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WABORI: Os contextos históricos da tatuagem tradicional

Japonesa e sua popularização período Edo.

Pedro Pereira

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar os aspectos


históricos durante a formação do Japão que permitiram o desenvolvimento
de uma estética tradicional para a tatuagem japonesa, entendendo dessa
forma, como aconteceu a subsequente popularização durante o período
Edo.

1 - Introdução

Tatuagem é um termo internacionalmente conhecido. Nos dias de hoje,


praticamente todos os idiomas globalizados já adotaram a palavra de
Origem Samoana como parte de sua própria léxica e conseguem fazer uma
associação direta ao som feito por sua pronúncia. Mas esse fenômeno acaba
por servir como base para uma suposição histórica bem comum na maioria
das culturas ocidentais: Que os polinésios primitivos inventaram o termo
porque esses povos étnicos foram os primeiros a fazer esse tipo de
modificação corporal.

Mas essa afirmação, apesar de se basear no uso do termo, não


representa com veracidade a relação do ser humano com esse tipo
modificação corporal. Existem inúmeras culturas primitivas que utilizavam
a modificação corporal (considerado aqui um termo guarda-chuva para
representar a similaridade de significado entres os processos de
modificação corporal) para processos ritualísticos e estéticos que
fortaleciam as questões identitárias entre tais grupos.

O fato é que uso do termo Tatuagem é relativamente recente, sendo este


popularizado pelos registros do Capitão James Cook, um marinheiro e
capitão na Marinha Real Britânica, bastante conhecido por suas viagens pelo
pacífico. O termo seria uma derivação do palavra samoana “Tatau”,
combinada com o termo inglês “Tap-Too”, um toque militar associado com
o som gerado pelo processo de inserção da tinta no corpo*, e teria sido
disseminado justamente pela cultura marítima que dominava os oceanos
dos século XVII e XIX.

Esse termo é apenas mais um dos inúmeros de termos usados para


referenciar a modificação corporal pictórica através das eras. Os romanos e
consequentemente os britânicos referem-se a suas “stigmas” e “picts”
desde antes do século X na Europa. Os nortistas, comumente referidos
como vikings, modificavam seus corpos com rusiyyahs e os maoris usam as
tā moko como uma representação hierárquica dentro de suas sociedades.*
Dentre essa gama gigantesca de culturas antigas, a grande maioria utilizava
as modificações corporais pictóricas como elementos de relações sociais e
contextos ritualísticos.¹

Porém uma dessas culturas acabou desenvolvendo com a tatuagem uma


relação que extrapolava o ritual, a religião e principalmente os limites
pictóricos do que se aplicava pele. Sendo essa cultura extremamente
devotada ao primor técnico e com uma estética artística tão única e voltada
para o deleite com a imagem, não demorou muito tempo para que as
pessoas inseridas dentro dessa vivência começassem a utilizar as tatuagens
como meios de expressão pessoal. Se antes, ela te inseria dentro de um
contexto de sociedade, agora ela estava sendo usada para destacar a
identidade e individualidade do indivíduo; foi o surgimento da tatuagem
moderna. E a história da tatuagem moderna tem sua origem justamente
num dos países mais isolados do planeta na época: O Japão.

2. A tradição Japonesa e influências do leste asiático

Para se entender as raízes das tatuagens japonesas, antes é necessário


entender os termos utilizados para referenciar elas. Esse contexto é
especialmente importante visto que o japonês possui uma relação diferente
em relação a etimologia e imagética da palavra. O termo mais utilizado para
se referenciar a tatuagem é Irezumi (入れ墨). Ele utilizado para se referir a
qualquer tipo de tatuagem ou intervenção que marque a pele. É comum
também que dentro dessa leitura, outras opções fonéticas surjam como
Bunshin (文身), Gei (黥) e Shisei (刺青), que também podem ser lidas a partir
dos ideogramas que formam a palavra Irezumi.

A história do Irezumi no Japão é antiga e data desde o período Jomon (


縄文時代) (10000 a.c – 300 a.c) O termo Jomon em si significa “padrão de
cordas” e faz referência a técnica de execução do elemento gráfico mais
proeminente entre os achados arqueológicos da época². Ainda no campo do
artesanato, também é identificada nesses estudos arqueológicos a presença
das estátuas de barro também conhecidas como Dogu (土偶), e são nesses
artefatos que alguns acadêmicos da história da arte japonesa identificaram
o costume da modificação corporal e indicativos do uso da tatuagem como
parte da estética ritual/social do Japonês préhistórico.* Esses costumes
também podem ser observados durante o período Yayoi (弥生) (300 A.C –
300 D.C) ².

