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Willis Santiago Guerra Filho

ela
Meste em Direto Alematha
Universilte de Bicefed,
Titulan pclaluklae
Pofessor dos ropramas de itadua,a, ern Doreit, dz Pnniftciz
Iofessor (onvidao
Católica de Sáo 'aulo (PUCSP e da Cniversdate Candis, Mesde
da Universidade Prevhiteriana Mackenziee
(UCAM/KI). I Professor Asciado
Universidade federal de, Estarto do Rio de Janeiro(UNTPI0).
Pofessor Titular da Advogado.

Henrique Garbellini Carnio(Colaborador)


Católica
Mestre em Filosofia do Direito pelaPontifícia Cniversidade
Pesal ern
de São Paulo. Bolsistapela Coordenação de Aperfeiçoarmnento de
Nível Superior (CAPES). Advogado.

Teoria da

CiÇncia
Jurídica
2ª edição
2009

Editora
Saraiva
1

o DESENVOLVIMENTO DA CIÊNCIA JURÍDICA


1.1. Apergunta sobre o sentido do estudo do Direito como
pelo me
científico pode ser respondida de, pelo menos, três maneiras, depen-
dendo do critério adotado. De uma perspectiva histórica, aqui a ser
desenvolvida, umaconcepção de ciência juridica ainda permanece
desse
em desenvolvimento, podendo se situar o início mais evidente
desenvolvimento na Antigüidade Clássica, em Roma, estando o seu
acabamento ainda inconcluso. Se considerarmos a questão de uma
a-his
perspectiva estritamente epistemológica, de forma sincrônica,
tórica, adotamos um conceitode ciência que nos força a pensar que
aciência sósurgiria propriamente namodernidade, e de acordo com
científicos os
esse conceito tem-se enorme dificuldade em considerar
estudos do Direito que se faziam antigamentee mesmo os de hoje
em dia. Por fim, quando o saber científico adquire a posição privile
giada que é a sua até hoje, na modernidade, surgem esforços no
sentido de se constituir uma verdadeira ciência juridica, com preten
sões teóricas mais ambiciosas, diversa daquele saber prudencial e
meramente prático que épróprio do Direito. Dentre esses esforços,
merece destaque, pelo pioneirismo, aquele realizado no âmbito da
Escola Histórica do Direito, na Alemanha, no século XIX, liderada
por Friedrich Karl von Savigny eo da chamada Escola de Viena, no
século XX, capitaneada por Hans Kelsen.
A expressão "ciência jurídica" é relativamente recente,
constituindouma criaçãoda chamada Escola Histórica do Direito,
surgida na Alemanha no século XVII. Entretanto, a primeira gran
de elaboração teórica do Direito deve-se aos romanos, que incorpo
raram para isso as categorias forjadas pelos gregos para o conheci
mento em geral.
O modo de produção da vida social na Roma antiga
determinou o aparecimento da necessidade de elaboração de um
SIstema jurídico complexo, sem levar em consideração o fato de
31
essa prática constituir uma técnica ou uma ciência "os
nunca levaram muito a sérioa questão de saber se sua
uma ciência ou uma arte"", Ajurisprudentia, ternmo
romanosera
atividade
atividade juridica em Roma, recebia. indistintamente,designativo da
os mais dj.
versos qualificativos: ars, disciplina, scientia ou notitia. Seu
gravitacional era uma noção que está contida na centroa
própria palavra:
prudentia.
A questão do caráter científico do Direito romano tem
como pano de fundo a teoria da ciência vigente na época,
que era
grega por excelência. Aristóteles concebia a ciência como o conbe
cimento da coisa como ela é, ou seja, o conhecimento de sua nece.
sidade, de suas causas e relações. Assim, naquela época, conheci.
mento científico era aquele de validez universal e que captava a
essência dos fenômenos. Os instrumnentos desse conhecimento, como
para os positivistas de ontem e hoje, eram a lógica formal e a ma
temática.
Ofilósofogrego apenas citado, ao mesmo tempo, refere
se à prudência como o conhecimento ético e pragmático, ou seja,
aquele referido ao valor e à utilidade das coisas, destinado a apreen
der, na mutabilidade constante em que se acham envolvidas, um
padro para avaliar a correção e ajusteza docomportamento huma
no. O instrumento básico da práxis prudencial seria a dialética,
técnica para confrontar opiniões contraditórias, captando-lhes as
verdades parciais e pondo os falseamentos a descoberto pelo exer
cício da retórica, pois "o que é verdadeiro e naturalmente superior
presta-se melhor ao silogismo (da dialética)e é mais fácil de persu
adir" (pela retórica)4.
Assim como a din§mica jurídica, em Roma, era regida pela
arte retórica e pelas técnicas dialéticas herdadas da Grécia, também a
estática -recorrendo à
contraposição notabilizada por Kelsen, em sua
Teoria pura do direito -, responsável pela construção dos conceitos
que até hoje nos ensinam, como os de actio in rem e actio in
perso

33.Cf. Tércio S. Ferraz Jr., A ciência do direito, São


34. AristóLeles, Arte retórica, cap. 19, n. IV, 12, in ArtePaulo, 1977, p. 19.
Rio Janeiro, s/d, p. 33. retórica earte poética,

32
privalum, res corporales e res incorporales.
is publicum ejus gramática grega'5.
era informada pela própria fatores autoriza-nos a considerar
A conjunção desses desde que se tenha uma
estudo do Direito já em Roma,
científico o
do que seja ciência, enquadrando-a em uma perS-
concepço amplacomo faz a moderna epistemologia não-positivista.
ade-
pectiva histórica, saber prático, guiado por um método próprio, sua
de
Tratava-se deum rigor na construcão
dotado de um senso de
auado a seuobjeto,
de uma intuição para atingir
averacidade por
terminologia° e mesmo
intermédioda retórica.
retórica, "não é ciência, nem
peculiar, a
Essa disciplina no geral, mas no que se produz as mais
funda
empirismo; não se seja, não influi no
comportamento geral
puro
não é prática, ou tem por objeto a essência. É
das vezes; teorética, isto é, não
da vida: nem é
regras da criação"37, Dá. portanto, ao
formula as limita a aceitar,
poética, visto quecaráter de algo que o jurista "no se essencial do
Direito romano o responsável". Esse é um aspecto
mas constrói de
modo jurisprudentia "estápresen
época histórica. Na prática do
Direito em qualquer problemática da chamada Ciência e pres
te, demodo agudo, a mas também age
contempla e descreve,
saber que não apenas
distintivo da ciência jurídica, que ju
traço racionali
creve"38, Eis oprincipalconcepção de ciência baseada na
uma isso
ristas imbuídos de sem se darem conta è que com
tentam apagar, Direito, afastando-se o
dade matemática adequada ao estudo do
inviabilizam a ciência jurídica na
como exige a práxis
seu objeto,
método apropriado ao
convivência social.

ob. cit., p. 19-20. disse Taine. Atribuir


35. Tércio S.Ferraz Jr., coisaque uma língua bem feita", constituaéalgo
outra
36."A ciência não é terminológica para que uma ciência se
positivismo lógico. Para
importância àconstrução pelo menos desde aascensão do Metodologia de la
extremamente valorizado, cf. Hernandez Gil,
em relação ao Direito,
um exame da escola Barcelona, 1977, v. 2, cap. IV.
ciencia del derecho, Introdução, in Aristóteles, Arte retórica e arte
Capeele,
37. J. Voilquim e J.
poética, cit., p. 22.
cit., p. 20e 21.
38. Tércio S. Ferraz Jr., ob.
33
1.2. Ocore com o Direito Omesmo que se dá com a Hi
tória. Tanto nesta como naquele usa-se. indistintamente. igual
para designar oobjeto de estudo ea ciência que o estuda.
nome
Assim como
oobjeto da históriaéaHistória, oobjeto da ciência jurídica éoD.
reito. Este épor natureza um objeto multifacetado, donde a necessi.
dade de uma "diviso de trabalho noestudo do Direito"39
Em sentido estrito, a ciência do Direito teria por objeto o
sistema de normas juridicas que compõe determinado ordenamento
jurídico positivo,constituindo, assim, a Dogmática Jurídica.
Apalavra "dogmáica" pode trazer à lembrança significa
dos distintos daquele da expressão acima. Primeiramente. dogma, na
linguagem comum, são aquelas "verdades religiosas postas acima
de qualquer questionamento por parte dos simples motais. isentos,
portanto, da necessidade de justificar racionalmente sua validade
Para Kant, dogma seria uma proposição diretamente sintéticaque
deriva de conceitosecomo taldistinta de uma proposição do mesmo
gênero, derivada da construção dos conceitos, que éum matema; em
outros termos os dogmas são "proposições sintéticas a priori de na
tureza filosófica, ao passo que não poderiam ser chamadas a prop0
sições do cálculo e da geometria'a"40, Jápara Cícero e Sêneca o termo
se configurava como juízo, decisão, decreto de ordem, indicando
assim as crenças fundamentais das escolas filosóficas e para indicar
as decisões dos concílios edas autoridades eclesiásticas sobre as
matérias fundamentais da fé!. Jáodogmatismo, como postura dian
te do problema gnosiológico, éa confiança ingênua na capacidade
da razão humana para conhecer a realidade sem precisar de maiores
ponderações, ou seja, duma análise mais acurada. Esses significados
da palavra não correspondem àquele da dogmática jurídica, embora
não sejam totalmente desvinculados. Como assinala Karl Popper, em

