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Antonio Callado

RETRATO DE PORTI NARI

Com reproduções de obras do pintor e fotografias


Sumário

Nota
Nota à edição de 1978
Nota à edição de 1956

PRIMEIRA PARTE

O Menino e o Medo

Uma avó titânica e o Diabo


A cela sem prece
A maçã do início

Criação e Preguiça

O artista nasce no banheiro


Pureza de Paris
Os dinâmicos e os infusos

Justiça Social e História do Brasil

O outro lado de Van Eyck


O artista e a liberdade
O sol ainda está por trás do monte

A Arte Ri por Último

Fra Angélico e Santos-Dumont


Paz entre as ovelhas

SEGUNDA PARTE
O retratista retratado
As “distrações” dos místicos
A morte
O poeta Portinari

Sobre o Projeto Portinari


Lista das obras de Portinari
Nota

Antonio Callado e Candido Portinari, cada um com seus instrumentos


próprios de trabalho, tentaram retratar o Brasil que amavam, para melhor
compreendê-lo — e com sua interpretação levar os demais brasileiros a
também amá-lo. Callado em seus romances e peças de teatro percorreu das
cidades históricas de Minas Gerais ao Xingu dos Kamaiurá, Kren-Akárore
e Uialapiti; do Pernambuco das Ligas Camponesas ao Jardim Botânico e
às favelas do Rio de Janeiro. Portinari pintou cangaceiros e meninos de
Brodowski; santos, retirantes e festas populares; o suplício de Tiradentes e
plantadores de café.
Este livro fixa um momento de encontro e trabalho conjunto desses dois
grandes artistas, o escritor e o pintor, e o nascimento de uma intensa
amizade, baseada em mútua admiração e muitas afinidades. Nesta terceira
edição, com atualização ortográfica e de nomenclatura, foram incluídas
obras de Portinari que não constaram das duas primeiras, assim como
fotos e o fac-símile do poema “Os inventariantes”.
O texto está tal qual Callado o escreveu, parte enquanto Portinari o
retratava a óleo, parte depois da morte do amigo. Na conversa inicial
Portinari teoriza sobre arte, conta histórias da família e reflete — talvez
pela primeira vez — sobre a importância de sua infância na pequena
Brodowski. Usa a palavra, enquanto Callado toma emprestado a técnica do
desenho para esboçar o retrato escrito. O resultado é mais que um diálogo
rico de informações, é uma troca afetiva.

ANA ARRUDA CALLADO


Nota à edição de 1978

Retrato de Portinari foi publicado no ano de 1956, pelo MAM do Rio de


Janeiro, e volta agora ao público, em sua primeira parte, sem nenhuma
alteração. Conta, porém, com uma segunda parte, um outro livro, escrito
agora, e no qual Mestre Candinho Portinari é acompanhado até sua morte,
em fevereiro de 1962.
Aqui estão, portanto, dois retratos de Portinari, feitos com mais de vinte
anos um do outro. Espero que alguma coisa do grande retratado
permaneça neste livro, um pouco da sua vivacidade, da sua ironia, daquela
grande compaixão que nutre sua esplêndida obra.

ANTONIO CALLADO
Nota à edição de 1956

Quando o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro me pediu que lhe


escrevesse uma biografia de Candido Portinari, tive um instante de
hesitação. Pareceu-me que só um verdadeiro conhecedor de pintura, um
crítico de arte, devia estudar a obra do grande, do raro pintor que é
Portinari. Mas o Museu não me pedia um estudo sobre a obra. Pedia um
esboço biográfico de Portinari. E a tentação de fazer o trabalho foi maior
do que o escrúpulo. Resolvi – para acentuar o caráter pouco técnico do
meu estudo – fazer menos uma biografia crítica de Portinari do que um
retrato do pintor. O próprio Portinari, numa de nossas conversas, me disse
que há caras que a gente pinta por puro prazer, caras que contêm tanta
coisa que gostaríamos de revelar que o pincel corre lépido pela tela. Se o
segredo de um retrato é a simpatia entre modelo e pintor e a vontade que
tem o pintor de revelar ao mundo aquilo que de importante e de universal
surpreendeu num canto de boca ou num vinco de testa – se é só isto confio
em que meu Retrato interessará o leitor. O método seguido neste livro é o
mais pictórico possível. Portinari posou para mim uma meia dúzia de vezes
– ele falando, eu perguntando e tomando notas. De todos esses desenhos de
Portinari que fiz em dois cadernos, passei ao quadro, ao Retrato.
É o que exponho nas páginas que vão ler.

ANTONIO CALLADO
primeira parte
O MENINO E O MEDO
UMA AVÓ TITÂNICA E O DIABO

Falando sobre sua avó materna, Portinari me disse, os olhos azuis


faiscando, enquanto ilustrava o que descrevia com gestos precisos de pintor:
— Era uma mulher fabulosa. Parecia um condottiere. Saía no seu
carrinho puxado por um cavalo preto e nas saias tinha bolsos de um metro
de comprimento, cheios de níqueis e de balas para as crianças. Não tinha
religião nenhuma. Caçoava de tudo. Foi a primeira mulher a exportar
mangas para São Paulo.
Neste breve perfil o próprio toque final da exportação de mangas é
heroico. A gente vê a extraordinária amazona Maria Torquato di Bassano
agitando uma sonolenta Brodowski que mal existia e obrigando o povo em
torno a carregar para a capital do Estado recendentes mangas que ela sem
dúvida segurava em musculosos braços de deusa pagã. Pelos tipos assim
como o de sua avó, feitos de boa argila, de saúde e de destemor, Portinari
tem a admiração que só sentimos pelo que não somos.
Quando vi pela primeira vez, no apartamento de Portinari, no Leme, sua
mãe, dona Dominga, reparei como era seu retrato o filho pintor. Os mesmos
olhos azuis, a mesma testa larga, o mesmo sorriso. Eu disse a Portinari
como o achava parecido com a mãe, mas acrescentei:
— Só que ela tem a cara mais forte que a sua.
— É verdade – disse ele. — Ela não tem medo de nada, é por isto.
— Você tem medo do diabo – eu disse sorrindo.
Portinari deu de ombros:
— Eu tenho medo de tanta coisa…
Não creio que Portinari se faça justiça quando diz que tem medo de tanta
coisa. O que o torna invejoso dessa saúde das pessoas fortes e agressivas
como terá sido sua avó, ou fortes e doces como sem dúvida é sua mãe, é o
fato de ser ele um produto do seu tempo. Embora seja homem de pouca
ação (sua ação única é pintar, seu hobby é pintar, seu repouso é pintar)
Portinari vive plenamente a vida de sua época. Olha e julga pessoas sem
cessar, pesa atitudes, e, como Gauguin no título do seu último quadro,
pergunta: “De onde viemos? Que somos? Aonde vamos?” Nossa época será
de qualquer tipo, menos do tipo tranquilo, indiferente, e Portinari traz a
marca do homem moderno desde as primeiras lembranças. Uma das
perguntas que lhe fiz quando começamos as nossas conversas foi:

NONNA DE JARDINÓPOLIS [1956]


Mesmo nos dias de chuva a velha amazona Maria Torquato saía na sua carroça levando mangas
para São Paulo. “Minha avó era fabulosa”, dizia Portinari, “parecia um cardeal. Não julgava
ninguém. Se um bêbado lhe pedia esmola ela dizia: ‘Toma, vai beber.’” (Desenho original para este
livro)
— Qual é a primeira lembrança da sua vida, a mais recuada impressão
que você guardou?
— Um medo desgraçado do Diabo – respondeu Portinari. — Isto é a
coisa mais longínqua. Vem depois um período em branco e a segunda
lembrança: eu brincando, de camisola.
Depois de um instante Portinari prosseguiu com as primeiras memórias:
— Havia um jardineiro que ia lá em casa comprar pedra de âmbar para o
alfanje. Não sei por quê, mas vagamente eu o ligo com o Diabo. E também
me lembro de uma estampa que havia na cabeceira da cama de meu tio: São
José com o globo nas mãos, o mundo. Lembro também que depois, quando
eu tinha cinco ou seis anos, houve vários assassínios em Brodowski. Um
desses foi o caso da mulher assassinada que teve o ventre aberto e foi
pendurada numa árvore. Morri de medo. Minha impressão era que iam me
atribuir o crime. Que alívio eu tive quando apareceu o assassino! Ah, e
houve o preto do coreto, que lá ficou apodrecendo. Na hora do almoço,
quando um de meus irmãos (Portinari é o segundo num total de uma dúzia)
dizia: “E o preto?”, todos nós cruzávamos os talheres e não conseguíamos
engolir mais nenhum bocado.
Por esse tempo, o menino de Brodowski assistiu à sua primeira morte.
Violenta.
NONNA DE JARDINÓPOLIS [1956]
A avó materna, espécie de condottiere de saias cáqui, figura de energia que sempre fascinou o neto
famoso. (Desenho original para este livro)
DIABO [1956]
Quando perguntei a Portinari qual era sua recordação mais antiga a resposta foi: “Um medo
desgraçado do diabo. Aí está o Diabo daqueles tempos da infância, tal como ficou gravado nas
primeiras camadas da memória de Portinari. (Desenho original para este livro)

— Eu estava sentado na porta da casa de minha avó quando se travou o


tiroteio entre o Carlos Silva e o Marcos. Carlos Silva era um homem
terrível. Uma vez escapou da prisão tocando fogo no colchão em que
dormia e bradando por socorro: quando veio o soldado socorrê-lo, Carlos
Silva o envolveu no cobertor com que fingia combater o fogo e fugiu. Pois
no tiroteio eu vi o Carlos liquidar o outro camarada, Marcos.
A memória de Portinari selecionou, entre as lembranças do que foi uma
infância descuidada na roça, imagens básicas e representativas da angústia
do seu tempo: o Diabo, Deus, Los desastres de la guerra. Como fazemos
quase todos, procurou racionalizar Diabo e Deus em Mal e Bem. Moído
pelo desejo de justiça social foi até o comunismo, um rebelde comunismo
de artista. Mas o nó cada vez mais atado que é a vida entre as nações, a
monótona repetição de desastres da guerra no mundo inteiro, fizeram de
Portinari o que é: um ateu saudosista dos tempos de crença, um comunista
incapaz de arregimentação. Fizeram dele, em suma, o que somos quase
todos hoje: um homem perplexo.
E é por isto que ele lembra a avó dos bolsos titânicos com tamanha
admiração. É a revoltosa nostalgia que sentimos por certas épocas
anteriores à civilização cristã, o arrepio de saudade que nos faz estremecer
quando, diante dos bispos e mártires de pedra de uma igreja gótica,
evocamos de repente o vulto de Afrodite saindo das ondas, a pingar
Mediterrâneo, a pingar sol e azul em areias virgens ainda da quilha do barco
de Pedro.
SÃO JOSÉ COM MENINO JESUS E CRIANÇA [1956]
“E também me lembro de uma estampa que havia na cabeceira da cama de meu tio: São José e o
Menino Jesus com o globo nas mãos, o mundo.” Agora, a meio século de distância, Portinari esboça
a cena — e de tal modo que o menino Candido, diante do quadro, está como metido nele, que é
também uma bola. (Desenho original para este livro)
CENA DA INFÂNCIA DO ARTISTA [1956]
Carlos Silva, de revólver em punho, mata Marcos, anspeçada do destacamento em Brodowski.
Portinari tinha então seus quatro anos, correu para Marcos, que tombou na frente da casa de sua
avó. Aí está o menino evocado em riscos nervosos, contrastando sua espantada inocência com a
cara do agonizante. (Desenho original para este livro)
NONNA DE JARDINÓPOLIS [1956]
A avó Maria Torquato já idosa, de perfil, a máscara poderosa um tanto adoçada pelo tempo mas
ainda mostrando o vigor dos dias épicos da carreta pejada de mangas. (Desenho original para este
livro)
A CELA SEM PRECE

O artista brasileiro não pode se furtar à pressão do religioso. Um país


protestante, puritano, de religião trancada nas criaturas, pode criar artistas
que não reflitam de todo uma religião que terá sido sua e que foi a de seus
pais. Mas nossa religião, a religião brasileira, é uma mitologia de deuses
familiares aos quais nunca se escapa completamente. Os santos para nós são
irmãos mais velhos e há santas que são como tias antipáticas. Os santos e
anjos barrocos que, raptados por antiquários espertos, saíram das igrejas
para adornar casas abastadas, não perturbam a vida dessas casas. Um santo
medieval numa sala de jantar é um absurdo. Mas essas imagens das velhas
igrejas da Bahia e de Minas ou das capelas de fazenda fluminense, cheias
de bonomia, com suas rosadas bochechas portuguesas, essas não atrapalham
nada. Ao contrário, num instante de distração a gente é capaz de dizer à
mesa: “Passa a manteiga aí, Santantônio.”

A CARNE DOS SANTOS

Os santos nunca largaram Portinari. Copioso e trabalhador como é ele, se


um dia expusesse apenas os seus quadros de motivos religiosos, teríamos
mais telas do que a obra de muitos outros pintores nacionais. Aliás, da via-
sacra da Pampulha à recente via-sacra que pintou ele para a igreja de
Batatais houve um amaciamento, um adoçamento. O São Francisco do
altar-mor da Pampulha, descarnado como uma ilustração de anatomia,
parece exprimir um estado de choque do jovem pintor de então. É a sua
descoberta de que Francisco era um homem como outro qualquer – mas
nem ali acho que Portinari conseguiu despojar um santo de sua santidade.
Ao contrário. O observador do quadro tem a impressão de que o pintor lhe
diz: “Francisco tinha vísceras”, e isto é um pouco como o espanto e a
revolta de Dostoievski nos Karamazov ao registrar que o santo Zózimo, ao
morrer, fedeu, e mais depressa do que um cadáver qualquer. Aos céticos não
espanta nem escandaliza que Francisco sangre ou Zózimo cheire mal.
A atitude de respeito que é a de Portinari pelo sentimento religioso dos
outros só se aproxima da sua rígida atitude em matéria de moral prática.
Portinari nunca pintou um nu em sua vida.
— Só pintei nus em aula de desenho. Que é que minha avó ia dizer se eu
aparecesse em casa com um quadro de mulher nua?
Tem horror à pornografia e às pessoas que não levam a vida a sério.

SÃO FRANCISCO, 1944


“… a figura de São Francisco de Assis parecia banhada de uma luz e de uma grandeza
sobrenaturais.” (Antonio Bento, Portinari)

O ÁLCOOL DOS ESCRITORES


— Fujo sempre das rodas em que se conta anedota indecente – diz ele. —
Eu gosto de gente que tem alguma convicção, seja budista ou o que for. Me
dá uma inveja danada.
Um dia mencionei o desenho que ele, Portinari, fez de um escritor.
— Fiz porque a mulher dele me pediu. Ele bebe muito.
Ora, como o apartamento do Portinari no Leme está cheio de fotografias
suas com Graciliano Ramos e como ainda vi no seu cavalete o nobre
desenho da nobre cabeça de Graciliano, disse:
— Mas este também bebia muito.
E Portinari:
— Ah, este bebia sua aguardente e ficava firme, duro, severo. Não
contava safadeza nunca.
Foi talvez o elogio mais certo e mais conciso que ouvi de Graciliano, de
quem me lembro no jornal, o nariz já afiladíssimo pela mão da morte, uma
banda do suspensório arriada, vivendo da sua espiritual dieta de aguardente
e fumo. Realmente não contava safadeza. Usava seus palavrões, sim, e
retumbantes, mas para vergastar, causticar.
Em Graciliano Ramos, Portinari perdeu evidentemente seu grande
amigo. Aliás, não me deu a impressão de ter outros. Há qualquer coisa de
monástico na vida que leva Candido Portinari em seu apartamento no
Leme, trabalhando e trabalhando, executando encomendas e trabalhando
para si mesmo. Silenciosa, presente sem intromissão, cuidando da vida
prática do casal de maneira a deixar o marido livre para sua arte, está Maria
(“Chico” é como a chama Portinari) Martinelli, a uruguaia que o pintor
conheceu em Paris e com quem se casou. E há também, bronzeado, ágil,
com os olhos azuis do pai, o menino João Candido. A mesa do casal é farta
e hospitaleira e Portinari, que tanto se honra de ser caipira, gosta a valer de
um dedo de prosa. Mas vive, em realidade, isolado com sua arte,
impermeabilizado. Um monge leigo. Um monge que perdeu Deus mas
guardou o gosto da cela e do trabalho árduo.
RETRATO DE GRACILIANO RAMOS, 1937
O nobre desenho da nobre cabeça.
Portinari com seu filho João Candido,
Rio de Janeiro, 1943. (Foto: Jean Manzon)
A MAÇÃ DO INÍCIO

Portinari tem plena noção do seu valor. Até indiretamente ele revela em
que companhia se coloca. Quando me disse que fazia anos dia 29 de
dezembro, acrescentou:
— Faço anos com Siqueiros e Pablo Casals.
Aliás, o menino Candido foi registrado como nascido a 30 de dezembro
(1903), e não a 29, porque o pai se atrasou no registro e para não pagar
multa adiantou um dia. O pai (Baptista Portinari, que está hoje com 79
anos) nasceu em Chiampo, e a mãe (dona Dominga Torquato, com 70 anos)
nasceu em Bassano.
— São os dois da mesma província, o Vêneto – esclarece Portinari, que
acrescenta: — Goldoni era do Vêneto.
O catolicismo da família vem do pai e da avó Portinari.
— Minha avó paterna morria de alegria quando ia um bispo lá em casa e
meu pai não acredita nem que as pessoas digam mal umas das outras.
Quando morre alguém em Brodowski ele vai lavar o defunto, arrumar as
flores, fechar o caixão.
Sua visão otimista do mundo, o velho Portinari também a força aos
outros. Conta Portinari:
— Durante a guerra não houve meio de se fazer o velho tirar seus papéis
de estrangeiro. E mesmo em Ribeirão Preto, que é cidade grande, quando
alguém lhe pedia os papéis, ele que conhece todo o mundo da zona,
bradava: “Papéis? Que papéis? Pois se eu fui amigo do seu avô!”
O fato é que dona Dominga e seu Baptista, camponeses italianos, vieram
crianças para a terra paulista a fim de plantar o café das safras áureas e fazer
germinar o menino Candido: vieram cuidar do nosso principal produto de
exportação e do nosso principal pintor. Para botarem no mundo o pintor
encomendado nem tiveram de ensaiar muito dentro das regras do trial and
error: Candido foi o segundo a nascer.

