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TEORIA X PRÁTICA:
A CORRUPÇÃO FINALÍSTICA
DO ESTADO BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
Resumo:
Este artigo tem por objetivo analisar como a lacuna existente entre o
que determina a teoria e o que acontece na prática possibilita a cor-
rupção da finalidade do Estado brasileiro contemporâneo, colocando
em segundo plano a promoção da dignidade da pessoa humana e
priorizando fatores de ordem econômica ou política. Todo esse pro-
cesso é catalisado por um déficit interpretativo, intencional ou não,
por parte dos administradores públicos e não observados nos pro-
cessos de controle, permitindo que os direitos básicos de grande
parte da população sejam desrespeitados.
Abstract:
This article aims to analyze how the gap between what determines the
theory and what happens in practice enables the corruption of the pur-
pose of contemporary Brazilian state, putting in second place the pro-
motion of human dignity and prioritizing of an economic factors or policy.
This entire process is catalysed by an interpretative deficit, intentional
or not, by public administrators and not observed in control processes,
allowing basic rights of much of the population are not respected.
Resumen:
En este artículo se pretende analizar cómo la brecha entre lo que de-
termina la teoría y lo que sucede en la práctica permite a la corrupción
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de la finalidad del estado brasileño contemporáneo, poniendo en se-
gundo lugar, la promoción de la dignidad humana y la priorización de
una o factores económicos política. Todo este proceso es catalizado
por un déficit interpretativa, intencional o no, por los administradores
públicos y no se observa en los procesos de control, permitiendo que
los derechos básicos de gran parte de la población no son respetados.
Palavras-chave:
Dignidade da pessoa humana; interpretação;controle.
Keywords:
Dignity of human person; interpretation, control.
Palabras clave:
La dignidad humana; interpretación, control.
INTRODUÇÃO
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grega, o cidadão, em si, é reconhecido como tal a partir de sua in-
serção no grupo, na comunidade política” (CACHICHI, 2011).
Conceituar política é uma tarefa árdua, por demandar valores
e princípios de uma determinada sociedade em uma determinada época.
O que se pode dizer é que, para existir política, deve-se existir uma so-
ciedade. De acordo com Dalmo de Abreu Dallari (2001), três elementos
são necessários para que um agrupamento humano possa ser consi-
derado uma sociedade: uma finalidade ou valor social, manifestações
de conjunto ordenadas e o poder social.
A finalidade social pode ser definida como um ato de escolha,
um objetivo conscientemente estabelecido mediante uma ação livre.
Em uma sociedade, formada por diversos grupos sociais, a finalidade
deve ser estabelecida de acordo com as necessidades fundamentais
e com os valores consagrados por todos, visando ao bem comum, que
pode ser genericamente definido como o “conjunto de condições, in-
cluindo a ordem jurídica e a garantia de possibilidades que consintam
e favoreçam o desenvolvimento integral da personalidade humana”
(DALLARI 2001, p. 24).
As manifestações de conjunto ordenadas consistem na ne-
cessidade de participação conjunta e harmônica dos agrupamentos
de pessoas visando à consecução do objetivo almejado. E, para
tanto, tais manifestações devem atender três requisitos principais e
cumulativos: reiteração, ordem e adequação.
E, por fim, o poder social, considerado por muitos como o
principal no estudo de uma sociedade, está intrinsecamente relacio-
nado com os aspectos culturais e sociais do momento a ser anali-
sado e, portanto, é um instituto de difícil definição. Mesmo assim,
Dallari aponta algumas características gerais, necessárias para que
se chegue a uma leve noção do fenômeno. Segundo ele:
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Dallari ainda afirma que o Estado seria, portanto, uma so-
ciedade política - ou seja, que “visa criar condições para a consecu-
ção dos fins particulares de seus membros, ocupando-se da
totalidade das ações humanas, coordenando-as em função de um
fim comum” (2001, p. 48) - com alguns elementos essenciais carac-
terísticos, quais sejam: o território, o povo, a soberania e a finalidade.