39.Cf. Francisco Uchoa de Albuquerque, Adivisão do trabalho no estudo do


direito, Rev.do Curso de Direito, v. 20, Fortaleza, 1979, p. 79-95.
40. Cf. Immanuel Kant., Crítica da razão pura. Mais especificamente, II, Dis
ciplina da razão pura, Seç. I.
41. Cf. Abbagnano, p. 293.
42. Cf. Johannes Hessen, Teoria do conhecimento, Coimbra. 1974. p. 37-40.

34
Sua
autobiografiaintelectual (Unended Quest. p. 51), oconhecimen-
forma-se por oposição ao conhecimento dogmático, como
científicot
to crítica a este, que resulta. portanto, imprescindível enquanto
uma
inicial. Já Franz Wieacker, em obra fundamental sobre História
etapa
Direito, mostra como a Ciencia juridica européia se forma sob a
do
donde advém uma influência marcante da teologia
égide da lgreja,
dogmática na metodologia juridica.
Assim, na ldade Média, com a
Sua redescoberta,
o corpus juris civilis vai representar para oDireito
que a Bíblia era para a religião: dogmas indiscutíveis, pois nesses
O
textos a razão
(logos) tinha-se convertido em palavra escrita, em
Glosadores.
ratio scripta. E o período dos
As universidades italianas do século XIl promoveram um
renascimento dos estudos do direito romano, aplicando àsua pesqui-
1100, derivado
sa0 méodo didático concebido por Irnerius, no ano
d Glosofia escolástica, àépoca dominante. A metodologia de Santo
autori
Tomás de Aquino exige que cada argumento sejabaseado nafilosofia
dade: é o dogmatismo que a Igreja Católica adotou como
oficial e que vaiser incorporado ao estudo da jurisprudentia de ma
confundidos
neira tão intensa que até oS nossos dias os dois serão
como uma só coisa". Irnerius, cognominado primus illuminator
scientiae nostrae, predicava que se construísse um aparato de glosas,
notas explicativas dos textos da compilação do direito romano, co
nhecida por Corpus Juris Civilis, que fornecia a autoridade oua le
gitimidade necessária àaceitação das opiniões emitidas pelos juristas.
Imerius teve seguidores ilustres, tais como Bulgarus, Martinus, Ja
cobus e Hugo, que, juntamente com seus discípulos, formaram a
chamada Escola dos Glosadores*#,

43. Cf. Norberto Bobbio, Contribuición a la teoría del derecho,Valencia, 1980,


p. 146-50, e Tércio Sampaio Ferraz Júnior, Função social da dogmática juridica,
São Paulo, 1978, p. 31-7.
44. Apenas para bem matizar a importância capital da citada escola jurídica
para o direito ocidental como um todo, vale mencionar uma passagem de um tra
balho não jurídico, mas sim histórico, sobre as origens do movimento universitário
europeu, de autoria de Aldo Janotti (publicado na Revista de História da USP, n.
82, São Paulo, abr./jun., v. XLI, 1970, p. 32), no qual, após destacar Inério
como
Seupatrono, lembra que este deixou quatro discípulos maiores, os "quatro
doutores"
35
Esses estudos precursores nos séculos XII, XIIl e
pios do século XIV prepararam o aparecimento de um autor cujaprincí-
obra
éum grande marco na ciência jurídica, Bartolus de
Saxoferrato (1314.
1357), fundador da escola dos pós-glosadores out bartolistas,
fase da escola estatutária italiana$, Otrabalho de Bártolo esegunda
de seus
discípulos traz uma consolidação dos princípios adotados na éDea
para solucionar os conflitos de leis no espaço, além de
introduzir
uma
terminologia que foi essencial ao desenvolvimento do direito inter-
nacional privado. Tal obra ofaz merecedor do título de "pai do direi-
to internacional privado'" (Casteltani).
Como aponta, José Reinaldo Lima Lopes, para Bártolo a
jurisprudência, adisciplina intelectual do direito, constitui uma cvi.
li sapientia, uma sabedoria regrada sobre o bem comum e, assim
compreensão do bem comum é indispensável na compreensão da lei
Esse posicionamento esclarece sua inclinação sobre a ciência do
Direitopressupondo a ética, algocomo o direito sendo uma especia
lizaçãoda ética, um saber das ações devidas e boas e das respectivas
regras. Nesse sentido ético, Bártolo passa aconsiderar odireito como
um derivadoda justiça, ou seja, se ajustiça é uma igualdade, o direi
toéoresultado da aplicação desta igualdade, assim ajurisprudência
éuma ciência, saber ou conhecimento do direito,que se presume que
estáde acordo com a justiça*.

- Bulgarus, Martinus, Hugo e Jacó -, que continuam seu trabalho, formando, por
Sua vez, numerosos discípulos que, "ou levados pelo fervor apostólico, ou não po
dendo mais permanecer na Itália por se terem comprometido nas lutas intestinas que
lavravam suas cidades, migraram, levando o direito romano, qual boa nova, para a
França como, por exemplo, Rogério, Azzo e Piacentino e para a Inglaterra,
como foio caso de Vacário", onde parece que melhor foi mantida a estrutura, digamos,
tópica do método das glosas, para o qual se presencia hoje um refluxo sintomático,
com a já célebre Topik und Jurisprudenz, de Theodor Viehweg (München, 1953).
45. A divisão da Escola Estatutária em duas fases tendo como marco a obra de
Bártolo é feita por Savigny em Geschichte des römischen Rechts in Mittelalter, t. 2,
p. 162 es.
46. José Reinaldo Lima Lopes, As palavras e a lei: direito, ordem e justiça na
história do pensamento jurídico moderno. Tese apresentada ao concurso de livre
docência do Departamento de Filosofiae Teoria Geral do Direito, São Paulo, USP,
2003, p. 65-68.

36
Utilizando-se de um método eivado de tomismo e nomi
nalismo7 método gramatical ou etimológico, que leva àrealização
conceituais. Bátolo opera a distinção básica
deanálises puramente
entre
statuta realia, statuta personalia e statuta mixta, que, para
Arthur Nussbaum+48,
constitui a própria teoria dos estatutos. Os sta-
tutarealiasão aqueles
que se aplicam às pessoas e coisas dentro do
território (p. ex., leis sobre imóveis); os statuta personalia acompa-
nham as pessoas
fora de seu domicílio (p. ex., leis sobre o estado da
statuta mixta são aqueles de natureza duvidosa (p. ex.,
pessoa); e os
leissobre contratos).
Os estudiosos apontam que Bártolo não fez qualquer sis
tematização, limitando-se a uma casuística, embora fosse uma casu
fstica judiciosa, por afeita àprudentia romana. Niboyet defende a
opinião, explicando que os pós-glosadores não edificaram qualquer
sistema, mas apenas procuraram soluçöes específicas para cada caso
particular, inspirados pelo bom senso e sentido de eqüidade (a aequi
tas predicada por Cícero), buscando resolver as questões baseadas no
que depois se chamounatureza das coisas*". Benjamin de Oliveira.
em sua Introdução àciência do direito, jáassinalou que o casuísmo
éa morte da ciência, mas Niboyet explica que a maneira empírica de
proceder dos estatutários italianos não fechou os horizontes de onde
Surgiu o direito internacional privado e deixou o campo demarcado
elivre para investigações científicas posteriores®.
Ocerto éque Bártolo, tendo por base o texto romano
Cunctos Populos e a glosa Quod si bononiensis", firmou duas hipó

47. Jacques Chevallier, Historia del pensamiento, Madrid, 1960, t. 2, p. 443-97.


48. Arthur Nussbaum, Principios de derecho intermnacional privado, Buenos
Aires, 1947, p. 17.
49. Para um estudo significativo da expressão, veja-se Bobbio, ob. cit.. p. 143-4.
S0. Cf. Principios de derecho internacional privado, Madrid, 1928, p. 212.
S1. Aglosa Quod si bononiensis, de 1228, geralmente atribuída a Acursio
(± 1263), dizia: "..quod si Bononiensis conveniatur Munitinae; non debet judicare
secundum Statuta Munitinae, cuibus non subest, cum dicat (cunctos populoS) quos
nostraclementiae regit imperium". Em tradução parao vemáculo, teríamos: "Porém
se um bolonhês for acionado em Modena, não deve ser julgado segundo os estatutos
eda Modena, aos quais não está submetido, conquanto se diga que aeles rege opoder
nossa clemência".

