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“Há tantas coisas horríveis no homem!… Já por muito tempo a terra foi um hospício!

…” – Nietzsche, Genealogia da Moral, Segunda dissertação, §23


O objetivo de Nietzsche é estabelecer uma psicologia da Vontade de Potência,
definir seus aspectos topológicos e tipológicos. De que maneira o imanente se torna
transcendente? Como o homem aprendeu a inverter valores e criar outros mundos? Por
que criou ele jaulas onde se aperta e se machuca? Todas estas perguntas derivam de seu
questionamento principal: qual o valor destes valores que estabelecemos como certos e
eternos?
Antes de mais nada, Nietzsche se pergunta: afinal, quem quer estes valores?
Afinal, estes valores se colocam a serviço de algum tipo de vida. Sendo assim: quem
associa a responsabilidade com a dívida e quem associa responsabilidade com culpa?
Qual o modo de vida em cada um desses casos? Estas questões dão conta da Genealogia
da Moral, ou seja, o aspecto morfológico da Vontade de Potência, a maneira como ela
cria valores.
Se a Má Consciência é uma doença da vontade então só podemos estar doentes
da própria moral! Mas precisamos ir ainda mais longe pois o próprio desconforto do
homem consigo mesmo não gera espontaneamente a culpa e a sensação de falta em que
constantemente nos encontramos. Não, precisamos encarar uma sutil estratégia que
havia passado desapercebida: a consciência de falta é uma armadilha preparada pelo
ressentido! Sim, porque este se apropria da Má Consciência para lhe dar um novo
significado, pérfido, diríamos, insidioso, e absolutamente moral. Na má consciência, o
terreno já está preparado para seu aspecto tipológico entrar em cena: a consciência de
culpa e o sentimento de falta.
Para isso Nietzsche parte novamente de uma hipótese simples: a relação entre
credor e devedor dá-se também entre os vivos e seus antepassados. Sim, dirá o filósofo
alemão, reconhecemos uma sensação de dívida para com nossos pais, nossos avós e
assim por diante, uma sensação que abraça todos os nossos antepassados, como se
devêssemos alguma coisa a eles, como se triunfo da comunidade fosse sua conquista. E
tudo deve ser pago, todas as conquistas devem ser retribuídas.

