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Artigo
de Revisão 1
Pesquisa clínica: fundamentos, aspectos éticos e perspectivas
Jaderson S. Lima 1,4, Denise de La Reza 2,4, Sérgio Teixeira 4, Cláudia Costa 3,4
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Sanofi-Synthelabo Ltda (Brasil)
A ambigüidade com que o termo é usado pode ser Os princípios que obrigatoriamente fundamentam
depreendida pela definição de “ensaio clínico”, feita o ensaio clínico são aqueles que determinam e
pela agência reguladora dos Estados Unidos, o Food disciplinam a pesquisa científica e devem servir aos
and Drug Administration (FDA), como sinônimo mesmos propósitos, além de contemplar o mesmo
de “pesquisa clínica” 2 . Os principais e mais rigor metodológico. A finalidade do exercício
completos textos sobre o tema procuram diferenciar intelectual da pesquisa se expressa na busca por
os dois termos através de definições mais novos conhecimentos8. Observações clínicas úteis
rigorosas3,4,5,6. No sentido etimológico a palavra são obtidas – e sempre o foram – com base na
ensaio significa “tentativa” ou “experiência”. Uma experiência clínica crível, porém antes do advento
experiência ou um experimento corresponde a uma da experimentação clínica, a referência clínica era o
ou mais observações feitas por um cientista sob paciente do ponto de vista individual. Depreende-
condições por ele controladas. O ensaio clínico, se daí o uso clássico do termo “caso clínico” como
portanto, pode ser definido como uma experiência entidade unificada do raciocínio médico. A
que se destina a testar um tratamento médico em generalização do conhecimento do indivíduo para
seres humanos. De modo mais abrangente, é uma a população era informal, variava conceitualmente
pesquisa conduzida em pacientes, ou em de uma pessoa para a outra e, obviamente,
voluntários sadios, usualmente destinada a avaliar contemplava as falhas inerentes à formulação de
um novo tratamento. O ensaio clínico destina-se a juízo de valor baseado na percepção humana.
responder a um questionamento científico com
vistas a encontrar melhores opções terapêuticas para Muitos avanços da Medicina no século XX foram
tratar os pacientes7. Os ensaios clínicos e os métodos baseados no progresso eventual de idéias existentes.
1 Professor Adjunto – Departamento de Clínica Médica – Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
2 Médica do Serviço de Alergologia e Imunologia – Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (UFRJ)
3 Professor Assistente de Pneumologia e Tisiologia – Faculdade de Medicina da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
4 Diretoria Médico-Científica – Sanofi~Synthelabo Ltda (Brasil)
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documentos essenciais para a condução de um mas também a eficácia é estudada. Estes estudos
estudo. O pleno conhecimento destas normas, podem envolver 300 pacientes (ou mais) , sendo
diretrizes e desses regulamentos deve preceder subdivididos em IIa e IIb. O estudo IIa caracteriza-
o início de qualquer ensaio clínico. se por ser realizado em população selecionada de
pacientes, e tem por objetivo avaliar vários aspectos
de segurança e eficácia (curva dose-resposta, tipo
3 As fases do ensaio clínico de paciente, freqüência da dose, etc.) Os estudos IIb
são estudos que avaliam a eficácia e a segurança do
Como afirmado anteriormente, a definição de medicamento em teste nos pacientes com a doença
pesquisa clínica não está livre de ambigüidades e, a ser tratada, diagnosticada ou prevenida. Em geral,
muito embora a que é amplamente utilizada seja correspondem a uma demonstração de eficácia sob
de difícil generalização6, o ensaio clínico pode ser condições experimentais mais rigorosas,
definido e estadiado em fases. Por Fase I envolvendo um grupo controle comparativo.
entende(m)-se o(s) primeiro(s) estudo(s) em seres Mesmo nesta fase, outros dados experimentais de
humanos (estudos iniciais de segurança), estudos em animais podem ser agregados e também
compreendendo principalmente, a administração são levados em consideração, com vistas a
do medicamento em poucos voluntários sadios (de modificações no curso dos estudos clínicos5.