RETRATO DE DONA DOMINGA, 1941


RETRATO DE SEU BAPTISTA, 1941
O fato é que dona Dominga e seu Baptista, camponeses italianos, vieram crianças para a terra
paulista a fim de plantar o café das safras áureas e fazer germinar o menino Candido.
A BANDA [1956]
A figura do centro, sentada, é Baptista Portinari, pai do pintor, que sempre prestigiou a Banda de
Brodowski.

FALTAVA ALMA A BRODOWSKI

O sangue italiano do menino caipira parece que começou a lhe segredar


desde cedo que faltava alguma coisa na doçura de Brodowski. Eram muitas
vezes frias as manhãs de Brodowski, mas frias apenas do sereno que
madrugava na casca das frutas, da friagem que o vento colhia em capinzais
vidrados de geada. Na Itália as manhãs se resfriam na cara de milhões de
estátuas.
Tinha uns cinco ou seis anos o garoto quando sentiu pela primeira vez
que aquele mundo de Brodowski precisava ser completado pelo mundo do
espírito. Foi nesse tempo que pela primeira vez tomou lápis e desenhou
conscientemente. Antes, como todo mundo, terá feito rabiscos.
Mas nessa época fez pela primeira vez um desenho que iria repetir vezes
incontáveis:
— Eu fazia uma maçã, dentro da maçã fazia uma mesa e em cima da
mesa punha outra maçã. Pintei isto não sei quantas vezes.
Portinari não é homem de analisar suas maçãs: pinta-as ou come-as. Mas
é curioso assinalar que o menino partiu para a pintura de todas as formas da
pintura da maçã – da maçã onde havia uma mesa onde havia uma maçã.
VAQUEIRO E BOI NA PRAÇA DE BRODOWSKI, 1956
Vaqueiro e boi na pracinha Santo Antônio, Brodowski, vendo-se ao fundo a casa onde Portinari
passou toda a sua infância. (Desenho original para este livro)

“SAI DA FILA, CANDINHO”

Me disse Portinari:
— De vez em quando umas pessoas me telefonam e dizem: “Mestre, eu
daria tudo para trabalhar com o senhor. Não importa o que eu tenha de
fazer. Ficarei contente lavando os seus pincéis.” Eu vou logo respondendo:
“E o senhor pensa que lavar pincéis é fácil?”
Portinari tem uma grande consciência das suas possibilidades (e acha
que suas possibilidades de pintor são inesgotáveis) e portanto das
possibilidades dos outros. Aprendeu cedo a se conhecer, diz ele. E vai
contando:
— Quando eu era garoto de escola primária, na hora da turma cantar o
hino, a professora ia logo me dizendo: “Candinho, sai da fila!”. Eu saía
porque já sabia que era o mais desafinado do mundo. Mas não me meto a
dar opinião sobre o canto de ninguém, ao contrário de uma porção de
“críticos” que andam por aí e que de arte não entendem nada.
Essas suas histórias surgiram quando ele rememorava o pouco tempo
que cursou a escola, e só cursou a primária. (“Nunca tive diploma nenhum.
O primeiro foi o meu prêmio Carnegie de 1935”.) Antes de acabar o grupo
escolar meteu-se num grupo de pintores de spolvero que tinham vindo
decorar a igreja de Brodowski. O spolvero é uma das formas mais humildes
da pintura. A figura a pintar está feita em furos numa folha de papel. Sobre
esta bate-se com uma boneca de tinta em pó. O pó filtrado deixa na parede a
imagem configurada. Aí é só pintar.

FRENTISTAS E MAESTROS

Eu ajudei os pintores – diz Portinari –, e ficou combinado que quando


tivessem mais trabalho me chamariam. Mas fiquei rondando a igreja e logo
que apareceu um escultor frentista comecei a ajudá-lo.
— Frentista?
— Desses que fazem anjos, ornatos etc. em frente da igreja. Trabalhei
com ele uns seis meses e ainda me lembro que recebi em pagamento um
dos velhos patacões de dois mil-réis.
Com onze anos, ao tempo em que na Europa estourava a Primeira
Guerra Mundial, Portinari fazia em Brodowski um solene retrato de Carlos
Gomes que ainda possui, feito a lápis. O motivo de inspiração do menino
desafinado, desde aquele tempo, e que ouve mal hoje em dia, foi o grande
músico campineiro que fazia sucesso na Itália. Não houve aí,
evidentemente, uma homenagem do garoto à música, mas sim à glória.
Mesmo porque nos seus dias de pé no chão em Brodowski, dias que lhe
deixaram até hoje uma grande ternura pelos guris do interior, que brincam
com atiradeiras, com pássaros, com rios e matas, que brincam, em suma,
com a própria natureza – enfeitando-a de cafifas o ano inteiro e de balões
em junho, já que não têm brinquedos propriamente ditos – esses dias ainda
tão vivos em Portinari correm fáceis na sua lembrança.

RETRATO DE CARLOS GOMES, 1914


Carlos Gomes, primeiro desenho do pintor. Não houve aí, evidentemente, uma homenagem do garoto
à música, mas sim à glória.
PRAÇA DE BRODOWSKI, c.1933
Festa em Brodowski. No fundo a igreja onde o Portinari de nove anos começou a ajudar os pintores
frentistas.

PALHAÇOS E ANJOS

Havia o circo.
— Logo que chegava, o circo fazia sua própria propaganda – lembra
Portinari. — O palhaço saía pela rua todo pintado, a cavalo, e eu saía atrás
com os outros moleques, gritando:
“O palhaço o que é?”
“É ladrão de mulher”.
“E a negra na janela?”
“Tem cara de panela”.

Havia as sínteses que o menino ia fazendo:


— Ao mesmo tempo que eu pensava em Santo Antônio e São Francisco
pensava em Miguel Ângelo.
E as aspirações:
— Não esqueço de minha avó dizendo que no céu tinha pão de ló de
ouro.
Mais tarde, em Paris, o pintor que mais fascinou o jovem Portinari foi
Chagall, e Portinari diz por quê:
— A poesia sempre me venceu e Chagall é um pintor poético. Quando
vejo um tema poético realizado em pintura fico com inveja.
E acrescentou:
— Sabe por que é que eu pinto tanto menino em gangorra e balanço?
Para botá-los no ar, feito anjos.

PRAÇA DE BRODOWSKI, 1956


Praça Santo Antônio, em Brodowski. O quadrilátero do fundo (três alqueires) é ainda propriedade
da família Portinari. O pintor evocou sua pracinha para este livro, com o circo, o palhaço ladrão de
mulher, os meninos, as casuarinas e a igrejinha famosa de tanta pintura sua. Aí passou Candido
Portinari sua infância. Nasceu na fazenda em que trabalharam seus pais, mais para o interior.
“Nasci num pé de café”, acrescentava ele. (Desenho original para este livro)
MENINO, 1950
“Sabe por que é que eu pinto tanto menino em gangorra e balanço? Para botá-los no ar, feito
anjos.”
CRIAÇÃO E PREGUIÇA
O ARTISTA NASCE NO BANHEIRO

— Dizer que o artista não é diferente é uma besteira – me disse Portinari.


— O artista presta atenção a coisas que fazem os outros rirem. Ele é o
homem que mais guarda da criança.
Tem razão, Portinari, pois é a criança que mais sabe do mistério das
coisas. Já assim achava um grande especialista no mistério de tudo, Shelley,
que soube conservar-se criança até morrer homem feito. Na curiosa
biografia que escreveu de uma meninazinha de cinco anos – Allegra, filha
de Byron – conta Iris Origo que Shelley um dia deteve no meio de uma
ponte uma mulher estranha que ia passando com uma criança de poucas
semanas de idade nos braços: “Seu neném não quererá nos contar alguma
coisa sobre a preexistência, minha senhora?”. E à alarmada mãe, que olhava
o belo rapaz sem saber se era doido ou não, ele explicou: “É que todo saber
é reminiscência. A doutrina é muito mais antiga que as teorias de Platão, é
velha e venerável como a alegoria que nos ensina que as Musas são filhas
da Memória; jamais se disse que qualquer das nove fosse filha da
Invenção.”

CARROÇAS COM MONOGRAMA

A verdade parece ser que os meninos sensatos aprendem, chegando a uma


determinada idade, um ofício, ou começam a pensar numa carreira. Os
insensatos permanecem aquilo que somos todos ao nascer: artistas. Num
caso como o de Portinari a coisa assume ares de obstinação. Passou a vida a
desenhar e a pintar. Sua vida de boêmia foi vida de boêmia exatamente
porque Portinari se furtava às rotinas para pintar, preferia não comer a
ganhar dinheiro de alguma forma que o afastasse da pintura. Não foi
boêmio beberrão ou mulherengo ou desordeiro. Foi boêmio porque não
encontrou desde o início algum patrão inteligente que lhe dissesse: “Dou-
lhe um ordenado, Candido, para que você fique no seu quarto pintando.”
Não acontecendo tal coisa, Candido ficou no quarto, pintando. Sem
ordenado. É verdade que quando voltou a Brodowski, depois de um
primeiro mergulho na capital federal, Portinari trabalhou numa ferraria.
Quando lhe perguntei que fazia, disse:
— O pessoal fazia as carroças e eu ajudava na pintura. Punha as iniciais
do freguês que encomendava o trabalho.

PRIMEIRA SAÍDA E PRIMEIRO QUADRO

A primeira vinda – a primeira saída, como diria Cervantes – de Portinari


ao Rio foi em 1918 e durou dez anos.
— Morei, então, num banheiro da rua Marquesa dos Santos nº 23. Era
uma pensão e o meio mais barato que eu encontrei de morar lá foi dormir
no banheiro da casa. A coisa tinha seus inconvenientes. Eu precisava me
levantar antes dos hóspedes. Um belo dia a caixa-d’água arrebentou e eu
acordei debaixo da tormenta. A dona da pensão resolveu então me dar um
quarto de verdade. Isolou um pedaço do corredor ao pé da janela, e ali
colocou uma cama para mim. Só larguei esta cama em 1928, para ir para
Paris como prêmio de viagem e para de lá ir visitar a Itália, a Espanha, a
Inglaterra.
Por volta de 1920 – Portinari fez seu primeiro quadro de composição
séria, o primeiro produto acabado da sua arte. Tinha ele dezessete anos.
Chamou o quadro Baile na roça e nele havia pretos, mulatas, um italiano.
Era quadro de uns dois metros por dois e foi vendido por duzentos mil-réis
a um sr. Krauser, dono de uma casa de câmbio. Perguntei a Portinari se
tinha tentado encontrar esse cavalheiro para ter notícias do quadro ou
possivelmente reavê-lo, e ele disse que sim, que tentara, sem resultado.

ITARARÉ CAVA A BOIA


Esses duzentos mil-réis vieram como uma fortuna, porque a vida não era
exatamente uma festa para o moço pintor que dormia em banheiros e cantos
de corredor.
Conta Portinari daquele tempo:
— Eu comia uma vez por dia. Me lembro bem de uma refeição que
havia na Senador Dantas. Alimentava bem e custava seiscentos réis. Eu
comia com o Fonseca, colega do Batista. A sobremesa era cobrada pelo
número de cascas de banana que ficavam no prato. Havia lá um garçom
camarada, que ajudava as nossas economias aconselhando: “Leve as cascas
no bolso.”
Portinari aperta os olhos azuis, evocando a bela fome daqueles dias:
— Havia um outro restaurante, bem melhor, na rua Chile. Ali eu ia às
vezes com Aporelly, o futuro Barão de Itararé, que me dizia: “Eu vou
conversar o caixa. Se ele rir da conversa você pode entrar que a boia está
garantida.”

DOS CLÁSSICOS À ARTE MODERNA

Em 1922 Portinari mandou ao Salão da Escola de Belas-Artes um quadro


que passou despercebido. Em 1923, com o retrato de Paulo Mazzucchelli,
ganhou três prêmios: medalha de bronze, prêmio da Galeria Jorge e
quinhentos mil-réis. Foi objeto de calorosa crítica, e Batista da Costa, então
diretor da Escola, deu-lhe nesta uma sala, um ateliê. Portinari relembra um
pouco dos seus sentimentos e preferências de então:
— Depois de pouco tempo no Liceu de Artes e Ofícios, onde estudei
desenho, eu tinha ido para a Escola de Belas-Artes. Minha preocupação
máxima continuava a ser o desenho. Na Escola, entre os mestres Brocos e
Lucílio de Albuquerque, escolhi Lucílio. Para pintura fiquei com Amoedo e
Batista da Costa. O espanhol Zuloaga e o sueco Zorn foram os dois artistas
que mais me impressionaram então, eu que só tinha tido olhos para os
grandes clássicos. Devo dizer que quando vi Zuloaga finalmente no original
tive uma grande decepção.
A devoção de Portinari à arte clássica e sua fé no desenho fizeram dele
um modernista sério, inimigo de facilidades e improvisações. (Se o autor
pode pedir ao respeitável público licença para se meter nas páginas do livro
contarei um fato que abona o que digo. Quando José Olympio resolveu
publicar minha peça A cidade assassinada pediu a Portinari que fizesse a
capa do livro. Portinari fez uma cabeça de Ramalho da qual me disse
Gilberto Amado em carta: “… Portinari, sempre infalível. A cabeça de
Ramalho está pesada na inchação do pecado, na sua luta contra o poder
único que contrasta o seu: Deus, Anchieta.” Mas se alguém imagina que
Portinari é adepto do cria-fama-e-deita-te-na-cama, engana-se. Se imaginam
que a bela cabeça de Ramalho foi posta diretamente numa folha de desenho,
enganam-se. Tenho em meu poder, dados por Portinari, os três
pormenorizados desenhos que fez a título de estudo. A capa propriamente
dita foi seu quarto trabalho.) E do seu amor às gravuras que via dos
primeiros italianos e dos grandes renascentistas Portinari não se passou,
rendido, para a arte moderna. Aprendeu a fundo seu desenho – o esqueleto,
a anatomia – para em seguida ir simplificando, até chegar aos seus negros,
seus caboclos, seus afrescos do Ministério da Educação. A descoberta da
arte moderna não foi para ele nenhuma chegada a Canaã.
— Eu tinha aí meus dezessete anos quando vi uma primeira exposição de
arte moderna, alemã, se não me engano, no Museu de Artes e Ofícios. Não
me impressionou muito.
GADO [1938]
Aprendeu a fundo seu desenho – o esqueleto, a anatomia – para em seguida ir simplificando, até
chegar aos seus negros, seus caboclos…

PONTE ABSTRATA

Exatamente por haver conquistado sua própria arte baseado no que era
fundamental, Portinari limita também sua aceitação da arte moderna:
— Arte abstrata – diz ele – é como a gente pedir a um engenheiro uma
ponte para atravessar um rio e receber uma página cheia de números e
cálculos. A gente quer é a ponte!
Só há uma coisa curiosa nas ideias de Portinari sobre arte, ideias que
veremos com vagar no final da primeira parte deste retrato. Ele acha que a
arte está se extinguindo, que já não tem a importância que teve para o
homem. É incrível ouvir-se isto de Portinari, que pinta sem cessar, com
fúria, com entusiasmo, que evoluiu (em ideias e em estilo, em forma
artística) da sua cruel e veraz pintura de um Brasil alicerçado nos pés
imensos da sua gente humilde ao Brasil histórico da chegada de d. João VI
e do Tiradentes. Ele é um desmentido vivo da sua teoria. Às vezes me
parecia estar ouvindo um pescador, dentro do seu barco a gemer nas
costuras de tanto peixe, dizendo melancólico: “Isto não dura não. Um dia
destes o mar vai amanhecer sem peixe.”

A CHEGADA DE D. JOÃO VI À BAHIA [1952]


… Portinari, que pinta sem cessar, com fúria, com entusiasmo, que evoluiu (em ideias e em estilo, em
forma artística) da sua cruel e veraz pintura de um Brasil alicerçado nos pés imensos da sua gente
humilde ao Brasil histórico da chegada de d. João VI e do Tiradentes.
PUREZA DE PARIS

Como todas as grandes cidades, Paris é aquilo que somos nós. Para
Portinari Paris foi a cidade onde se aprende arte. Da sua primeira saída para
a Europa e de todas as outras que fez mais tarde, Portinari guardou um
deslumbramento que estoura aqui e ali com a energia de costume. Falando
sobre a importância de museus e coleções artísticas no Brasil, Portinari
disse:
— No Brasil museus e exposições de todas as espécies são mais
necessários do que nos países velhos, porque em Chartres, por exemplo,
quem é que precisa dessas coisas? A gente entra na Catedral e diz:
“Caramba!”
E ao recapitular sua visita a Madri:
— Quando vi os Ticianos do Museu do Prado fiquei com vontade de ir
para a porta da rua e gritar: “Vocês já viram?!”
Mas afora o lado artístico, o lado da sua formação, afora a emoção do
Louvre e das exposições, Paris nada significou para Portinari. Ele não se
perdeu em Paris. Casou-se. Foi lá que conheceu “Chico”, sua esposa
uruguaia, que estava em Paris com a família.
Portinari ficou dois anos na pureza de Paris e lá desabrochou como
artista. Exatamente porque lá nada pintou. Trouxe na sua bagagem, ao
regressar, três naturezas-mortas:
— Pequenas – acrescenta ele.