Do outro lado do Mar do Japão, podemos encontrar os primeiros registros


de indivíduos tatuados no Gishiwajiden (魏志倭人伝), um texto de registro
escrito por emissários da china, tendo seus costumes descritos da seguinte
forma:

Os homens de Wa marcam seus rostos e pintam seus


corpos com desenhos padronizados. Eles gostam de
mergulhar para pescar e por isso, desde antigamente,
tem o costume de decorar os seus corpos para pedir
proteção contra peixes grandes. Eventualmente esses
padrões se tornaram decorativos e as pinturas corporais
variam de tribo para tribo. O tamanho e posição dos
padrões variam de acordo com a hierarquia dentro da
tribo. Eles pintam seus corpos com Rosa e Escarlate assim
como nós chineses usamos pólvora.²

O período Kofun (古墳時代) (300 A.D. – 600 A.D) vem logo depois do Yayoi
e também é marcado pela presença das figuras modeladas a partir da argila
que passam a ser chamados de Haniwa (埴輪), e que adornam as grandes
tumbas em montes características do período. Marcas encontradas nessas
estátuas seguem indicando a presença da cultura de modificação corporal
no território insular do Japão.

Imagem 01 – Geimen Dogus (黥面土偶)³

Registros feitos em 622 d.C., por outro emissário chinês descrevem


costumes da tatuagem japonesa. Nesse texto é possível encontrar
referência as práticas de modificação corporal e a difusão da prática entre
as mulheres das ilhas do sul. Como essas ilhas ainda não eram parte de um
território unificado e ainda existem dúvidas se a referência era Okinawa(沖
縄県;) ou Taiwan, com alguns pesquisadores chegando a afirmar que essa
cultura de tatuagem local tem mais elementos em comum com a tradição
de Taiwan do que as tradições de Kyushu(沖縄県), Honshu(沖縄県) ou até

Hokkaido(北海道)3.

Porém, foi somente no século VIII que os registros locais começaram a


refletir essa cultura. O Kojiki(古事記) é um dos livros mais importantes da
história do país e uma das fontes mais completas para se entender a cultura
e sociedade japonesas da época. Lançado em 712 d.C, existem menções a
dois tipos de tatuagem: O primeiro tipo era considerado uma marca de
distinção, só feita em indivíduos de alta hierarquia e um segundo tipo que
indica um costume novo e importado do sudeste da Asia: A tatuagem
punitiva, ou Bokukei (墨刑).³ Tal contraposição fortalece a teoria que no
desenvolvimento do período Kofun houve uma mudança no paradigma
social da tatuagem relacionada a importação da cultura chinesa e coreana
que agora eram muito influentes no território japonês.

Imagem 02 – Ilustração de uma tatuagem de proteção feita em pescadores*


Não existe tanta documentação entre os 600 d.C. e os 1600 d.C. que
mencione as práticas de modificação corporal. Pesquisadores acreditam que
durante esse período, o impacto da importação da cultura chinesa e
religiões estrangeiras já se mostrava a nível de sociedade. O código Joei(御
成敗式目) instaurado em 1232 faz menção clara a prática de Bokukei.³
Apesar de não existir um consenso, boa parte dos acadêmicos que se
debruçam sobre este assunto defendem que a tatuagem nesse momento
histórico tinha uma função de marcar e diferenciar aqueles que estavam a
margem da sociedade. Pessoas que eram marcadas como punição
passavam a fazer parte de minorias chamadas Eta (穢多) ou Hinin (非人)4.

Uma exceção dentro desse cenário, no entanto, pode ser encontrada na


classe Bushi (武士), que notavelmente utilizava tatuagens como forma de
identificação.* Vale ressaltar que esses registros relatam esses costumes
durante o século XVI e esse período é marcado historicamente por um
estado de guerra total, e o costume de se tatuar garantia uma forma de
tratar do reconhecimento de alianças4.

3. Ryukyu e Hokkaido

A prática da tatuagem nas ilhas Ryukyu((琉球弧) tem seu primeiro registro


oficial no ano de 1461. 4 Mas como mencionado anteriormente, os registros
feitos em 622 já apontavam a presença de pessoas tatuadas há muito mais
tempo. Quando se fala na tradição de Hokkaido, o tópico passa a ser a
tradição Ainu (蝦夷 ) que acompanha a história japonesa desde seu início, e
tem seu registro mais antigo datado de 1612 5.