20 a 80, p.ex.) que em geral são pagos para participar
do estudo. Nestes estudos, os voluntários são Os estudos de Fase III, também denominados de
monitorados por 24 horas, já que se busca avaliar estudos de eficácia comparativa, são aqueles nos
os efeitos das primeiras doses (estabelecer a faixa quais o medicamento em estudo é administrado a
de dose tolerada, de única a múltiplas doses, ou seja, uma população de pacientes muito próxima
dose segura e posologia). Estes estudos podem daquela a que se destina após a sua comercialização.
eventualmente ser conduzidos em pacientes Aqui, é usada esta expressão (muito próxima)
gravemente enfermos, em circunstâncias nas quais certamente porque estes estudos são controlados,
a toxicidade elevada torna-se aceitável (pacientes impõem critérios de inclusão e exclusão que muitas
com câncer, p.ex.) ou mesmo em pacientes com vezes não correspondem à realidade da “prática
doenças como epilepsia quando se quer averiguar médica”, usam grupos-controle que têm placebo
aspectos farmacocinéticos (interação medicamentosa como agente comparativo e podem impor que os
com enzimas microssomais, por exemplo). Nestes pacientes façam uso da terapia-padrão. Como
últimos casos, a eficácia também pode ser avaliada18. geralmente estes estudos são multicêntricos
internacionais, a terapia-padrão refere-se ao que há
As doses estabelecidas nos estudos Fase I são de mais atual, com base nas diretrizes estabelecidas
utilizadas para orientar justificativas dos protocolos pelas sociedades médicas internacionais, e isto pode
dos estudos de Fase II nos quais, não só a segurança, alterar os parâmetros comparativos da relação
Quadro 1
Teste de Segurança Pré-Clínica em Animais
Segurança Modelo do teste Duração da dose
Depois de comercializado, o medicamento continua Deve-se deduzir, ainda, que a ética em pesquisa
a ser estudado. Estes estudos são chamados de Fase clínica compreende três princípios que
IV, e têm por objetivo obter mais informações sobre fundamentam a sua execução: (1) respeito pelas
os seus efeitos, suas interações medicamentosas, e, pessoas (obtenção de um termo de consentimento
sobretudo, ampliar as avaliações de segurança livre e esclarecido; confidencialidade; proteção
realizadas por intermédio dos estudos daqueles com incapacidade de tomar decisões); (2)
farmacoepidemiológicos5,18. beneficiência (não causar dano, maximizar
benefícios reduzindo os riscos); (3) justiça
distributiva (desenho adequado do estudo,
4 Aspectos regulamentadores e éticos pesquisadores e equipe qualificados, balanço
favorável risco/benefício, seleção eqüitativa de
Como escrito anteriormente, a pesquisa clínica é pacientes). Os protocolos devem ser aprovados por
regulada, na maioria dos países, sob a égide do Comitês de Ética Institucionais, além de seguir
Código de Nuremberg (1948), pela Declaração de outros procedimentos regulamentadores nacionais
Helsinki, e pelos princípios que norteiam o que se e internacionais15. Estudos multicêntricos devem ter
denominam diretrizes da “Boa Prática Clínica” Comitês de Avaliação de Segurança independentes
(ICH-GCP)19. O fundamento desta regulamentação para monitorar os dados do estudo e decidir, com
baseia-se no bem estar dos indivíduos voluntários autonomia, a continuidade ou não do mesmo.
a participar de uma pesquisa 18. Todos os que
participam direta ou indiretamente na execução de Aliás, em uma revisão recente sobre os processos
um ensaio clínico, sobretudo as agências de garantia da segurança dos participantes em
reguladoras, devem priorizar a segurança dos ensaios clínicos, Califf et al (2003)24 discutem uma
pacientes, com base na acurácia e qualidade dos série de possibilidades e limitações dos comitês de
dados, bem como na objetividade, integridade e ética, patrocinadores, comitês independentes de
confiabilidade dos mesmos18,20. avaliação dos dados de segurança, instituições de
pesquisa, autoridades reguladoras e pesquisadores,
Embora seja um assunto complexo para ser e propõem recomendações extremamente
abordado, mesmo que em muitas linhas, uma das relevantes. Se colocadas em prática, essas
principais dificuldades de se contemplar aspectos recomendações permitiriam que se chegassem a
éticos em pesquisa clínica resulta de uma dicotomia condições muito mais precisas sobre processos e
encontrada na distinção artificial do que se métodos de garantia da segurança de pacientes
denomina pesquisa e prática em Medicina21. Outro incluídos em pesquisa clínica, entre as quais citam-
problema reside no mito e na ignorância que se o planejamento adequado da monitoria, a revisão
envolvem o termo experimento. Quando um médico de dados centralizada para estudos multicêntricos,
está seguro sobre o desfecho de um procedimento e a inspeção local para estudos realizados em um
ou tratamento refere-se à prática mas, ao contrário, único centro.