ELOGIO DO ÓCIO
O solo que faz medrar o artista é o ócio, o lazer, a preguiça. Ao contrário
do que se possa imaginar, o artista nunca é uma Marta que a poder de
esforço se transforma em Maria. É Maria que, depois de viver em longa e
misteriosa infusão de ócio e adoração contemplativa, levanta-se um dia
lépida e começa a executar o trabalho de sua vida.
Creio que foi a Universidade de Harvard que, há alguns anos, ofereceu
singulares bolsas a gente da estatura de T.S. Eliot e do próprio Einstein. Não
era a bolsa para que fizessem estudo, nenhuma pesquisa, nenhum trabalho.
Ou fariam qualquer das três coisas se quisessem. A bolsa era apenas para
que pensassem. Se hoje em dia os homens não sentissem um certo pejo
diante das palavras exatas, a Universidade teria dito: uma bolsa de
Contemplação. O que não fica em dúvida é a compreensão demonstrada
pelos ofertantes da bolsa – mesmo em se tratando de consumadas Marias
como o poeta e o sábio em questão. É que poucas coisas custam tão caro
quanto o lazer, e poucas atividades (porque o lazer artístico é uma das mais
intensas formas que existem de atividades) são olhadas com maior
reprovação pela sociedade em geral.
Muita gente se espanta com o fato de, no tempo em que dependiam dos
mecenas, os artistas dedicarem, às vezes com palavras abjetas, a um mero
ricaço, obras de arte destinadas à adoração da posteridade. Como se explica,
pergunta o leigo, que grandes escritores ou músicos ou pintores se
curvassem tanto diante dos nobres ricos do seu tempo? Já que Portinari tem
uma certa nostalgia da época em que a arte tinha uma função maior na vida
diária dos países, e esquece as humilhações por que passavam os artistas
(que hoje não têm nenhum mercado garantido, nenhum lazer gracioso, mas
também não têm senhor nenhum, como melhor do que ninguém sabe esse
rebelde Portinari), vou transcrever aqui a dedicatória com que o maior
músico de todos os tempos e países encaminhou a um mecenas, os
concertos de Brandenburgo. Vamos copiar, no francês em que Bach a
escreveu, essa carta que está publicada no J.S. Bach de Albert Schweitzer.
PORTINARI NA FRANÇA, DURANTE VIAGEM DE ESTUDOS A PARIS, 1929
Como todas as grandes cidades Paris é aquilo que somos nós. Para Portinari Paris foi a cidade
onde se aprende arte.

OS PEQUENOS TALENTOS MUSICAIS DE BACH

Bach encontrara o margrave de Brandenburgo, príncipe Christian Ludwig,


em 1719, e o margrave, encantado (pudera!) por aquela música (cujos temas
sem dúvida o próprio Deus assobiava a Bach para que Bach os arranjasse
para orquestra, e o próprio Deus então os ouvisse, reclinado numa nuvem)
pedira ao músico que compusesse alguma coisa para sua orquestra. Dois
anos mais tarde Bach mandou ao margrave os seis concertos que
conhecemos como os de Brandenburgo – e a seguinte epístola:
A son Altesse Royalle, Monseigneur Crêtien Louis, Marggraf de Brandebourg.

Monseigneur
Comme j’eus il y a une couple d’années, le bonheur de me faire entendre à Votre Altesse Royalle, en
vertu de ses ordres, & que je remarquai alors, qu’elle prennoit quelque plaisir aux petits talents que
le Ciel m’a donnés pour la Musique, et qu’en prennant Congé de Votre Altesse Royalle, Elle voulut
bien me faire l’honneur de me commander de Lui envoyer quelques pièces de ma Composition: j’ai
donc selon ses très gracieux ordres, pris la liberté de rendre de mes très-humbles devoirs à Votre
Altesse Royalle, par les presents concerts, que j’ai accomodés à plusieurs Instruments; La priant
trèshumblement de ne vouloir pas juger leur imperfection, à la rigueur du gout fin et delicat, que tout
le monde sçait qu’Elle a pour les pièces musicales; mais de tirer plutot en benigne Consideration, le
profond respect, & la trèshumble obéissance que je tache a Lui témoigner par là. Pour le reste,
Monseigneur, je supplie très humblement Votre Altesse Royalle, d’avoir la bonté de continuer ses
bonnes graces envers moi, et d’être persuadée que je n’ai rien tant à coeur, que de pouvoir être
amployé en des occasions plus dignes d’Elle et de son service, moi que suis avec une zele sans pareil
Monseigneur De Votre Altesse Royalle Le très humble et très obeissant serviteur
Jean Sebastien Bacha

PERCALÇOS DA CRIATURA

Tronos, serafins e querubins devem ter visado essa carta entre as


catadupas do terrível riso eterno, que até hoje sem dúvida reboa nos ouvidos
do pobre margrave de Brandenburgo. Os “pequenos talentos que o Céu me
concedeu para a Música”, imaginem. Mas a carta foi visada porque Deus se
tornou homem exatamente para poder compreender certos problemas do ser
criado, e Bach não fez apenas músicas. Fez também, em suas duas esposas
Maria Bárbara e Ana Madalena, nada menos de vinte filhos. Não viveram
todos, o que seria um exagero, mas mesmo assim sobraram bastantes para
que o seu sustento fosse um problema sério para quem devia passar toda
uma luminosa existência terrena transcrevendo o Verbo. Em graus muito
mais humildes e que variam infinitamente, todos os artistas, como Bach,
têm a mesma tarefa. E para se ouvir o Verbo que pede música, palavra, cor,
é preciso um mínimo de bem-estar visceral, um mínimo de paz e
tranquilidade. Senão nada se ouve, a ligação é precária, o espírito se
distende, se inteiriça na ânsia de escutar, mas em lugar das palavras
marteladas com aquela nitidez onírica só lhe chega aos ouvidos o vago
zumbido irritante que é como a sombra dos discursos pronunciados longe
demais.
Fiz essa digressão pela vida de Bach porque não conheço no Brasil
nenhum artista que, com dignidade maior que Portinari, tenha resolvido não
trocar sua arte por algum prato de lentilha. Tanto a apurou que acabou por
viver dela. Mas como Portinari acha que o artista, como tal, já foi mais feliz
e mais desejado em outras épocas – pensei em deixar aqui meu protesto na
carta de João Sebastião Bach, porque, apesar da carta naqueles termos, não
há notícia de que o margrave se tenha deixado impressionar pelos
concertos. Informa Schweitzer: “Quando ele (o margrave) morreu, esses
concertos, assim como o resto de sua grande coleção musical, foram
inventariados e avaliados. Não figuram, porém, no inventário, sob o nome
do compositor, como os de Vivaldi e outros italianos. Estão incluídos em
dois lotes, um contendo setenta e sete concertos de vários compositores, e
outro cem.”

a A Sua Alteza Real, Monsenhor Christian Ludwig, margrave de Brandenburgo // Monsenhor //


Como há um par de anos tive a felicidade de me fazer ouvir por Vossa Alteza Real, em consequência
de determinação Sua, e pude observar então que os pequenos talentos que o Céu me concedeu para a
Música proporcionaram algum prazer a Vossa Alteza Real, e que, ao pedir permissão para retirar-me
da presença de Vossa Alteza Real, dignou-se a me dar a honra de ordenar-me que lhe enviasse
algumas peças de minha Composição, tomo pois a liberdade de, em anuência a seus graciosíssimos
desígnios, cumprir meu modestíssimo dever para com Vossa Alteza Real, enviando-lhe os presentes
concertos que acomodei para diversos Instrumentos e rogando-lhe muito humildemente que não
queira julgar sua imperfeição com o rigor fino e delicado gosto pelas peças musicais que o mundo
inteiro reconhece a Vossa Alteza, mas que antes conceda acolher por Benigna Consideração o
profundo respeito e modestíssima obediência que me esforço por assim testemunhar-Lhe. No mais,
Monsenhor, suplico-lhe muito humildemente a Vossa Alteza Real que tenha a bondade de conservar-
me nas suas boas graças e deixar-se persuadir que nada me é tão grato ao coração quanto poder
prestar-me ao seu serviço em ocasiões mais dignas de Vossa Alteza Real, eu, que sou, com zelo sem
par // Monsenhor De Vossa Alteza Real // O muito humilde e muito obediente criado // Johan
Sebastian Bach
OS DINÂMICOS E OS INFUSOS

No entanto Portinari tem razão em acentuar o dilema do artista nos dias


presentes. Vivemos uma época revolucionária nas artes, e, em geral, os
milionários e os poderosos de hoje, privados de uma educação aristocrática,
não têm pela arte o gosto que tinham os duques italianos ou os príncipes
alemães de outrora. Nem é fácil, portanto, ao artista vender sua mercadoria
ao povo, que ainda não se habituou a ela, nem viver com independência se
os donos do dinheiro compram obras de arte timidamente. As cidades-
estado não existem mais, a Igreja nem anda em fase expansionista e nem se
habituou ainda (com algumas conhecidas exceções tais como Vence e a
Pampulha) à arte moderna. Com exclusão dos Estados Unidos – contra os
quais os países europeus já fizeram leis draconianas em matéria de
exportação de obras de arte, pois do contrário em breve os italianos terão de
ir ver Fra Angélico em Chicago – os demais países não se distinguem nem
por grandes ampliações de museus contemporâneos e nem por grandes
encomendas estatais aos artistas.

O ESTADO E O ARTISTA

A mim me parece que o único remédio para isto está em cuidarem os


governos de ajudar os jovens que derem alguma prova inicial de talento
incomum. Se contar pelo menos com essa clareira – o ócio do auxílio
governamental – no instante difícil de convencer o mundo de que tem algo
a lhe dizer sobre a Realidade, que é monopólio exclusivo da religião e da
arte, se contar pelo menos com isto o artista pode depois defender o pão dos
filhos sem cortar a comunicação com o Verbo. O importante em qualquer
esquema dessa natureza, evidentemente, é que o Estado se limite a dar o
auxílio e não se meta mais com o artista, nem durante e nem depois do
período do auxílio. É preciso que a coletividade aceite, com inteiro
desinteresse, esse fardo temporário do sustento do artista, pois é essa a
única maneira conhecida de preservar a arte.
Por bissextos e doidos que pareçam tantos dos artistas que já viveram ou
vivem há uma coisa que, creio, todos eles levam a sério: o lazer. Trabalho,
evidentemente, eles levam na troça e limitam-se a fazê-lo o mais depressa
possível. Mas o santo lazer, que leva à arte, esse eles respeitam.

SÃO FRANCISCO, 1944


As cidades-estado não existem mais, a Igreja nem anda em fase expansionista e nem se habituou
ainda (com algumas conhecidas exceções tais como Vence e a Pampulha) à arte moderna.

DO CROISSANT AO LEITO
Vejam um dia de Portinari em Paris, numa bolsa que custou ao país umas
vinte e cinco libras por mês, ou três mil e duzentos francos da época (“Dava
muitíssimo bem”, exclama Portinari):
— Eu me levantava cedo, no meu hotel da rue du Dragon, entre o
Louvre e o Luxemburgo. O quarto me custava trezentos francos por mês.
Depois do meu café com leite e croissants eu simplesmente me metia no
Louvre pela manhã e no Luxemburgo à tarde, ou vice-versa. Depois ia às
galerias dos marchands de tableaux. Meus amigos eram todos pintores,
muitos deles portugueses, como o Eduardo Viana. Passávamos a tarde em
algum café discutindo pintura como uns demônios, sem prestar atenção a
mais nada. No Dôme continuava a discussão, que continuava pelo jantar
adentro – um jantar que custava seis ou sete francos, vin compris. Aí pelas
onze horas eu ia dormir.
Durante dois anos foi essa vidinha assim, diariamente. Muita gente a
chamaria de vida de boêmio ou vagabundo, pois resultou em três naturezas-
mortas, “pequenas”. Mas depois dessa hibernação tipicamente artística
Portinari chegou ao Rio de Janeiro agressivo, doido por trabalhar e atirar
quadros à cabeça dos fariseus. Trancou-se em casa e, em seis meses, pintou
uns quarenta quadros. Foram a base dessa sua celebridade até hoje
florescente. Acabara o período infuso, estava na hora do batente, do boulot.
Quando perguntei a Portinari por que é que pintou tão pouco em Paris,
quando não tinha cuidados materiais, e teve tanto tempo de pintar aqui, ao
voltar à luta, ele respondeu:
— Ora, onde é que eu havia de ir, aqui?

TÉCNICOS E MÁGICOS

Mas a verdade é que aqui ou seja onde for, ele nunca mais deixou de
pintar desde aquele ano do seu regresso, 1931. Pelo seu equilíbrio de
temperamento e pela sua esplêndida single-mindedness de artista, Portinari,
como exemplo de “a quem se deve dar uma bolsa de estudos” é um tanto
bom demais. Mas acredito que seu excepcional caso ilustre bem o caso
geral. A ninguém ocorrerá que sem a bolsa ele tivesse deixado de ser o
grande pintor que é. Mas a verdade é que essa bolsa, que lhe deu a Europa,
que lhe deu a rive gauche, que lhe deu (como a um herdeiro legítimo)
acesso aos tesouros acumulados da arte no Louvre, em Roma, Florença,
Madri, Londres, essa bolsa terá feito amadurecer sua arte mais depressa,
sem dúvida, em primeiro lugar. E, em segundo lugar, como já foi paga com
juros!
Não tenha o governo – o nosso e todos os governos do mundo –
nenhuma dúvida: esse é o jeito de estimular a arte para que ela não definhe
num mundo em transição, num mundo perturbado e que precisa mais dela
do que nunca, pois só ela lhe fala do estável.
O atraso material do Brasil já está tornando opinião comum que é
preciso mandarmos ao estrangeiro nossos jovens técnicos, para aprenderem
seus ofícios com os que sabem mais. Está certíssimo. Devem ir para lá e
fazerem seus cursos, como bons dinâmicos que são.
Mas não olvidemos os jovens artistas, que precisam de ócio de qualquer
maneira, principalmente no período formativo. E que, como os técnicos,
precisam também do ócio muito mais sábio que os séculos deixaram como
um pólen nas pedras romanas ou que assume vida no vozerio aparentemente
sem objetivo dos cafés de Paris. Não deixemos que os dinâmicos nos levem
a esquecer os infusos.
JUSTIÇA SOCIAL E HISTÓRIA DO
BRASIL
O OUTRO LADO DE VAN EYCK

Me lembro, menino ainda, de ouvir alguém dizer, referindo-se ao Portinari


dos primeiros êxitos mais barulhentos.
— Ele ia provavelmente pintar muito bem. Mas voltou da Europa assim!
Assim, era o Portinari dos primeiros retratos de 1931 – os de Manuel
Bandeira, Francesco Lecchio, Jayme Ovalle, Dante Milano, Lorenzo
Fernandez e outros quadros já simplificados e apontando o caminho de uma
simplificação sempre maior – do qual saiu em 1935 o Portinari de Café, que
recebeu a segunda menção honrosa da Exposição Internacional de Pintura
do Instituto Carnegie. Esse prêmio deu a Café um caráter de marco miliário
na vida de Portinari. Como todos os marcos esse é um tanto atrabiliário,
pois antes de Café Portinari já desenvolvera todos os recursos exibidos no
quadro, mas é também conveniente. Depois de Café, no ano de 1948,
vamos fixar, com a Primeira Missa no Brasil, para o Banco Boavista, outro
marco miliário – o de Portinari pintor histórico, com recursos e
principalmente com uma ideia que me parecem diferenciá-lo do Portinari de
Café. O pintor histórico me parece ser um Portinari integrado na sua terra
brasileira a ponto de tentar uma síntese histórica, enquanto o pintor de Café,
dos afrescos do Ministério da Educação, ou do Monumento Rodoviário, dos
retirantes, dos sorveteiros, dos cavouqueiros, dos favelados, era um crítico
do Brasil, um acusador da injustiça social entre nós.
Mas que será isto do “modernismo” de Portinari? Há, nos seus quadros,
tanta energia afirmativa, que Portinari, a despeito das suas famosas
“deformações”, conseguiu tornar-se o pintor conhecido e aceito que é hoje.
Mas são ainda legião os que gostam de Portinari porque reconhecem, nos
retratos, por exemplo, que “ele quando quer pinta direito”. Estes, já se
habituaram a ver algumas de suas obras públicas, ainda as olham com a
desconfiança de quem não se quer deixar embasbacar. Isto por causa do
“modernismo”.
A arte tem um ciclo que vai do primitivo ou moderno ao clássico, ao
barroco, ao acadêmico e volta ao primitivo.