37
teses fundamentais: 1) se oestatuto próprio de um território estende
se às pessoas: 2)se o efeito do estatuto prolonga-se para fora do ter
ritório.Ocampo de incidência das hipóteses abrange diversas matérias
tendo-as Bártolodividido enm nove: a) contratos; b)delitos cometid
no território por estrangeiros; c) testamentos; d) matérias que não são
nem contratos nem delitos nem atos de última vontade; e) aplicação
para os leigos; f) extensão dos
ao clero de estatutos feitos
além de seu território, no que diz respeito às disposições proibitivag:
estatutoS
g)disposições permissivas; h) disposiçòes penais;ei) aplicação das
sentenças penais fora dos limites da jurisdição que as ditous2
Daí se depreende facilmente que Bártolo emprega o m¿.
todo escolástico, fazendo divisões e subdivisões no tratamento da
matérja estudada. Observa-se, também, que, se não foi ele quem
classificou os estatutos em reais, pessoais e mistos, pelo menos fazia
a distinçãoentre os três tipos, assim como também entre os estatutos
pessoais, proibitivos (estabelecem capacidades) epermissivos (con
ferem faculdades); os primeiros, por sua vez, podiam ser favoráveis
(extraterritoriais)ou odiosos (territoriais) 3,
1.3. Uma noção muito cara para a moderna metodologia
das ciências é a de "sistema". Em Direito, o termo aparece já no sé
culo XVIII, com o Movimento do Direito Racional Jusnaturalista.
surgido sob o influxo das meditações cartesianas, fundamentantes da
concepção de ciência vigente nos tempos modernos. "Sistema",
conforme se entendia àépoca, coincidiacom a idéia geral que se tem
de um todo funcional composto por partes relacionadas entre si e
articuladas de acordo com um princípio comum.
Nessa altura, a ciência jurídica rompe a dependência da
prática jurisprudencial e dos procedimentos exegéticos dogmáticos,
sem, entretanto, descartar-se do seu caráter dogmático, que na ver
dade tentou aperfeiçoar, inserindo-o em um sistema construído em
bases racionais, conforme o rigor lógico da dedução. A teoria jurídi

52. Bartolus, Lex Cunctos Populos, n. 13 a 51.


53. Werner Goldschmidt, Sistema yfilosofia de derecho internacional privado,
Barcelona, 1948, t. 1, p. 93-4.

38
ser um construído
Capassa a sistemático
de
da razão e, em
nome da
própria razão, um instrumento crítica da realidade,
sentido crítico-avaliativo do Direito em aguçand0-se o
normas e
padrões éticos
contidos nosprincíipios reconhecidos pela razão4
O
século XIX traz. àbaila a chamada Escola
Histórica, a
qual, conforme já aludimos, emprega pela primeira vez a
expressão
eiência do direito" (Rechtswissenschaft, Jurisprudenz). Nesse
omento, instaura-se o Contronto que serve de orientacão às mais
diversas teorias juridicas aparecidas desde então. Trata-se da opo
cicäo entre a concepção sistemática, de caráter formal-dedutivo.
representada pelo jusnatural1smo racionalista, e aquela que acentua
ainserção histórica e social do Direito, que determina a busca do
iurídicoonde ele se dêconcretamente, ouseja, na experiência jurí
dica dos povos. No é àtoa que Savigny, representante máximo da
Escola Histórica, pugna-se contra a sistematização do Direito em
códigos escritos.
Alinham-se entre as doutrinas que enfatizam oaspecto da
conceituação abstrata: ainda no século XIX, a "jurisprudência dos
conceitos" (Puchta, Windscheid, primeira doutrina de Jhering, Bin
ding, Wach, Kohler etc.), a Escola Exegética Francesa e a Escola
Analítica Inglesa (Bentham, Austin): já no século XX, a Teoria Pura
do Direito (Kelsen), a Teoria
Fenomenológica do Direito (Nicolai
Hartmann, Reinach, Gerhard Husserl etc.), o neopositivismo analítico
em suas diversas versões
inglesa (H. L. A. Hart), italiana (Scar
pelli), argentina (Vernengo) etc. Dentre os que enfatizam o
da concreção histórico-social, temos a aspecto
"jurisprudência dos interesses"
(concepção tardia de Jhering, Philip Heck, Stoll, Müller-Erzbach), o
Movimento do Direito Livre (Oskar von Bülow, Eugen Ehrlich,
Kantorowicz), a Escola de Baden (Windelband, Lask, Rickert, Rad
bruch), o neo-hegelianismo de Julius Binder e Karl Larenz, a Teoria
Sociológica de Duguit e Gurvitch, a Escola de Upsala (Hägerström,
Lundstedt, Alf Ross), a Tópica de Viehweg e a concepção pragmati
ca do realismo norte-americano, cuja oposição radical ao
sistematis

S4. Cr. F. C. von Savigny, "Von Beruf unserer Zeit für


Gesetzgebung und
Rechtswissenschaft".
39
Holmes: "The lite of the l.
moé expressa na célebre frase do Juiz
experience"ss,
has not bcen logic: it has been
L4. Franz Wieacker. abordando em sua monumental Hit.
tória do direito privado o tema "pandectística e positivismo cientít.
co" (S 28), coloca que, apesar da aparência do programa daquela
manifestação tardia da Escola Histórica, ela terminoupor contribuir
menos para o estudo histórico do Direito do que para a construcão
jusracionalisme
de uma sistematização conceitual, iniciada já pelo
tendocomo base a civilística do direito comum europeu. Essa siste.
mática. posteriormente, étransposta para o direito público por juris.
tas como Jhering, Gerber, Laband e, especificamente, para o direito
processual por Büllow, Wach, Goldschmidt etc. No plano epistemo
lógico,seguindo a orientaçãodo programa de Savigny, Puchta propÙe
achamada "jurisprudência (= ciência jurídica) dos conceitos", legj.
desenvol
timando a dedução de nornmas e a construção do Direito,
vendo conceitos por uma lógica imanente ao sistema jurídico. Win
dscheid, o expoente máximo da pandectística, por seu turno, defendia
jurídicos.
a aplicação do Direito utilizando elementos exclusivamente
econômica,
com a separação de outros quaisquer, de ordem política,
ética etc. Eis aí a idéia central do positivismo científico, a qual re
as ordens
monta àrigorosa diferenciação operada por Kant entre
moral e jurídica, donde resulta o formalismo como princípio retor da
prática científica.
Do formalismo advém adisposição em deduzir oDireito
apartir de um sistemade conceitose princípios, com a crença de que
acorreção material decorre do acerto formal dessa
operação. Como
conseqüência, tem-se que: (19) A ordem jurídica passa a ser vista
como um sistema fechado e pleno, com autonomia e independência
perante a realidade social, uma realidade a se, portanto. (2°) Não há
lacunas no ordenamento jurídico, por ser sempre possível a subsunção
construídos. (39) A
logica aprincípios ou conceitos devidamente
atividade judicial de aplicação do Direito é "automática", por ser

55. De um modo geral, para uma exposição das doutrinas supracitadas, consul
te-se Karl Larenz, Metodologia da ciência do direito, Lisboa, 1978.

