18após a promulgação das constituições esta
17

vários mecanismos que sinalizam no sentido do duais . Paradoxalmente, essas ações não
federalismo cooperativo, tais como as competên
cias concorrentes acima mencionadas, o federa 17
Um exemplo é a gestão de bacias hidrográficas, que
lismo brasileiro tende a ser altamente
conta com a participação de todas as esferas de governo principal iniciador de legislação.
por exigência de legislação federal.
18 Prevalece um sistema de freios e contrapesos
Entre 1988 e 2004, foram requeridas 3 120 ADINs, complexo. O STF pode declarar a inconstitu
das quais 26% pelos governadores (BRASIL. cionalidade de lei aprovada pelos poderes
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2005).
executi vos federal e estaduais e anular decisões
tomadas pelo Congresso Nacional. Os recursos
114 do poder Judiciário provêm do orçamento
objetivavam defender a autonomia dos estados federal aprova do pelo Congresso. Medidas que
frente à legislação federal, mas sim pedir o reco podem ser inici adas apenas pelo Executivo têm
nhecimento judicial da inconstitucionalidade de que ser submeti das ao Congresso. A Câmara
decisões tomadas pelas assembléias dos Deputados pode instaurar processo contra o
19 Presidente da Repú blica, cujo julgamento cabe
constituintes estaduais .
ao Senado Federal. Este, por sua vez, é a
V. ESTRUTURA E FUNCIONAMENTO DA instituição que mais detém competências no
FE DERAÇÃO sistema de freios e contrapesos, sendo
V.1. Instituições gerais responsável pelo julgamento de membros do
STF, pela ratificação de nomes indicados pelo
O sistema presidencial sempre foi a opção Presidente da República para vários cargos no
pre ferencial dos constituintes brasileiros, exceto poder Executivo e pela decisão sobre pedidos de
por 14 meses, entre 1961 e 1963. Várias empréstimos internos e externos dos três níveis
tentativas foram feitas a favor do sistema de governo.
parlamentarista, inclusive durante a constituinte
e em 1990, quan do os eleitores foram
convocados para decidir, por plebiscito, sobre a
mudança do sistema, mas a opção pelo
presidencialismo sempre foi vitorio sa.
Exceto durante os períodos autoritários, a se
paração entre os poderes da República foram 19
Sobre esse ponto, ver o detalhado trabalho de
prin cípios proeminentes das constituições.
Werneck Vianna (1999).
Todavia, e como ocorre na maioria dos sistemas
presidencialistas, o poder Executivo tem sido o
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 24: 105-121 JUN. 2005
nos cinco estados), somente a União pode
propor legislação sobre os 29 itens que estão
V.2. Poder Executivo federal detalhados no artigo 22 da Constituição de 1988.
Composto pelo Presidente da República e pe Também cabe exclusivamente à União propor
los ministros, o poder Executivo possui o maior legislação sobre questões listadas como sendo
número de competências exclusivas, compreen concorren tes entre os três níveis de governo,
dendo 25 itens do artigo 21 da Constituição Fede tais como ener gia elétrica, trânsito, transporte,
ral de 1988. Essas competências vão desde aque mineração e edu cação. Essa aparente
las comuns aos sistemas presidencialistas, tais contradição mostra, mais uma vez, a tendência à
como relações exteriores, defesa nacional e polí uniformização acima men cionada, mas também
tica monetária, até várias áreas específicas de a necessidade de implantar padrões nacionais
políticas públicas, sobre as quais o poder Execu para várias políticas públicas. Matérias de
tivo tem a competência de aprovar diretrizes, legislação concorrente entre a União e os
direcionando, portanto, as políticas públicas. estados, excluídos os municípios, estão listados
Como indicado acima, não existem dispositivos no artigo 24, embora vários itens inte grem as
consti tucionais regulando a cooperação entre a competências concorrentes entre os três níveis
