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RESUMO
O campo do currículo está se caracterizando, em diferentes países, por uma significativa diversi-
ficação de temas e de influências teóricas. Apoiando-se no conceito de campo de Bourdieu, o
texto aborda o campo no Brasil, tal como vem sendo construído no Grupo de Trabalho GT de
Currículo da ANPEd. Examina o funcionamento do grupo, procurando situá-lo no contexto mais
amplo da associação e das políticas de pós-graduação. Focaliza, a seguir, os trabalhos apresen-
tados nos encontros ocorridos no período de 1996 a 2000. Critica o grande número de textos
selecionados, o que tem contribuído para a secundarização da discussão de problemas educacio-
nais que carecem de atenção. Propõe perguntas e sugere estratégias que possam enriquecer o
processo de construção do conhecimento desenvolvido no GT.
CURRÍCULO CAMPO GRUPO DE TRABALHO CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTO
ABSTRACTS
Penso, como Fleuri (2000), que fazer perguntas pode ser um modo de orien-
tar nossos olhares para vermos o que ainda não foi visto. Talvez seja mesmo um
passo necessário à elaboração de uma linguagem para dizermos o que ainda não foi
dito. Daí minha preocupação em formular perguntas, questões e hipóteses que nos
estimulem a ver o que ainda não vimos e a melhor compreender o que ainda não
compreendemos suficientemente.
Antes de começar a perguntar, recorro aos comentários de Beatriz Sarlo
sobre a nostalgia. Minha intenção, ao citá-la em trecho a meu ver bastante expres-
sivo, é antecipar-me às possíveis acusações de que estou sendo nostálgico ao lasti-
mar o que se tem perdido com a consolidação do atual modelo de GT.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, N. Tecer conhecimento em rede. In: ALVES, N.; GARCIA, R. L. (orgs.). O Sentido da
escola. Rio de Janeiro: DP&A, p.111-120, 1999.
BOURDIEU, P. O Campo científico. In: ORTIZ, R. (org.). Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática,
p.122-155, 1983.
FRANKLIN, B. The Curriculum field and the problem of social control, 1918-1938: a study in
critical theory. Wisconsin, 1974, Tese (Dout.) Universidade de Wisconsin.
SARLO, B. Tiempo presente: notas sobre el cambio de una cultura. Buenos Aires: Siglo XXI,
2001.
SILVA, T. T. O Que produz e o que reproduz em educação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992.
WARDE, M. J. A História da educação nos marcos de uma história das disciplinas. In: SAVIANI,
D., LOMBARDI, J. C.; SANFELICE, J. L. (orgs.). História e história da educação: o debate
teórico-metodológico atual. Campinas: Autores Associados, p.88-99, 1998.
ESTUDOS DE CURRÍCULO:
AVANÇOS E DESAFIOS NO
PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO 1
RESUMO
ABSTRACT
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DUSSEL, I.; TIRAMONTI, G.; BIRGIN, A. Hacia una nueva cartografia de la reforma curri-
cular: reflexiones a partir de la descentralización educativa argentina. Revista de Estúdios del
Curriculum, v.1, n.2, p.132-161, 1998.
. The Synoptic text today and other essays: curriculum development after the
reconceptualization. New York: Peter Lang, 2006a.
SILVA, T. T. O Currículo como fetiche: a poética e a política do texto curricular. Belo Horizonte:
Autêntica, 1999.
http://dx.doi.org/10.1590/198053142851
TEORIA DO
CURRÍCULO:
O QUE É E POR QUE
É IMPORTANTE
MICHAEL YOUNG
TRADUÇÃO Leda Beck
REVISÃO TÉCNICA E NOTAS Paula Louzano
RESUMO
190 Cadernos de Pesquisa v.44 n.151 p.190-202 jan./mar. 2014
Michael Young
AND WHY IT IS IMPORTANT
ABSTRACT
In this paper we discuss the importance of curriculum theory and its specialists in
the current debate on school curriculum. After a short account on the evolution of
the field of curriculum studies, we delve into the critique and normative aspects of
the curriculum theory, suggesting that these two objectives have been separated,
much to the demise of both of them. Next, when defending education as a practical
and specialized activity, we suggest that the curriculum theory unite both aspects
and regard the curriculum as a form of specialized knowledge. Lastly, we postulate
that curriculum theorists concentrate their efforts on the development of curriculum
that not just reproduce learning opportunities, but rather broaden them.