ESTUDO PARA CAFÉ, 1935


O quadro foi premiado na Exposição Internacional de Pintura do Instituto Carnegie em 1935. “Foi o
primeiro diploma que tive na vida”, dizia Portinari.
ENTERRO NA REDE, 1944
O pintor histórico me parece ser um Portinari integrado na sua terra brasileira a ponto de tentar
uma síntese histórica, enquanto o pintor de Café, dos afrescos de Ministério da Educação, ou do
Monumento Rodoviário, dos retirantes, dos sorveteiros, dos cavouqueiros, dos favelados, era um
crítico do Brasil, um acusador da injustiça social entre nós.
OS ONZE RETIRANTES, 1955
Há, nos seus quadros, tanta energia afirmativa, que Portinari, a despeito das suas famosas
“deformações”, conseguiu tornar-se o pintor conhecido e aceito que é hoje.

INELOQUÊNCIA

É inútil dizer qual dessas fases produz arte melhor ou mais bela, mas
indubitavelmente a tendência humana, através dos séculos, é agrupar no
grupo “clássico” as obras que têm uma certa durabilidade. Uma
intemporalidade, um apelo ao que há de mais sereno em nós mesmos. As
obras clássicas de qualquer período podem até comover menos os homens
seus coevos mas guardam qualquer coisa que não passa, que afirma sem
gestos e sem palavras. Para Berenson essas são as obras “ineloquentes”, os
quadros e as esculturas que representam uma “existência”, uma pessoa viva,
nem em dor nem em alegria, nem em aflição e nem em satisfação. Viva.
Existente. A pessoa ali representada (Berenson frisa o ineloquente
principalmente em Piero Della Francesca) não nos comove nem pela beleza,
nem pelo mistério, nem por nada de adjetivo. Comove-nos porque existe.
Porque está ali.
Todo grande artista tem suas figuras “ineloquentes”. Alguns pastorinhos
que Portinari pinta agora neste ano de 1955 têm essa graça ineloquente de
pura existência e mesmo em sua obra antiga vamos encontrar essas figuras
“clássicas”, como no quadro Festa de São João. Na extrema direita,
absorta, um negrinho enganchado na sua ilharga direita mas sem prestar
atenção a ele ou a qualquer coisa que seja, há uma garota de laço de fita que
quase respira, desatenta ao quadro e a tudo mais, cheia da suficiência
perfeita dada pelo existir, pelo estar ali.
DETALHE DE FESTA DE SÃO JOÃO, 1936-1939
Tranquila, viva, essa menina é um belo exemplo do Ineloquente, de Berenson, na obra de Portinari.

O PRIMITIVISMO COMO INOCÊNCIA

Essa característica, no entanto, não é a dominante na arte portinaresca ou


na arte de qualquer pintor moderno, “primitivo”. Não se trata aqui,
evidentemente, do primitivismo pré-histórico, ou do selvagem
contemporâneo, e nem do primitivismo ligado ao grupo dos pintores como
Bombois ou Heitor dos Prazeres. Falo do primitivismo geral da arte
moderna. Ele é uma atitude, no artista civilizado, semelhante à do
selvagem, isto é, a de olhar a natureza de novo com inocência e pureza para
despojar a arte do seu tempo do maneirismo acadêmico. O artista moderno
é um primitivo no sentido de que busca de novo as origens para poder alijar
o falso – essa excrescência que se agarra às formas reais quando uma
técnica qualquer nos permite fazer arte por meio de receitas de fórmulas
que foram relâmpagos de intuição antes de se esfriarem em moldes
desgastados pela mediocridade.
O encontro do moderno, para Portinari, não foi, como já ficou dito,
dramático e apaixonado. Ele foi crescendo como artista e foi sentindo a
pressão que esses moldes obsoletos exerciam sobre a sua pintura.
Ele mesmo evoca assim os tempos em que era estudante de Belas-Artes:
— Eu não fui um rebelde. Era estudioso, era pé de boi, mas em pouco
tempo comecei a modificar, contra a opinião dos professores, o fundo dos
quadros, por exemplo. Colegas meus como a Carmem Portinho – era uma
menina bonita, a Carmen – o Reidy e o Lúcio Costa estão aí para dizer se eu
comecei tocando fogo na Escola.
No entanto, a preocupação ainda dominante então no Brasil de copiar a
natureza irritava Portinari, que um dia disse a Rodolfo Amoedo:
— Olhe, professor, no seu tempo o senhor passava horas copiando uma
laranja. Hoje eu faço um disco amarelo e é uma laranja.
A verdade é que o academismo leva-nos a registrar numa laranja os
poros de uma laranja quando pictoricamente a laranja não tem poros – é um
disco amarelo, é um sol, uma mancha berrante e redonda no verde difuso.

FIDELIDADE AO VISTO E RESPEITO AO BELO

Se a reação modernista ainda se apresenta até hoje com uma certa


brutalidade (mesmo os iniciadores do movimento como Cézanne estão
ainda mal-aceitos) é talvez porque o período anterior, vindo da Renascença,
já esticara exageradamente suas linhas em relação à base. A Fidelidade ao
Visto e o Respeito ao Belo acabaram por se tornar camisa de força. Há
muito que grandes pintores chegavam a um tal paroxismo de perfeição que
parecia inevitável sair com violência para uma interpretação mais ingênua,
mais “primitiva” do mundo. O leitor lembrará de outros quadros nessas
condições: eu me lembro de um em que o realismo do pintor, em que sua
arte consumada, seu alto grau de sensibilidade subjetiva e de polimento
técnico me deram a impressão de um impasse. Quando vi pela primeira vez
na National Gallery de Londres Casamento de Giovanni Arnolfini e
Giovanna Cenami, um quadro pintado pelo holandês Jan van Eyck, disse a
mim mesmo: daqui para a frente só Van Gogh, Picasso, Portinari, e no
entanto é uma tela de 1434!
Não há quem não tenha visto em alguma parte uma reprodução desse
quadro tão escorreito, tão real, tão límpido que acaba por parecer
alucinatório. A realidade mirada com demasiada fixidez começa a se
desmanchar, a parecer mero símbolo e figuração de alguma outra coisa. No
quadro de van Eyck o excesso de claridade e naturalidade é que engendra o
mistério. Este nada tem a ver com as roupas da época ou com a atitude de
Giovanni que dá a mão esquerda a Giovanna e com a direita parece
abençoar o observador. Não. Essa estranheza superficial nada tem a ver com
a perturbação que nos comunica o quadro. E nem queremos saber quem
tenha sido ou que terá feito Arnolfini. O quadro é quadro até debaixo
d’água. Não precisa de história nem de explicação. O mistério está na
fixidez, nas figuras de Giovanni e Giovanna, nos tamancos a um canto, no
lustre de cobre onde só arde uma vela e que se impõe a nós em toda a sua
absoluta realidade de lustre de cobre, numas contas penduradas na parede e
até na audácia tranquila com que o artista escreveu seu nome em latim e a
data do quadro bem no centro deste, ao fundo, como quem diz: “Nada
diminuirá a realidade total desta tela”.
E se assim é o quadro propriamente dito, que dizer do espelho convexo
que van Eyck colocou em sua parede de fundo, entre a assinatura e o
lustre?… Este espelho, como o de Lewis Carroll, é uma espécie de outro
lado da realidade, ou é o agravamento perigoso da realidade da cena em si.
Ali estão Giovanna e Giovanni de costas, ali está a cena veraz tornada ainda
mais nítida no mundo glauco do espelho, no estranho espelho van eyckiano
em cuja moldura dez florões de esmalte contam a Paixão de Cristo em
miniaturíssimas. O impulso do observador diante do Casamento de
Giovanni Arnolfini e Giovanna Cenami é aproximar-se do quadro, meter
nele a cabeça em busca dos outros planos da realidade, que sem dúvida
dormem nas águas mais fundas daquele espelho com o mesmo brilho com
que esplendem nas próprias figuras do primeiro plano
Com certo esforço – a gente imagina – com um pouco mais de
concentração faremos estourar a casca de verniz daquela tela e veremos… o
quê? Sem dúvida Van Gogh, Picasso, Portinari. Daquele Casamento para a
frente só alguma afetação insuportável. Aquilo é um beco sem saída.
Aquela técnica morre ali, ou melhor, respira ali seu instante supremo de
vitalidade. Dali para a frente só a decadência – ou uma nova mirada de
criança aos casamentos, aos Giovannis e Giovannas, aos lustres de cobre.

Casamento de Giovanni Arnolfini e Giovanna Cenami, de Jan van Eyck, pintado em 1434. National
Gallery, Londres.
Detalhe de Casamento de Giovanni Arnolfini e Giovanna Cenami de Jan van Eyck.

A ARTE COMO AMOR E REVERÊNCIA

Quando perdeu sua Fidelidade ao Visto o modernismo arquivou


igualmente seu Respeito ao Belo. A arte moderna é também uma rebelião
das massas. Inauguraram os artistas modernos uma nova ternura pela
humanidade – fosse ela bela, como acontece que é às vezes, fosse ela
retirante, flagelada, magra, desesperada, defeituosa. Aliás, mesmo na sua
melancólica fase azul, Picasso já nos choca pelo mero fato de nos mostrar
uma femme à la taie – uma mulher de cabeça envolta num xale, uma
Madona, apenas com o olho direito coberto por uma catarata – e nos choca
não com a intenção de nos chocar. Ele apenas afirma que todos os reinos
pertencem à arte e que uma catarata jamais anulou a humanidade de um ser
humano.
Nos seus apontamentos de Malte Laurids Brigge, o poeta Rilke pergunta,
acerca do poema em que Baudelaire descreve a putrefação ao sol de uma
carcaça de animal: “Lembra-se do incrível poema de Baudelaire ‘Une
charogne’? Eu acho que o compreendo agora. Se excetuarmos o último
verso ele tinha razão. Que devia ter feito, depois do que lhe acontecera? Seu
dever era descobrir naquela coisa horrenda, que na aparência só podia ser
repugnante, a existência que é válida em tudo o que existe.” Esse trecho de
Rilke é, para a arte, o que a doutrina schweitzeriana da Reverência pela
Vida é para a moral ou para a filosofia. Tudo que existe é reino da arte. O
artista deve colonizar mesmo os recantos mais lôbregos e ásperos da vida,
anexar a si todos os territórios até tudo cobrir não com algum mantozinho
diáfano da fantasia mas com o reverente amor do artista por tudo que existe.
Não há nenhum manto diáfano sobre isto:
Les mouches bourdonnaient sur ce ventre putride.
D’où sortaient de noirs bataillons
De larves, qui coulaient comme un épais liquide
Le long de ces vivants haillons
Tout cela descendait, montait comme une vague,
Ou s’élançait en pétillant;
On eût dit que le corps, enflé d’un soufle vague,
Vivait en se multipliant.b
CRIANÇA MORTA, 1944
Óleo da série Retirantes, 1944. O duque de Windsor não quis comprar.

O LULU E A CANINIDADE

Não há aí o manto do sr. Eça de Queirós, não há aí o sorriso da sociedade


do sr. Afrânio Peixoto, não há aí a saúde pela arte dos nazistas ou o
realismo socialista dos comunistas. Isto é arte total, que não quer ser útil
nem graciosa nem boazinha nem edificante, que pode ser tudo mas que
recusa ser exclusivamente seja lá o que for, e que, sobretudo, não é
apêndice de nada. É uma atividade humana completa, uma das maneiras de
pensar de que lança mão o homem, como diz Herbert Read. Em termos
materialistas, diz ele, a arte tem sua dialética: “confronta uma tese, digamos
a da razão, com sua antítese, digamos a da imaginação, e cria uma nova
unidade ou síntese na qual as contradições se reconciliam”. Como pode ser
tudo, a arte também pode, sem dúvida, ser art engagé, como um cão pode
ser lulu e usar fita no pescoço. O que não se deve é erigir o lulu em padrão
geral de caninidade.

b As moscas zumbiam sobre esse ventre pútrido / De onde saíam negros batalhões / De larvas, que
escorriam como um espesso líquido / Ao longo desses vivos andrajos, / Tudo descia, subia como uma
onda, / Onde se arremessavam, crepitando; / Podia-se dizer que o corpo, intumescido de um sopro
vago, / Vivia, se multiplicando.
O ARTISTA E A LIBERDADE

Se formos tentar definir em duas palavras a atitude de Portinari em face da


arte e do artista diremos: “O artista é um homem diferente dos demais pois
retém a visão de uma criança. Ele precisa, entretanto, apurar o seu dom
aprendendo o ofício do artista como se fosse aprender um ofício material
qualquer. Uma vez dono do ofício o artista não deve mais contas a
ninguém.” Ao longo de todas as conversas que tive com ele senti em
Portinari o horror a qualquer imposição e a qualquer observação que
diminua o prestígio da arte como atividade criadora livre de tutores e
independente de qualquer coisa que cheire a gadget, a simplificação
mecânica do processo artístico. Me disse Portinari:
— Há uns anos o Siqueiros disse aqui no Rio que pintar a pincel nos dias
de hoje, ao invés de pintar a pistola, é como arar a terra com charrua ao
invés de trator. Eu perguntei a ele: “Escute aqui, Siqueiros, você prefere um
poema escrito à mão ou à máquina?” Aliás eu me lembrei da pergunta que
fiz a Siqueiros quando vi outro dia Mário Pedrosa dizer que o Ivan Serpa
esgotou os recursos da pintura a óleo. É como dizer que um escritor esgotou
os recursos da máquina datilográfica.
PENEIRANDO CAFÉ, 1954
Desenho de uma série para calendário da Panair.

Portinari detesta a atitude de falso artistismo mesmo nos grandes e


genuínos artistas. Me disse ele:
— Gosto de ver um estúdio como o de Braque, limpo, ordenado, com
poucos quadros. Já o Picasso vive e trabalha no meio da maior confusão.
Aliás, um pouco de propósito, para americano ver.

O FALSÁRIO

Seu gosto pelo aprendizado minucioso e sério da técnica pictórica é um


fato. Eu trouxe um dia às nossas conversas o nome do mais famoso falsário
de todos os tempos, o finado Van Meegeren, que há anos apresentou ao
mundo como sendo de Vermeer, entre outros, um quadro, Os peregrinos de
Emaús, que fez um sucesso louco… E sobre Meegeren, Portinari disse
simplesmente:
— Todo pintor devia ser capaz de fazer o que ele fez.
É que, como diz André Malraux, todo artista começa pelo pastiche, pela
imitação de outro ou outros pintores. Ninguém se torna pintor “diante da
mais bela mulher e sim diante dos mais belos quadros”, isto porque “toda
criação é, na origem, a luta de uma forma em potencial contra uma forma
imitada”. Nessa luta, o artista, antes de encontrar a sua forma, faz uma
espécie de síntese imitativa das formas anteriores. Qualquer grande artista
que tivesse tempo e inclinação poderia entupir os museus de quadros falsos.
Questão de saber o seu ofício.

O MAU ARTISTA

Mas mesmo um mau artista, disse Portinari, prefere fazer o seu trabalho.
Ainda que ruim um trabalho artístico encontra ressonância em certo número
de criaturas.
— Não deixa de ser uma pena que assim seja – disse eu. — A
ressonância do mau artista, do artista que faz arte fácil, prejudica o
verdadeiro artista e a verdadeira arte.
— Ah, claro, e eu não estou me referindo a esses sem-vergonhas. Estou
falando no artista sincero, mas .que cria mal. Não estou falando em
penetras.
Muito acadêmico de hoje em dia descobriu que há gente que aprecia arte
“antiga”, no sentido copista, acadêmico, como aprecia bonde de burro,
polainas, ou qualquer coisa irremediavelmente do passado, gente que
procura em verdade a segurança do ventre materno. Querem formas fixas,
que não deem trabalho – e que dão dinheiro. São os penetras e Portinari os
detesta. Um dia lhe disseram que um desses pintores tinha feito mil contos
num ano.
— Isto não é vantagem, disse Portinari. O Matarazzo fez muito mais.
JESUS E GILBERTO FREYRE

O dinheiro do artista deve dar para o artista viver, acha Portinari. É claro
que como todo o mundo o artista gosta de viajar e de adquirir coisas e
facilidades. Mas não é artista se for atrás desse dinheiro extra sacrificando,
seja lá em que for, sua liberdade de artista. E defende qualquer aspecto
dessa liberdade, em sua própria obra, com uns ciúmes de leoa com a cria
entre as garras.
— Outro dia o Gilberto Freyre estranhou que eu, pintando no Brasil,
fizesse um Jesus louro, em Batatais. Acontece que eu estou mais de acordo
com Gilberto Freyre do que ele mesmo, que vive a dizer que no Brasil há de
todas as raças e que ainda estamos em caldeação. Então deve haver gente
loura também. Precisamos não sair à frente do resultado.
MENINO JESUS DE BATATAIS [1952]
“Outro dia o Gilberto Freyre estranhou que eu, pintando o Brasil, fizesse um Jesus louro, em
Batatais. Acontece que eu estou mais de acordo com Gilberto Freyre do que ele mesmo, que vive a
dizer que no Brasil há de todas as raças e que ainda estamos em caldeação. Então deve haver gente
loura também.”

“E AGORA, MARIA?”