União e os estados ou sua consulta mútua. de governo.
Apesar de a Constituição de 1988 ter au V.3. Poder Judiciário federal
mentado o número daqueles que podem iniciar As constituições brasileiras sempre refletiram
proposta de legislação (parlamentares federais, a tradição jurídica do Direito
Presidente da República, membros do STF e dos Romano-germânico ou Direito Continental e não
tribunais superiores, Procurador-Geral da Repú a do Direito Consue tudinário (Common Law),
blica e cidadãos (estes com a assinatura de pelo assim como sempre preservaram a separação
menos 1% do eleitorado distribuído por pelo me
entre as instâncias judi ciais federais e estaduais. imposto em termos de volume de arrecadação, o
ICMS (Imposto sobre Circulação de
O sistema federal é integrado por várias ins
Mercadorias e Pres tação de Serviços de
tâncias: o STF, o Superior Tribunal de Justiça
Transporte Interestadual e Intermunicipal e de
(STJ), os tribunais regionais federais, a Justiça
Comunicação), que, diferen temente de muitas
do Trabalho, a Justiça Eleitoral e a Justiça
federações, é de competência estadual, assim
Militar. O STF é a mais alta corte da federação e
como determinavam livremente, até a Emenda
desde
Constitucional n. 42/2003, suas alíquotas; (b)
1988 combina as competências de uma típica
administram mais recursos do que no regime
corte constitucional com a de julgamento de
anterior, embora sua participação na receita
certos ti pos de recursos. Do ponto de vista
pública total tenha declinado nos últimos anos, e
federativo, suas competências incluem o
(c) possuem efetiva autonomia adminis trativa.
controle de constitucionalidade de leis e normas
No entanto, a capacidade decisória, finan ceira e
federais e estaduais, o julgamento de conflitos
administrativa dos estados é desigual devi do às
entre o go verno federal e os governos estaduais,
diferenças econômicas entre as regiões.
entre dois ou mais governos estaduais e entre os
governos estaduais e suas assembléias Assim como acontece na relação entre a
legislativas, assim como a constitucionalidade União e os estados, inexistem provisões
de leis municipais. Isso significa que o STF pode constitucionais regulando as relações entre os
anular leis federais, es taduais e municipais estados. Diferente mente de federações como
interpretadas por seus mem bros como Austrália, Bélgica, Ale manha, EUA, México e
inconstitucionais. Diferentemente de muitos África do Sul, não exis tem conselhos
países, o STF não possui papel consulti vo. O intergovernamentais envolvendo os estados. As
STJ tem a competência de julgar conflitos exceções são o Conselho Nacional de Política
administrativos entre dois ou mais estados. Fazendária (Confaz), que reúne os secre tários
das finanças dos estados mas que não é previsto
V.4. Instituições estaduais
na Constituição, e a participação de go
As instituições estaduais guardam grande se vernadores de estados economicamente menos
melhança com as federais, com exceção do desenvolvidos em conselhos deliberativos de
bicameralismo. O número de deputados agên cias federais de desenvolvimento regional.
estaduais e os critérios para sua remuneração são Alguns
determi nados pela Constituição de 1988. Apesar
de os estados possuírem relativamente escassa
capaci dade legislativa, eles (a) coletam o maior 115
FEDERALISMO, DESENHO CONSTITUCIONAL E INSTITUIÇÕES FEDERATIVAS
nos locais passaram a ser os principais provedo
res dos serviços de saúde e de educação funda
programas federais são desenhados para contar mental, a partir de regras e de recursos federais,
com a participação de representantes dos esta as quais visam a garantir aos cidadãos locais pa
dos, mas tais estruturas só se materializam por drões mínimos de atendimento. A adesão dos
iniciativa do governo federal e quando estão en municípios a essa transferência tem sido