E
stou convencido de que não há questão educacional mais crucial hoje
Michael Young
desenvolvido por F. W. Taylor e, em seguida, foi aplicada às escolas, de
maneira que os teóricos do currículo podiam dizer aos professores o
que ensinar, como se fossem trabalhadores manuais – é por isso que
muitos departamentos de currículo nas universidades estadunidenses se
chamam Departamento de Currículo e Instrução.1 Na Inglaterra, tivemos
uma tradição bem diferente: era uma visão elitista e complacente
do que deveria ser ensinado nas escolas, conhecida como “educação
liberal”. Partia de duas premissas: a primeira, de que uma teoria não era
necessária; e a segunda, de que se os alunos não aprendiam era porque
lhes faltava inteligência.
Essas tradições perderam muito de sua credibilidade a partir das
décadas de 1960 e 1970, embora a ideia de que as escolas precisam ser
“mais eficientes”, como fábricas, nunca tenha desaparecido por com-
pleto em nenhum dos dois países. No entanto, é difícil, hoje, quando se
olham as publicações acadêmicas, saber exatamente quais são os atuais
limites do campo: não apenas o que é teoria do currículo, mas também o que
não é a teoria do currículo.
Ocorreram várias linhas de evolução no campo dos estudos
curriculares, todas críticas das duas primeiras tradições:
certeza, foi ele que me ensinou que não é possível ter uma teoria do 2
currículo sem uma teoria do conhecimento. Basil Bernstein (1924-2000),
sociólogo inglês conhecido
Temos, portanto, todas essas tradições positivas, sobre as quais por seus trabalhos na
área da sociologia da
podemos construir, mesmo nestes tempos difíceis. Sem elas, a teoria do educação. A evolução do
seu pensamento aparece
currículo poderia facilmente voltar ao seu passado tecnicista ou elitista fundamentalmente nos
cinco volumes da obra Class,
ou, mais provavelmente, poderia não ter futuro. Codes and Control, lançada
pela editora londrina
Routledge & Kegan Paul.
O PAPEL CRÍTICO E O PAPEL NORMATIVO
TEORIA DO CURRÍCULO: O QUE É E POR QUE É IMPORTANTE
DA TEORIA DO CURRÍCULO
O que significa dizer que somos “especialistas em currículo”? Sugiro
que significa que temos dois papéis importantes: um papel crítico e um
papel normativo.
Como críticos, nossa tarefa deveria ser a análise das premissas
e dos pontos fortes e fracos dos atuais currículos, além de analisar
também os modos como o currículo conceitual é usado. A questão difícil
e muito debatida é: o que deve significar exatamente essa noção de
crítica? Falando da minha própria experiência, uma coisa que aprendi
nos últimos dez anos é que não se pode ter crítica sem uma tradição.
Pensada assim, a teoria do currículo é muito parecida com música e
arte: tem suas tradições, que são rompidas e transformadas, mas não
podemos viver sem elas – até anarquistas têm tradições. Extraio minha
tradição da sociologia e fico feliz de ter lido os longos textos de Durkheim
e Weber, mesmo sem saber por que na época. Essa foi minha biografia
particular e com isso não quero dizer que a sociologia é a única tradição
para a teoria do currículo. Longe disso. Aprendi muito com psicólogos,
historiadores e filósofos, embora nunca tenha feito parte das tradições
deles. Para mim, ainda está aberta ao debate a questão de saber se
existe tradição e uma disciplina distintas da “teoria do currículo” e
quais seriam suas bases. Alguns teóricos do currículo, particularmente
aqueles da tradição estadunidense, fazem um uso eclético de teorias de
um amplo leque de fontes. É complexa a relação entre o objeto da teoria –
“o que é ensinado nas escolas e faculdades” – e o desenvolvimento de
uma teoria desse objeto. Trata-se, por exemplo, de uma disciplina em si
mesma ou ela bebe em diferentes disciplinas?