Norberto Bobbio (1998, p. 954-955) defende a ideia de que
política é “a atividade ou conjunto de atividades que, de alguma ma-
neira, têm como termo de referência a pólis, ou seja, o Estado” e está
intimamente ligada ao conceito de poder, definido como “consistente
nos meios adequados à obtenção de qualquer vantagem”, ou como
“conjunto dos meios que permitem alcançar os efeitos desejados”. Se-
gundo ele, o poder se exterioriza em três maneiras: o poder econômico,
o poder intelectual e o poder político. “O poder mais relevante na so-
ciedade é o poder político, pois detém, privativamente, a força para ma-
nutenção da ordem. Impõe, nos limites da lei, a vontade de quem o
exerce, atuando em nome do povo” (apud PINTO, 2010, p. 207).
Paulo Bonavides entende que o poder pode ser definido
como um “elemento essencial constitutivo do Estado” e representa
“aquela energia básica que anima a existência de uma comunidade
humana, num determinado território, conservando-a unida, coesa e
solidária”. Para ele, com o poder se entrelaçam a força e a compe-
tência, ou seja, a legitimidade oriunda do consentimento. A principal
característica do Estado moderno seria a prevalência da legitimi-
dade sobre a força, caracterizada por um processo de despersona-
lização do poder, marcado pela “passagem de um poder de pessoa
a um poder de instituições, de poder imposto pela força a um poder
fundado na aprovação do grupo, de um poder de fato a um poder
de direito” (2011, p. 115).
Portanto, nos Estados Modernos o poder tem por funda-
mento a legalidade e a legitimidade, em que a legalidade exprime,
basicamente, a observância das leis e do Direito e a legitimidade en-
globa crenças de determinada época, que presidem à manifestação
do consentimento e da obediência (BONAVIDES, 2014).
Percebe-se, dessa maneira, que o Direito possui um papel
fundamental na caracterização do poder estatal e na maneira com
que ele se manifesta, não sendo possível classificá-lo exclusivamente
como poder político. Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2006, p. 3)
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considera poder e Direito como os “dois grandes instrumentos do
progresso e da civilização: o poder - a energia que move os homens
e as sociedades para a realização de seus objetivos, e o direito - a
técnica social criada para a disciplina e a contenção do poder”.
Assim, o poder do Estado hodiernamente se manifesta obe-
decendo ao mandamento constitucional do Estado Democrático de
Direito, previsto no artigo 1º da Constituição Federal. E, para uma me-
lhor compreensão do tema, é necessário analisar três aspectos fun-
damentais do poder: o Estado, como poder instituído; a democracia,
como meio de se atingir o consenso, considerando o povo como
“dono” do poder; e o Direito, como um instrumento de limitação do
poder. Entretanto, para fins desse estudo, serão analisados somente
o Estado e o Direito, tendo por base a Constituição Federal de 1988.
É claro que a separação aqui demonstrada é apenas para
fins didáticos, visto que os institutos mencionados não são constru-
ções atemporais e independentes, sendo impossível, empiricamente,
fazer uma separação rígida entre eles.
ESTADO
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Os fins objetivos compreendem “o papel representado pelo Es-
tado no desenvolvimento da história da Humanidade”. Para al-
guns autores, como Platão e Aristóteles, existem fins universais
objetivos, comuns a todos os Estados de todos os tempos. Ou-
tros autores, entretanto, não admitem esse pensamento, defen-
dendo a ideia de que o Estado é um fim em si mesmo (teoria
organicista); de que não existe uma finalidade específica para o
Estado, visto que a vida social não pode ser controlada e domi-
nada (teoria mecanicista); ou que, na verdade, o que existem são
fins particulares objetivos, e não fins universais objetivos, como
defendido, levando-se em consideração o fato de cada Estado
ter seus fins particulares, “que resultam das circunstâncias em
que eles surgiram e se desenvolveram e que são condicionantes
de sua história” (2001, p. 104).