Os Ainus são considerados um grupo étnico indígena do Japão graças a


diferença entre estrutura social, cultura e ascendência. Historicamente, eles
se destacam nos registros por serem considerados antagonistas no
processo de unificação e da identidade japonesa. Apesar das diferenças,
pelo menos em um aspecto a cultura Ainu e a cultura insular japonesa
podiam encontrar um ponto em comum: A tradição de modificação corporal.
O termo Ainu para tatuagem é Nuye. Eles tatuavam seus rostos, além
de adornar braços e mãos. Essas marcas eram feitas ao redor dos lábios,
na bochecha, na cabeça e nas sombrancelhas. Existem vários motivos
conhecidos para o uso da tatuagem num contexto social, e com eles não
poderia ser diferente. O uso ritualístico e social já tinha sido identificado no
resto do território, mas os Ainus apresentavam diferenças em como isso se
aplicava nos costumes diários. A primeira grande diferença era a
prevalência de indivíduos tatuados do sexo feminino em relação a
contraparte masculina. Existem sim registros de homens Ainu tatuados,
mas esse costume era quase que exclusivamente feminino4.

Jovens garotas recebiam suas primeiras tatuagens entre 10-13 anos, e


esse processo tem relação com a obtenção da maturidade sexual, apesar
de algumas delas receberem as tatuagens ainda mais novas. Após receber
a primeira tatuagem, esse processo era repetido até ser completado,
quando elas alcançassem a idade para se casar. Sobre esse costume,
defende-se que as tatuagens simbolizam para os Ainus virtude ou pureza,
e Proteção em tempos de guerra.

Imagem 03 – Tatuagens Ainu

Nas ilhas Ryukyu, por outro lado, as tatuagens eram feitas exclusivamente
nas mãos e recebiam o nome de hajichi. Não existem registros de
marcações em nenhuma outra parte do corpo. A prática não é comum em
todas as ilhas, e nas ilhas em que ela pode ser identificada, existe uma
variação cultural que pode ser atribuída a costumes regionais e questões
geracionais. A prevalência também é feminina com alguns poucos registros
de homens tatuados e identifica-se motivações muito similares as práticas
Ainu.

É valido também adicionar os relatos que indicam uma motivação extra


para as mulheres de Ryukyu se tatuarem: Proteção contra sequestros.
Durante os primeiros contatos com culturas estrangeiras no pós-guerra,
registros mostram que esse costume também tem relação com os
desaparecimentos em decorrência do tráfico de mulheres. Segundo fontes,
o povo das ilhas Ryukyu conhecem o desdém e desgosto que o japonês
tinha desenvolvido pela tatuagem, e por isso reforçava o costume para que
suas filhas não fossem alvo dos sequestros e não fosse traficadas para os
bordéis nas ilhas principais5.

Imagem 04 – Hajichi de Okinawa

Também existem relatos de aplicações terapêuticas tanto entre os Ainus


quanto entre o povo das ilhas Ryukyu. Essas aplicações eram rituais e
apesar de serem usadas paras fins médicos, não possuíam nenhum efeito
verdadeiramente benéfico para a saúde.

3. O período Edo e as proibições de Tokugawa

No ínicio do século XVII, uma grande onda de mudanças chega as terras


nipônicas com o fim do período Sengoku (戦国時代), marcado pelo estado de
guerra total em busca do poder, e início do Período Edo(江戸時代,), marcado
pela mudança das estruturas de poder e mudança da capital para Edo, no
centro-leste da ilha de Honshu. Essa mudança tem como marco ponto de
virada o fim da Batalha de Sekigahara(関ヶ原) em 1600, e a ascenção de um
novo Xogum (将軍,).

Tokugawa Ieyasu (徳川家康) é com certeza um dos nomes mais


importantes para se entender o contexto social que existiu no Japão durante
o período. Após unificar o país e mudar o centro de influência de Kyoto(京
都市) para Edo, ele tratou de redefinir sistemas sociais rígidos e divididos
entre classes: Shi(侍)representando a classe dos Samurais, No(侍)
representando os camponeses, Sho(商) representando a classe mercadora
e Ko(工) representando a classe dos artesãos5.

Porém a rigidez que acompanhou as mudanças sociais tiveram um efeito


direto em como as pessoas viviam em todas as classes. Desde a instauração
do Sakoku(鎖国) por parte do Bakufu(幕府), até a perseguição dos cristãos
jesuítas nas terras japonesas, Ieyasu mostrou que não tinha a menor
disposição para abdicar de qualquer tipo de poder. Isso pode ser
evidenciado no relativo período de “paz” alçado através da regulação severa
durante o período Edo e o resgate de filosofias orientadas para submissão
e separação de classe.