Por duas vezes Portinari quase se afastou um pouco da pintura: foi


candidato a deputado, primeiro, e em seguida, em 1946-47, candidato a
senador pelo Partido Comunista e pelo Partido Social Progressista. A
tentativa de ser deputado não foi nada, pois Portinari teve uma votação
diminuta. Mas houve um momento em que pareceu mesmo que Candido
Portinari estava eleito senador. E o que Portinari se lembra agora desse
momento é uma grande angústia… Pela primeira vez ia roubar à pintura seu
tempo, sua vida. Em 1936, por exemplo, ele ensinara na Universidade do
Distrito Federal. Mas tinha sido professor – de pintura. O que não se pode é
ser um senador de pintura. E Portinari se lembra de uma pergunta cômica
que fez à sua mulher quando tudo indicava sua eleição. Perguntou:
— E agora, Maria?
Mas não foi eleito. O aborrecimento que nos dá qualquer frustração
dessa ordem foi no caso amplamente compensado. E Portinari nunca mais
pensou no poder político.
Como todo artista rebelde, Portinari (estou certo de que a razão da sólida
amizade que o uniu a Graciliano Ramos é que ambos foram levados ao
comunismo por um entranhado desejo de justiça social mas ambos reagindo
ao sistema de arregimentação partidária) fez as próprias leis do seu
desenvolvimento. Da crítica social imediatista – muitíssimo necessária no
Brasil, aliás – passou, nas grandes obras da sua maturidade presente, a uma
recapitulação histórica, num tom poético mais alto. Mais alto e mais formal.
Da crítica ao presente angustiado, foi em busca do passado heroico – mas
ligando-o a um futuro que ainda mal se divisa hoje.
RETRATO DE MARIA, 1932
A mulher do artista, em retrato de 1932.
O SOL AINDA ESTÁ POR TRÁS DO MONTE

No ano de 1946 Portinari fazia uma exposição em Paris. À exposição


compareceu um dia o duque de Windsor. O duque deve ter gostado do
estilo, mas havia os temas… Era uma exposição de Meninos de Brodowski
e Retirantes. O duque quis comprar alguma coisa e perguntou a Portinari:
— Não há umas flores?
— Flores, não – disse o pintor –, só tenho miséria.
As agências telegráficas exploraram a história a valer, mas se Portinari
devesse descrever sua arte de crítica social daqueles dias precisaria de mais
tempo e mais sutileza. Não se tratava apenas de pintar miséria. Sua crítica
era feita em termos de verdadeira pintura. Ele mostrou ao Brasil, em termos
meramente de cor e de forma, o divórcio entre a terra brasileira e a
civilização que fingimos ter. O homem brasileiro retratado por Portinari, o
homem do povo, esse liga-se à terra de forma quase indivisível, liga-se por
imensos pés de terra preta, de terra morena, de terra roxa, liga-se às árvores
por braços simples às vezes e toscos como troncos. Mas o que imaginamos
como “civilização” – as máquinas que ainda não sabemos fabricar, os
arranha-céus que imitamos, o bem-estar urbano que aparentamos e que só é
possível porque ainda há, no interior, escravos que só deixarão de o ser
quando completarmos a Abolição com uma Reforma Agrária – tudo isto,
quando surge nas telas de Portinari, são coisas que apenas pousam de leve
na terra brasileira.
RETIRANTES, 1944
Era uma exposição de meninos de Brodowski e retirantes. O duque quis comprar alguma coisa e
perguntou a Portinari: “Não há umas flores?” “Flores, não”, disse o pintor, “só tenho miséria”.
PÉ, 1937
Estudo de pé para figura de índio, pintura mural Catequese, não realizada.
MÃOS E PÉS [1937]
Estudos para pintura mural Cana-de-açúcar do Ministério da Educação (atual Palácio Gustavo
Capanema, no Rio de Janeiro).

MORRO E VANITY FAIR

Vejam seu famoso quadro Morro, de 1933, que se encontra no Museu de


Arte Moderna de Nova York. Em Morro é real o próprio morro, a terra, as
ancas musculosas das marias subidoras de ladeira com latas d’água na
cabeça, a sinistra cara sofredora do canto inferior à direita. Mas reparem o
fundo do quadro, olhem o Rio moderno, com seus edifícios, sua aguinha
azul, os emblemas de sua civilização vinda em porão de cargueiro: o navio
pintado é de folha de flandres, o aviãozinho é de matéria plástica. A vista da
gente volta ao quadro propriamente dito, ao morro, e a vida surge
novamente, a terra marrom quase cheira. A parede dos casebres vive
principalmente onde se esfarela o reboco efêmero e surge o cerne de barro,
de terra sangrenta. O resto, o que está para lá da linha ondulada do morro é
uma feira temporária, uma loja de brinquedos.
Portinari marcou, com seus retirantes, seus meninos de Brodowski, seus
quadros de lavradores, o abismo que ainda existe entre a natureza brasileira,
entre o país brutalmente grandioso que nos surge à mente quando dizemos,
como se disséssemos palavra mágica, “Oh! Brasil”, e a vidinha que montou
no Brasil o homem imitador da Europa e dos Estados Unidos. Sua pintura
daqueles tempos é um protesto contra essa falta de intimidade que existe
entre nós e aquilo que se chama realidade brasileira. É um clamor contra o
fato de ainda estarmos tão superpostos à paisagem e não vitoriosamente
fincados nela como estão os pés dos pretos, dos caboclos, dos tapuias, dos
cafuzos, dos curibocas e dos imigrantes.
MORRO [1933]
Primeiro esboço para o quadro Morro.

DESPEJADOS [1934]
Sua pintura daqueles tempos é um protesto contra essa falta de intimidade que existe entre nós e
aquilo que se chama realidade brasileira. É um clamor contra o fato de ainda estarmos tão
superpostos à paisagem e não vitoriosamente fincados nela como estão os pés dos pretos, dos
caboclos, dos tapuias, dos cafuzos, dos curibocas e dos imigrantes.
O CAOS E O COSMO

Mas a partir talvez da época dos afrescos do Ministério da Educação


(onde começam a se anunciar essas luminosas formas geométricas)
Portinari sai em busca do sol que ainda está por trás do monte… Para captá-
lo antes que assome ao horizonte o pintor recuou ao passado. Foi à
Primeira Missa no Brasil (para o Banco Boavista), à A chegada de d. João
VI à Bahia (para o Banco da Bahia, Salvador), ao Tiradentes (para o
Colégio Cataguases, Minas), foi, ainda em 1946, ao Navio negreiro, da
Coleção Jayme de Barros. E atualmente esses espelhos, multiplicados ao
máximo, estão colhendo o reflexo de sóis que iluminarão o mundo inteiro:
estão nos painéis portinarescos da Paz e da Guerra, para o edifício das
Nações Unidas.
Os cubos, os triângulos, todas aquelas formas geométricas talhadas em
luz e que ardem com tanta pureza principalmente nos monumentais painéis
históricos de Portinari não estão nesses quadros de história para iluminar
um passado morto. Estão na linha necessária do recuo como espelhos
voltados com angústia para os sóis do futuro – porque no seio da arte
portinaresca se desenrola o drama do brasileiro de hoje, que quer extrair
história, isto é, ordem, do caos de uma vida nacional ainda amorfa. Eu acho
que é por isto, por viver o drama do Brasil dilacerado entre o horror de suas
favelas e mocambos e a esperança de ser o grande país anunciado pelo
sacrifício antigo do Tiradentes e pelo sacrifício incessante de nossas massas
rurais, é por isto que Portinari se tornou o maior pintor brasileiro. Ele não
subordinou sua arte, suas telas, a “histórias” sobre isto ou aquilo. Seus
quadros como tais podem ser admirados como grande pintura por quem
jamais tenha ouvido falar no Brasil. Mas adquiriram para nós o valor de
intérpretes de um anseio. Um livro de reproduções de Portinari que fosse
hoje acompanhando o seu desenvolvimento, das primeiras pinturas aos
nobres quadros históricos, mostraria o artista carregando consigo suas
legiões de amargurados e desesperados rumo a um futuro que reflita a
ordem, a gravidade e a grandeza da Missa, da Chegada, do Martírio.

A PRIMEIRA MISSA NO BRASIL [1948]


Mas a partir talvez da época dos afrescos do Ministério da Educação (onde começam a se anunciar
essas luminosas formas geométricas) Portinari sai em busca do sol que ainda está por trás do
monte…
TIRADENTES, 1948-1949
… no seio da arte portinaresca se desenrola o drama do brasileiro de hoje, que quer extrair história,
isto é, ordem, do caos de uma vida nacional ainda amorfa.
TIRADENTES, 1948-1949
Detalhe da preparação da tela desenhada da obra Tiradentes.
TIRADENTES, 1948-1949
Detalhe da preparação da tela desenhada da obra Tiradentes.
A ARTE RI POR ÚLTIMO
FRA ANGÉLICO E SANTOS-DUMONT

Diante desse suntuoso espetáculo que é a obra de Portinari, tão vária e tão
grande, ainda em plena evolução, é mais estranho do que tudo ouvir dele,
do artista, que acha que o período áureo da pintura ficou para trás. Isto
Portinari me dizia conversando comigo e andando entre um estúdio interno
e uma sala de pintura aberta para o mar do Leme – um estúdio e uma sala
onde havia os lindos quadros de uma série de óleos que estava fazendo
sobre um leit-motiv de pastor e ovelha; os estudos para o grande painel, de
5x4m, do Descobrimento do Brasil para o Banco Português; os grandes
esboços dos painéis da Paz e da Guerra, de 14x10m; os desenhos, para um
calendário da Panair, das atividades agrícolas do Brasil, e finalmente uma
série de ilustrações para uma nova edição de A selva de Ferreira de
Castro… Isto sem falar em trabalhos menores, pregados em cavaletes como
o projeto para um painel de mosaico ou os lindos galinhos em cinza e
encarnado que seriam estampados numa cortina. Era realmente estranho
ouvir falar em declínio e morte da pintura naquele apartamento que é uma
usina de quadros. Parecia que estávamos falando em decrepitude e esclerose
num berçário.

MORTE DE DEUS

Foi numa de nossas conversas sobre a sua infância e sua ideia de Deus que
Portinari entrou em cheio sobre esse assunto do declínio da arte. É como se
ele achasse que a arte era um meio de ligar o homem ao sobrenatural e que
quando o homem deixa de crer no sobrenatural não precisa mais da arte.
Esta ficaria assim como uma ponte sobre um rio que tivesse uma só
margem. Me disse ele:
— A primeira vez que eu ouvi falar mal de Deus foi quando eu já estava
aqui no Rio, na Escola de Belas-Artes. Foi o Manuel Faria que eu ouvi
zombar de Deus. Passei meses sem chegar perto dele. Eu não disse nada,
não briguei com ele mas evitava a todo custo a sua companhia. Até hoje não
gosto de ouvir falar mal da religião como não gosto de anedota
pornográfica. Acho que o sujeito que tem uma religião é muito mais feliz.
Quando cheguei a Paris eu ainda acreditava em Deus, ainda não tinha
deixado de pensar em Deus. Eu me lembro de dizer a mim mesmo, lá, que
afinal de contas só tinha um quarto e minha vida artística, portanto Deus
não ia permitir que eu caísse doente.

DESCOBRIMENTO DO BRASIL, c.1954-1955


Era realmente estranho ouvir falar em declínio e morte da pintura naquele apartamento que é uma
usina de quadros.

Perguntei então a Portinari quando tinha começado a perder a ideia de


Deus e ele me disse que quando começara a conhecer o universo, quando
tinha passado a realmente sentir que a Terra gira e o sol é muito maior que
ela. E aqui Portinari me deu uma visão gráfica de sua metafísica:
— A gente tem uns andares na cabeça (e com a mão em pala ele dividiu
a testa em prateleiras) e à medida que vai subindo por eles vai vendo mais
longe. Quando a gente chega aí – prosseguiu – não evita as indagações
sobre que será tudo isto, este mundo que aí está, e com o tempo a gente vai
vendo que a Terra é uma porcaria.

ARTE E CIÊNCIA

E foi – como vejo em minhas notas – emendada nesta frase que Portinari
me disse:
— Para a gente dar mesmo nome aos bois, devíamos hoje em dia chamar
a arte de ciência e a ciência de arte. A ciência antigamente era
pequenininha, bem-delimitada. A arte era o mistério, o vago, o grande.
Agora, acontece o contrário, a ciência de hoje é que é imensa e misteriosa.
Arte se aprende.
— Você preferia ser um biologista a ser pintor?
— Não, isso não, eu prefiro ser pintor mesmo, mas o período áureo da
pintura ficou para trás.
Portinari tenta projetar esse seu inexplicável desencanto para fatores
externos, como os que atrás mencionamos: o fim dos nobres, dos duques e
príncipes que compravam quadros para régios presentes, que adornavam
seus palácios e que se faziam retratar – a ausência da fotografia etc. Mas
Portinari sabe muito bem que o fim do mecenato dos nobres foi um alívio.
Esses nobres eram frequentemente ignorantes e caloteiros. Ficavam até
devendo galinhas a Camões, como aquele d. Antônio, senhor de Cascais,
que tendo ao poeta “pro-metido seis galinhas recheadas por uma copla que
lhe fizera, lhe mandou por princípio da paga meia galinha recheada” e a
quem Camões admoestava com grandes cuidados, temeroso de perder o
preço da copla:
Cinco galinhas e meia
Deve o senhor de Cascais;
E a meia vida cheia
De apetite pera as mais.

INDECISÃO CIENTÍFICA E AFIRMAÇÃO


ARTÍSTICA

E sabe melhor ainda que nenhum recurso puramente técnico, como a


fotografia, pode substituir a interpretação artística do mundo. Quanto à
predominância da ciência na exploração do mistério do mundo, vale
transcrever aqui um trecho da introdução de Herbert Read ao seu Art and
Society: “A arte deve ser reconhecida como a mais segura das formas de
expressão que a humanidade já conseguiu criar. Como tal é que ela se vem
propagando desde a aurora da civilização. Em todas as épocas o homem
tem feito coisas para seu uso e tem adotado milhares de ocupações exigidas
por sua luta pela vida. Tem sido interminável sua luta pelo poder e pelo
lazer e pela felicidade material. Criou línguas e símbolos e acumulou um
impressionante acervo de saber; nunca se esgotaram seu engenho e sua
capacidade inventiva. No entanto o tempo todo, em cada época da
civilização, o homem sentiu a insuficiência do que chamamos de atitude
científica. O espírito que soube derivar da sua astúcia só consegue se haver
com fatos objetivos e além desses fatos objetivos há todo um aspecto do
mundo que só se rende ao instinto e à intuição. O desenvolvimento dessas
formas mais obscuras de apreensão tem sido o objeto da arte; e estamos
muito longe de entender a humanidade e a história da humanidade enquanto
não reconhecermos o significado e, mais ainda, a superioridade da forma de
conhecimento encarnada na arte. E bem podemos dar esse passo de
reivindicar superioridade para tal conhecimento, pois enquanto nada se tem
revelado tão impermanente e provisório como isto que gostamos de chamar
científico e a filosofia nisto fundada, a arte é ao contrário, em toda parte,
universal e eterna em suas manifestações.”
Aí vemos, portanto, que Herbert Read por pouco não diz exatamente o
contrário do que diz Portinari: pela sua segurança, pela sua permanência,
pela sua durabilidade, a arte é que devia passar a se chamar ciência. E teria
razão.

O DEMOISELLE E A CEIA

A verdade é que quando a gente vê a locomotiva Baronesa ou o avião


Demoiselle de Santos-Dumont (produções recentíssimas da ciência
aplicada) tem vontade de rir. São objetos ridículos. A ternura que nos
possam infundir vem de pensarmos que homens já confiaram (como
Santos-Dumont) suas vidas a uma coisa tão precária. Além disto, só há
ridículo quando comparamos o Demoiselle a um Constellation.
Mas as tábuas que Fra Angélico pôs a arder com sua têmpera, aquele
leve “primeiro sorriso”, como o chama Malraux, que Giotto abre em suas
figuras tão compostas, os faraós de cinco mil anos – esses são produtos
jovens de engenho humano, esses encarnam em si o verdadeiro princípio
fáustico da vida. No Prado, Portinari teve ímpetos de vir à porta e bradar
aos madrilenhos:
— Vocês já viram o que está aqui? Corram!
No entanto, no Museu das Indústrias em Londres a gente ri, primeiro, e
acaba por bocejar diante dos monstros desajeitados e que parecem
inventados nos tempos em que Leonardo desenhava as máquinas –
máquinas que admiramos como índice da sua inteligência mas que jamais
nos cortarão o fôlego como sua Sant’Ana ou seu São João Batista ou sua
Ceia; para sempre novos, frescos, incapazes de qualquer aperfeiçoamento.
Mesmo a mais pura das ciências tem a mesma sorte passageira dos seus
produtos. Manet não derruba Rafael mas Einstein acaba com o universo de
Newton. Nada neste mundo fará o Moisés de Miguel Ângelo envelhecer ou
as bailarinas de Degas ou os arlequins de Picasso. Passa apenas o que a arte
tem de pretensa ciência, os rótulos científicos de pontilhismo, cubismo,
surrealismo e que sei eu, mas os produtos da forma artística de interpretação
do mundo estes não passam, não envelhecem, não caducam, não deixam
jamais de ser válidos.
CABEÇA DE ÍNDIO, 1938
E sabe melhor ainda que nenhum recurso puramente técnico, como a fotografia, pode substituir a
interpretação artística do mundo.