Já os fins subjetivos se referem à conjugação entre os
fins do Estado e os fins individuais. “O Estado é sempre uma uni-
dade de fim, ou seja, é uma unidade conseguida pelo desejo de
realização de inúmeros fins particulares, sendo importante loca-
lizar os fins que conduzem à unificação” (DALLARI, 2001, p. 104).
Outra classificação importante é a que diferencia os fins
do Estado segundo o ponto de vista do relacionamento do Estado
com os indivíduos, quais sejam: fins expansivos, fins limitados e
fins relativos.
Um Estado com fins expansivos atua desmesurada-
mente em todas as áreas da vida social, interferindo diretamente
em todas elas. Dallari elenca como subdivisões dessa classifica-
ção as teorias utilitárias, segundo as quais o “bem supremo má-
ximo é o desenvolvimento material, mesmo que isso se obtenha
com o sacrifício da liberdade e de outros valores fundamentais
da pessoa humana” (2001, p. 104-105); e as teorias éticas, que
“preconizam a absoluta supremacia de fins éticos, sendo este o
fundamento da ideia do Estado ético” (2001, p. 105). Um exemplo
desse tipo de Estado seria o Estado de bem-estar.
Um Estado com fins limitados ocupa a “posição de mero
vigilante da ordem social, não admitindo que ele tome iniciativas,
sobretudo em matéria econômica”. Dentre os exemplos desse
tipo de Estado encontram-se o Estado de polícia, em que só há
uma atuação estatal para “proteger a segurança dos indivíduos,
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nos casos de ameaça externa ou de grave perturbação interna”;
e o Estado-liberal, inspirado em John Locke, o qual possui exclu-
sivamente a “função de proteger a liberdade individual, empres-
tando um sentido muito amplo ao termo liberdade, não admitindo
que qualquer indivíduo sofra a mínima restrição em favor de outro
indivíduo, da coletividade ou do Estado” (2001, p. 105).
Já um Estado com fins relativos baseia-se na ideia de
solidariedade. “Trata-se de uma nova posição, que leva em conta
a necessidade de uma atitude nova dos indivíduos no seu rela-
cionamento recíproco, bem como nas relações entre o Estado e
os indivíduos” (DALLARI, 2001, p. 106). Dallari ainda comple-
menta, afirmando que nesse tipo de Estado, as categorias de ta-
refas estatais se resumem em conservar, ordenar e ajudar.
Existe uma última classificação que divide os fins do Es-
tado em: fins exclusivos ou essenciais, que são aqueles que per-
tencem originariamente ao Estado e compreendem a segurança,
externa e interna; e fins concorrentes, complementares ou inte-
grativos, os quais “não exigem que o Estado trate deles com ex-
clusividade, achando-se, no todo ou em parte, identificados com
os fins de outras sociedades” (DALLARI, 2001, p. 107).
Sintetizando todas as ideias apresentadas, Dallari afirma
que o Estado, como sociedade política, possui um fim geral,
constituindo-se em meio para que os indivíduos e as demais so-
ciedades possam atingir seus respectivos fins particulares. No
Estado moderno, pode-se afirmar que o fim do Estado é o bem
comum, definido como o “conjunto de todas as condições de vida
social que consintam e favoreçam o desenvolvimento integral da
personalidade humana”, as quais precisam ser verificadas no
contexto do Estado, em função das peculiaridades de cada povo
(DALLARI, 2001, p. 107).
Vale ressaltar, ainda, o ensinamento do referido autor se-
gundo o qual, na consecução de seus objetivos, os Estados
devem levar em conta três dualismos fundamentais em suas de-
cisões: necessidade e possibilidade, indivíduos e coletividade, e
liberdade e autoridade, agindo da forma que melhor atenda aos
anseios sociais.
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ESTADO CONTEMPORÂNEO
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A base de sustentação do poder monárquico era a ideia de que o
poder dos reis derivava de algo divino, transcendental, o que sig-
nificava a completa autonomia do monarca e a impossibilidade de
controle ou limitação por nenhum outro poder ou instituição.