40
escrava dessa subsunção silogística. (4°) Oensino jurídico torma.
umtreino no manejo de conceitos desvinculados da realidadetorna-se
prática.
(5) Oisolamento e aespecialização técnica da elaboração jurídica,
excluindo a consideração de outra ordem qualquer, terminam por
favorecer a manutençao do siatus quo, protegendo-o dos embates
ideológicos esociais.
Nelson Saldanha° mostra o comprometimento ideológico
s tino de abordagem da ciência juridica nascentee seu legalismo
oom oEstado liberal e capitalismo burgueses. Os conceitos centrais
dessa ciência, como os de autonomia privada, direito subjetivo.
propriedade individual, relação jurídica, liberdade contratual, vieram
a0encontro dos interesses particulares da classe empresarial emer
gente, ajudando a romper como imobilismo das sociedades tradi.
cionais, com sua organizaço profissional corporativista. Com o
estado de coisas insuportável que se gerou, levantaram-se críticas de
todos os lados, não só por parte de sOcialistas, como Karl Marxe
Karl Renner (responsável pela idéia da função social da propriedade),
e das correntes autoritárias, como também de próceres do próprio
liberalismo, como os ingleses Jeremy Benthame John Stuart Mill.
com seu utilitarismo, que tanto influenciou a "virada" de Jhering do
pandectismo para o que, com Philip Heck, veio a se chamar "juris
prudência dos interesses". Nesse novo paradigma científico propõe
se um tipo de explicação finalística, teleológica, para o Direito, le
vando-se em conta principalmente a categoria extranormativa dos
interesses em conflito a serem juridicamente harmonizados, mas
evitando-Se, contudo, o recurso a elementos suprapositivos. O coro
amento dessa evolução é o advento do Estado social, estabelecido
constitucionalmente.
A ciência jurídica surge condicionada pela
da idéia de norma, a qual fornece um padrão entronização
universal
do jurídico, com uma ciência jurídica legalista;
de aferência
a norma por excelência, as demais só se portanto, sendo a lei
tornam também positivas
quando ela o admite. Pois bem. Essa ciência jurídica culminará, então,

Do. C1. Legalismo e ciência do direito,


crítica histórica, Rio de Janeiro: Freitas Sâo Paulo, 1977 e Teoria do direito e
Bastos, 1987.
41
na doutrina kelseniana, a
Reine Rechtslehre. Nela se reatirma de
convincente) o postulado
forma extremamente convicta (e
tal do positivismo científico. que
determina se evite o fundamen-
sincretisCommo
metodológicoem prol da certeza e objetividade dos resultados.
de concepções ingênuas
ela, a teoria do direito se liberta de seus
quais ao Direito e a seus institutos se
primórdios, nas
atributos de fatos do ser" (Seintatsachen), ao ver, por exemplo, a conferiam
norma jurídica como ordem, vontade, ou odireito subjetivo d
direito inerente ao sujeito, e a relação jurídica como modalidade do
relacionamento humano fundante da -aoinvés de fundada na
-Or
dem jurídica. Para ela, a ciência jurídica deve ocupar-se exclusiva.
mente com as normas de direito, que fornecem o esquema de intex
pretação (Deutungschema) especificamente jurídico dos fatos e
contêm um juízo de valor objetivo destes, único a ser levado em
consideração pelo jurista enquanto tal. Ao considerar essas normas
como doadoras do significado objetivo que um ato e a conduta hu
mana em geral adquirem para o Direito, a teoria pura" consagra
definitivamente aordem jurídica como um "texto" em que se lê algo
sobre a realidade, explicandoo comportamento a ser adotado em face
dela por esse aspecto, o objeto da ciência jurídica teria a particu
laridade de não apenas requerer uma explicação, mas ser ele próprio,
as normas jurídicas, uma explicação de como interpretar fatos de
acordo com o Direito".
A superação da teoria da ciência jurídica de Kelsen, vale
observar, nãoocorre em outras teorias com a mesma base normativo
legalista, que podem ser vistas como ressonâncias daquela. Assim é
na teoria egológica de Cossio e na teoria tridimensional de Reale.
Dizer, como o primeiro, queo objeto da ciência jurídica não éa nor
ma, mas a conduta humana conhecida através de normas, não deslo
ca estascomo referencial cognitivo principal dessa ciência. Lembre
mos, ainda, que é de Kelsen adefinição do Direito como "ordenação
daconduta humana"s, Com relação ao tridimensionalismo, é de se
notar que na norma, para o mestre austríaco, jáestá contidoo fato, 0

57. Cf.Kelsen, Reine Rechtslehre, 2. ed., Wien, 1960, n. 2, 3e 4.


58. Id. ib., n. 6, a.

42
Tatbestand,tornado por ela relevante parao Direito. Também ovalor
e
inerenteao de ele
ao Direito, pois,pelo simples fato de ele se manifestar
seria
elas contêm valores, valores jurídicos, com sentido
como norma,
da referência de uma conduta ànorma".
objetivo,resultantes
O modelo de ciência jurídica proposto por Kelsen encon
tra-se. atualmente
superado não:só pelo evolver natural dos paradigmas
científicos, hoje distanciados do positivismo de outrora, 0. e.. por um
também por motivos histórico-sociais, já que a
fator intelectual, mas
linhas gerais, foi desenvolvida tendo como
teoria pura", em suas
parâmetro o Direito nas sociedades européias pré-Segunda Guerra
Mundial antes, portanto, de encerrado o ciclo histórico da moder
"pós
nidade e principiadoo que jåse vem convencionando chamar
modernidade". Nesse descompasso histórico podem-se talvez iden
tificar elementos para a explicação da permanência do prestígio da
doutrina kelseniana empaíses como0 nosso, em grande parte ainda
"modernização".
em vias de completar sua
1.5.Conforme exposto anteriormente neste trabalho, hou
ve um momento em que a teoria jurídica formalista, aferrada a um
positivismo normativista, para não dizer mesmo legalista, viu-se
forcada a ceder àrevolta dos fatos", abdicando de se manter ocupa
da apenas com aconstruço de uma sistemática conceitual abstrata,
voltada para amanutenção da harmonia ecoerência da ordem jurídi
ca. Surgiram, então,em vários países realismos jurídicos,escolas de
cunho sociológico, preocupadas com a inserção do Direito e de seu
conhecimento na realidade social. Muito antes, porém, jáhouvera
Marx inaugurado uma abordagem desse tipo do Direito, em escritos
da primeira fase de seu pensamento, quandoos estudos de economia
política ainda não se colocavam no centro de suas preocupaçóes. Nao
se pode, contudo, deixar de reconhecer uma diferença essencial entre
a abordagem marxista das diversas versões de realismo e sociologis
no juridicos,em que pese a coincidência de todas no tratamento das
questões do Direito como guestões sociais. Essa diferença pode ser
Dem compreendida considerando que a primeira se esteiaria numa

59. Cf. id. ib., n. 4, bee, l1e 13.

43
concepçåo dada sociedade baseada no que se pode chamar de
de conflito". ao passo que as demais seriamfiéis ao modelo modelo
oposto,uum
"modelointegrante ou de equilíbrio". havendo, no primeiro caso,
compronetimento com a modificação da realidade social,COmo o re-
sultado do esforço de conhecê-la, enquanto no segundo modelo
engajamento se faz no sentido de manutenção da ordem
se estuda.
social que
Nesse sentido, pretendo sustentar que a contribuição de
Marx para a epistemologia jurídica háde ser necessariamente an
priada por quem pretenda fazer um estudo científico do Direito, o
que significa o mesmo que se referir a quem tem por intenção fazer
um estudo (científico) do Direito com um sentido emancipatório, pois
o ideal científico implica necessariamente exposição e crítica do
conhecimento dado, bem como promoção do gênero humano a um
estado mais liberto das circunstâncias adversas que o afligem.
Vou ocupar-me em seguida da reconstrução de uma teoria
daciência jurídica de corte estritamente marxiano, ou seja, levando
em conta elementos fornecidos exclusivamente por Marx em um
período de seu pensamento, logo no início, antes de ele dedicar a
maior parte de seus esforços teóricos àeconomia política.
Para tanto, vou me valer dos resultados de pesquisa em
preendida pelo filósofo do direito e brasilianist alemão, professor
da Universidade de Frankfurt am Main,Dr. Wolf Pauló!, Essa pes
quisa. apesar de feita jáhá mais de vinte anos, ainda épouco co
nhecida noBrasil. Agora, parece ter-se apresentado um momento
mais propicio paratomarmos contato com seus resultados, após a
eclosão de movimentos como o do Direito Alternativo. A conclusão
a que se chega vai então coincidir com teses difundidas por epígo
nos desse movimento, como Oscar Correas62 e Edmundo Lima de

o0. C1., a propósito, meutrabalho A evolução científica do direito, in Estudos


juridicos, Fortaleza, 1985, p. 9e s., e Roberto Lyra Filho, A filosofia juridica os
EUA: revisão crítica, Porto Alegre, 1977, p. 55, 77, passim.
61.Cf. Marxistische Rechtstheorie als Kritik des Rechts. Diss., Frankfurt a. M
1974, esp. p. 90 e s.
62. Ci. Marxismo y derecho en America Latina, hoy, Revista de Direito Aue
nativo, n. 2, São Paulo, 1992, p. 146.