diante da incerteza, considera, então, uma pesquisa
ou experiência6. Quanto à observância de eventuais aspectos legais,
há uma crença popular, ainda muito difundida, de
A discussão sobre o que torna ética uma pesquisa que as pessoas seriam tratadas como “cobaias”.
ou um ensaio clínico permeia muitos textos Além de falsa, esta afirmativa é um desserviço à
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ciência e, portanto, ao bem estar dos indivíduos, pois esta evolução. Se as previsões se mantiverem, os
é no ensaio clínico formal que se registra uma baixa centros participantes em pesquisa clínica localizados
incidência de negligência médica, os pacientes têm fora dos Estados Unidos e da Europa Oriental,
acesso a tratamento mais eficaz e são acompanhados crescerão de 15%, em 1998, para 30% até o ano de
como em nenhuma outra situação15. 200831. São inequívocos os benefícios resultantes da
inclusão do Brasil neste processo:
Há muito questionamento ético acerca do uso de • Até há pouco tempo atrás, os medicamentos
placebo nos ensaios clínicos, porque se há algo de eram registrados com dossiês resultantes de
que o paciente não necessita, isto é o placebo. estudos feitos em outros países, ou seja, a
Entretanto, o efeito placebo é bem reconhecido na população brasileira fazia e faz uso de
Medicina25 e, até hoje, não há nenhum método medicamentos cuja segurança e eficácia foram
científico melhor para se avaliar o grupo avaliadas em amostras populacionais distintas
comparativo que não seja usando-se um grupo- dela. Não é por acaso que o FDA exige, para
controle com placebo, mesmo quando há registrar um medicamento, que pelo menos 30%
tratamento-padrão26. da amostra populacional do estudo seja
composta de americanos. No Japão, todas as
Em uma revisão completa sobre este tema, Brody fases dos estudos devem ser realizadas in loco
(1997)27 aponta claramente em quais situações o para que o medicamento seja registrado.
placebo seria eticamente questionável. Uma delas é • A participação em estudos internacionais
quando existe tratamento-padrão para a respectiva permite o intercâmbio de informações entre
indicação. Quando as evidências que respaldam este centros de excelência, criando um ambiente rico
tratamento são sólidas o suficiente para não impor e crítico o suficiente para desenvolver e
riscos aos pacientes, constam na literatura aprimorar os métodos de ensino e pesquisa, bem
especializada e são reconhecidas pelos pares, o como a aplicação direta e imediata desse
medicamento em teste deve ser comparado a este conhecimento no cuidado com os pacientes.
tratamento. Neste caso, o uso do placebo poder se Como foi dito anteriormente, só se deve lamentar
sobrepor à terapia-padrão. o fato de a aplicação desse conhecimento não ser
tão rápida e eficiente.
Muitos tratamentos bem estabelecidos tiveram seu • Os estudos multicêntricos – nacionais e,
uso proscrito com base em resultados obtidos principalmente, internacionais – são elaborados
através de estudos clínicos bem desenhados e contemplando-se o que há de mais atual sobre a
controlados com placebo. Em alguns, o estudo foi patologia em questão, e incorporam os métodos
interrompido por conta de uma melhor relação e tecnologias exigidas pelo que costuma ser
benefício/risco nos pacientes que fizeram uso do denominado de “estado da arte” (tradução do
placebo, como no “Cardiac Arrhytmia Supressor inglês “state-of-the-art”). Estas exigências são
Trial”10 e no mais recente e surpreendente estudo feitas pelas agências reguladoras (autoridades
que avaliou os riscos e benefícios da reposição sanitárias), comitês de ética – com maior
hormonal (estrogênio + progesterona) em diversidade étnica e cultural – além dos centros
mulheres saudáveis pós-menopausa28,29. Outros de excelência e comitês independentes de análise
exemplos são citados por Brody (1997) 27. Até de segurança ou de adjudicação de eventos. Assim
mesmo em cirurgia, onde o uso de placebo pode sendo, os protocolos aprovados e a execução do
ser considerado inconcebível, há alguns estudo se refletem em um controle mais eficiente,
argumentos científicos e eticamente válidos exigente e diversificado. Aliás, na mesma revisão
conforme explicitado em revisão recente sobre o de Califf et al.(2003)24 há indicativos das sensíveis
tema publicado por Horn e Miller (2002)30. diferenças entre os estudos feitos em centro único
e os multicêntricos. Segundo os autores, há maior
vulnerabilidade para a ocorrência de problemas
5 Os estudos clínicos multicêntricos de segurança quando o ensaio clínico é realizado
em um único centro.