volvidas transferências de recursos federais. avaliada como um sucesso em termos
V.5. Instituições municipais quantitativos, prin cipalmente no que se refere à
saúde. Tal sucesso tem sido creditado a uma
As regras que regem os governos municipais política concebida como um sistema complexo
estão escritas na Constituição federal, inclusive de relações intergovernamentais que combina
as relativas a seus recursos. Assim como aconte 20
ce com os estados, a capacidade dos governos incentivos e sanções aos entes subnacionais .
locais de implementar políticas e de arrecadar re Essa transfe rência pela responsabilidade de
cursos próprios é altamente diferenciada. Tam implementação é avaliada como tendo reduzido
bém como ocorre com os estados, o número de os conflitos entre os governos locais pela disputa
vereadores e os critérios para sua remuneração pelos recursos federais. Por outro lado, e dado
são determinados por legislação federal. Com a que as políticas de saúde e de educação foram
Constituição de 1988, os municípios passaram a basicamente municipalizadas, as relações
ser regidos por leis orgânicas próprias, elabora intergovernamentais que se estabeleceram são
das pelos seus respectivos legislativos. muito mais freqüentes entre a União e os
municípios, com participação limitada dos
A partir de meados dos anos 1990, os gover governos estaduais.
emendas à Constituição, embora existam duas
Diferentemente do que ocorre nos estados e
exceções que se aplicam à União: em caso de
nos grandes municípios, as relações
iminência de guerra ou para financiar o sistema
intermunicipais vêm ocorrendo de maneira cada
de seguridade social, embora a última requeira a
vez mais crescente, por meio da constituição de
aprovação do Congresso Nacional, mas sem o
inúmeros consórcios, principalmente nas áreas
quorum de supermaioria requerido pelas
de saúde, proteção ambiental e desenvolvimento
emendas constitucionais. As regras e mesmo as
eco nômico.
alíquotas de alguns impostos, inclusive estaduais
A municipalização não se tem restringido aos
e munici pais, são determinadas pela instância
governos como provedores de políticas sociais,
federal.
mas também às comunidades locais. Vários pro
gramas federais e outros financiados com recur Um princípio constitucional merece registro
sos de agências multilaterais exigem a constitui pelo seu caráter federativo. Trata-se da proibição
ção de conselhos comunitários para o repasse de a qualquer nível de governo cobrar imposto
recursos. A Constituição de 1988 abriu o sobre o patrimônio, renda ou serviços uns dos
caminho para essa participação e para a outros, garantindo, assim, imunidade
municipalização por ter incorporado o princípio intergovernamental do ponto de vista da taxação.
– que se aplica à maioria das políticas sociais –
A distribuição dos recursos tributários,
de que elas deveri am ser descentralizadas e
apesar de hoje muito mais concentrada na União
participativas.
do que quando da promulgação da Constituição
VI. SISTEMA FISCAL de 1988, assegura às esferas subnacionais cerca
de 32% de todos os impostos coletados no país.
VI.1. Sistema tributário
Com as transferências, elas recebem 43% das
A Constituição assegura capacidade de tribu receitas totais. Do lado das despesas, os
tar aos três níveis de governo. Alguns impostos e governos subnacionais são responsáveis por
contribuições são exclusivos da esfera que os ar 70% (10,1% do produto interno bruto (PIB)) da
recada, outros são coletados pela União e parti despesa com pessoal e por 80% da formação
lhados com estados e municípios, outros ainda bruta de capital fixo (2,2% do PIB) (AFONSO,
são coletados pelos estados e partilhados com os 2004, p. 5).
municípios. A Constituição não autoriza nenhum
VI.2. Empréstimos
nível de governo a criar novos impostos sem
Para contrair empréstimos, os três níveis pre-
20 Ver, entre outros, Arretche (2000).116