LUZ QUE AGRAVA A ESCURIDÃO

Hegel imaginou que a arte estivesse agonizante. Puramente com seu


intelecto é que o homem atingiria as verdades eternas e não tateando com as
intuições da arte. Marx observa que, antes de conseguir dominar e governar
as forças da natureza, o homem lhes dá uma forma mitológica, imaginária;
e quando consegue afinal domar essas forças está automaticamente livre da
própria mitologia que criou. Assim, num mundo racional, intelectual, claro
e limpo de mistério o homem não precisaria mais da sua função artística,
imaginativa, criadora de mitos. Como temer, personificada num vago
Vulcano, a eletricidade das noites de tormenta, diante da Hidrelétrica de
Paulo Afonso?
O diabo é que o mistério recua e se adensa sempre, à medida que nossas
luzes ficam mais poderosas. Imaginávamos bem morta a mitologia e a
barbárie de épocas inquisitoriais quando ressurgiu na Alemanha um
Siegfried perseguidor de judeus. E um dos judeus que fugiram de Siegfried
pedindo socorro a Albion acabava de reformar toda a psicologia moderna
efetuando algo como uma interiorização da mitologia. Édipo, por exemplo,
o infeliz rei de Tebas, estava vivo dentro de nós e sua história é encenada
em cada novo menino que vem ao mundo… O sábio judeu perseguido por
Siegfried só conseguira dar forma científica a um impulso bárbaro que
descobrira nos seus neuróticos e que estendera ao homem normal valendo-
se de uma velha obra de arte, de um senhor Sófocles, nascido em Colona no
ano de 495 antes de Cristo. O sábio judeu, é bem verdade, era um grande
racionalista, mas não se pôde furtar a reinventar a mitologia nos abismos da
irracionalidade. Aliás, um outro grande racionalista, Sir James Frazer, na
primeira página da sua obra monumental de antropologia vai pedir a síntese
do seu título, The Golden Bough, a um quadro do pintor Turner.
O mistério se adensa à medida que avançamos, e só a arte nos põe em
contato com o mistério. Depois, muito depois, a ciência pode assumir o
plantão.
A ciência é precisa e transitória. A arte é vaga e eterna. A primeira nas
suas aplicações práticas não merece o menor crédito ao cabo de meio século
e mesmo em suas profundezas não resiste a meia dúzia de séculos. A arte se
apura, se afirma, e triunfa com a passagem do tempo. É portanto muito mais
científica do que a ciência.
ENTERRO NA REDE, c.1954
O mistério se adensa à medida que avançamos, e só a arte nos põe em contato com o mistério.
PAZ ENTRE AS OVELHAS

Mas Portinari sabe de tudo isto. E sabe sem palavras, sabe manejando sem
parar suas tintas. Não pintaria com aquela fúria e não se transformaria tanto
como pintor se não acreditasse na arte.
E, principalmente, não estaria tão em paz consigo mesmo. No seu
apartamento do Leme, relembrando sua vida e discorrendo sobre tantos e
tantos quadros que espalhou por museus, por edifícios públicos e por salas
de visita de tantos países, Candido Portinari me dava a impressão de um
patriarca a inventariar numa conversa de roça os filhos que semeou pelo
mundo – desde aquele primeiro filho de todos, pintado num banheiro da rua
Marquesa de Santos. E como acontece que Portinari, enquanto posava para
este retrato que aqui está, pintava sua série de pastorinhos com seus
lanzudos borregos, completava-se ainda mais a ideia da paz em que vive. É
como se, enquanto descansa dos trabalhos monumentais, ele realmente
apascentasse seu rebanho, como um patriarca, daqueles que benzia Camões
já desiludido das aventuras do mar:
Ditoso seja aquele que alcançou
Poder viver na doce companhia
Das mansas ovelhinhas que criou!
(Leblon, maio de 1955)
MENINO COM CARNEIRO, 1953
“Ditoso seja aquele que alcançou / Poder viver na doce companhia / das mansas ovelhinhas que
criou!”
segunda parte
“Na tela, e gigantescos murais,
Foi o primeiro a colorir
Nossos problemas sociais!”c

Releio agora, em 1977, este Retrato de Portinari publicado em 1956 e me


espanto ao ver que vinte anos se passaram. Ou constato como são pouca
coisa vinte anos. Ficamos amigos, eu e Candinho, desde que ele posou para
o Retrato até o fim de sua vida, em fevereiro de 1962. Raras terão sido as
semanas em que não nos vimos, em que não conversamos. Um dia eu o
acompanhei à polícia central, na rua da Relação, onde o encarregado de um
inquérito fez a Candinho perguntas absurdas, sobre os chineses que Sobral
Pinto defendia com sua costumeira bravura, e outros tópicos supostamente
subversivos. Portinari era realmente surdo, mas ficava de uma surdez pétrea
quando não queria ouvir. Surdo, sobranceiro e desdenhoso, em pouco tempo
reduzira a autoridade que o ouvia a um ser inquieto, aflito por acabar o
confronto. Mas não antes de atirar à mesa um certo trunfo, uma fotografia
onde Portinari aparecia, numa noite de festa, perto de alguém que afirmava
não conhecer.
— O senhor esteve na mesma festa e diz que jamais conheceu a pessoa?
Candinho, mão em concha no ouvido, obrigou-o a formular a pergunta
duas vezes e respondeu:
— Digo, digo isso mesmo. O senhor sabe, eu sou um homem muito
famoso. Todo o mundo me conhece. Eu só conheço poucas pessoas.
Profundamente sério em sua visão da vida, Portinari não transigia, não
aceitava barganhas. Há muitos anos haviam cessado suas relações com o
Partido Comunista. No entanto, em 1957, convidado a ir aos Estados
Unidos para assistir à inauguração dos seus gigantescos painéis das Nações
Unidas, a Paz e a Guerra, Candinho foi suavemente abordado pelo
Departamento Cultural da embaixada americana. Estavam prontos a
conceder-lhe o visto, mas tinham uma pequena condição: declarar o pintor
que não mais pertencia ao Partido Comunista. Portinari – a quem, aliás,
nesse mesmo ano eram concedidos dois prêmios nos Estados Unidos, o
Guggenheim e o Hallmark Art Award – nem respondeu à embaixada.
Deixou que os quadros se inaugurassem sozinhos.

Candido Portinari e Antonio Callado autografando a primeira edição do livro Retrato de Portinari,
no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, 1956.
PAZ, c.1955
Paz, óleo de 14x10m pintado para o edifício das Nações Unidas, posto na parede fronteira ao painel
de Guerra, das mesmas dimensões. Nesta obra gigantesca, terminada em 1956, Portinari chegou a
um ponto alto e síntese de sua obra.
GUERRA, c.1953
“Preferiu Portinari uma solução essencialmente plástica, eliminando canhões, tanques e soldados,
aviões e o cogumelo fluido da explosão atômica, o imenso pesadelo do mundo moderno. Os
Cavaleiros do Apocalipse, representação eterna e atemporal da guerra, seriam além disso mais
belos como forma do que as imagens sugeridas pelas batalhas atuais.” (Antonio Bento, Portinari)
O casal Portinari diante de sua residência no condomínio Sul-América, no Cosme Velho, Rio de
Janeiro, 1937.

Os últimos anos de Portinari não foram felizes, no plano de sua vida


particular. Chegaram, ele e Maria, à separação. Candinho, tão amável com
os amigos, tão divertido no que dizia, mesmo, ou sobretudo, quando
espetava suas banderilhas naqueles, cada dia mais raros, que não aplaudiam
sua pintura, era temperamento difícil para o dia a dia. Nunca se afastaram
completamente, mas Maria mudou-se do Leme, Candinho ficou só e esta
solidão o envenenou mais do que o chumbo das tintas. Para evitar a
contaminação do chumbo, Candinho pintou durante anos com luvas
amarelas, de borracha. Contra a solidão não descobriu luvas nem consolo.
No último aniversário que Portinari comemorou, em vida, 29 de
dezembro de 1961, no apartamento da irmã Olga, me aproximei da velha
dona Dominga, a mãe. Só a conhecia do extraordinário retrato que lhe
pintara o filho – o tom geral de ouro, o rosto plácido, os olhos azuis –, e
agora ali estava, diante de mim, um Candinho Portinari doce, sem as ironias
do filho. Mas com o mesmo corte aforístico da frase, a mesma concisão, a
mesma franqueza:
— Cheguei ao Brasil com nove anos – me disse dona Dominga –, casei
aos dezesseis e aprendi a ler aos sessenta, com meu filho caçula, o
Oswaldo. Foi quando tive tempo.
Maria não estava presente, nesse último aniversário de Candinho, e dona
Dominga lhe prestou sua homenagem de sogra e amiga:
— Na minha frente ninguém diz mal dela não. Ela dedicou uma vida
inteira ao meu filho e ajudou muito ele. Ninguém deve dizer nada em
desentendimento de marido e mulher.
Depois dona Dominga pensou um instante e me disse:
— Sabe? Eu acho que o Candinho nunca conheceu outra mulher não.

cDo samba-enredo “Candido Portinari”, de Ailton Furtado e Mário Pereira, feito para o desfile de
carnaval da Escola de Samba Império da Tijuca, 1968.
O RETRATISTA RETRATADO

Mas vamos voltar um pouco no tempo, a coisas que escrevi sobre


Portinari depois de publicado o livro, como este artigo que saiu no Correio
da Manhã:
Desde que o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro publicou, há um
ano, meu Retrato de Portinari, minhas entrevistas com o pintor
prosseguiram, mas havíamos trocado de posição: ele passou a me fazer o
retrato. Para mim a experiência foi novo estudo do meu modelo, pois
enquanto o retrato se fazia fui vendo o método de trabalho, e,
principalmente, a insuspeitada e ilimitada paciência de Portinari com o que
quer que esteja no seu cavalete. Não é à toa que Portinari prefere não fazer
retratos. É fácil passar para um pedaço de cartolina, a carvão ou lápis, a cara
de alguém em poucos traços simples. Mas o retrato a óleo implica
fidelidade ao modelo e fidelidade à pintura, copiar uma cara de modo que
fique “parecida” e pintar um quadro a óleo, um quadro que fique para
sempre num nível de grande pintura.
Portinari não vai pintando seu modelo aos pouquinhos, como quem faz
com cautela um jogo de paciência, até acabar o retrato. Pinta retratos
sucessivos. Quando a gente julga o quadro acabado, ele diz:
— É. Está pronto. Só que a orelha precisa subir um pouco, em relação ao
nariz.
Quando se chega para a próxima pose (a final, a gente imagina) encontra
o quadro raspado, enxuto, como se tivesse sido submetido a intenso regime
de emagrecimento, um fantasma do retrato anterior. E vem o retrato
seguinte, que ao cabo de duas horas pode estar pronto outra vez.
— Sim, diz Portinari, agora quase não falta mais nada. A sombra aqui
por baixo do queixo é que precisa ficar com uma tonalidade mais…
E vem o outro retrato. Meu retrato começou em madeira, evoluiu através
de várias poses, vários almoços e até várias empregadas da casa de Portinari
e finalmente passou para a tela (a madeira não aprovou para técnica do
retrato, ou para a insistência perfeccionista do pintor). Vale a pena filmar
um dia um retrato pintado por Portinari desde o primeiro sitting. O
resultado seria uma fascinante fita de abreugrafia de um retrato. A gente vai
se vendo em vários estados de espírito. O que imaginamos que seja a nossa
“parecença” fica às vezes de uma fixidez insuportável, mas um simples
toque de pincel seco num canto de boca pode desarmar a parecença como
um castelo de cartas. De outras vezes o retrato fica positivamente lisonjeiro,
ou, ao contrário, um ríctus que não conhecíamos, ou que automaticamente
desfazemos quando, diante do espelho, surge feito um gilvaz em plena cara.
Portinari tem um respeito e uma fé no retrato que explicam sua paixão
quando dedicado a pintar algum. E que explicam também o fato de hoje em
dia evitar pintá-los. Sua fé é tão grande que, quando alguém se sai com o
lugar-comum de dizer que tal retrato ficou “feito uma fotografia” ele dá o
seu característico riso de mofa:
— Eu acho isso muito engraçado. Quantas vezes a gente olha uma
fotografia e diz: “Isto? Fulano? Não pode ser.” Nós mesmos,
frequentemente, ficamos assombrados com a dessemelhança que pode
haver num retrato fotográfico de nós mesmos.
Sua reação é semelhante à de Baudelaire, quando apareceu o
daguerreótipo. É uma reação de quem respeita não só a arte de um retrato
pintado por um pintor, mas de quem respeita o artesanato desse pintor, sua
possibilidade de “retratar” um ser humano melhor do que o pode fazer
qualquer fotógrafo.
Eu posava duas horas de cada, vez, no pequeno ateliê de Portinari, no
apartamento do Leme. Lá dentro Maria (“Chico”) dava as ordens para o
almoço invariavelmente gostoso, exceto para Candinho com sua dieta.
Quando voltava do colégio, João Candido, como sempre, atirava-se ao
violão e punha-se a segoviar. E Portinari pintando. E contando:
— Fiquei assim meio surdo porque não tratei de um terrível resfriado
que tive enquanto pintava os murais do Ministério da Educação. O
Capanema e o Mário de Andrade insistiram para que eu fosse ao médico.
Mas eu, você sabe, ainda tinha aquela prevenção do interior. Lá, entra o
médico um dia, no dia seguinte sai o enterro.
Quando Candinho acabou um belo quadro, encomendado por pessoa
pouco simpática, perguntei-lhe se o quadro saíra a contento e ele
resmungou:
— Só sinto que tenha saído tão bom.
Diante do barulho que se fazia com a exposição de um artista sem valor:
— É como convidar o Profeta da Gávea a fazer uma conferência na
Faculdade de Medicina. São essas coisas que só podem acontecer num país
como o Brasil. Safadeza há em toda parte. Os franceses também são
safados, os italianos safadíssimos etc. Mas lá eles têm uma bola de ferro
atada no pé, a cultura. Aqui têm a ignorância – feito uma asa. Por isso
nunca se diz lá, em matéria de arte, as barbaridades que a gente ouve aqui.

O casal Portinari no ateliê da Lapa, na rua Teotônio Regadas, Rio de Janeiro, 1932.

Falando sobre um crítico que disse que a sua pintura religiosa não é
religiosa, Portinari disse:
— Nem eu sei se sou religioso quanto mais ele.
Às vezes era a pura reminiscência, enquanto o pincel corria pela tela:
— Nunca dei para o serviço público, mas aí por volta de 1923 fui
professor de “bê-á-bá” da Prefeitura. Quem me nomeou foi o professor
Antônio Carneiro Leão, que era o secretário de Educação. Minha primeira
escola foi na Praça Onze. Depois fui para Botafogo, onde tive uma classe só
de meninos. Eram uns desordeiros terríveis.
— Que é que você fez?
— Chamei a polícia. Moralizei a classe.
Pela mesma época Candinho foi nomeado pintor de carro fúnebre, em
Niterói, mas não chegou a pintar nenhum coche. Chegou, isto sim, a
desenhar cartões para várias casas comerciais. Lembra-se ainda dos dizeres
de um que fez para a Casa Gomes:

COMPREM CAMISA DE POR 15$000

Às vezes algum amigo da casa, como Dalcídio Jurandir ou Mem Xavier


da Silveira (também pintado, na mesma época) que já tinham visto meu
retrato “pronto” e voltavam a vê-lo “começado” exclamavam:
— Ué, ainda não acabou?
Grupo presente ao almoço oferecido por José Olympio a Afonso Arinos: Manuel Bandeira,
Portinari, Carlos Drummond de Andrade e Francisco de Assis Barbosa, Rio de Janeiro, 1955.

Portinari pintando o retrato de Antonio Callado, Rio de Janeiro, 1957.

E Candinho:
— Cézanne uma vez levou noventa e seis poses para fazer um retrato e
no fim disse: “O colarinho agora está bem.”
Afinal o retrato ficou pronto – e até mais cedo do que devia. Por mais
que eu continue visitante da casa, como uma espécie de Boswell ou
Eckermann de Candinho, não vou lá com a regularidade dos tempos do
retrato, e portanto não vejo crescer dia a dia a obra de Portinari. Dia a dia
não é força de expressão. A vida de Portinari é pintar. Pintar e falar, mas
quase sempre fala de pintura. É invariavelmente uma experiência
perturbadora entrar no pequeno estúdio do Leme e ver Candinho como um
Ali Babá em sua caverna, a mergulhar as mãos em gavetas e gavetões, atrás
de portas e de cavaletes e espalhar os tesouros por ali. São painéis em que
um horizonte de café verde empurra ao primeiro plano homens que colhem
milho. São maquetes de trabalhos em mosaico onde um Cristo crucificado
moderno e brasileiro traz ainda ao espectador toda a piedade dos Cristos de
Bizâncio e de Ravena. São os desenhos a lápis trabalhados, numerosos e
complexos que lembram afrescos. É o Nordeste de retirantes dolorosos ou
pastorinhos preguiçosos; a Amazônia da caça a forquilha; o bandeirante na
mata, que o pintor com máxima economia e quase nenhum detalhe
fisionômico mostra ao mesmo tempo como rude e assustado; o Jeca de São
Paulo, no casamento e na morte; o vaqueiro, o plantador de tudo quanto há,
as bandinhas de pretos. Duvido que um pintor tão puro, isto é, tão fiel à arte
do pintor e portanto tão pouco literário ou anedótico (veja-se a pura
disciplina pictórica e o triunfal arranjo de cores que é A chegada de d. João
VI à Bahia) tenha ilustrado a vida de um país mais do que Candido
Portinari tem ilustrado o Brasil.
E agora, senhor da sua técnica, Portinari retoma alguns temas muito seus
para verrumá-los, aprofundar-lhes as ranhuras, desintegrá-los. O melhor
exemplo dessa sua busca está no tratamento que dá agora ao seu Morro,
tema que explorou num quadro de 1935, que se encontra no Museu de Arte
Moderna de Nova York. No primeiro dos desenhos posteriores de “morros”
a paisagem do Morro de 1935 ainda marca vivamente a sua presença. O Rio
continua perfeitamente identificado em Copacabana, Corcovado, Pão de
Açúcar. Marias de lata d’água na cabeça estão graciosamente salpicadas
pelos vários planos, numa primeira sugestão dos desenhos carajá (mulheres
feitas de dois triângulos conjugados e cabelos ao vento) que vão aparecer
com mais força e frequência em outras representações do morro. A seguir,
num outro desenho, uma apara de lua garante ainda um fundo de paisagem.
Depois, é o morro espectral, reduzido à sua simplicidade esquelética, a um
corte transversal de galerias em entranha de mina. As criaturas e bichos que
o pintor humaníssimo não dispensa estão ali como fósseis em dobra de
rocha, como os bichos e criaturas petrificados em Pompeia.
SENHOR BOM JESUS DA CANA VERDE [1952]
Estudo de Bom Jesus da Cana Verde para a igreja de Batatais.