Reconhece-se uma dívida, que cresce permanentemente, pelo fato de que os


antepassados não cessam, em sua sobrevida como espíritos poderosos, de conceder à
estirpe seguinte novas vantagens e adiantamentos a partir de sua força” – Nietzsche,
Genealogia da Moral, Segunda dissertação, §19
Essa sensação de desconforto aumenta conforme a estirpe cresce e ganha
influência sobre os outros. O nome da família toma proporções cada vez maiores, bem
como as lendas que nascem para justificar sua força. O sentimento ganha proporções
míticas, divinas, transcendentes, até que:
“Os ancestrais das estirpes seguintes mais poderosas deverão, afinal, por força da
fantasia do temor crescente, assumir proporções gigantescas e desaparecer na treva de
uma dimensão divina inquietante e inconcebível – o ancestral termina necessariamente
transfigurado em deus. Talvez esteja nisso a origem dos deuses, uma origem no medo,
portanto!” – Nietzsche, Genealogia da Moral, Segunda dissertação, §19
A humanidade recebe, ao postular um único Deus, na verdade, um credor
imenso, colossal, infinito, onipotente, onipresente e onisciente, que há de reivindicar
tudo aquilo que devemos para ele. Este sentimento de que estamos sendo observados,
julgados, cobrados, cresce juntamente com a má consciência, que limita e reprime a
Vontade de Potência, e com o ressentimento, que inverte valores.
Conforme a humanidade se “desenvolve”, este sentimento de culpa se
desenvolve subterraneamente, espalhando seus tentáculos. O peso das gerações antigas
se torna uma dívida sobre a dívida. Nos embolamos no processo e nos perdemos.
Quanto mais poderosos os deuses, maior o medo, maior a dívida e maior o sentimento
de culpa.
“O advento do deus cristão, o deus máximo até agora alcançado, trouxe também ao
mundo o máximo de sentimento de culpa” – Nietzsche, Genealogia da Moral, Segunda
dissertação, §20
O que vemos é um homem cada vez mais doente, mudando passo a passo,
radicalmente, a sua maneira de valorar. Mas há, pela própria religião, a tentativa de
resgate dessa dívida, de pagá-la de uma vez por todas. Diz Nietzsche: Qual foi o golpe
de gênio do cristianismo? Qual foi seu movimento de mestre que escravizou a
subjetividade ocidental com as mais pesadas correntes da culpa e da má consciência?
Qual foi o maior delito já cometido pela humanidade?
“Agora, os conceitos de ‘dívida’ e de ‘dever’ deveriam se revoltar – mas contra
quem? Sem dúvida, é, antes de tudo, contra o ‘devedor’, em quem a má consciência se
enraíza, se infiltra e aumenta, crescendo como um pólipo em extensão e profundidade
[…] Até que subitamente nos achamos ante o expediente paradoxal e horrível no qual a
humanidade atormentada encontrou um alívio momentâneo, aquele golpe de gênio do
cristianismo: o próprio deus se sacrificando pela culpa dos homens, o próprio Deus
pagando a si mesmo, Deus como o único que pode redimir o homem daquilo que para o
próprio homem se tornou irredimível – o credor e sacrificando por seu devedor, por
amor (é de se dar crédito?), por amor a seu devedor” – Nietzsche, Genealogia da Moral,
Segunda dissertação, §21
Todos os elementos estão dados e a tragédia é certa! O sentimento de culpa se
eleva à enésima potência quando o próprio credor, por amor a seus filhos pecadores,
sacrifica a si próprio para pagar sua própria dívida! Seus filhos, mergulhados no pecado,
na blasfêmia e na perversão, não foram capazes de honrar suas infrações, foi necessário
que o próprio credor, o pai, se transmutasse em homem e interviesse.
“Tudo isso é sumamente interessante, mas também de uma negra, sombria, enervante
tristeza, de modo que devemos nos proibir severamente de olhar por longo tempo esses
abismos. Aqui há doença, sem qualquer dúvida, a mais terrível doença que jamais
devastou o homem” – Nietzsche, Genealogia da Moral, Segunda dissertação, §22
O discurso de credor e devedor foi absorvido pela religião, que se utilizou destes
recursos para seus próprios fins. Vimos como o devedor se transforma em um culpado
quanto imputa-se finalmente a moral na fisiopsicologia. A moral do ressentimento quer
infectar tudo com o veneno da culpa, tornar a salvação impossível, macular este mundo
com acusações de impureza e pecado. Não há mais uma saúde latente que procura por
saídas, estamos aqui na mais plena loucura da vontade. Cada passo, do ressentimento à
inversão de valores, da relação de limitação dos instintos à má-consciência, tudo isso
culminou na mais profunda sensação de culpa jamais sentida em nenhum outro tempo!
O homem passa a sentir-se culpado pela própria dor, ela é interiorizada e
multiplicada, funcionando como aguilhão que sempre machuca e rasga, impedindo a
ferida de cicatrizar. Há aqui uma nova função da Má Consciência, uma nova e pérfida
utilidade, enfraquecer permanentemente o homem, ao ponto de gerar nele a servidão
voluntária mais absoluta, a cegueira da vontade, a impossibilidade de escapar da
armadilha do ressentimento.
Triste, porque nada disso tem a ver com deuses ou teodicéias. É o próprio
homem se debatendo consigo mesmo, com seus instintos, com suas fraquezas e forças.
A genealogia da moral encontra a doença do homem em sua própria maneira de valorar,
nos modos de vida que se impuseram. Os deuses nada têm a ver com isso! E Nietzsche
dirá mais, esta não é a única maneira de se relacionar com os deuses. Os gregos por
exemplo, faziam um uso ativo das divindades:
“Por muito e muito tempo, esses gregos se utilizaram dos seus deuses precisamente para
manter afastada a ‘má consciência’, para poder continuarem gozando a liberdade da
alma: uso contrário portanto, ao que o cristianismo fez do seu deus” – Nietzsche,
Genealogia da Moral, Segunda dissertação, §23
Mas precisamos sempre nos perguntar: quem quer os deuses gregos? Quem quer
o deus cristão? Quem não quer deus nenhum? aquele quer sobreviver, conservar-se às
custas de um Deus vingativo e rancoroso, o segundo quer utilizar-se dos deuses para
afirmar a existência, já o terceiro que o mar aberto para criar novos valores!
Se no ressentimento o escravo invertia valores e procurava separar o senhor de
sua força, tornando-o fraco; na má consciência o escravo procura inculcar a culpa na
consciência do senhor, enfraquecê-lo e impedindo-o de se afirmar, de ser saudável,
forte, vigoroso. Cria-se a desconfiança no seio de tudo aquilo que quer afirmar-se! No
fim das contas, vemos claramente que tudo está intimamente relacionado! Uma
sociedade doente criando seres fracos para habitá-la e castrando e limitando toda força
que procure viver de uma maneira diferente!

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