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 24: 105-121 JUN. 2005


estados aloquem cerca de 13% da sua receita
líquida real para seu pagamento.
cisam da autorização de seus respectivos
legislativos e da aprovação do Banco Central e VI.3. Alocação de recursos
do Senado Federal. A promulgação da Lei de A despeito dos esforços dos constituintes, a
Res ponsabilidade Fiscal (LRF), em 2000, e de concentração de recursos na União retornou a
um conjunto de outras leis ordinárias federais antigos patamares, assim como a concentração
tornou quase impossível a contratação de novos de atividades econômicas em algumas regiões e
emprés timos, em especial pelos governos espaços territoriais. Isso não significa que um sis
subnacionais. É importante notar que uma das tema de melhor equalização fiscal não tenha sido
maiores fontes de financiamento dos governos tentado nas constituições anteriores; a Constitui
estaduais para a realização de investimentos, os ção de 1988 aprofundou o complexo sistema de
organismos multi laterais, não estão sujeitos aos transferências intergovernamentais de recursos
limites da LRF. com objetivos redistributivos. Introduzido pelos
Como se sabe, a dívida pública tem sido um militares mai aumentando pela Constituição de
sério constrangimento não só para as contas pú 1988, parcelas de dois impostos federais, o IR
blicas mas para o próprio crescimento econômi (Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer
co do país. Antes dos ajustes promovidos no Natureza) e o IPI (Imposto sobre Produtos In
final dos anos 1990, os estados eram os maiores dustrializados), são transferidas por meio de fun
deve dores, representando 42% da dívida pública dos de participação, com o objetivo de diminuir
total. Essa dívida foi federalizada, embora os as diferenças econômicas entre as regiões. Os
estados recebem 21,5% dessas transferências, 21
sendo que 85% são destinados às regiões Norte, VII. MUDANÇAS CONSTITUCIONAIS
Nordeste e Centro-Oeste e os restantes 15% às Desde a promulgação da Constituição de
regiões Sul e Sudeste. A fórmula para 1988, sua reforma esteve na agenda de vários
determinar a quota de cada estado leva em organis mos públicos, privados e multilaterais,
consideração o tamanho da população e o inclusive os governos, tornando-a a mais
inverso da renda per capita. Os municípios emendada Constituição brasileira. A
recebem 22,5%, sendo que, desse valor, 10% Constituição de 1988 conta hoje com 42
destinam-se às capitais. A distri buição dos emendas, mais seis de revisão, estas aprovadas
restantes 90% também leva em conta a por maioria simples porque realizadas em 1994
população e o inverso da renda per capita. Ape durante o período constitucionalmente previsto
sar de visarem melhor equalização fiscal, essas para sua revisão. Embora o número de votos
transferências estão longe de aproximarem-se requerido para a aprovação de emendas seja
dos sistemas de equalização vigentes em países baixo em comparação com outros países (três
como Canadá, Alemanha e Suíça. quintos), exigem-se votações nominais em dois
Existem também outros mecanismos de trans turnos.
ferências federais para as esferas subnacionais.
Aprovadas por emendas constitucionais de 1996 Devido ao fato de que os constituintes con
e 2000, essas transferências são vinculadas às centraram seus esforços na criação de regras ca
políticas nacionais de educação fundamental e pazes de legitimar o novo regime democrático,
saúde. Transferências negociadas também são com escassa preocupação com questões de natu
realizadas entre o governo federal e as esferas reza macro-econômica, a maioria das emendas,
subnacionais e entre os estados e seus municípi em especial as de mais difícil negociação, foi
os. No entanto, a política de ajuste fiscal vem re dedicada a reformulações voltadas para atender
duzindo a importância relativa e absoluta dessas aos novos objetivos da política macro-econômi
transferências. ca. As regras relativas ao federalismo também
foram afetadas pelas mudanças que ocorreram
Outros dispositivos constitucionais também na
buscam enfrentar as desigualdades regionais,
tais como (a) a determinação da aplicação de um
percentual das transferências federais nas
regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e (b) a
21
regionalização do orçamento federal a fim de dar Para uma análise sobre as principais reformas
transparência aos gastos federais em cada região. constitu cionais, ver Melo (2002) e Couto e Arantes
Todas essas iniciativas, todavia, não são ainda (2003).
suficientes para diminuir os desequilíbrios hori
zontais, tanto em termos absolutos como relati 117
vos.
FEDERALISMO, DESENHO CONSTITUCIONAL E INSTITUIÇÕES FEDERATIVAS
partilhadas com as esferas subnacionais, re
duzindo a participação dos recursos à disposição
agenda política do país com a abertura da econo dos entes subnacionais vis-à-vis a esfera federal.
mia.