Aliás, eu gostaria aqui de frisar que nos retratos, nas favelas, como não
importa em que, a pintura de Portinari tem uma qualidade de música de
Bach: podia continuar indefinidamente. Portinari simplifica, aprofunda,
complica, volta à tona do seu assunto ou nele se submerge com a pura
alegria da criação. Ele acaba os quadros porque está há muito tempo
convencionado que tais coisas chegam ao fim. Mas é a vida que ele pinta e
essa não acaba.
A vida imita a arte, sem dúvida. Mas é preciso que essa arte que a vida
vai imitar seja, no instante da sua criação, vida estuante e genuína, vida,
mesmo. O que quer dizer que a vida imita a vida. Arte de segunda ordem
ela não imita nunca.
MENINO MORTO [1944]
Estudo para Criança morta, da série Retirantes, 1944.
BANDEIRANTES [1956]
… o bandeirante na mata, que o pintor com máxima economia e quase nenhum detalhe fisionômico
mostra ao mesmo tempo como rude e assustado.
Portinari em seu ateliê no Rio de Janeiro, pintando Músico, 1957.
GARIMPEIROS, 1954
Duvido que um pintor tão puro, isto é, tão fiel à arte do pintor e portanto tão pouco literário ou
anedótico … tenha ilustrado a vida de um país mais do que Candido Portinari tem ilustrado o
Brasil.
LENHADORES, c.1937-1938
Estudo das figuras localizadas no terceiro plano à direita da pintura mural Pau-brasil, Ciclos
Econômicos, Palácio Gustavo Capanema, Rio de Janeiro.
AS “DISTRAÇÕES” DOS MÍSTICOS

Até que organize um Museu Portinari, o governo do Brasil estará devendo


aos brasileiros, em primeiro lugar, e aos turistas de outros países, em
seguida, a visão de conjunto da obra de um artista raro, tal a inspirada
variedade da sua criação. São Paulo possui, pelo menos, a casa-museu de
Brodowski, onde se vê, logo à entrada, a Fuga para o Egito, onde Portinari
pintou como São José seu pai, seu Baptista, e como Nossa Senhora dona
Dominga. Quanto ao Bambino, lourinho, tanto tem a cara que foi a do
pintor menino, como a do filho João Candido ou da neta Denise.
No Rio, porém, viveu Portinari quase toda a sua vida criadora. Morou
longo tempo no Cosme Velho, depois no Leme. No entanto, quem quiser
ver algo de sua obra no Rio terá de apelar para coleções particulares. À
vista do público só existem algumas obras suas no Museu de Arte Moderna,
A Primeira Missa no Brasil, no Banco Boavista, e os afrescos do Ministério
da Educação.
Fachada da residência dos Portinari em Brodowski, São Paulo, cerca de 1962.

Dá um arrepio pensar na dispersão dessa imensa obra de Portinari, que,


no tempo, abrange toda a História do Brasil, no espaço vai até a Itália, a
França, Israel, os Estados Unidos. Raymundo Castro Maya deu o exemplo,
comprando e franqueando ao público toda a série que fez Candinho, a lápis
de cor, do Dom Quixote. Oficialmente nada se fez. Reunir um acervo de
quadros de Portinari, e fotografar suas obras que estão em mãos particulares
e em países estrangeiros, é um dever do Estado.
Como conseguiu Candinho pintar tanto? Aqui estão algumas notas
minhas de 1961, publicadas na revista Visão:
… No momento Portinari pinta murais, quadros de cavalete, retratos,
ilustrações de livros e usa óleo, aquarela, guache, lápis de cor, como se
cumprisse uma sentença. A exemplo de todo artista genuíno, é um
condenado de si mesmo. Como me disse outro dia:
— Às vezes os amigos insistem. Você precisa sair mais, jantar fora,
frequentar, ter um pouco de distração. Distração! Isto é bom para os outros.
A gente tem é que ficar em casa chocando o troço. É também feito essa
coisa de estar sempre recebendo jornalistas e dando entrevistas a propósito
de tudo. Faz o sujeito muito simpático mas arte não faz não.

Portinari em seu ateliê, no Rio de Janeiro, pintando Dom Quixote, 1957.

No meio da conversa, mestre Candinho declarou que “O Brasil não é


país de artes plásticas”, e explicou:
— A grande maioria dos brasileiros só conhece, como objeto de arte, a
cuia. O literato já começa a carreira como tenente, mas o artista acaba
sargento. Você veja os deputados brasileiros. São quase todos literatos
fracassados. Por isso mesmo, para a literatura têm olhos. Mas obra de arte
eles encaram como trabalho de presidiário.
E sobre a crítica:
— Tem muito crítico aí que é o mesmo que um cego diante de um
quadro. Só que os cegos merecem o respeito da gente.
No pequeno mosteiro de arte que é o apartamento do Leme, Portinari
não se isola mentalmente. Seu país é uma preocupação constante. Não se
preocupa com a política e sim com os homens, não com a ideologia e sim
com o comportamento. A ineficiência o apavora tanto quanto a má pintura.
Disse ele outro dia:
— De repente o governo resolve investigar um contrabando de madeira
no interior. Vão para lá três sujeitos. Chegam e vão perguntar, coitados,
onde está a maroteira. O pessoal aponta: “É ali, bem longe.” Os três
procuram, procuram, mas o contrabando, naturalmente, que se faz com a
madeira de lá, está acontecendo é aqui mesmo, no Rio de Janeiro. Os três
membros da comissão de inquérito voltam do interior sem nada. Quer dizer,
sem nada não. Voltam com ameba.
Atualmente a grande fonte de alegria – e de pintura – na usina de
Portinari é a neta Denise. Denise, que já anda pela casa, sabe que tem um
avô do qual pode fazer o que bem entender. O que só vai saber mais tarde é
que esse avô a imortalizou no berço: da grande galeria que Portinari pintou
de Denise já há exemplares em coleções particulares. Denise se transformou
em grande força na arte portinaresca, como foi outrora grande força João
Candido, o filho único, pai da musa Denise.
Quem quer que pretenda criar alguma coisa, dando à vida um sentido
que domine a perplexidade e a confusão, sai do estúdio de Portinari no
Leme edificado – e melancólico. Ali mora um que conhece, real e
instintivamente, o perigo das “distrações” de que falam os místicos e de que
falava Pascal, aquelas distrações que procurava a bem-intencionada Marta,
enquanto Maria, sua irmã, tudo esquecia para ficar aos pés do Senhor.
A ironia de Portinari é defensiva, seus sarcasmos são a arma contra as
distrações, contra a invasão da clareira de criação que soube abrir na mata
virgem dos ódios e frustrações dos homens. No fundo do seu ser é uma
criatura humilde diante do mistério e das coisas maiores. Como seu tempo
chega para tudo, Portinari ultimamente se fez poeta também e chega às
vezes a uma tensa beleza, como no poema em que se compara aos
espantalhos (que ele tanto tem pintado) e que acaba assim:
Sou o fio d’água furtado
Pelas areias. Todas as coisas
Frágeis e pobres
Se parecem comigo.

Portinari com seus amigos escritores: Graciliano Ramos, Pablo Neruda (à esquerda) e Jorge Amado
(à direita), Rio de Janeiro, agosto de 1952.
A MORTE

Assisti à morte do amigo e contei-a assim, na história de capa da revista


Visão:

Às onze e quarenta da noite do dia 6 de fevereiro de 1962, na Casa de


Saúde São José, foi arriada a cabeceira de metal da cama do 206. Arriada à
linha horizontal, à linha da morte. Nas mãos cruzadas daquele que acabava
de morrer a irmã colocou o crucifixo.
Na casa de saúde e na vida das freiras era um acontecimento triste mas
de rotina. Para os demais que se achavam no quarto, era a morte de uma
pessoa querida. Mas para uns e outros, e, logo que circulou a notícia, para
todos os brasileiros, aquele crucifixo plantado como um ponto final dava ao
acontecimento uma impersonalização. Não se tratava de mais um
falecimento. Era Portinari morto. Aquelas mãos inúmeras vezes haviam
pintado o Cristo que agora crescia delas. As mulheres de sua família, que
choravam ao redor do seu leito, tinham servido de modelo às vias sacras de
Batatais e da Pampulha: a dor que ali sentiam, Portinari já pressentira nelas,
pintando-as ao pé da cruz ou no caminho de Gólgota. Todos os que
coroavam o leito já plano e quieto eram gente de Candinho Portinari:
mesmo seu médico, Mem Xavier da Silveira, nos últimos instantes não
segurava mais o pulso do paciente, antes apertava nas suas a mão do amigo.
Mas apesar da pena e do desapontamento de ver morrer quem se quer bem,
mesmo os mais íntimos sentiam a coisa maior que acontecera ali. Sentiam
que todo um povo ia debruçar-se sobre aquela vida iniciada há cinquenta e
oito anos na terra vermelha de Brodowski e que ali se extinguia entre
lençóis brancos.
Candido Portinari com seus pincéis, Rio de Janeiro, cerca de 1960. (Foto: David Vestel)

Grandes artistas nacionais como Candido Portinari, cuja obra aparece


nos ministérios, nos bancos, nos colégios, nos edifícios dos jornais deixam,
ao morrer, um estranho e disseminado sentimento de culpa. Nunca se
consegue resgatar a dívida da revelação da beleza de uma Primeira Missa
no Brasil ou de um Tiradentes. A imortalidade da obra faz-nos sentir
obscuramente que o artista também devia ser imortal, renovando-se como
uma fonte. Que teremos deixado de fazer? Por que parou de repente de fluir
aquela vida mágica, que tanto enriquecia a vida geral?
Pessoas observam o carro do Corpo de Bombeiros, levando o caixão de Portinari. Ao fundo, painel
de sua autoria, no atual Palácio Gustavo Capanema, Rio de Janeiro, 8 de fevereiro de 1962.

Sensível a esse estado de espírito e por natureza enérgico no amor à


grandeza de homens como Portinari, Paschoal Carlos Magno madrugou ao
lado da família: pedia-lhe, em nome do governo federal, que o corpo de
Portinari fosse jazer no Ministério da Educação. E naquele edifício onde
começou, no fim da década de 1930, a glória de Portinari, no edifício-berço
da arte moderna brasileira, que agrupou Lúcio, Oscar, Reidy, Moreira, Lelo
e outros em torno de Le Corbusier, e que Portinari tornou ardente, por
dentro, com seus afrescos, e de uma leve louçania, por fora, com seus
azulejos marinhos, ali se armou sua essa de morte que enlutou um país-
continente. Quando o esquife de Portinari saiu do Ministério, na manhã do
dia oito, em carreta do Corpo de Bombeiros, dos edifícios envidraçados, do
pátio do Palácio da Educação, das bancas de jornais, dos cafés em súbito
silêncio ao som da marcha fúnebre e do hino nacional que solenizavam de
repente um quadrado da cidade carioca, voltaram-se para o cortejo milhares
de caras irmãs das que apareceram nos Morros, nos Músicos, nos Retirantes
de Portinari. Milhares de anônimas criaturas suas disseram adeus ao pintor,
miraram uma última vez o claro e sutil feiticeiro que para sempre as
aprisionou em losangos de luz e feixes de cor. Como se no espelho apagado
da vida do artista ardesse, num último lampejo, tudo aquilo que refletia
durante a vida.
Ao meio-dia, Candido Portinari desceu à terra do São João Batista,
levado por toda uma multidão. À beira de seu túmulo achavam-se tanto
Carlos Lacerda, como Luiz Carlos Prestes, falaram tanto Carlos Marighella
como Pedro Calmon.
Não é acaso que Portinari tenha morrido de moléstia proveniente de
tintas de óleo. Um fim de vida com mais que seu quinhão de desgastes terá
tornado seu organismo mais vulnerável ao veneno antigo. A verdade,
porém, é que caiu depois de um longo combate. Para ele, qualquer contato
com certas tintas constituía perigo. Mas sua resposta ao primeiro
envenenamento foi encomendar longos guantes de borracha – para
continuar pintando. Era um estranho dândi, Candinho pintando em casa,
com um de seus famosos coletes de brocado veneziano e suas luvas
amarelas. O segundo envenenamento, é fora de dúvida, encontrou-o
combalido. Talvez mesmo um tanto enamorado da morte, a perguntar, no
fecho de um poema recente, poema bem de pintor:
A morte será colorida?
Qual a cor do outro lado?

Mas doente ou são, desde os seus quatorze anos Portinari pintava e só


parou de pintar ao pisar outro dia o patamar da morte. Esse pintor, morto
ainda tão moço, deixou seu fabuloso patrimônio porque pintava o dia
inteiro, pintava de alegria como de desespero, de satisfação como de
melancolia e raiva. Na esplêndida força com que Candinho construiu seu
latifúndio de pintura havia qualquer coisa de seu pai seu Baptista e sua mãe
dona Dominga, lavradores de café. Portinari pintava uma lavoura como se a
trabalhasse de enxada e a regasse e cuidasse. E retratos houve que pintou
durante meses e meses, como se esperasse que a semente da primeira pose
fosse de súbito florescer na expressão reveladora.

FUMO [1938]
Estudo para pintura mural Fumo, Ciclos Eonômicos, Palácio Gustavo Capanema, Rio de Janeiro.
“Portinari tinha especial simpatia pela arte muralista. Perdia-se no gabinete de estudo lendo a
experiência dos antigos, e, na oficina, tentava o contato das tintas com a parede: o afresco, a
têmpera e outros processos disputavam-lhe o tempo, concorrendo com a pintura de cavalete.” (Celso
Kelly, Portinari: quarenta anos de convívio)

Há pouco tempo me dizia Candinho:


— Eu já reparei que quando estou em fase de fazer muitos poemas não
sinto falta da pintura.
Ele bem sabia que seu destino era pintar e que sua poesia era apenas uma
forma menor de expressão para o mundo que vivia em si. E fazia muitas
vezes versos de pintor, como o citado acima e como esse outro:
Quanta coisa eu contaria se pudesse
E soubesse ao menos a língua como a cor.

Mas alguns de seus poemas têm um genuíno sopro lírico e outros uma
pura nota trágica. É o caso de:
OS INVENTARIANTES
Os inventariantes pedirão conta dos cílios
Apedrejados. Das madeiras inertes e dos cabelos
Perdidos e dos egoísmos. Das penas das aves
Das chuvas inúteis. Dos furacões e dos ventos
Dos espaços perdidos. Das lágrimas secas
Dos carvões em brasa e das fogueiras de São João.
Das violetas sob a terra nos cemitérios
Das cores claras das moças morenas
Das gotas d’água afundadas nas pedras. Dos laranjais
Sem laranja e das malvadezas. Das águas constantes
Da lepra. Quem responderá? Os inventariantes quererão saber
Dos feios e dos pequenos funcionários que estão sempre
Nas filas, filas de caixões de defunto. Filas das prestações.
Nas filas dos hospitais, filas dos sofrimentos de arrancar
Dentes, de arrancar o olho e transfusões de sangue com água.
Nas filas do leite com água e nas filas de pedir água.
Nas filas intermináveis da morte que não chega…
Pedirão conta do lodo. Das espadas brancas. Dos cães amedrontados
Dos pés estragados, dos dedos perdidos. Da nave morta e
Repelida, cheia de gente viva. Dos fornos queimados vivos,
Queimando crianças com flores e velhos com sonhos
Mulheres antigas e jovens… Pedirão conta das
Solteironas. Dos frutos podres que os meninos não comeram
Dos que engendram a maldição. Dos cheiros misturados.
Dos fogos perdidos. Das meninas feias morando distante
E chegando na luz da aurora. Pedirão conta dos
Moirões queimados e das angústias. Dos ninhos de joão-de-barro
Das areias estéreis. Da malária. Da ameba. Das sezões. Dos
Sarampos. Das tosses compridas. Das seriemas.
Dos meninos caolhos e barrigudos. Dos estropiados.
Dos espinhos. Das borboletas refletidas n’água estagnada.
Das gotas de sangue desconhecidas. Dos urubus tristes e
Malqueridos. Das moças sem dentes e sempre grávidas.
Das manchas amarelas nas pedras. Ouvirão os horizontes fugidios?
Pedirão conta dos gritos sem eco. Das fomes mortas.
Das estradas azuis. Das nascentes nas montanhas.
Dos ruídos à toa. Das almas mortas sem destino.
Dos enfartes no silêncio dos campos. Pedirão conta
Dos silêncios intermináveis. Dos pobres assassinados e dos
Assassinados a machado. Dos desastres e trilhos enferrujados.
Das porteiras cantadeiras e solitárias. Das portas abandonadas
Das tristezas vagando. Dos escorpiões e viúvas-negras só
Conhecidas dos pequeninos… Pedirão conta da
Erva nascida do sopro da inocência…

“Os inventariantes” é o mais longo e talvez o mais belo dos poemas de


Portinari. Ele escreveu outros mais concisos, e também de grande beleza,
mas “Os inventariantes” têm o valor desses poemas que resumem ou trazem
ecos de muitos outros. Assim como no seu painel da Paz Portinari usou
seus espantalhos, seu bumba meu boi, seus soltadores de papagaios, seus
meninos em balanços de inúmeros quadros, em “Os inventariantes” temas
tristes e alegres de outros poemas se entrelaçam: das ervas que brotam e das
porteiras que cantam, como da estranha dignidade dos leprosos e dos cães
que sofrem:
Os cavalos dos leprosos se parecem com eles.
Manchas no focinho e no corpo, o mesmo olhar
Repartido, e o descanso também.
Seriam dois reis?
Fac-símile de “Os inventariantes”, 1961.
Ou essa grave canção dos cachorros resignados, irmã da outra canção:
Cães sarnentos e esqueléticos
De olhar doce e humano
Fugiam sempre. Eram enxotados
A todo instante. Só as crianças
Tratavam-nos bem. …
Não se metiam em brigas
Farejavam os meninos amigos
Até na igreja eram escorraçados
Mas a lua alumiava ao rei e
A eles. A brisa soprando não
Discriminava. A água matava
A sede do homem, da ave e do cão
A terra alimentava a todos.
O eco longínquo era ouvido por eles
Também. Serão alguns santos em penitência?