A segunda versão do Estado moderno foi o Estado liberal,
inaugurado com a Revolução Francesa em 1789, que surgiu da
luta burguesa contra o absolutismo e caracterizava-se por “uma
ideologia de princípios individualistas, que defendia garantias contra
os poderes arbitrários, direitos humanos, liberdade, mobilidade so-
cial e, principalmente, a limitação da área de ingerência do Estado,
entre outras ideias” (STRECK; MORAIS, 2004, p. 49).
Definir o liberalismo é uma tarefa difícil, mas Streck e
Morais, utilizando a divisão formulada por Roy Macridis, identifi-
cam alguns núcleos distintos - moral, político e econômico -, que
se mantiveram em todas as fases de seu desenvolvimento.
No núcleo moral, encontram-se as liberdades pessoais,
fundadas na garantia de proteção individual contra o governo, e
sociais, que correspondem às denominadas oportunidades de
mobilidade social, “sendo que todos têm a possibilidade de al-
cançar uma posição na sociedade compatível com suas poten-
cialidades” (STRECK; MORAIS, 2004, p. 53).
O núcleo político apresenta-se sob quatro aspectos: 1)
consentimento individual, fonte da autoridade política e dos po-
deres do Estado; 2) representação, em que os competentes para
decidir eram eleitos pelo povo, conforme determinados requisitos
pré-estabelecidos; 3) constitucionalismo, definido como o res-
peito a um documento fundamental que delimitasse o poder po-
lítico e orientasse a atividade estatal; 4) soberania popular, em
que a fonte do poder político é a vontade geral, normalmente ex-
ternada por meio de representantes eleitos.
E, por fim, o núcleo econômico pode ser relacionado com
o modelo de economia liberal, cujos pilares são a propriedade
privada e o mercado livre de controles estatais, e se relaciona
com “a ideia dos direitos econômicos e de propriedade, indivi-
dualismo econômico ou sistema de livre empresa ou capitalismo”
(STRECK; MORAIS, 2004, p. 55).
No final do século XIX, impulsionada pelo crescimento
das cidades e surgimento do proletariado urbano, houve uma
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mudança significativa no pensamento liberal, com a substituição
de um minimalismo estatal, atuante apenas para a segurança in-
dividual, por uma visão mais abrangente, em que o Estado teria
o papel de remover os obstáculos “para o autodesenvolvimento
dos homens, pois com um maior número de indivíduos podendo
usufruir das mais altas liberdades, estar-se-ia garantindo efetiva-
mente o cerne liberal, qual seja: a liberdade individual” (STRECK;
MORAIS, 2004, p. 57). Assim, surge a ideia de justiça social, na
qual se preconiza a igualdade de oportunidades e a solidarie-
dade, e uma terceira versão do Estado entra em cena: o Welfare
State ou Estado de bem-estar social.
De acordo com Maximiliano Martin Vicente (2009), o Es-
tado de bem-estar social, estabelecido entre 1940-1960, período
conhecido como “era dourada do capitalismo”, visava recuperar
“o vigor e a capacidade de expansão dos países capitalistas após
a tensão social, econômica e política do período entre guerras”.
Por certo tempo, o objetivo foi alcançado, propiciando, através
do desenvolvimento econômico, das garantias sociais e do ofe-
recimento de emprego para a maioria da população nos países
mais desenvolvidos, o crescimento econômico industrial e a im-
plementação das políticas sociais por meio da participação de di-
ferentes setores da sociedade.
Certo é que o Estado, principalmente após a Segunda
Guerra Mundial, passou de figura passiva na ordem social, inter-
ferindo apenas quando era estritamente necessário, para uma fi-
gura ativa, com a obrigação não apenas de garantir direitos,
como também de provê-los. Por isso, Streck e Morais caracteri-
zam o Estado de bem-estar social como “aquele que garante
tipos mínimos de renda, alimentação, saúde, habitação, educa-
ção, assegurados a todo cidadão, não como caridade, mas como
direito político” (2004, p. 71).