Michael Young
perturbador que a voz da teoria do currículo quase não seja ouvida.
Uma espiadela na história do currículo sugere que os objetivos
crítico e normativo têm sido claramente separados, em detrimento de
ambos. Por exemplo, os que prescrevem modelos para um currículo
“melhor” raramente se engajam em análises críticas, o que os obriga-
ria a examinar suas premissas. Eles presumem que ninguém poderia
seriamente discordar de suas prescrições, independentemente de elas
enfatizarem resultados, objetivos, competências ou habilidades fun-
cionais. Acredita-se que as premissas subjacentes a esse tipo de modelo
curricular não precisam do apoio de evidências ou argumentos – são
tomadas como óbvias, da mesma forma que, no passado, se tomavam
os axiomas de Euclides. Presume-se que tudo ruiria se as premissas não
fossem verdadeiras. Na minha visão, se o currículo for definido por
resultados, competências ou, de forma mais abrangente, avaliações,
ele será incapaz de prover acesso ao conhecimento. Entende-se conhe-
cimento como a capacidade de vislumbrar alternativas, seja em lite-
ratura, seja em química; não pode nunca ser definido por resultados,
habilidades ou avaliações.
O que dizer, então, de uma teoria do currículo que adota um pa-
pel crítico sem se sentir obrigada a desenvolver suas implicações concre-
tas? A crítica é vista como autojustificadora – “dizer a verdade ao poder”
é uma frase popular – e os críticos objetam quando se lhes pergunta: “e
daí?”. Foucault é muito popular entre teóricos críticos do currículo e foi
assim que ele justificou a crítica sem consequências:
Michael Young
a proposta das melhores alternativas que possamos encontrar para as
formas existentes.
A segunda questão é que a educação é uma atividade especia-
lizada. No tempo em que a maioria não frequentava escolas, educação
era uma coisa simples, assumida por pais e anciãos como extensão na-
tural do resto de suas vidas. Não requeria nenhum conhecimento para
além das experiências e memórias de infância das pessoas. À medida
que as sociedades foram se tornando mais complexas e mais diferencia-
das, desenvolveram-se instituições especializadas – escolas, faculdades
e, claro, universidades. Assim, embora permaneça uma atividade práti-
ca, a educação se tornou cada vez mais especializada. Os currículos são
a forma desse conhecimento educacional especializado e costumam de-
finir o tipo de educação recebida pelas pessoas. Precisamos entender os
currículos como formas de conhecimento especializado para podermos
desenvolver currículos melhores e ampliar as oportunidades de apren-
dizado. É esse tipo de meta que dá sentido à teoria do currículo, assim
como tratamentos e remédios melhores dão sentido à ciência médica.
Voltemos, então, ao currículo como conceito educacional.
Michael Young
rículo que deveria nos permitir analisar e criticar suas diferentes formas
e, esperemos, desenvolver e propor alternativas melhores de currículo.
Poderíamos descrever os teóricos do currículo como especialis-
tas em uma forma específica de conhecimento aplicado – conhecimento
que é aplicado para torná-lo tanto “ensinável” como “aprendível” por
alunos de diferentes etapas e idades. O conhecimento no currículo é
sempre conhecimento especializado e é especializado de duas maneiras:
Michael Young
Ponderei que o objeto da teoria do currículo deve ser o currículo – o que
é ensinado (ou não), seja na universidade, na faculdade ou na escola.
Assim, o currículo sempre é:
REFERÊNCIAS
CALLAHAN, Raymond. Education and the cult of efficiency. Chicago: The University of Chicago
Press, 1964.