Ou esse delicado cromo das porteiras que rangem em tantas das suas
recordações do tempo em que
Eu lidava mais com os
Bichos, as árvores, as águas,
O céu estrelado e o vento.
Também com a minha botininha e o meu
Chapéu: existirão ainda?

FUTEBOL EM BRODOWSKI [1933]


“Nossos brinquedos eram variados, conforme o mês, e também havia os para o dia e os para a noite.
Para o dia eram: gude, pião, arco, avião, papagaio, diabolô, bilboquê, ioiô, botão, malha e futebol.
Para a noite: pique, barra-manteiga, pulando carniça etc.” (Candido Portinari, “Retalhos de minha
vida de infância”)
MÃOS E PIÕES, c.1944-1945
“Quantos estudos realizou até o começo da obra! Estudos de composição, por meio de cartões
sucessivos, na ânsia de testar em si mesmo as altas exigências de artista. Estudo de minúcias,
descendo à anatomia…” (Celso Kelly, Portinari: quarenta anos de convívio)

Aqui estão elas, as porteiras que rangem em suas recordações:


… Silenciosas quase sempre.
Raros caminhantes, cores diversas.
As mais próximas das fazendas
Alegravam-me sempre,
A porteira preta acolhia
As assombrações, a coragem
Ao avistá-la fugia no espaço.
O som das porteiras distantes que estão dentro de mim…

Como me contou Mem, o médico de Portinari, este, ao cair na semi-


inconsciência da qual não mais havia de sair, falou um italiano difícil de
acompanhar: o dialeto veneziano de seu Baptista e dona Dominga.
Não haverá artista que não viva a vida inteira sob o signo da infância.
Mas no caso de Portinari, com todo seu êxito mundial (a livraria Gallimard
convidou Portinari nos últimos anos para ilustrar não livros brasileiros mas
romances de Graham Greene e André Maurois) e a influência de seu nome
no Brasil, com seu sucesso artístico e financeiro, com todos os sinais
externos de uma vida de triunfos, dessas vidas que podem ser vividas
exclusivamente no presente, com tudo isso viveu apaixonadamente voltado
para as nuvens brancas do céu alto de Brodowski.
Num pé de café nasci.
O trenzinho passava
Por entre a plantação. Deu a hora
Exata. Nesse tempo os velhos
Imigrantes impressionavam os recém-chegados.
O tema de falatório era o lobisomem.
Mortiço e desacorçoado.
Homem e cavalo vinham vagarosamente
De porta em porta. Teriam
A mesma doença? …
O cavalo era o guia, só ele enxergava.
Eram como dois irmãos. O alimento.

Não que pudesse ter sido particularmente feliz sua infância simples de
menino pobre, não se tratava disso. Era a infância como estado, quase diria
como substância que fascinava apaixonadamente Portinari. Creio que não o
vi uma única vez em que não houvesse alguma menção de Brodowski, dos
pais ou da avó. O último quadro que completou eram meninos de
Brodowski armando arapucas. E seu mais belo texto de prosa foi uma carta
que, jovem ainda, o bolsista em Paris escreveu para um amigo, evocando
um tipo popular de Brodowski, o Palaninho:
… Só tem um dente. Usa umas calças brancas feitas de saco de farinha de trigo cheias de
remendos escuros de pano listrado; ainda se nota o carimbo da marca da farinha. Embaixo ele
amarra as calças com palha de milho para não apanhar lama – não usa botina dia de semana. …
Palaninho vai calçado de botinas de elástico – ele fura um buraco do lado do joanete. As calças
ficam engastaiadas nas botinas. Só usa colarinho, não se ajeita com gravata. Palaninho é beira-
córrego e dono d'um sítio. … Honesto por necessidade acredita em Deus e em todos os santos
porque tem medo. … Vim conhecer aqui em Paris o Palaninho, depois de ter visto tantos museus e
tantos castelos e tanta gente civilizada. Aí no Brasil eu nunca pensei no Palaninho. Apesar de eu
ter sangue de gente de Florença, cidade que Romain Rolland diz: … “febril, orgulhosa…, onde
cada um era livre e onde cada um era tirano… onde era esplêndido viver e onde a vida era um
inferno…” eu me sinto um caipira. Daqui fiquei vendo melhor a minha terra – fiquei vendo
Brodowski como ela é. Aqui não tenho vontade de fazer nada. Vou pintar o Palaninho, vou pintar
aquela gente com aquela roupa e com aquela cor. Quando comecei a pintar senti que devia fazer a
minha gente e cheguei a fazer o Baile na roça. Depois, desviaram-me e comecei a tatear e a pintar
tudo de cor. … A paisagem onde a gente brincou a primeira vez e a gente com quem a gente
conversou a primeira vez não sai mais da gente e eu quando voltar vou ver se consigo fazer a
minha terra. Eu uso sapatos de verniz, calça larga e colarinho baixo e discuto Wilde, mas no fundo
eu ando vestido como o Palaninho e não compreendo Wilde. Tenho medo da polícia, ando com os
papéis sempre em dia e tenho medo de gente que tem emprego vitalício. Tenho saudades de
Brodowski – pequenininha, duzentas casas brancas de um andar, no alto de um morro espiando
para todos os lugares… com a igreja sem estilo, com uma torre no centro e duas pequenas dos
lados, com o altar que eu fiz…

“Quando voltar vou ver se consigo fazer a minha terra”… Quantas vezes
terá Candinho pintado aquele céu nublado, aqueles cafezais e palaninhos? E
quantas vezes, com sua acurada ironia, não revelou aos amigos o Palaninho
que amava e que vivia dentro dele?
PALANINHO, 1930
“Só tem um dente. Usa umas calças brancas feitas de saco de farinha de trigo cheias de remendos
escuros de pano listrado; ainda se nota o carimbo da marca da farinha.”
Mãos de Portinari pintando Menino com carneiro, Rio de Janeiro, 1953.
O POETA PORTINARI

Em 1964 a Livraria José Olympio Editora lançou o livro póstumo Poemas,


de Portinari, que além de minha introdução, a que chamei “Sem
ilustrações”, levava uma nota do poeta Manuel Bandeira, amigo de
Candinho, e um lindo poema de Vinicius, que, por intermédio do pintor,
mandava recados a mortos queridos. Acabava assim:
Se vir Ovalle
Se vir Zé Lins
Fale, Candinho,
Que eu sou feliz.
Ouviu Candinho?
Portinari e seus pincéis, Rio de Janeiro, c. 1956. (Foto: Francesco Florian Steiner)
Sobre o Projeto Portinari

“Depois de ter lutado contra a presença, em sua vida, do ‘Pai Monumental’,


João Candido, reconciliado, faz agora o oposto. Reconstrói, desenho a
desenho, quadro a quadro, a vida de Portinari. Recompõe, carta a carta,
bilhete a bilhete, poema a poema, o que Portinari escreveu e pensou.
Coleciona, em memórias alheias, em entrevistas a respeito de Portinari, ou
colhendo depoimentos, a imagem de Portinari tal como se refletiu nos
outros. Pessoalmente ainda não vi, no Brasil, um trabalho tão minucioso e
tão inteligente para manter viva a memória de um artista. […] é assim que
um país se firma nas suas raízes culturais.
Examinando outro dia, na companhia de João Candido, a massa de dados
e fotos que vão futuramente compor o imponente catálogo racional das 4 a
5 mil obras que nos legou Portinari, me senti como se estivesse de novo, na
década de 50, visitando Portinari em seu apartamento do Leme, almoçando
com ele, João Candido, Maria.
Que bom que esse trabalho de amor a Portinari está sendo feito. Porque o
amor às vezes chega tarde.
[…] no caso de artistas obcecados com a criação, como Portinari, a obra
que deixam é a vida que viveram.”

ANTONIO CALLADO
(trechos de artigo publicado em IstoÉ, 14 abr. 1982)

Quem quiser saber mais sobre Candido Portinari e sua obra pode consultar a homepage do Projeto
Portinari: http://www.portinari.org.br.
Lista das obras de Portinari

As datas entre colchetes foram estabelecidas a partir de fontes outras que


não as obras.

Nonna de Jardinópolis [1956], desenho a nanquim bico de pena/papel, 34x16cm


Nonna de Jardinópolis [1956], desenho a nanquim bico de pena/papel, 22x26cm
Diabo [1956], desenho a nanquim bico de pena/papel, 22x16cm
São José com Menino Jesus e criança [1956], desenho a nanquim bico de pena/papel, 22x15cm
Cena da infância do artista [1956], desenho a nanquim bico de pena/papel, 26x39,4cm
Nonna de Jardinópolis [1956], desenho a bico de pena/papel, 27x22cm
São Francisco, 1944, desenho a grafite/papel, 14x24cm
Retrato de Graciliano Ramos, 1937, desenho a carvão e crayon/papel, 32,5x27,5cm
Retrato de dona Dominga, 1941, desenho a carvão/papel, 44x31cm
Retrato de seu Baptista, 1941, desenho a carvão/papel, 45x31cm
A banda [1956], desenho a grafite/papel, 36x32,5cm
Vaqueiro e boi na praça de Brodowski, 1956, desenho a nanquim e bico de pena/papel, 12,5x14cm
Retrato de Carlos Gomes, 1914, desenho a carvão/papel, 43x42cm
Praça de Brodowski, c.1933, desenho a bico de pena/papel, 49,5x70,5cm
Praça de Brodowski, 1956, desenho a grafite/papel, 28x36cm
Menino, 1950, desenho a grafite/papel, 20x20cm
Gado [1938], desenho a carvão/papel kraft, 280x246cm
A chegada de d. João VI à Bahia [1952], desenho a grafite e crayon/papel, 25x40cm
São Francisco, 1944, desenho a grafite/papel, 34x50cm
Estudo para Café, 1935, desenho a grafite e caneta-tinteiro/papel, 40x58cm
Enterro na rede, 1944, painel a óleo/tela, 180x220cm.
Os onze retirantes, 1955, desenho a grafite/papel kraft, 35,5x38,5cm
Festa de São João (detalhe), 1936-1939, pintura a óleo/tela, 172x193cm
Criança morta, 1944, painel a óleo/tela, 180x190cm
Peneirando café, 1954, desenho em técnica não identificada/suporte não identificado, 34x45cm.
Menino Jesus de Batatais [1952], desenho a grafite e nanquim pincel/papel, 39x30cm.
Retrato de Maria, 1932, desenho a grafite e lápis de cor/papel pardo, 25,5x21,6cm.
Retirantes, 1944, painel a óleo/tela, 190x180cm.
Pé, 1937, desenho a carvão/papel, 26x27cm.
Mãos e pés [1937], desenho a carvão/papel, 60x40cm
Morro [1933], desenho a grafite/papel, 36,5x54cm
Despejados [1934], desenho a grafite/papel, 28x37cm
A Primeira Missa no Brasil [1948], desenho a grafite e papel, 27x49cm
Tiradentes, 1948-1949, painel a têmpera/tela, 309x1.767cm
Tiradentes, 1948-1949, painel a têmpera/tela, 309x1.767cm.
Tiradentes, 1948-1949, painel a têmpera/tela, 309x1.767cm
Descobrimento do Brasil, c.1954-1955, desenho a grafite/papel, 100x80cm
Cabeça de índio, 1938, desenho a crayon, sanguínea e sépia/papel, 34x26cm
Enterro na rede, c.1954, desenho a grafite/papel, 36x51cm
Menino com carneiro, 1953, desenho a grafite/papel, 23,8x22,5cm
Paz, c.1955, desenho a grafite/cartolina, 137,5x91,5cm
Guerra, c.1953, desenho a grafite/papel, 70x50cm
Senhor Bom Jesus da Cana Verde [1952], desenho a grafite, 16x21cm
Menino morto [1944], desenho a grafite/papel, 18x18cm
Bandeirantes [1956], desenho a grafite/papel, 25x20cm
Garimpeiros, 1954, desenho a grafite/papel, 14x24cm
Lenhadores, c.1937-1938, desenho a carvão/papel, 46,7x34cm
Fumo [1938], desenho a carvão/papel kraft, 250x294cm
Futebol em Brodowski [1933], desenho a grafite/papel, 28x35cm
Mãos e piões, c.1944-1945, desenho a grafite e lápis de cor/cartolina, 22x28cm
Palaninho, 1930, desenho a grafite/papel, 19,5x13cm
Copyright © 1956 e 1978 Antonio Callado
Copyright © 2003 Paulo Crisostomo Watson Callado e Teresa Carla Watson Callado
Copyright das obras de Candido Portinari © João Candido Portinari

Edição de 1956, MAM-RJ; 1978, Paz & Terra

Copyright desta edição © 2003:


Jorge Zahar Editor Ltda.
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A reprodução não autorizada desta publicação, no todo
ou em parte, constitui violação de direitos autorais. (Lei 9.610/98)

Todos os esforços foram feitos no sentido de localizar e contatar os detentores dos direitos das
imagens aqui reproduzidas.
Teremos prazer em providenciar eventuais correções.

Grafia atualizada respeitando o Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa

Produção do arquivo ePub: Simplíssimo Livros

Edição digital: novembro 2013


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monarca da dinastia Tudor e a maior governante da história da
Inglaterra, que sob seu comando se tornou a grande potência
política, econômica e cultural do Ocidente no século XVI. Seu
reinado durou 45 anos e sua trajetória, lendária, está envolta em
drama, escândalos e intrigas.

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biografia apresenta um novo olhar sobre a Rainha Virgem e é uma
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dez anos. Apoiada em novas pesquisas, oferece uma perspectiva
inédita e original da vida pessoal da monarca e de como ela
governou para transformar a Inglaterra de reino em "Estado".

Aliando prosa envolvente e rigor acadêmico, a autora recria com


vivacidade não só o cenário da era elisabetana como também o
complexo caráter da soberana, mapeando sua jornada desde suas
origens e infância - rebaixada de bebê real à filha ilegítima após a
decapitação da mãe até seus últimos dias.

Inclui caderno de imagens coloridas com os principais retratos de


Elizabeth I e de outras figuras protagonistas em sua biografia, como
Ana Bolena e Maria Stuart.

"Inovador... Como a história deve ser escrita." Andrew Roberts,


historiador britânico, autor de Hitler & Churchill

"... uma nova abordagem de Elizabeth I, posicionando-a com solidez


no contexto da Europa renascentista e além." HistoryToday

"Ao mesmo tempo que analisa com erudição os ideais


renascentistas e a política elisabetana, Lisa Hilton concede à
história toda a sensualidade esperada de um livro sobre os Tudor."
The Independent

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Castells examina os movimentos sociais que eclodiram em 2011 -
como a Primavera Árabe, os Indignados na Espanha, os
movimentos Occupy nos Estados Unidos - e oferece uma análise
pioneira de suas características sociais inovadoras: conexão e
comunicação horizontais; ocupação do espaço público urbano;
criação de tempo e de espaço próprios; ausência de lideranças e de
programas; aspecto ao mesmo tempo local e global. Tudo isso,
observa o autor, propiciado pelo modelo da internet.
<p>O sociólogo espanhol faz um relato dos eventos-chave dos
movimentos e divulga informações importantes sobre o contexto
específico das lutas. Mapeando as atividades e práticas das
diversas rebeliões, Castells sugere duas questões fundamentais: o
que detonou as mobilizações de massa de 2011 pelo mundo? Como
compreender essas novas formas de ação e participação política?
Para ele, a resposta é simples: os movimentos começaram na
internet e se disseminaram por contágio, via comunicação sem fio,
mídias móveis e troca viral de imagens e conteúdos. Segundo ele, a
internet criou um "espaço de autonomia" para a troca de
informações e para a partilha de sentimentos coletivos de
indignação e esperança - um novo modelo de participação cidadã.

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Rebeliões no Brasil Colônia
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Lideradas pela eloqüente Valentina, as mulheres de Atenas decidem


tomar conta do poder, cansadas da incapacidade dos homens no
governo. Elas se vestem como homens, tomam a Assembleia e
impõem sorrateiramente uma nova constituição, introduzindo um
sistema comunitário de riqueza, sexo e propriedade.
Esta comédia é uma sátira às teorias de certos filósofos da época,
principalmente os sofistas, que mais tarde se cristalizaram na
República de Platão. As comédias de Aristófanes são a fonte mais
autêntica para a reconstrução dos detalhes da vida cotidiana em
Atenas na época clássica.

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