Entretanto, o momento dourado do Estado de bem-estar
social começou a sucumbir em meados de 1970, principalmente
com as crises do petróleo de 1973 e 1979. A alta do preço do petró-
leo e do gás natural interferiu diretamente nas indústrias dos países
capitalistas e representou “uma das jogadas do bloco soviético para
estrangular o abastecimento de combustíveis da potência norte-
americana” (VICENTE, 2009), haja vista a ex-União Soviética ter
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sido uma potência na produção dos referidos combustíveis.
Nesse contexto, ganha força a ideologia neoliberal, cujas
ideias começaram a se consolidar na década de 1940, na cidade
de Mont Pèlerin, em que um grupo de intelectuais, liderados por
Friederich Hayek, se reuniam anualmente. Para os neoliberais,
“os problemas enfrentados pelos países ocidentais provinham
das pressões do operariado por melhores salários, o que resul-
tava em despesas excessivas por parte do Estado”.
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opinião: a globalização.
Houve, portanto, uma redefinição do papel do Estado,
provocada pela “formação de blocos políticos e econômicos, pela
perda de densidade do conceito de soberania e pelo aparente
esvaziamento do poder diante da globalização” (BARROSO,
2011, p. 91). Mas isso não significa que o Estado tenha perdido
o protagonismo nas relações sociais e nem que está em vias de
desaparecer. No entendimento de Luís Roberto Barroso:
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E a pergunta que não quer calar: onde aparece o Brasil
nessa história?
Alguns autores afirmam que o Estado de bem-estar so-
cial nunca chegou a ser implantado no Brasil. A meu ver, nem o
Estado liberal, com seus ideias de liberdade do indivíduo e não
intervenção estatal, teve um desenvolvimento completo. Como
visto, o contexto histórico brasileiro sempre foi deslocado da his-
tória das civilizações ocidentais centrais, o que leva Streck e de
Morais (2004) a afirmarem que a modernidade brasileira é tardia
e arcaica, necessitando de uma atenção específica ao analisá-
lo e compará-lo com o de outros países. O que torna, dessa ma-
neira, a responsabilidade do Estado brasileiro maior ainda, visto
que “em países como o Brasil, em que o Estado Social não exis-
tiu, o agente principal de toda a política social deve ser o Estado”
(STRECK; MORAIS, 2004, p. 78).
É curioso estabelecer um papel tão importante para o
Estado em um momento em que as ideias neoliberais ganham
força, principalmente pela ineficiência estatal na consecução de
seus deveres fundamentais e pela atual crise político-econômica,
que necessita de medidas de austeridade para ser controlada (se
ainda for possível controlá-la). Assim, as desigualdades sociais
se agigantam. Como conciliar esses dois cenários?
Streck e Morais defendem a ideia de que o responsável
por essa conciliação seria o Direito, enquanto “legado da moder-
nidade [...] e como um campo necessário de luta para a implan-
tação das promessas modernas” (2004, p. 79). Assim, o
parágrafo 1º da Constituição cumpre um papel social importan-
tíssimo, ao estabelecer que a dignidade da pessoa humana é um
dos fundamentos da República Federativa do Brasil. Isso significa
que o Estado brasileiro tem como finalidade e como limite à sua
atuação a promoção dos direitos humano-fundamentais.
Entretanto, empiricamente, o problema que surge é a
inefetividade dos dispositivos da Constituição, o que causa uma
crise de legalidade, e a irresponsabilidade dos governantes em
suas decisões, perpetuada pela ineficácia dos órgãos de controle
e a quase inexistência do controle social.
Existe ainda um agravante nessa história: o Estado poiético.
Joaquim Carlos Salgado divide o Estado, desde a sua formação, em
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duas categorias – o ético e o poiético. O Estado ético seria a conju-
gação entre liberdade e poder, sendo classificado como imediato,
que abrange o período greco-romano até a Idade Média; técnico,
que surgiu no século XVII; e, o mediato ou Estado de Direito, que
teve como marco inicial a Revolução Francesa.