As emendas aprovadas a partir de meados
As emendas constitucionais que afetam as re dos anos 1990 buscaram adaptar o país a
lações entre governos promoveram mudanças no questões que não estavam na agenda nem dos
que foi desenhado originalmente. Essas mudan constituintes nem da transição democrática, tais
ças (a) impuseram limites na liberdade das como a globalização e o ajuste fiscal.
instân cias subnacionais de aplicar recursos
próprios, como resultado da política de ajuste VIII. COMENTÁRIOS FINAIS
fiscal; (b) vincularam parcela das receitas A experiência brasileira de sete constituições
subnacionais à aplicação nos serviços de saúde e em pouco menos de um século demonstra as difi
educação fun damental e (c) reduziram os culdades do país para sustentar a governança
recursos federais sem vinculações transferidos cons titucional, ameaçada quando o ambiente
para estados e municípi os. Emendas e outras político e econômico é reestruturado ou quando
leis infraconstitucionais tam bém criaram novas o sistema político torna-se incapaz de
contribuições e aumentaram as alíquotas de encaminhar alternati vas para grandes crises ou
algumas já existentes, mas que não são realinhamentos. Ape sar de a
constitucionalização de número significa tivo de mas atuais do federalismo e do
questões limitar o espaço de manobra dos grupos constitucionalismo no Brasil apontam para três
políticos e dos governos, o constitucionalismo questões. A primeira, e mais importante, é que a
brasileiro muitas vezes não foi capaz de federação está assenta da em alto grau de
sustentar o regime democrático, nem tampouco desigualdade entre as regiões, a despeito das
de encaminhar soluções para um dos problemas medidas constitucionais que bus cam diminuí-la.
cruciais da prática do federalismo no Brasil, que Tal desigualdade é histórica e pa rece que
são as desigualdades econômicas en tre as soluções para minimizá-la vão requerer
regiões. prolongadas negociações e longo tempo para
seus efeitos serem sentidos – isso se e quando
Apesar dessas limitações, a federação foi
entra rem na agenda política e não apenas
fortalecida com a Constituição de 1988 por ter
durante a elaboração de novas regras
promovido maior equilíbrio entre seus entes
constitucionais. Ainda relacionada a essa
constitutivos. No entanto, as regras constitucio
questão, a abertura da econo mia brasileira
nais continuam submetidas a dois tipos de
também tende a aumentar a distân cia econômica
tensão. A primeira vem das novas demandas 22
macro-eco nômicas trazidas pelas mudanças no entre os estados .
ambiente in ternacional e que exigem, entre A segunda relaciona-se à tendência ao trata
outras medidas, rígido controle fiscal e mento uniforme das esferas subnacionais, em
superávits primários. Tal tensão limita, particular os estados, associada à maior redução
obviamente, os recursos governa relativa de suas receitas, inclusive pelo pagamen
to de suas dívidas com a União, federalizadas no
final dos anos 1990. Paralelamente, existem hoje
118 relações diretas entre o governo federal e os mu
mentais para serem usados em políticas de corre nicípios decorrentes da descentralização das polí
ção das desigualdades regionais, elevando a ten ticas sociais. Esses fatores limitam a capacidade
são entre a demanda macro-econômica por con de iniciativa dos governos estaduais, inclusive
trole fiscal versus a demanda federativa por me no que se refere a novos investimentos tanto em
nor desigualdade regional. A segunda provém do infra estrutura como nas áreas sociais.
fato de que o alto grau de constitucionalização
contradiz o timing requerido pela nova agenda A terceira questão é a escassa existência de
macro-econômica. Isso porque mudanças nas mecanismos de coordenação e cooperação
regras constitucionais que afetam o status quo intergovernamentais, tanto vertical como
requerem longas negociações com o Congresso horizon tal, coibindo a criação de canais de
Nacional. No entanto, tais negociações têm sido, negociação
em geral, favoráveis ao poder Executivo federal.
Essas mudanças, todavia, ainda são submetidas
ao julgamento de constitucionalidade por parte 22
O Sudeste responde por 55% das exportações brasilei
do STF. ras, o Sul por 26%, o Nordeste por 8%, o Norte por 6% e
o Centro-Oeste por 5% (AFONSO, 2004, p. 16).
Além das tensões referidas acima, os proble
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 24: 105-121 JUN. 2005
deralismo está hoje desenhado na Constituição e
das instituições que o modelam do que (a) do en
que diminuam a competição entre os entes caminhamento de conflitos políticos mais
federados. amplos, em que o das desigualdades regionais
A síntese que pode ser feita é que a solução inscreve se, e (b) da redefinição de prioridades
para os principais problemas que afetam o fede governa mentais – tema, portanto, do território
ralismo brasileiro depende menos de como o fe das políti cas públicas e não da Constituição.