44
à relevância, na atualidade, do aspecto episte-
Arruda Jr.", quanto pensamentomarxiano.
mológico-jurídico do
Acontribuição de Marx para a teoria epistemológica do
da crítica a que submete o modelo de ciência
direitodá-se a partir na chamada Escola Histórica do Direito.
proposto, pioneiramente,
máximo era um ex-professor seu na Faculdade de
cujorepresentante
Direito da Universidade de Berlim, F. K. von Savigny. E claro que.
perspectiva, logo nos
como jáse pode antever, ao Cxplorarmos essa
depararemos Com uma questão bastante tormentosa: a teoria da ciên-
traria uma contribuição para a expansão do pa-
ciajurídica de Marx
radigma científico jurídico, o modelo dogmático de estudo do Direi
to ou. na verdade, o que Marx propóe não chega a configurar uma
ciênciajurídica altenativa, umaruptura do paradigma dominante.
Rem. antes de decidirmos sobre a compatibilidade entre a teoria ju
rídica marxiana e aquela tradicional, examinemos o procedimento
adotado por Marx ao tratar da dogmática jurídica com o caso, por ele
analisado, do roubo de lenhas.
Trata-se de assunto que viria a ser regulado por uma das
leis produzidas pelo então "Ministro para Legislação" da Prússia.
ninguém menos que Von Savigny, que se notabilizou por sua defesa
do direito costumeiro contra "'a vocação de nosso tempo para a legis
lação". A idéia de Marx era, apartir da análise de um problema
concreto a colheita de pedaços de madeira caídos nas florestas à
beira do Reno -, examinar o tratamento legislativo a ser dado ao
assunto em projeto de lei, que passava a considerar como roubo de
lenha esse fato, prevendo pena de multa ou trabalhos forçados, pres
tados ao dono da floresta, por quem praticasse tal ato.
Em primeiro lugar, não se dá como aceita de antemão a
compatibilidade de semelhante leicom aordem jurídica pelo simples
fato de emanar de um poder autorizado para produzir tal norma. E se
hoje isso nos parece trivial, àépocanão era, tendo sido feito por Marx
graças à postura crítica, negadora do que édado, própria do método
dialético por ele adotado. Comodistanciamento da perspectiva for

63. Cî. Marxismo e direito: alguns apontamentos, in


jurídica alternativa, Acadêmica, São Paulo, Introdução à sociologia
1993, p. 90.
45
pela qual, não importa que conteúdo
malista, dogmática esteja
vertido na forma da lei, esta terá validade jurídica , Marx nega-se
aver como fatos idênticos, ou mesmo assemnelhados, o)roubo de lenha
através do corte de árvorese asimples colheita de galhos caídos no
necessário àsobrevivência
chão para fazer fogo, absolutamente
camponês na Alemanha. Marx vê aí um atentado insuportável
um
"princípio da adequação e verdade", ao qual se deve submeter também
o Direito, por mais que utilize ficções, analogias e outros artifícios
para cumprir afunção que Ihe é própria. Com isso Marx reporta-se
colocado no centrodas discussã
a um topos argumentativo, que foi
no segundo nác
com o chamado renascimento do jusnaturalismo,crítica do direit.
teoria
guerra, e, depois, na década de 70, com a
aquele de natureza das coisas.
O Direitotem aí um limite à manipulação de conceitos
visando subsumir fatos concretos das hipóteses legais abstratas. Não
lenha a colhei.
éda natureza jurídica das coisas equiparar roubo de
natureza das
ta de galhos, e a lei não pode pretender alterar essa lej
tornar uma
coisas, mas sim conformar-se a ela, sob pena de se
mentirosa, falsa, pois leva ao que Montesquieu chamou de "corrup
legal
tion du droit par la loi". Chega-se, assim, a produzir um ilícito
(gesetzliches Unrecht).
Um segundo ponto assinalado por Marx, analisandoo caso
uma
do ponto de vista estritamente jurídico, é o de que se transpõe
medida sancionadora, a pena e uma pena de trabalhos forçados,
patrimô
que se aplica sobre a pessoa do imputado, e não sobre o seu
nio -, do campo do direito público para aquele das relações jurídicas
para
privadas. A própria multa,que se colocou como alternativa, vai
propriedade, e
oparticular, supostamente ofendido em seu direito de
de
não para os cofres públicos. Verifica-se, assim, o que ele chama
jurisdiço patrimonial, para defender não os interesses públicos,
como deve ser, mas sim aqueles privados, de natureza patrimonial.
diz
Isso é a negação, pelo Estado, de si próprio; um suicídio, como
de Direito,
Marx, poiS rompe com princípios fundamentais do Estado
como a isonomia e a generalidade das leis.
havia
Um terceiro ponto levantado por Marx é o de que
um costume estabelecido de recolher esses galhos livremente, logo,

46
consuetudinário. afaz-lo, que foi simplesmente ignorado
um,direito
defendia uma concepção, como a da Es-
e justamente por quem
toma o costume como fonte primária do Direito,
cola Histórica, que
legislação eà doutrina caberia apenas explicitar. Aqui, Marx
aqual à.
oe deparacom uma contradiçao flagrante entre teoria e prática. fun
classe do teórico no cas0, um aristocrata,
dada nos interesses de
VonSavigny. Daí é que ele vai aponta para a necessidade imperiosa
erealizar uma crítica da ideologia, que mostra contradições
entre a prática de alguém e sua própria concepção de mundo.
Apróxima etapa do procedimento marxiano de análise
eríticado Direitoéentão aquela em que deSvenda, por trás do prin
cípio legal das conseqüências juridicas de um fato, um interesse
querendo impor-se a outro, um interesSse patrimnonial preponderan
do sobre interesses vitais do ser humano, do próprio gênero huma
no, cuja emancipação, segundo um topos argumentativo extraído
dafilosofia hegeliana e jáprenunciado por Kant , éaprópria
tendência da Weltbürgerlichen Gesellschaft, da sociedade civil
universal.
Marx, nesse contexto, faz referência seguidamente a um
outro topos, que ocupa lugar central na moderna teoria da argumen
tação, tal como édesenvolvida por Robert Alexy e outroset, a partir
do que propõe um dos mais recentes modelos de ciência jurídica:
trata-se do topos da proporcionalidades,. E desproporcional o sacri
fício a que, no caso concreto examinado, se submete o interesse
fundamental da classe desfavorecida em garantir sua subsistência,
em nome do atendimento ao interesse particular do proprietário da
floresta em manter o seu patrimônio.
Eis que, resumindo, o projeto de lei que criminaliza a
colheita de galhos nas florestas prussianas ofende princípios jurídicos
fundamentais do Estado de Direito, tal como a igualdade perante as

64. Ct., v. g., W. Krawietz et al., Argumentation und


prudenz, Berlin, 1979; W. Krawietz e R. Alexy, MetatheorieHermeneutik in der Juris
tation, Berlin, 1983. juristischer Argumen
65.Cf. Willis S. Guerra Filho, Oprincípio constitucional da
in Ensaios de Teoria
Constitucional, Fortaleza, 1989, p. 69es. proporcionalidade,