O conceito de “Piedade Filial” é talvez um dos elementos mais importantes


para analisarmos certas mudanças na sociedade japonesa, e um dos fatores
mais importantes para entender o desgosto do Japonês Feudal a respeito
da prática de modificação corporal e dermatografia. Esse conceito se baseia
em ideias que reforçam a questões dos deveres do indivíduo em relação a
seus genitores. Um dos preceitos mais conhecidos é o de que “o corpo, o
cabelo e a pele são presentes de nossos pais, e por esse motivo devemos
preservá-los ao máximo a fim de honrá-los.”8

Esse conceito foi o responsável pela mudança de pensamento do japonês


médio em relação a tatuagem e as relações de poder. Obediência,
Responsabilidade e Lealdade passaram a ser consideradas virtudes
fundamentais para o indivíduo em sociedade e qualquer desvio ético dessas
virtudes resultaria em desonra e punição. Concomitante, com o
desenvolvimento de uma filosofia Neo-confucionista por parte de Zhu Xi*,
essas ideias passaram a não só envolver a relação os genitores, mas
incluíram também outros tipos de relação: Entre pai e filho, entre Soberano
e Subordinado, Entre marido e mulher, Entre irmãos mais novos e mais
velhos e até entre companheiros de trabalho. Efeitos dessas mudanças
podem ser sentidos até hoje na sociedade japonesa.

O fato é que, apesar do florescimento da cultura de tatuagem durante


esse longo período, a visão geral e do estado em relação a modificação
corporal era bastante negativa. Outros países do leste asiático também
apresentaram antipatia pelo hábito, mas nenhum deles foi tão opressivo
quanto o Japão.

Ironicamente, essa tendência opressiva não é nem um pouco


surpreendente no Japão de Tokugawa, que hoje com o benefício da análise
retrospectiva nos permite descrevê-lo como um governo totalitário,
imperialista e extremamente dependente do alto grau de controle social
para manter a dita “paz” trazida pelo Xogum. Em 1716, Tokugawa
Yoshimune (徳川 吉宗) se torna o oitavo indivíduo na posição desde Ieyasu e
com sua ascensão ao poder, também começaram a ocorrer mudanças. Uma
das maiores mudanças teria relação com o fator financeiro e com a redução
dos gastos do estado e da população. Em relação a tatuagem, a maior
mudança está relacionada com instauração oficial da tatuagem como
método punitivo em 1720, que acabou substituindo a amputação de
membros e olhos/orelhas, e mudando completamente a relação do japonês
médio com o processo.9

Imagem 05 – Aplicação da Bokukei

No entanto, por mais que o objetivo da marcação de criminosos fosse a


fácil identificação de reincidentes, a realidade acabou se mostrando um
pouco mais cruel a nível social. O ciclo vicioso criado pelos métodos de
punição fez com que esses indivíduos fosse completamente ostracizados da
sociedade produtiva idealizada pelo shogunato. Ser marcado era uma
punição para a vida toda, e essa sina passou a fazer com que esses
indivíduos isolados passassem a ser considerados parte dos Burakumin (部
落民).*

Entender esses grupos marginalizados é fundamental para entender o que


são os Burakumin e a sua relação com a estética pictórica da tatuagem que
estava prestes a se formar no Japão. Históricamente, eles são o grupo com
menor status social do Japão. Suas ocupações normalmente são associadas
com trabalhos sujos ou “impuros” e sua origem data do período Heian (部落
民), onde eles ainda eram identificados como Eta ou Hinin. Esses grupos

existiam a margem da sociedade e representavam o oposto de tudo que a


corte japonesa valorizava e cultivava culturalmente. A influência chinesa
somada aos modos de vida japoneses acabaram por expulsar e isolar esses
indivíduos para suas próprias comunidades e isso seguiu até o final do
período Edo(1868), quando finalmente o status de Burakumin foi finalmente
extinto das classificações sociais do Japão.

4. A popularização da tatuagem e a tradição pictórica

O que não podia ser previsto pelo shogunato é que justamente nessas
comunidades mais ostracizadas é que um hábito marginalizado voltaria a
ser popular.