O Estado ético imediato caracteriza-se por sua dimensão
ética, é um “Estado para”, “que se justifica por uma finalidade; o
poder é para realizar alguma coisa, não é em si mesmo. E o que
o justifica é ético: o bem para o indivíduo, enquanto existente em
uma comunidade” (SALGADO, 2002).
No Estado ético mediato ou Estado de Direito existe uma
preocupação com relação à legitimidade. “O Estado ou o poder
político legitima-se ou justifica-se pela sua origem, pela técnica
com que o poder se exerce e pela finalidade” (SALGADO, 2002).
O Estado poiético, por sua vez, seria a ruptura do Estado
ético contemporâneo ou Estado de Direito, ou seja, o indivíduo,
considerado como um ser livre, deixa de ser um fim em si mesmo
e passa a ser um instrumento para algo ou alguém. Segundo
Joaquim Carlos Salgado (2002), na sociedade contemporânea,
existe um grupo que domina a técnica através do econômico,
transformando em mercadoria a força de trabalho e considerando
o trabalhador apenas em sua capacidade de fazer, impondo-lhe
o regime da oferta e da procura, expulsando-o da estrutura es-
sencial da unidade de produção, ou seja, a empresa. No Estado
poiético, o produto do fazer é o econômico, que nenhum com-
promisso tem com o ético, visto que não se dirige a realizar os
direitos sociais, e procura, com a aparência de cientificidade, sub-
jugar o político, o jurídico e o social.
Essa cisão do Estado causa graves consequências so-
ciais. De acordo com Salgado, essas consequências podem ser
resumidas em três grupos: um grupo de natureza moral, um de
natureza política e um de natureza jurídica. A consequência moral
se refere ao surgimento de uma corrupção da República, não
apenas de indivíduos, em que a burotecnocracia age como um
instrumento de usurpação da legitimidade democrática do poder.
A consequência política resume-se à sua incompatibili-
dade com a democracia, haja vista o aumento do poder burocrata
e a diminuição do poder exercido mediante a vontade popular. “O
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Estado poiético é uma das formas de usurpação ou alienação do
poder, operando uma cisão profunda entre a potestas ou titulação
do poder e a auctoritas ou exercício” (SALGADO, 2002).
E, por fim, a consequência jurídica é vista no caráter a-ético
ou a-jurídico desse tipo de Estado, que busca justificar-se pela pró-
pria técnica ou aparência de técnica que o define, causando uma
insegurança jurídica generalizada, catalisada por uma anarquia le-
gislativa, repleta de medidas provisórias, que nem sempre são ne-
cessárias ou urgentes, e emendas à Constituição, como soluções
para qualquer dificuldade encontrada pelo administrador.
Conclui-se, portanto, que apesar do aparato teórico exis-
tir, a realidade da sociedade brasileira é muito diferente do que
deveria ou poderia ser. Mesmo que a defesa da dignidade da
pessoa humana seja expressamente uma finalidade do Estado,
com proteção constitucional, por muitas vezes, argumentos polí-
ticos, econômicos ou tecnológicos se sobrepõem. Enquanto isso,
o Brasil continua em um ciclo vicioso interminável, no qual se di-
videm dois tipos de pessoas: “o sobreintegrado ou sobrecidadão,
que dispõe do sistema, mas a ele não se subordina, e o subinte-
grado ou subcidadão, que depende do sistema, mas a ele não
tem acesso” (STRECK; MORAIS, 2004, p. 80).
ESTADO DE DIREITO
131
ou seja, “através de um meio de ordenação racional, vinculativa-
mente prescritivo, de regras, formas e procedimentos que ex-
cluem o arbítrio e a prepotência”; h) segurança e certeza jurídicas
(STRECK; MORAIS, 2004, p. 99).
Gustavo Binenbojm define Estado Democrático de Di-
reito como a conjugação entre direitos fundamentais e democra-
cia, “estruturado como conjunto de instituições jurídico-políticas
erigidas sob o fundamento e para a finalidade de proteger e pro-
mover a dignidade da pessoa humana” (2014, p. 51).