47
leis c a generalidade destas, bem como principios de
de humanidade. donde se pode afirmar quc, uma vCZ. racionalidade
lei. elaestana ferindo, assin. mais do que principios deaprOvada
dircito essa
dadeins aiomas.cm quc sefunda uma ordenn juridica.
Apos lançar tantos clementos para a renovaço
mologra do dncito., os quais, se nâo romperam o paradigmacpiste-
cIência em cvoluç£o desde a Roma Antiga, muito o dessa
ampliaram,
foram depis retomados pelas mais diversas linhass de pois
pensamento na
ciência jundica. desde a"Jurisprudência dos Interesses", prenunciada
jåno pensamento lardio de Jhering. até a atual "Jurisprudência da
Valoraçòcs". atopica de Vichweg ou o"Modelo
Tridimensional"
Dreier eAlexy. Pois bem. Apóster concebido, na práica de uma in-
de
fazendo um estudo de
terpretaçào crítica. caso, UM prOcedimento
capaz de "desdogmatizar' osistenna juridico, tornando-o aberto, enäo
mais fechado, inmune acríticas, algo absolutamente necessário an
pensamentocientífico. Marx não prossegue seus estudos de direito
pois se teria deparado com uma tarefa prévia: a pesquisa do setor da
Vida humana em sociedade em que se dáoconflito daqueles interesses
de que as leis são a expressão, realizando-0s ou obstaculizando-os
por ser um conflitogerado pela impossibilidade de atender às neces
sidades das pessoas em geral na fruição de certos bens. Marx, então.
dedica-se àpesquisada base sob a qual se sustentam as representações
ideais. como o Direito, a base material, econômica, onde se produz e
reproduz a vida em sociedade. Apartir daí, no contexto de uma pes
quisa que não era jurídica, mas que dizia respeito também ao jurídico,
vão surgir colocações marxianas sobre o Direito que serviro de fun
damento aalegações de uma postura cientificista, mecanicista e posi
tivista de sua parte. por tentar explicar os fenômenos jurídicos apartir
do fenómeno econômico,tal como ele o descrevia. Essa crítica vem
amparada. em grande parte, em desenvolvimentos posteriores da
doutrina marxista, devidos a outros teóricos, especialmente àqueles
que estavam comprometidos com um Estado que pretendia realizar a
doutrina políica marxista, os quais terminaram ideologizando com
pletamente a teoria do direito marxista, tornando-a tão ou mais dog
mâticado que aquela dita "burguesa". Crítica da ideologia éa nossa
garantaepistemológicamaior, como nos ensinouopróprio Marx.
A proposta que se faz, então, é que se "desconstrua" 0
pensamento jurídico de corte marxista,retrocedendo àprópria obra
48
Marx. e. dentrodedela, ao período inicial. em que se dedicou espe-
de sobre o Direito. Depois. que se reconstrua essa
cificamentea estudos
teoria, fazendo o que Marx não teria tido tempo de fazer por ter ne-
cessitado dedicar orestante de sua vida concebendo uma teoria capaz
criticar oregime económico capitalista, ou seja. que. de
de explicare pesquisa sobre abase econômica"., reto-
possedos resultados dessa
0 estudo do
direito, inserindo-o em contexto social e vital
Ime-se
Concret0. para inclusive. ainfluència transformadora dele
detectar.
sobre aquela base. Trata-se de proposta quesempode indicar um novo
deixar de ser "jurí-
a qual.
caminho para a pesquisa do direito,
forte conotação científico-social. Em sendo
dica", apresentaria uma a
assim, aponta para uma possibilidade inexplorada também para
teoria sociológica do direito.
No panorama da atual teoria do direito, verifica-se, nos
mais diversos países "herdeiros" da abordagem inaugurada por Marx,
um tipode pensamento que se denomina "crítico", do qual se distin
gue aquele outro, também bastante praticado, dito "analítico", 0
primeiro, defendido no Brasil pelo grupo formado na UnB em torno
de Roberto Lyra Filho, a chamada Nova Escola Juridica Brasileira.
e. individualmente, por teóricos como Luiz Fernando Coelho, do
Paraná, seria movido, nas palavras deste último, pelo intento de re
cusar o papel de legitimação da ordem jurídica assumido pelas demais
teorias, absorvidas pelo que um outro jurista "crítico" atuante no
Brasil, o argentino Luis Alberto Warat. chamou de "senso comum
teórico dos juristas", para procurar inculcar na mentalidade juridica,
por natureza conservadora, um princípio de transformação, prospec
tivo", Nota-se, portanto, que um dos pontos centrais de preocupação
do pensamento crítico seria exatamente com o papel desempenhado
pelo estudioso do direito na contiguração que seu objeto de estudo
assume na sociedade, considerando que, em última instância, é o
Jurista que cria o seu objeto de estudo do Direito. A teoria crítica, em
sendo assim, põe enm xeque não só a ordem jurídica estabelecida, mas

66. C1. L. F. Coelho, Lógica juridica e interpretação das leis, 2. ed.. Rio de
Janeiro, l981, p. 62-3; L. A. Warat. Mitos e teorias de interpretaçko da lei, Porto
Alegre, 1979, p. 17 e s., passim.

49
também a própria atividade de conhecê-la, em harmonia Com aide-
fariam teóricos
ologia a ela subjacente,tal como não-críticos. Nesse
aspecto,,cabe chamar aatenção para aimportância, mesmo para quem
adote apostura crítica, de conhecer o trabalho realizado por aquele
juridica, Sem pretende
que se dedica apenas a explicar a ordem
terá-la. Vale lembrar a esse respeito palavras do teôrico espanhol Dee
derecho como
Ramón Capella, que, com seu primeiro livro, El
guaje, projetou-se comoexpoente do pensamento jurídico analítico,
convertendo-se posteriormente para a vertente crítica. Para ele, vive.
mos contemporaneamente imersos "en una espesa red de relaciones
red a
jurídicas", cumprindo ao estudioso do direito "conocer esa
relaciones para orientarse dentro de ella , paao que não se pode
abdicar das contribuições da dogmática, da zetética, da analítica ju-
rídica e das mais diversas fontes. Continua oautor, dandooo salto para
adimensão crítica: "pero cabe conocerla, además, para modificarlo
hombre.."67
para ponerla al servicio del
Ocrítico do direito, no nosso sentir, deve preocupar-se em
manter o diálogo com aqueles que na0 compartilham sua postura
ideológica, "falando a mesma língua", para que seu trabalho venha
efetivamente a ser incorporado no conjunto da produção teórica sobre
o direito também. Nos EUA, onde os estudos críticos já háduas dé.
cadas são florescentes, tendo como um dos principais incentivadores
obrasileiro, professor em Harvard, Roberto Mangabeira Unger,
existe um trabalho recente comparando esses estudos com os filmes
do cineasta francês Jean-Luc Godard, alertando que, assim como
esses filmes para muitos espectadores não são considerados como
legítimos representantes da arte cinematográfica, também o trabalho
dos "críticos", por sua estranheza, podem não ser considerados como
parte do acervo jurídico, como "direito 68

67. Elderecho y la reflexión sobre el derecho, in Materiales para la crítica de


la filosofia del Estado, Barcelona, 1976, p. 123-4,grifo do autor.
68. Cr. J. L. Harrison e A. R. Mashburn, Jean-Luc Godard and critical legal
studies or because we need the eggs, Michigan Law Review, n. 87, 1989, p. 1924 e
s. Para uma visão panorâmica do movimento críticonos EUA, v., na mesma reVIsta,
n. 88, John Stick, Charting the development of critical legal studies, p. 407 e s.

50
16. Aadoção em teoria do direito de um princípio (me
krico) como o do formalismo, com o corte epistemológico que
opera entre os diversos setores objeto do conhecimento, termina por
exercer umnefeito paralisante sobre a atividade cognitiva esubseqüen-
tes distorções no conhecimento por ela gerado. Oformalismo, além
de distribuir as diversas matérias do conhecimento em compartimen-
ns PStangues, instaura uma cisão radicalenre o sujeito cognoscente
eooobjeto cognoscível, postulando ovalor científico de conhecimen-
tos obietivos, válidos universalmente, cuja veracidade se impõe a
qualquersujeito. A validade universal e a objetividade de um conhe-
cimento sópodem ser asseveradas se nos reportarmos a um princípio
metateórico qualquer, que, nas chamadas ciências empíricas, por
exemplo, pode ser identificado como o chamado "princípio verifica
cionista" dos neopositivistas:objetivo e verdadeiro é o conhecimen
toque se baseia em fatos (fora disso oque háémetafísica, fabulacôes
subjetivas desprovidas de sentido). No direito, a objetividade e a
universalidade do conhecimento baseiam-se, freqüentemente, em um
princípio que não épropriamente empirista, mastranscendental, com
o qual se afirma a existência de proposições éticas universalmente
válidas, apreensíveis imediatamente por qualquer sujeito no uso de
suas faculdades normais, a partir das quais se podem identificar as
normas jurídicas, tarefa da ciência do direito. Essa é a proposta do
jusnaturalismo. O positivismo normativista de Kelsen, por seu turno,
vai lançar mão também de um princípio
vo, para identificar as normas jurídicas transcendental,
positivas, com
suprapositi
a
contudo, de que, graças àpostura formalista que adota, essediferença,
princípio
éesvaziadode conteúdo, tornando-se
simplesmente Norma
a
mental. Daí jáse ter dito que a "teoria pura" termina por Funda
um "direito natural formal'" (Luiz configurar
Fernando Coelho), e suas propos
tas purificadoras de elementos morais,
políticos e
uma espécie de "puritanismo,uma forma moral, metafísicose seriam
de metafísica política
afirmação de esquemas de pensamentos repressores da pr¥tica
cognitiva dos juristas" (Luis Alberto WaratyÛ®,