MULLER, Johan. Reclaiming knowledge: social theory, curriculum and education policy. London:
Routledge/Falmer,2000.
SCOTT, David; HARGREAVES, Eleanore (Ed.). Handbook on learning. London: Sage, 2014.
MICHAEL YOUNG
Instituto de Educação, da Universidade de Londres (Reino Unido)
m.young@ioe.ac.uk
202 Cadernos de Pesquisa v.44 n.151 p.190-202 jan./mar. 2014
Recebido em: JANEIRO 2014 | Aprovado para publicação em: FEVEREIRO 2014
TENTATIVAS DE PADRONIZAÇÃO DO
CURRÍCULO E DA FORMAÇÃO DE
PROFESSORES NO BRASIL
Lucíola Licínio de Castro Paixão Santos1
Júlio Emílio Diniz‑Pereira1
Attempts at standardizing
curriculum and teacher education in Brazil
INTRODUÇÃO
O
propósito deste artigo é analisar as tentativas de padroniza‑
ção do currículo e da formação de professores da educação
básica, no Brasil, nos últimos 20 anos, ou seja, após a aprova‑
ção da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96
ou, simplesmente, LDBEN), em dezembro de 1996 (BRASIL, 1996).
As tentativas de padronização dos currículos, dentro de um processo
crescente de controle sobre o trabalho docente, relacionam‑se à crescente
penetração, na educação, de um ideário produzido no campo empresarial,
tributárias de uma visão economicista e voltada apenas à produtivida‑
de e a eficiência dos sistemas de ensino. As padronizações submetem o
trabalho docente a determinações tomadas por técnicos e especialistas,
desrespeitando a autonomia das escolas e de seus professores, a diversida‑
de cultural dos alunos e seus ritmos de aprendizagem.
O artigo está dividido em duas partes: a primeira focaliza o
crescente movimento de padronização dos currículos das diferentes
etapas da educação básica e a segunda, a padronização no campo da for‑
mação docente.
AS TENTATIVAS DE PADRONIZAÇÃO
DOS CURRÍCULOS DA EDUCAÇÃO BÁSICA
países do mundo. Nesta seção será abordada a maneira como têm sido
tratados os currículos da educação básica, nas últimas décadas, bus‑
cando mostrar suas tendências homogeneizadoras, a partir de decisões
legais e ações governamentais, bem como do cenário em que tais me‑
didas são tomadas.
No final dos anos 1990, duas iniciativas no campo do currí‑
culo mobilizaram a atenção da área educacional. A primeira diz respeito
às Diretrizes Curriculares Nacionais e a segunda se refere aos Parâmetros
Curriculares Nacionais. Inicialmente, serão abordadas as diretrizes cur‑
riculares para depois serem discutidas as novas formas de padronização
instituídas pelo governo central.
sores. Algo parecia claro na cabeça dos legisladores até aquele momento:
uma coisa era a “prática como componente curricular” e outra coisa era a
“prática de ensino” e o “estágio supervisionado”.
Pode‑se afirmar que, infelizmente, as universidades brasileiras,
de um modo geral, não souberam aproveitar o contexto bastante favorá‑
vel, do ponto de vista da legislação educacional da época, para a adoção
de medidas que significassem uma mudança verdadeiramente paradig‑
mática nos cursos de formação de professores no país13.
Pouco tempo após as universidades concluírem as reformas
curriculares dos cursos de licenciatura baseadas nas diretrizes curricula‑
res de 2002 — por exemplo, na Universidade Federal de Minas Gerais,
alguns cursos concluíram suas reformas apenas no ano de 2009 —,
definiram‑se novas diretrizes curriculares nacionais para os cursos de
formação de professores no país, por meio da aprovação da Resolução
CNE/CP nº 2, de 1º de julho de 2015.