O termo Irebokuro(入れ黒子) significa inserir + ponto de beleza e tem


variadas morfologias dependendo dos indivíduos envolvidos e da localização
geográfica desses indivíduos. No início do período Edo, a tradição pictórica
ainda não tinha sido desenvolvida entre a população. O Irebokuro se origina
nas ruas sensuais de Yoshiwara (吉原), como um hábito das yūjo (遊女,), ou
prostitutas legalizadas. A realidade é que o grupo que mais aceitou o uso
desse tipo de tatuagem foi justamente o das yūjo, seguidos diretamente
pelas geishas (芸者). O hábito de se tatuar era extremamente raro entre
mulheres comuns, mas em constraste, era muito comum que uma yūjo
tivesse um Irebokuro ou o nome de seu cliente mais especial tatuado no
corpo.9

Uma das tatuagens mais populares entre os casais de Yoshiwara era


descrita da seguinte forma:

O homem e a mulher apertam a mão um do outro,


encontrando então o ponto de contato entre a ponta do
dedão de um com a mão da outra pessoa. Nesse área, é
feito uma marca, normalmente um ponto escuro que se
assemelha a um sinal de pele. 9
A teoria melhor aceita entre pesquisadores em relação ao significado da
tatuagem é relativamente óbvia: Irebokuro é uma prova de amor. Um voto
de fidelidade feito para a eternidade. Também existem registros desses
mesmos votos sendo feitos entre monges e seus pupilos, com os quais se
relacionavam amorosamente, porém o nome atribuído a essas tatuagens
era na realidade Kishobori, ou Tatuagem de Juramento.6 yūjo em geral
escolhiam ser tatuadas no braço; em especial, na parte interna dele ou
perto das axilas. Essas localizações provavelmente tinham um fator secreto
associado a elas, visto que homens casados eram clientes comuns para as
mulheres de Yoshiwara, e ainda existia um desgosto forte pelo costume por
parte das castas mais elevados. O proposito dessas tatuagens era
demonstrar a seriedade da mulher dentro da relação e servir como
ferramenta para as cortesãs manterem seus clientes e escalarem na
hierarquia com a ajudo dos clientes mais influentes e apaixonados.

Imagem 06 – Xilogravura de Utagawa Toyokuni (歌川豊国) mostrando a prática comum


entre as mulheres de Yoshiwara
Nos registros feitos durante o período Edo, existem várias práticas que
possuem o mesmo objetivo das tatuagens feitas pelas yūjo. Desde cartas
até a automutilação eram métodos utilizados para demonstrar a lealdade
de uma cortesã ao seu cliente. No entanto, entre essas, a tatuagem era
considerada a mais deselegante e indiscreta de todas. Para as geishas essa
prática era evitada ao máximo. As vezes elas eram forçadas a se submeter
a esse processo por parte do cliente, mas a engenhosidade do povo japonês
logo desenvolveu o processo de remoção de tatuagens através da
cauterização da tatuagem por moxabustão.

A realidade é, que para muitas dessas mulheres, ter uma Irebokuro ou


Kishobori era no mínimo problemático. Se uma cortesã atendesse clientes
diversos, esse tipo de demonstração acabava se tornando uma qualidade
negativa, e existem registros de yūjo e geishas tendo de remover tatuagens
feitas para clientes antigos. Esse costume foi extremamente popular
durante o período Genroku(元禄))(1688-1703) até o final dos 1720.7

Imagem 07 - Imagem de gueixa ajudando seu cliente a fazer uma Kishobori.


A tradição pictórica na tatuagem japonesa começa a engatinhar durante a
era Hōreki (宝暦)(1751-1764) 9 O primeiro estágio dessas imagens começa
com designs pequenos representando Mons (紋) de clans importantes ou
imagens chocantes e “malignas”. Dessas tendências iniciais, um exemplo
que se destaca é o das Namakubi(生首), uma imagem de uma cabeça
humana decepada. Esse design representa a última etapa do processo de
Seppuku (切腹) e culturalmente representa qualidades como coragem e
honra fazendo referência ao Bushido ( 武士道) e o caminho do guerreiro.
Porém, embora existam alguns exemplos individuais, não existem registros
de tatuagens cobrindo o corpo ou membros inteiros.

O desenvolvimento do gênero artístico chamado Ukiyo-e (浮世絵,) mudou


a forma que se fazia arte na tatuagem japonesa. O estilo é composto por
imagens do “mundo flutuante”, em geral representando as paisagens
japonesas, histórias, lendas, a beleza das mulheres, o cotidiano do povo
japonês e os prazeres ocultos do distrito de Yoshiwara. As primeiras
impressões em xilogravura (gravura com blocos de madeira) eram
impressas a cores e surgiram na metade do século XVII. 9