09. C1. Estudos de filosofia do direito: uma visão


de Luiz Regis Prado e Munir Karam integral da obra de Kelsen,
(Coords.), São Paulo, 1984, p. 52 e 101.
S1
Emum plano metateórico, em que o objeto das
não seria o Direito, mas a
teoria do direito, r efle
ainsatisfaçãoxões
apenascausada
problemas jurídicos
pelo tratamento concedido aos Como
problemas atinentes às normas, tal como era feito pela
"ciência do em
direito sentido estrito'", a dogmática jurídica,chamada
ta não sÑ uma valorização de disciplinas abrangidas no conceito dacarre-
"ciência jurídica em sentido amplo" -aponto de
de alguma dentre elas
direito
ciência
ser vista como a "verdadeira e única" no caso,
a sociologia jurídica como também uma exigência de
das demais perspectivas de estudo do
direito, inclusão
além daquela normati-
va, no trabalho do jurista enquanto tal. Foi comn a preocupação de
atingir uma"ciência jurídica completa" que Theodor Viehweg
intro-
duz, no final da década de 60, a distinção entre as formas de pensa-
mento jurídico dogmática e zetética, com uma referència explícita à
concepção de Gustav Hugo, mestre de Savigny, sobre a ciência do
direito (Jurisprudenz), em que já aparecia a tripartição de seu campo
de estudo como um todoem aspectos normativOS, valorativos e fáti.
cos, aos quais corresponderiam a dogmática jurídica, a filosofia e a
história do direito, respectivamente?.
As considerações metateóricas de Viehweg (ou, como ele
as chama, "dogmatológicas"), vale acentuar, inserem-se no contexto
da superação do modelo de ciência jurídica normativista, referida na
parte anterior da presente exposição,quando se buscam critérios para
solucionar as questões jurídicas diversas das simples normas do di
reito positivo, tendo em vista, inclusive, a necessária interpretação
dessas normas, que não mais se fazia satisfatória apenas com base
em outras normas. Abandonava-se, então, o enfoque meramente
formal, enfatizando anecessidade de buscar a inserção social daque
las questões, os interesses que estavam por trás delas, os valores que
elas faziam entrar em choque. Na definição dada por Viehweg de
ciência do direito, logo no princípio de seu célebre opúsculo lopik
und Jurisprudenz, o objetivo não é propriamente a norma juridica,
mas sim o procedimento de suscitar os problemas que com elas se

70. Cí. Viehweg, Ideologie und Rechtsdogmatik, in ldeologie und Recht, de


Maihofer (Ed.), Frankfurt a. M., 1969, p. 84 e s.

52
pretende solucionar"". Apreciar problemas e solucioná-los seriam,
então,as duas tarefas fundamentais da investigação jurídica das for-
do comportamento humano, donde se ter um
mas de regulamentação
"aspecto-pergunta"e um "aspecto-resposta", sendo a ênfase no pri-
meiroou no segundo, respectivamente, que confere caráter zetético
conforme expôs o introdutor dessas
ou dogmáico à investigação,
categoriasemnosso país, Tércio Sampaio Ferraz Jr.2, Na formulação
de Viehweg, àteoria dogmática do direito éatribuída uma funcão
social, precisamente, a de ensejar uma regulamentação do compor-
entode acordo com oDireito, com o mínimo de perturbação,
obietivando, portanto, influir nesse comportamento e no julgamento
dele para a manutenção da ordem s0C1al. Tendo em vista essa finali
dade de manutenção da ordem éque se fixam certos dogmas funda
mentais, opiniões sobre como ela seràatingida, o que requer, ao
mesmo tempo, uma rigidez no respeito a essas determinações e uma
flexibilidade na sua aplicação a situações sempre mutáveis. Jáuma
teoria zetética do direito teria funçãoprimariamente cognitiva, não
estando condicionada ao atingimento de uma resposta coerente com
os dogmas inquestionáveis. Na pesquisa zetética éque haveria o
momento adequado para a inclusão de resultados provenientes de
disciplinas empíricas,como a sociologia, a antropologia, a psicologia,
e também das especulações jusfilosóficas.
Nesse sentido, portanto, a tópica de Viehweg pode ser
entendida como uma argumentação que visa àresolução dos proble
mas por eles mesmos, através da observação da realidade das ocor
rências sociais, algo que tenha força persuasiva no meio social, este
algo seria o topoi, o lugar comum.
Na verdade a argumentação da sustentação da tópica emer
ge do entendimento de que o pensamento dogmático (tradicionalmen
te aplicado) contribui para obscurecer os topois da argumentaço jurí
dica, dessa maneira, o pensamento tópico jamais seria adequado à

I. Vale registrar que já Max Salomon, em sua obra Grundlegung zur Rechis
philosophie, 2. ed., Basiléia, 1925, p. 23e s., asseverara que objeto da ciência juri
dica eram os problemas, e não as normas do
72. Cf. Aciência do direito, cit., p. 45 e Direito.
s.

53
decidibilidade obrigatória e àplenitude do ordenamento juridico, uma
vez que "pressupor que todo problematem uma solução não. écompa-
de partida3
tívelcoma tomada do próprio problema como ponto
Asua utilização pode ser incorporada àdogmática jurídi-
ca desde que nem uma nem outra sejam absolutas. é precisO un

adequação, pois assim a contr1buição se dará ao nival


senso de
práxis jurídica.
Segundo Viehweg "a dicotomia pergunta-resposta, que
encontra sua formulação no questionamento pelo ordenamento justo,
econduz cabalmente a entender o direito positivo em sua função de
resposta, como uma parte integrante da busca do direito que é ain-
vestigação
A
impressão que se tem, enta0, e de que, com a biparticão
da teoria do direito em dogmática e zetética, buscou-se umasolução
investigacões do
de compromisso, que permite admitir a validade de
direito desvinculadas da normatividade positiva, ao mesmo tempo
em que se imuniza contra oS resultados dessaS investigações a analí
tica jurídico-dogmática, legitimando a continuação do trabalho teó.
rico dos juristas sem outra preocupaçao que não aquela com a har.
monização do sistema normativo.
As investigações zetéticas no Direito têm como objeto o
seuestudo no âmbito da Filosofia, Sociologia, Psicologia, História
etc. Todas essas disciplinas gerais dispõem de preocupações originá
rias de sentido jurídico.
Na investigação zetética, não existem observações mera
mente estanques, mas sim interdisciplinares. De acordo com Tércio
Sampaio Ferraz Junior o ponto comum que distingue e agrupa essas
investigações é seucaráter zetético, "a investigação zetética tem sua
característica principal na abertura constante para o questionamento
dos objetos em todas as direções (questões infinitas)"2,

73.João Maurício Adeodato, Ética e retórica: parauma teoria de dogmática


juridica, São Paulo: Saraiva, 2002, p. 38.
74. Luis Alberto Warat, Introdução geral ao Direito: epistemologia juridica da
modernidade, v. II, Porto Alegre: Safe, 2002, p. 26.
75. Tércio Sampaio Ferraz Jr., Introducão ao estudo do direito: técnica, decisão,
dominação, 3. ed., São Paulo: Atlas, 2001.

54
Percebe-se que para a utilização e desenvolvimento da
zetética, parte-se de alguns pressupostos admitidos como verdadeirOS,
e necessário distinguir limites zetéticos.
épossível A investigação desta maneira pode se dar em um nível
empírico,prático, experimenta l, como também num nível meramen
especulativo ou pode produzir resultados com base numa aplicação
te
técnica àrealidade 6
Assim, a zetética seria um pensamento que tornaria fle
xÍvel a dogmática para provocar sua desdogmatização parcial; mostrar
jurídica e as soluções para os seus problemas. Encon-
aproblemática
traria as respostas as perguntas que determinam os problemas"77
Na verdade, o que parece ser mais coerente é uma con
cencão do direito não com0 um sistema fechado de proposicões.
representado pelaidéia da codificação, ou, ao contrário, como algo
pxehusivamente judicial, voltado para a solução particular em cada
caso concreto. Aquilo que mais se aproxima do ideal éum sistema
aberto, reconhecidamente pontilhado por lacunas aserem preenchidas
pela decisão no caso concreto.
Segundo Esser, todas as culturas jurídicas se repetem no
processo circular de descobertas de problema, formação de princípios
e consolidação dos problemas", donde a razão da tendência atual
do pensamento jurídico dos países de direito legislado de não conce
ber seusistema jurídico como algo fechado em si mesmo, pretenden
doconter resposta para toda e qualquer questão porventura surgida,
resposta esta que poderia ser inferida do sistema mediante operações
lógicas. Ao mesmo tempo, observa-se atualmente no direito casuís
tico anglo-saxônico uma fase de formação econsolidação de princí
pios,um início de codificação sistemática.
Portanto, háque se conceber um "modelo dogmático"
(Miguel Reale) como um sistema aberto "que ordena as soluções

76. Seria interessante e complementar o quadro exposto por Ferraz Jr. em sua
obra Introdução ao estudodo direito: técnica, decisão, dominação, p. 45, quanto à
zetética jurídica em sua divisão empíricaeanalítica.
77. Warat, p. 27 e 28.
I8. Esser,Grundsatz und Norm,p. 7, apud Larenz, Metodologia da ciência do
direito, cit., p. 187.