Segundo André Ramos Tavares, a principal característica
de um Estado de Direito é a exigência de que a conduta dos de-
tentores do poder se coadune com a lei, como expressão da von-
tade geral. A imposição da legalidade justifica-se pela exigência
de legitimidade, segundo a qual “as leis hão de guardar corres-
pondência com os anseios populares, consubstanciados no es-
pírito constitucional” (2013, p. 518).
Entretanto, a legalidade, entendida apenas como o res-
peito à lei, passou por uma crise, marcada pela insuficiência da
lei em abranger uma complexidade de situações características
das sociedades modernas e pela ineficácia dos enunciados nor-
mativos de uma maneira geral, favorecida pela ineficiência dos
poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. André Ramos Tavares
acrescenta ainda o abuso praticado pelos integrantes do Poder
Legislativo, que decorria do “excesso de leis na regulamentação
da vida social, de sua indesejada intromissão em setores ante-
riormente ressalvados, do emaranhado e dispersividade das leis,
gerando a insegurança, bem como da falência qualitativa verifi-
cada como constante nas leis” (2013, p. 52).
Dessa forma, ganha força a ideia de se ter um documento
formal, hierarquicamente superior às leis e aos governantes e fun-
damento do ordenamento jurídico, que preveja não apenas as ca-
racterísticas basilares de um Estado, tal qual forma de governo e
sistema de governo, mas que também cumpra o papel de limitação
do poder. É claro que nem o constitucionalismo e nem a noção de
limitação do poder são recentes, mas o que torna o constituciona-
lismo moderno tão peculiar é a centralização jurídica da Constitui-
ção (contribuição da teoria de Kelsen em 1934) e o caráter
normativo dos princípios, instrumentos na necessária dinamicidade
132
jurídica e que serão analisados posteriormente.
CONSTITUCIONALISMO
133
dos valores da sociedade, que passam a ter aplicabilidade direta
e imediata, não necessitando da criação de uma lei posterior para
que tenha efeitos jurídicos. Além disso, os princípios adquirem o
status de referenciais interpretativos, ou seja, devem ser obser-
vados na aplicação das normas jurídicas, alcançando todos os
ramos do direito.
134
princípio, a dignidade humana funciona tanto como justificação
moral quanto como fundamento normativo para os direitos fun-
damentais” (BARROSO, 2013, p. 43). Barroso ainda afirma que,
em uma concepção minimalista, a dignidade da pessoa humana
é composta por três elementos: valor intrínseco da pessoa hu-
mana, autonomia individual e valor comunitário.
Qual seria, dessa maneira, a relação entre dignidade da
pessoa humana e direitos fundamentais? Segundo Barroso
(2013), o conteúdo jurídico do princípio da dignidade humana
vem associado aos direitos fundamentais e abrange aspectos
dos direitos individuais, políticos e sociais.
135
de valores em si, a serem protegidos e fomentados pelo Estado,
pelo Direito e pela sociedade.
136
INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E OS DIREITOS HUMANO-
FUNDAMENTAIS
137
direitos fundamentais?
Habermas propõe a substituição da razão prática kan-
tiana por uma razão comunicativa, ou seja, a maneira de conciliar
facticidade e validade no campo do Direito é através da razão
comunicativa, baseada no “uso da linguagem orientada pelo en-
tendimento, através da qual os atores coordenam suas ações
(agir comunicativo)” com implicações nas relações sociais.
Ele trabalha com três elementos principais: quem age,
quem sofre a ação e o que legitima a ação. Uma característica
intrínseca nos elementos “quem age” e “quem sofre a ação” é a
autonomia: com relação ao primeiro, subentende-se a autonomia
em utilizar ou não sua liberdade argumentativa e, ao segundo, a
autonomia em subordinar-se às regras que ele mesmo criou (so-
berania popular). No que se refere “ao que legitima a ação”, Ha-
bermas utiliza o princípio da teoria do discurso como pressuposto
para um agir comunicativo válido.