É importante ressaltar as diferenças entre os meios de se fazer arte do


Japão em relação à arte europeia: Enquanto a imagética europeia se
destacava na vanguarda do uso de materiais de arte, a Arte Japonesa
acabava sendo invariavelmente a base de pincel e tinta aguada. Por isso,
as imagens de base para as impressões acabavam sendo feitas por um
artista em papel de arroz, utilizando Sumi-e (墨絵) e posteriormente tendo
suas linhas e camadas esculpidas em blocos de madeira. Essa relação com
os materiais teve um impacto direto na forma que o artista em Edo iria
construir sua imagem. A imaginação japonesa influenciada pela vontade de
representar sua história acabaram criando um movimento de impacto
gigantesco para a estética japonesa como um todo. Acompanhando esse
processo, outra novidade começou a se desenvolver, graças a influência de
uma história sobre ladrões. 9
A estética da tatuagem é diretamente influenciada pela estética
tradicional das artes japonesa. Apesar da mudança do pincel para as
agulhas, tatuagem acabou se tornando uma arte popular entre as classes
mais baixas. Só que um catalizador histórico surge com a publicação de
uma novela. A história original foi escrita na china no século XIV e possui o
nome de Shuihu Zhuan e é considerado um dos quatro romances clássicos
da história da china. Ao ser adaptada pra língua japonesa, por Okajima
Kanzan (岡嶋冠山) em 1757, recebeu o nome de Suikoden (水滸伝). A história
conta as aventuras de 108 criminosos rebeldes sob a liderança de Song
Jiang e a sua luta contra a injustiça, a corrupção dos líderes regionais, e
principalmente pelos direitos do cidadão comum. 8

A bravura dos Heróis da Margem D’agua (Tradução de Suikoden)


fascinaram os camponeses, os mercadores e principalmente os artistas da
época. Esses heróis eram representados com um espírito cavalheiresco,
demonstrando que mesmo estando contra a figura opressiva do estado, isso
não significava que aquelas eram pessoas ruins. Eles roubavam para ajudar
os que mais precisava e não demonstravam malicia em relação aos pobres.

Além disso, a publicação dessa história coincide com a popularização do


conceito Iki (粋). O termo representa as qualidades indissociáveis de uma
pessoa estilosa, esperta e que se veste bem. Esse conceito representava
bem os hábitos e gostos do Japonês de Edo. A ideia de ser Iki está
diretamente associada a uma resposta social as restrições e proibições do
shogunato Tokugawa. Pessoas comuns eram forçadas a usar roupas simples
e qualquer tipo de originalidade era malvista pelos oficiais do governo. 7

Os guerreiros da margem representavam exatamente o oposto disso. Eles


era guerreiros, heróis, e que não se curvavam perante ninguém em prol de
suas convicções. O mais popular entre eles foi Kyumonryu Shishin (九紋龍
史進), o primeiro personagem a ser apresentado. Entre os elementos mais
fascinantes do personagem, está a sua aparência. Shishin possui nove
dragões tatuados no corpo. Outros personagens também possuem
tatuagens, mas Shishin foi um dos primeiros a apresentar para o povo a
ideia de tatuagens cobrindo o corpo todo.

Imagem 08 – Shishin na versão do Hokusai

O fato é que essa publicação acelerou a aceitação do cidadão médio em


relação a tatuagens que cobrem o corpo todo. Essas tatuagens tiveram um
crescimento vertiginoso de popularidade durante os períodos Bunka-Bunsei
(文政-文化)(1804-1830), principalmente com variedade de artistas
trabalhando ilustrando as várias versões do Suikoden. Mesmo com toda
popularidade, é necessário frisar que a relação oficial do governo em relação
as tatuagens era a de ilegalidade, utilizando o controle rígido e as punições
como forma de controlar a vida de pessoas de todas as classes no Japão.
Felizmente, mesmo com toda autoridade e força que poderia ser exercidas
pelo Xogum, essa ameaça velada de se tornar um criminoso não fez efeito
nas camadas mais pobres e inacessíveis da população. 9 O consenso dentro
da academia é de que esse é um dos sentimentos que ajudaram a consolidar
a arte japonesa nessa época como arte de gênero. Mas mesmo com todos
esses fatores alinhados e a popularidade da tatuagem começando a crescer
e tatuadores profissionais começando a surgir, a tatuagem ainda era uma
arte sem estética própria. Isso mudou após o lançamento da versão de
Utagawa Kuniyoshi (歌川 国芳) do Suikoden.