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encontradas para os problemas coneretos nunna conexo
e torna ainda mais fácil reconhecê-los noutroS casos c
problemas análogos, mas mantém-se aberto também às a
iaplnteicliá-lgívasel,
çòes problemáticas. e não pode portanto nunca estar
novas influj-
apenas e sempre a caminho', nào reivindicando Imais que'incluído',
dez provisória. Na verdade, verifica-se, como
uma vali-
fez
O método sistemático corresponde"à necessidade de solidez e que Jørgensen,
rança no Direito",eo método do direito do casO a segu-
"uma adaptação
às exigências práticas e àjustiça concreta" e, portanto, não se
cluem. antes se promovem mutuamente"0 ex-
Acontece. porém, que o homem moderno
pode renunciar àsua tradição racionalista, donde não ocidental não
ser suficiente
que a regra jurídica ou uma decisão correspondam aos usos para
serem aceitas. mas é necessárno que se apresentem como algo signi
ficativo. racionalmente sustentável.
Do que até agora foi estabelecido sobre a ciência do di.
reito. pode-se sintetizar dizendo que a dogmática jurídica erigiu-se
sobre a base fornecida pelas heranças jurisprudencial, exegética e
sistemática, tendo o século XIX e a primeira metade do século XX
acrescentado a perspectiva histórica e social, enquanto os estudos
mais recentes fazem com que ela passe por um reexame, acentuando
sobretudo suas deficiências exegéticas e a necessidade de inseri-la no
desenvolvimento da sociedade, cujo acelerado processo de cresci
mentoem nossos dias provocou uma enorme diferenciação no siste
ma juridico. Daí se dizer que a polêmica à qual nos referimos não é
"uma polêmica contra a abstração, contra a conceptualidade, contra
a pretensão de um dispor conceitual autônomo sobre questões jurí
dicas, apenas sobre um pontode vista cognitivos,
Epreciso que se evite, de qualquer maneira, o risco de um
distanciamento progressivo da realidade, na medida em que os jur1s
las se preocupam com aelaboração de nomenclaturas eclassificações,
e os aplicadores do direito assumem uma postura estritamente lega

79. Id. ib., p. 187.


80. Cf. Stig Jørgensen, Vertrag und Recht., apud Larenz, op. cit., p. 186.
81. Tércio S. Ferraz Jr., Função social dadogmáica jurídica, cit., p. 4.

56
fidelidade extrema ao textolegal. Apartir de uma observação
lista. de respeito do defasamento das categorias jurídicas
de Tullio Ascarelli aindustrial, assinala Denti que, desde o início do
atual sociedadc
na
XX, "a ciência processual se dedicou àconstrução de grandes
século
arquiteturas conceituais sem contato direto com a realidade econÙ-
social de seu tempo "82. Portanto, cabe ao juiz a tarefa de
mica e
situações existenciais que tem diante
adaptar os preceitos legais às
desi, jamais esquecendo-se
queo escopo do processo éa realização
de Justiça.
Talvez a maior contribuição da atualidade no campo da
ciência jurídica ou, mais especiticamente, na teoria (da ciência) do
direito, seja aquela aportada pela teoria críticado direito. Esta última
tem suas raízes históricas assentadas no século XIX, precisamente
na concepção jurídica do jovem Marx, forjada em contraposição
eritica àEscola Histórica e àfilosofia do direito (e do Estado) hege
liana, ambas igualmente idealistas e ingenuamente românticas.
Valendo-se do método dialético, Marx faz inicialmente a
negação antitética da tese historicista, ao propugnar que esta sofre de
uma petição de princípio e é radicalmente falsa quando pretende
conhecero direitocomo história dos conceitos, princípios, normas e
instituições juridicas, pois essa história simplesmente não existe. Em
seguida, conclui com a negação da negação (Aufhebung). síntese
superadora da oposição, afirmando que o Direito não tem uma histó
ria própria, autônoma, distinta do conjunto dos fenômenos sociais
em que se inclui, todos voltados, em última instância, para a organi
zação, a um só tenpo política e econômica, dos meios materiais de
garantir a existência em sociedade.
Dentro desse quadro, compreende-se perfeitamente a in
(errupção daspesquisas de Marx no campo do direito, enfeixadas em
obras como A sagrada família ou A questão judaica.
passando a
OCupar-se da crítica da economia política e do estudo da sociedade
CIVIl, por se tratar do contexto mais amplo em que se
t0e dentro do qual este deve ser insere 0 Drel
compreendido. Isso0, ao que parece,

62. Processo civilee giustiziasociale,


Milano, 1971, p. 29.

57
especificidade do Direito
Direito ea
não significa retirar a possibilidade
cognitivo, reduzindo-o a um mero invÛucrode
ele erigir-se como objeto
legitimante das relações econômicas burguesas. Diante da
Marx,vastapro-
ido
ainda virgem com que se deparou
do campo de estudos
fundando suas reflexões sobre o direito, não lhe sobrou
completar a tarefa de reunir
subsídios
suficientes para quealentpudesse.
o para
afinal, voltar ao seu ponto de partida, que era a explicação crítica e
renovadora do direito*3
Atualmente, sente-se das mais diversas
apelo convocatório para completar sua obra. Nosproveniências
últimos Vinteume
poucos anos, puderam-se observar, nos principais centros culturais
do Ocidente, tentativas de repensar o Direito e o Estado dentro de
semelhante perspectiva crítica, que se insere naquela tradição. Re-
presenta um intento também de pensar o Direito em sua situacâo
concretae problematicamente localizada, enfatizando a necessidda
de oferecer soluções dentro de padrões éticos, que freqüentemente
divergem do padrão normativo abstrato. Adotam esse ponto de vista
cognitivo estudiosos de países como a Itália (Cerroni, Treves). Fran
ça (Poulantzas, Miaille, Edelman), Espanha (Capella, Elíaz Díaz).
EUA (Critical Legal Studies), Argentina (Cárcova, Correa, Mari),
Brasil(Roberto Lyra Filho, José Geraldo de Souza Jr., Roberto Aguiar.
Luis Fernando Coelho, "Direito Alternativo"'))e Alemanha(Maihofer
e Wolf Paul, seu discípulo, além dos demais estudiosos que se reuni
ram em torno da Revista Justiça Crítica e dos teóricos da chamada
Jurisprudência Política-Alemã, Abendroth, Wiethölter etc.). Também
em estudiosos portugueses como Vital Moreira e Boaventura de
Sousa Santos pode-se identificar uma filiação ao modelo marxista de
ciência jurídica, enquanto Junichi Aomi aponta o marxismo como o
"segundo componente básico da filosofia do direito, logo após o
jusnaturalismo", em seu país, o Japão".

83. Cf. nesse sentido a abordagem num sentido político-crítico através dos es
tudos marxianos, Willis Santiago Guerra filho, Teoria política do direito: uma in
trodução política do direito, Brasília: Brasília Jurídica, 2000, principalmente o
Capítulo V- História do(ab)uso politico daforça de trabalho humano.
84. Cf. Tendèncias do pensamento jurídico, Rio de Janeiro, 1970. p. 31.
58
Essa nova dimensão da ciência jurídica, mais sociológica
normativa, não significa uma negação absoluta do modelo dog-
que
mático tradicional, sendo-lhe, na verdade, complementar. Euma
forma "zetética" fazer ciência jurídica, para retomar a expressão
de
empregada por Viehweg, posto em voga entre nós por Tércio S. Fer-
razz Jr., que
em sua busca da verdade não limita a pesquisa com o
dogma do direito positivo, mas transcende-o, para explicá-lo de fato,
pragmaticamente. Parafraseando Sartre, dir-se-ia que se trata da te0-
iada ciência jurídica (epistemologia jurídica) insuperável de nosso
modernidade,
tempo, enquanto tempo da

Þ3. V. o prefácio escrito por mim em Dimas Macêdo, Estudos de teoria do


direito, Fortaleza, 1985, além, éclaro, da própria obra, onde o assunto é
abordado.
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