Em linhas gerais, no que diz respeito aos cursos de licenciatura
plena, a resolução atual conserva o essencial das diretrizes curriculares
anteriores. Porém, ela aumenta a carga horária desses cursos de, no mí‑
nimo, 2.800 horas para, no mínimo, 3.200 horas14. Além disso, em
meio a polêmicas no campo, ela regulamenta algumas vias alternati‑
vas de formação de professores no país como, por exemplo, os cursos
de formação pedagógica para graduados não licenciados e os chamados
“cursos de segunda licenciatura”. A resolução de 2015 apresenta ainda,
em um único documento, as diretrizes para a formação inicial e para
a formação continuada de professores com a intenção de articular es‑
ses dois momentos do desenvolvimento profissional dos docentes da
educação básica. Outra novidade dessa resolução foi a existência de um
capítulo específico sobre a “valorização dos profissionais do magistério”
entendida como “uma dimensão constitutiva e constituinte de sua for‑
mação inicial e continuada”.
Diferente do currículo mínimo, mecanismo que define até
mesmo nomes e cargas horárias de disciplinas obrigatórias dos cursos
de graduação e, entre esses, dos cursos de formação de professores, as
diretrizes curriculares orientam, em linhas gerais, a reforma desses cur‑
sos. O currículo mínimo, ao enrijecer bastante a estrutura dos cursos,
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
NOTAS
1. Este artigo se refere apenas às diretrizes curriculares para as etapas da educação básica
do ensino regular.
2. Tomou‑se como referência, especialmente, o caso inglês, cuja tradição de descentral‑
ização do sistema educacional fora radicalmente transformada pelas reformas educa‑
cionais implantadas por Margaret Thatcher, no contexto de uma política conservado‑
ra de orientação neoliberal.
3. Segundo Galian (2014), a pesquisa incidiu sobre 60 propostas elaboradas pelas secre‑
tarias de educação, em nível estadual e em nível municipal, entre o final da década de
1990 e a primeira década dos anos 2000.
4. As discussões no campo do currículo avançaram e, hoje, se têm no campo duas posições
mais nítidas. A primeira delas inclui os estudiosos que orientam seus trabalhos a partir
das teorias críticas e a segunda abarca aqueles cujos referenciais teóricos são tributários
Amurabi Oliveira**
*
Resenha de MISKOLCI, Richard. (org.) Marcas da Diferença no Ensino Escolar.
São Carlos: EdUFSCar, 2010. Recebida para publicação em 9 de fevereiro de
2012, aceita em 5 de dezembro de 2012.
**
Professor de Antropologia da Educação do Centro de Educação da
Universidade Federal de Alagoas (UFAL). amurabi_cs@hotmail.com.
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A escola, nós e os outros: diferença e alteridade na realidade escolar
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A escola, nós e os outros: diferença e alteridade na realidade escolar
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A escola, nós e os outros: diferença e alteridade na realidade escolar
Referências bibliográficas
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A educação e a pergunta pelos Outros: diferença,
alteridade, diversidade e os outros “outros”
Carlos Skliar
Resumo
No conjunto de questões que nos fazem pensar/imagi-
nar que está se criando uma mudança significativa na edu-
cação brasileira de hoje, a questão do outro, dos outros,
parece ocupar tanto um lugar de privilégio quanto de
uma renovada banalização.
Assim, três questões parecem traçar as linhas divisórias
nos discursos pedagógicos atuais: 1) trata-se, por acaso
de um outro que nunca esteve aqui? 2) trata-se, de um
outro que volta somente para nos contar as suas histó-
rias de discriminação e exclusão? ou; 3) trata-se, talvez,
de um “eu escolar” que, simplesmente, se dispõe a hos-
pedar e/ou se inquieta somente pela estética da sua pró-
pria hospedagem, mas que não se interessa pelo outro?
Neste artigo me proponho discutir algumas das imagens
do outro que recorrem os discursos educativos e escolares
e, em particular, discutirei a questão do “outro com neces-
sidades educativas especiais”.
Palavras Chave
Outro (Teoria do conhecimento).