A teoria do discurso defendida por Habermas baseia-se
em uma racionalidade procedimental, segundo a qual as quali-
dades constitutivas da validade de um juízo devem ser procura-
das, não apenas na dimensão lógico-semântica da construção
de argumentos e da ligação lógica entre proposições, mas tam-
bém na dimensão pragmática do próprio processo de fundamen-
tação (1997, p. 281). Os direitos humanos, nesse contexto,
exerceriam a função de standards, ou seja, de parâmetros tanto
na argumentação quanto na verificação da conformidade dessa
argumentação com a realidade empírica.
138
baseada em uma argumentação racional. Com relação aos direi-
tos fundamentais, a argumentação tem um caráter primordial,
visto que não são fundados em teorias materiais, mas em teorias
de princípios.
139
como referência. Entretanto, analisando tudo o que foi exposto
neste trabalho e relembrando que os direitos fundamentais têm
a função de orientar as ações dos três poderes, acredito que não
existe nenhum empecilho em aplicar as referidas teorias também
às decisões dos administradores públicos, principalmente àque-
las que se referem a uma atuação positiva do Estado.
Nesse aspecto, o problema se agrava. Primeiro: na prá-
tica, as decisões dos administradores não são fundamentadas;
segundo: quando existe, a fundamentação é baseada em con-
ceitos abertos, como, por exemplo, o interesse público, que nin-
guém sabe ao certo o que significa; terceiro: a chamada “legal
injustice”, ou seja, em um rol de soluções possíveis e legítimas,
escolhe-se aquela que não resolve o problema concreto da me-
lhor forma possível. Como controlar tais decisões? É evidente
que o lindo discurso humanitário não é suficiente.
André Ramos Tavares (2013, p. 438), citando a lição de
Lewandowski, elucida que os meios formais de justificação dos
direitos humanos existem, a dificuldade encontra-se em sua con-
cretização, ou seja, é um problema político e não filosófico.
140
o discurso humanitário seja incorporado ao ordenamento jurídico
com o status de dogma. Isso acaba refletindo no pensamento so-
cial contemporâneo, que pode se enveredar por dois caminhos
opostos e igualmente prejudiciais.
De um lado, existem aqueles que consideram os direitos
humanos como instrumento de grupos minoritários que vivem à
custa do governo e que servem exclusivamente para defendê-
los e privilegiá-los. Nesse mesmo grupo também se encontram
alguns que se consideram parte de um grupo minoritário e se
apropriam do discurso dos direitos humanos, como se quem não
fizesse parte do grupo em questão não possuísse legitimidade
para questionar e defender questões sociais fundamentais.
De outro lado, existem os que idealizam os direitos hu-
manos como o único meio de salvar a humanidade. Também con-
sidero esse pensamento prejudicial pela incompatibilidade entre
tal idealização e a realidade, ou seja, direitos humanos não
podem ser vistos como algo transcendental, uma dádiva divina.
É necessário ter em mente que é uma construção social, fruto de
lutas históricas e, quanto menos for tratado como algo intangível
e sem defeitos, mais fácil será sua concreta efetivação.
CONCLUSÃO
141
Os mais desanimados poderiam dizer que a realidade só
esteja sendo um instrumento para escancarar o fracasso prático
do discurso dos direitos humanos. Eu não acredito nisso. Por
mais que o cenário seja de pessimismo, os direitos humanos têm
potencial para efetivamente transformar a sociedade. Ou, como
diria Samuel Moyn, talvez acreditar nos direitos humanos seja a
única opção, depois que todas as outras utopias fracassaram.
REFERÊNCIAS
142
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo – di-
reitos fundamentais, democracia e constitucionalização. 3. ed.
Rio de Janeiro, Renovar, 2014.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson
Coutinho; apresentação de Celso Lafer. Rio de Janeiro: Elsevier,
2004.
143
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do estado.
22. ed. São Paulo: Saraiva, 2001.
STRECK Lênio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência po-
lítica e teoria geral do Estado. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Ad-
vogado, 2004.
144