A pesquisa clínica avança cada vez mais no sentido • Ao se tornarem mais competitivos, os Centros
de necessitar da cooperação entre inúmeros centros Brasileiros e Latino-americanos incorporam
de vários países. Com a participação dos países do melhorias significativas no que, definitivamente,
Leste Europeu, houve um aumento exponencial do pode ser oferecido aos pacientes em termos
número de pacientes incluídos nos estudos assistenciais. É reconhecido que pacientes
multicêntricos internacionais. A América Latina assistidos como voluntários de pesquisa clínica
caminha também aceleradamente para a sua podem apresentar as menores taxas de
inclusão definitiva neste contexto. Além do Brasil, morbidade e mortalidade pelas razões expostas
a Argentina, o México e o Chile têm contribuído com acima já que, nos estudos clínicos controlados
Revista da SOCERJ - Out/Nov/Dez 2003 231
surgem as novas diretrizes para tratamento de propiciaram um grande avanço para o país. O
diversas doenças32. reflexo disso é percebido pelo incremento ou até
mesmo inclusão definitiva do país nas atividades
Se por um lado os estudos multicêntricos de pesquisa clínica que se verifica a partir de 1996,
internacionais exibem um contexto favorável, o que após a publicação da Resolução CNS 196/96
ultimamente vem sendo denominado como (Figura 1). Não diferente de outros países e, como
“globalização dos ensaios clínicos”, traz também todo processo evolutivo, o regulamento brasileiro
muitos temas à reflexão33,34,35,36. Não há dúvida de tende a estabelecer e adotar procedimentos
que um deles é a diversidade ou diferenças na consoantes com as demais diretrizes.
avaliação reguladora e ética dos estudos, quer seja
por naturais diferenças culturais ou pelas sensíveis No anseio de que a harmonização ética e
diferenças no treinamento e formação das pessoas reguladora caminhe para o consenso rápido e
que têm assento nos diversos comitês ou órgãos eficaz, transcreve-se o explicitado no artigo de
reguladores. Karbwang et al.(2002), quando afirmam:
“nenhuma autoridade, agência ou país, deve tomar
Alguns autores alertam para as marcantes para si o encargo ou responsabilidade de criar as
diferenças encontradas na estrutura revisional, melhores condutas éticas revisoras em um ambiente
requisitos para revisão ética jurisdicional ou de pesquisa clínica globalizada. Não é factível. Não
procedimentos para a submissão e para a avaliação seria ético. Simplesmente não funcionaria”36.
de projetos ou protocolos de pesquisa, já que
parecem não coincidir, mesmo quando se
consideram países da União Européia 36. Para 6 O Futuro da Pesquisa Clínica
harmonizar e instrumentalizar melhor estes
comitês, várias comissões internacionais foram Com o avanço da pesquisa, houve um incremento
criadas como fórum de discussão (OMS/TDT; substancial no conhecimento da genômica e
OHRP, FERCAP na Ásia, FLACEIS na América proteômica. As companhias farmacêuticas
Latina)36. estudaram, em 1996, 498 proteínas e estas serão
possíveis alvos para o desenvolvimento de novos
Embora recentes, as normas e diretrizes medicamentos. Por outro lado, sabe-se que a espécie
regulamentadoras da pesquisa clínica no Brasil humana contém entre 30 e 40 mil genes, que
30
Figura 1
Pesquisas Clínicas autorizadas pela ANVISA de 1995 a dezembro de 2002
Fonte: Anvisa: <http://www.anvisa.gov.br>
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