Abstract
Among the set of questions that makes us think or
imagine that a significant change is underway in
Brazilian education, the issue of the other, or others,
appears to occupy both a place of privilege as well as
one of renowned banalization.
Thus, three questions appear to trace the dividing lines
in current pedagogical discourse: 1) does it concern, by
chance, an other that was never here? 2) does it concern
an other that only returns to tell us stories of
discrimination and exclusion? Or perhaps 3) does it
concern an “School I” that is simply prepared to be a
host and or gets upset only by the aesthetic of its own
hospitality, but is not interested in the other?
In this article I propose to discuss some of the images
of the other that recur in the educational and school
discourses and, in particular, I will discuss the issue of
the “other with special educational needs”.
Key words
Others minds (Theory of Knowlodge).
Porque a mudança nos olha e, ao nos olhar, encontra somente uma repro-
dução infinita de leis, de textos, de currículos e de didáticas. Mas nenhuma pala-
vra sobre as representações como olhares ao redor do outro. Nenhuma palavra
sobre a necessidade de uma metamorfose nas nossas identidades. Nenhuma
palavra sobre a vibração com o outro.
As mudanças tem sido, então, quase sempre, a burocratização do outro,
sua inclusão curricular e, assim, a sua banalização, seu único dia no calendário,
seu folclore, seu detalhado exotismo.
Se, em algum momento da nossa pergunta sobre educação, tínhamos nos
esquecido do outro, agora detestamos sua lembrança, maldizemos a hora de
sua existência e da sua experiência, corremos desesperados a aumentar o nú-
mero de alunos e de cadeiras nas aulas, mudamos as capas dos livros que já
publicamos há muito tempo, re-uniformizamos o outro sob a sombra de no-
vas terminologias. Novas terminologias sem sujeitos.
Há, então, um outro que nos é próximo, que parece ser compreensível
para nós, previsível, maleável etc. E há um outro que nos é distante, que parece
ser incompreensível, imprevisível, maleável. Assim entendido, o outro pode ser
pensado sempre como exterioridade, como alguma coisa que eu não sou, que
nós não somos. Mas há também a mesma dualidade acima apontada (outro
próximo - outro radical) em termos de interioridade, quer dizer, que esses
outros também podem ser eu, sermos nós.
O pensamento ocidental continua tomando o outro pelo próximo, reduzin-
do o outro ao outro próximo. Reduzir o outro ao próximo é uma tentação um
tanto difícil de evitar, pois a alteridade radical constitui sempre uma provocação e,
portanto, está destinada à redução e ao esquecimento na análise da memória, é isso
que chamamos de história. Porém, nesta gestão do próximo, fica sempre um
resíduo; no outro se esconde uma alteridade ingovernável, de ameaça, explosiva.
Aquilo que tem sido normalizado pode acordar em qualquer momento.
Com a modernidade, entramos numa era de produção do Outro. Não se
trata, já, de matá-lo, devorá-lo ou seduzi-lo, nem de enfrentá-lo ou rivalizar com
ele, também não de ama-lo ou odia-lo; agora, primeiro, trata-se de produzi-lo. O
outro tem deixado de ser um objeto de paixão para se converter num objeto de
produção. Poderia ser que o outro, na sua alteridade radical ou na sua singularida-
de irredutível, haja se tornado perigoso ou insuportável e, por isso, seja necessário
exorcizar a sua sedução? Ou será, simplesmente, que a alteridade desaparece
progressivamente com o aumento, em potência, dos valores individuais e a des-
truição dos valores simbólicos? Seja como for, o caso é que a alteridade começa
a faltar e que é imperiosamente necessário produzir o outro como diferença à
falta de poder viver a alteridade como destino.
O outro da educação foi sempre um outro que devia ser anulado, apa-
gado. Mas as atuais reformas pedagógicas parecem já não suportar o aban-
dono, a distância, o descontrole. E se dirigem à captura maciça do outro
para que a escola fique ainda mais satisfeita com a sua missão de possuí-lo,
tudo dentro de seu próprio ventre.