Celina Souza (celina@ufba.br) é Doutora em Ciência Política pela London School of Economics and
Political Science (LSE) e pesquisadora do Centro de Recursos Humanos (CRH) da Universidade
Federal da Bahia (UFBA).

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http://
121
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 24: 263-267 JUN. 2005
ABSTRACTS

Versão dos resumos para o inglês: Miriam Adelman


FEDERALISM, CONSTITUTIONAL DESIGN, AND FEDERATIVE INSTITUTIONS IN
BRAZIL AFTER 1988
Celina Souza
This article analyzes constitutional mechanisms regarding federalism throughout the history of
the Brazilian constitution. We seek to reconcile the analysis of how Brazilian federalism
functions in practice with the constitutional mechanisms that, on paper, establish this institution.
The Brazilian federation’s various constitutional designs are described, focusing primarily on the
1988 Federal Constitution and its amendments. We argue that the main constraints that Brazilian
federalism must face today are more a consequence of governments’ difficulties in redirecting the
route of certain public policies and in dealing with macro-economic issues that had not been
anticipated by the 1988 constitutional congress than of problems related to constitutional design
KEYWORDS: federalism; constitutionalism; Brazil.
***

263
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 24: 271-276 JUN. 2005
RÉSUMÉS

Versão dos resumos para o francês: Maria Fernanda Araújo Lisboa


FÉDÉRALISME, DESSIN CONSTITUTIONNEL ET INSTITUTIONS FÉDÉRATIVES DANS
LE BRÉSIL APRÈS 1988
Celina Souza
Cet article analyse les dispositifs constitutionnels concernant le fédéralisme au long de l’histoire
constitutionnelle brésilienne. Il cherche à concilier l’analyse sur comment le fédéralisme brésilien
fonctionne réellement et les dispositifs constitutionnels qui sont attribués à cette institution. Sont
décrits les divers dessins constitutionnels de la fédération brésilienne et pour cela on s’appuie
surtout sur la constitution fédérale de 1988 et ses amendes. L’article argumente que les
principales contraintes auxquelles le fédéralisme brésilien doit aujourd’hui faire face découlent
plutôt des difficultés des gouvernements de reorienter certaines politiques publiques et de traiter
des questions macroéconomiques pas prévues par les constituants de 1988 que des problèmes
originaires du dessin constitutionnel.
MOTS-CLÉS : fédéralisme; constitutionnalisme; Brésil.
***

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