Imagem 09 – Shishin na versão do Kuniyoshi

Kuniyoshi (1798-1861) é o pai da estética Wabori (和彫り). Suas


influências são diversas e para entender a estética da tatuagem tradicional
japonesa é necessário antes entender quem foi Kuniyoshi e suas
contribuições para o Ukiyo-e e para a mimesis japonesa. Discípulo do
mestre Utagawa Tokokuni (歌川豊国), é dito que Kuniyoshi era filho de um
Tingidor de Seda. Essa familiaridade com as características da tinta,
associada com os conhecimentos adquiridos na área têxtil fez com que ele
se destacasse logo cedo pelos usos dos detalhes e padrões dos quimonos e
indumentária em suas obras. Sua fama era grande e vários artistas o
consideram o mestre das gravuras de samurai. Após o lançamento do
Suikoden, que conseguiu mesclar as representações em que era mais
conhecido com uma história que ressoava no coração do povo japonês, o
interesse em tatuagens explodiu entre as classes mais baixas em Edo. 9

O grande diferencial nas artes do Kuniyoshi foi a apropriação do corpo


inteiro como suporte para a arte. As tatuagens até esse ponto da história
até podiam ser maiores, mas eram essencialmente um trabalho de linhas
sem preenchimentos, conhecido também Sujibori (筋彫り). Nas artes de
Kuniyoshi, as tatuagens eram composições tão belas e bem pensadas
quando a própria impressão. Temas da história japonesa acabaram sendo
traduções dos sentimentos que o cliente tinha em seu espírito e as cores
também passaram a ser usadas numa tentativa de incorporar o conceito de
Kazari (飾) (Detalhamento) a estética de um Horimono (彫物).

O Horimono é o produto da tatuagem tradicional japonesa. Sua tradução


é literalmente “objeto gravado” e faz referência aos primeiros profissionais
da tatuagem: Os Horimono-shi ou Horishi (彫り師).Esses profissionais em
geral possuíam experiência em áreas especificas do mercado de arte
japonês, e viram na popularidade das tatuagens uma oportunidade de
mudar de vida. O surgimento do Horimono pode ser explicado através de
dois fatores independentes vistos anteriormente no texto. As proibições de
vestimenta impostas pelo shogunato somadas a percepção de que a
tatuagem era Iki, fez com que a população começasse a pensar em formas
criativas de poder se expressar, estar na moda e ainda assim, poder viver
sem medo da constante ameaça produzida pelo xogunato.
Tradicionalmente falando, a técnica japonesa de tatuagem é chamada de
Tebori(手彫り), ela utiliza o mesmo kanji de gravação usado para fazer
referência a xilogravura japonesa. A técnica usa uma haste fina de bambu
com agulhas de bambu presas na ponta por linhas fortes de seda chamada
de Sashibo. A aplicação era ponto a ponto, o que aumentava
vertiginosamente a quantidade de tempo que era necessário para se
concluir um horimonos. A tinta utilizada era a mesma utilizada nos
processos tradicionais em papel de arroz, porém alguns pigmentos
apresentavam riscos grandes para a sáude por sua toxicidade. 6

Imagem 10 – Comparação entre o estilo de Kuniyoshi em relação com as

representações de outros artistas, nesse caso, Toyota Hokkei (魚屋 北渓).

É teorizado que ideia da tatuagem de corpo todo tem inspiração direta na


tradição samurai de adornar os Jinbaori (陣羽織), vestimenta sem mangas
usada por cima da armadura de um samurai. Essas variações de Haori (羽
織) eram por muitas vezes adornadas na parte interna do tecido com os
temas ou padrões favoritos dos samurais e tendiam a representar a sua
coragem, orgulho e virtude através dos designs inspirados nos contos e
lendas do Japão. Dentre os grupos mais prevalentes dentro da demografia
de tatuados da época, destacam-se os Hikeshi (火消) e seus dragões. 9
Os hikeshi eram bombeiros. Mas não como a definição de bombeiros que
existe no ocidente. Eles formavam uma organização bem estabelecida
durante o período Edo, que é conhecido pela quantidade de incêndios que
acontecia nas cidades japonesas em virtude dos materiais construtivos. O
diferencial dos hikeshi, é que eles não só tentavam apagar, mas evitar que
o fogo continuasse em sua transmissão e destruísse mais ainda a cidade.
Para isso eles buscavam proteção contra o fogo, e um dos temas favoritos
entre eles era justamente a figura do dragão, que segundo as lendas
possuía afinidade com o fogo e com a água.