Dentre as figuras da alteridade radical que são hoje objeto de tradução/
aproximação/inclusão escolar, há um outro que tornou-se especialmente sensível
às reformas pedagógicas das últimas décadas: aquele outro fixado na expressão
“necessidades educativas especiais”, voz monótona que inclui num único proces-
A diferença, assim, não constitui um ponto de vista, mas uma distância que
separa de um outro ou outros; é uma diferença entre perspectivas, uma dobradi-
ça “que articula o singular de uma perspectiva e o plural de seus deslocamentos
virtuais” (HOPENHAYN, 1999, p.131).
Já não é, então, a relação entre nós e eles, entre a mesmice e a alteridade, o
que define a potência existencial do outro, mas a presença — antes ignorada,
silenciada, aprisionada etc. — de diferentes espacialidades e temporalidades do
outro; já não se trata de identificar uma relação do outro como sendo dependen-
te ou como estando em relação empática ou de poder com a mesmice; não é
uma questão que se resolve enunciando a diversidade e ocultando, ao mesmo tem-
po, a mesmice que a produz, define, administra, governa e contém; não se trata
de uma equivalência culturalmente natural; não é uma ausência que retorna
malferida; trata-se, por assim dizer, da irrupção (inesperada) do outro, do ser
outro que é irredutível em sua alteridade.
De certo modo, seria possível dizer que esse outro não é nem uma pura
identidade nem uma mera diferença; não é um outro redutível que o faz trans-
formar-se do indefinível em algo definível e do inominável em algo nominável.
Como sugere Gabilondo (2001, p.193): “a diferença não se reduz à diferença
de um consigo mesmo, nem simplesmente à de um com outro, mas é a expe-
riência viva de uma irrupção – da palavra e do olhar - que torna possível essas
outras formas de alteridade [ ... ]”
Sob a perspectiva de Lévinas (2000, p. 85), trata-se do questionamento e do
deslocamento da ontologia do outro, aquilo que em nome do Ser, do Ser como
o mesmo, acaba por reduzir e subordinar toda alteridade. O outro já não é dado
senão como uma perturbação da mesmice, um “rosto” que nos sacode etica-
mente. O outro não irrompe para ser somente hospedado ou bem-vindo, nem
para ser honrado ou insultado. Irrompe, em cada um dos sentidos, nos quais a
homogeneidade foi construída. Não volta para ser incluído, nem para narrarmos
suas histórias alternativas de exclusão. Irrompe, simplesmente, e nessa irrupção
sucede o plural, o múltiplo, a disseminação, a perda de fronteiras, a desorientação
temporal, o desvanecimento da própria identidade.
O outro irrompe, e nessa irrupção, nossa mesmice vê-se desamparada, des-
tituída de sua corporalidade homogênea, de seu egoísmo; e, ainda que busque
desesperadamente as máscaras com as quais inventou a si mesma e com as quais
inventou o outro, o acontecimento da irrupção deixa esse corpo em carne viva,
torna-o humano. O outro volta e nos devolve nossa alteridade, nosso próprio
ser outro; é o tornar-se outro e todavia
esse tornar-se outro não é o retorno do Uno que volta, mas
diferenças de diferenças, divergências transitórias, sempre mais
e menos a cada vez, mas nunca igual. Não é questão de limitar
esse devir, ordená-lo ao mesmo e fazê-lo semelhante
(GABILONDO, 2001. p. 163).
Agora, a irrupção do outro pode instaurar uma nova e original relação com
a mesmidade. Mas não uma relação tranqüila, transparente, consistente, nem muito
menos incondicional ou empática. A irrupção do outro é uma diferença que
difere, que nos difere e que se difere sempre de si mesma. Um outro inalcançável,
efêmero em seu nome e em sua significação, inabordável, que se afasta em seu
mistério, com seu mistério. É o outro que “acontece de todas as formas. Ele cria
a todo momento a linha divisória” (BAUDRILLARD, 2002, p. 67).