Imagem 11 – Jinbaori x Hikeshi-Banten (Comparações de Haoris)

Após os lançamentos dos desenhos de Kuniyoshi, esses temas passaram a


ser os mais populares em Edo Graça a fama de heróis locais dos Hikeshi e
da sua influência cultural em relação ao conceito Iki. Autores passaram a
usar o Irezumi como recurso poético em seus dramas e comédias, atores
representavam pessoas tatuadas. O hábito havia finalmente alcançado o
pico de sua popularidade. 9
Imagem 12 – Tríptico dos Hikeshi por Utagawa Kunisada I (歌川 国貞)

E essa popularidade chegou a tal ponto, que o hábito agora era


representado dentro das outras artes tradicionais japonesas. O teatro
kabuki é um dos maiores exemplos do uso da estética em favor do
entretenimento e o maior difusor de cultura entre as pessoas mais pobres
de Yoshiwara durante o período Genroku justamente pela forma em que o
espetáculo é montado. A tatuagem já era considerado um objeto de beleza
que desperta a curiosidade dos mais céticos. Incorpora-la ao Kabuki foi só
o próximo passo natural, visto que desde a montagem dos cenários até
caracterização dos personagens, o Kabuki representa a essência da
dramaticidade, do cuidado com os detalhes e principalmente do humor
japonês durante o período Edo. 9

Imagem 13 – Tríptico dos artistas de Kabuki caracterizados como os heróis do Suikoden


por Toyohara Kunichika
5. Conclusão

Ao final do período Edo, a atenção do governo já tinha sido voltada para


esse fenômeno. As grandes reformas durante o período Tenpō (天保)(1830-
1844) tiveram um impacto gigantesco na popularidade dos Horimono:
Proibições e penas mais duras a indivíduos tatuados marcaram a transição
do período Edo para um mais regulador ainda. Para quem morava na cidade
de Edo, a única solução era esconder completamente as tatuagens, ou
simplesmente não se tatuar. Com a falta de clientes e de “vitrines” para
expor sua arte, muitos horishi se desfizeram de suas ferramentas e aos
poucos o único grupo que ainda manteve a tradição de se tatuar eram os
burakumin, agora identificados como Yakuza (ヤクザ-極道).7

No entanto, apesar dos esforços da restauração Meiji em esconder hábitos


considerados bárbaros pelo governo japonês, eles não poderia contar com
um fenômeno mais curioso do que o próprio surgimento da estética wabori
na tatuagem tradicional japonesa: O interesse do estrangeiro.

Apesar de o costume e a tradição estarem sendo efetivamente varridos da


história moderna do Japão, os estrangeiros que passaram a visitar as ilhas
depois da reabertura do país foram completamente arrebatados pelo
impacto visual dos horimonos e a técnica tradicional Wabori. Um excelente
exemplo a ser dado está na figura do último Tsar da Russia, Nicholas II.
Durante a tour pela Eurásia, em sua visita ao japão, ele tatuou um dragão
em seu antebraço.7 Porém, ele não foi o único. Historiadores, Cientistas
Sociais, Antropologos e artistas; todos eles ficaram encantados com essa
forma de expressão.

Depois da legalização por parte das Forças de Ocupação em 1948,


infelizmente a imagem da prática ainda era vista de forma negativa pela
população que cresceu educada com a ideia de que tatuagens eram
inerentemente associadas a criminalidade. E foi nesse ponto que a
tatuagem tradicional japonesa começou a sair do território japonês e ser
estudada no ocidente. As consequências disso podem ser vistas
diretamente na formação estética da tatuagem tradicional americana e nas
técnicas de aplicação até os dias de hoje.

6. Referências.

1 - KRUTAK, Lars. Ancient Ink: The Archaeology of Tattooing. 1ª. ed. [S.
l.]: University of Washington Press, 1982.

2 - TAKAYAMA, J. Jomonjin no Irezumi. [S. l.]: Kodansha, 1969.

3 - GILBERT, Steven. THE TATTOO A SOURCE BOOK: An Anthology of


Historical Records of Tattooing Throughout the World. 1ª Edição. ed. [S.
l.]: Juno Books, 2000.

4 - GULIK, Willem R. V. Irezumi: The pattern of dermatography in Japan.


1ª. ed. [S. l.]: E.J. Brill, 1982.

5 - RICHIE, Donald; BURUMA, Ian. The Japanese Tattoo. 1ª. ed. New
York: Weatherhill, 1980.

6 - ASHCRAFT, Brian; BENNY, Hori. Japanese Tattoos: History, Culture


& Design. 1ª. ed. Hong Kong: Tuttle, 2016.

7 - SHANNON, Eric M. Tattoos as Punishment: An Illustrated History of


Tattooing in Japan Capa. 1ª. ed. [S. l.]: Self-Publishing, 2016.

8 - MCCABE, Michael. Japanese Tattooing Now: Memory and Transition.


1ª. ed. [S. l.]: Schiffler Publishing, 2007.

9 - TAMABAYASHI, Haruo. Bunshin Hyakushin. 1ª. ed. Tokyo:


Bunsendo, 1941.

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