O mistério do outro, o poder de sua alteridade. Não há relação com o outro
se seu rosto é ignorado. Ainda que o consideremos como um corpo-objeto, ainda
que façamos do outro uma simples anatomia e simplifiquemos o mundo que ele
expressa e, também, sua expressividade (DERRIDA, 1987, p. 414).
A relação com o outro não está mais cimentada só no saber, no conheci-
mento, na verdade, na intencionalidade. Uma consciência intencional que, ao en-
trar em relação com o outro, termina com sua própria essência, se reduz a nada
e, como bem diz Mélich (1997, p.171): “[...] acaba reduzindo-se a cinzas”.
dar-lhe voz para que diga sempre o mesmo, exigir-lhe sua inclusão, negar a
própria produção de sua exclusão e de sua expulsão, nomeá-lo, confeccioná-lo,
dar-lhe um currículo “colorido”, oferecer-lhe um lugar vago, escolarizá-lo cada
vez mais, para que, cada vez mais, possa parecer-se com o mesmo, ser o mesmo.
É uma pedagogia que afirma duas vezes e que nega também duas vezes:
afirma o “nós”, mas nega o tempo (provavelmente) comum; afirma o outro,
mas nega-lhe seu tempo.
É a pedagogia da diversidade como pluralização do “eu mesmo” e de
“o mesmo”; uma pedagogia que hospeda, que abriga; mas uma pedagogia
à qual não importa quem é seu hóspede, mas que se interessa pela própria
estética do hospedar, do alojar.
É a pedagogia que impõe as leis da hospitalidade — direitos e deveres
sempre condicionais e condicionantes — mas não a lei da hospitalidade — dar
a quem chega todo o lugar, sem lhe pedir o nome e sem cumprir nem a menor
condição (DERRIDA, 1997) —. Uma pedagogia que reúne, ao mesmo tempo,
a hospitalidade e a hostilidade em relação ao outro. Que anuncia sua generosida-
de e esconde sua violência de ordem.
Uma pedagogia que não se preocupa -e que se aborrece- com a identidade
do outro, quando não repete -até a exaustão- somente a ipseidade do “eu”.
A pedagogia do outro que reverbera permanentemente é a pedagogia de
um tempo outro, de um outro tempo. Uma pedagogia que não pode ocultar as
barbáries e os gritos impiedosos do mesmo, que não pode mascarar a repetição
monocórdia, e que não pode, tampouco, ordenar, nomear, definir, ou fazer
congruentes os silêncios, os gestos, os olhares e as palavras do outro.
Uma pedagogia que, no presente, poderia instalar-se, mas não se aco-
modar, entre a memória e o porvir. Mas, também, uma pedagogia que não
seja só a fabricação do futuro e que se abra ao porvir, esse tempo que, como
sugere Larrosa (2001, p.419),
nomeia a relação com o tempo de um sujeito receptivo, não
tanto passivo como paciente e passional, de um sujeito que se
constitui desde a ignorância, a impotência e o abandono, des-
de um sujeito, enfim, que assume sua própria finitude [...]
Notas
1 Sartre, no livro O ser e o nada, diz que “além de breves e terríficas ilumina-
ções, os homens morrem sem ter suspeitado o que era o Outro”.
2 Mesmice, segundo o Dicionário Aurélio significa: “ausência de variedade
ou de progresso; inalterabilidade”. No contexto do meu texto pode-se ler,
também, no sentido de um se próprio, do mesmo, pejorativo.
3 Processo de “alterização” significa colocar a ênfase na produção do outro
como alteridade e também de duvidar, ao mesmo tempo, que esse outro
exista “naturalmente”.
4 As questões que aqui descrevo em relação a atenção à diversidade são o
resultado inicial de um projeto de pesquisa realizado nos meses de outubro,
novembro e dezembro de 2002 na Universidade de Barcelona, Departa-
mento de Didática e Organização Educativa (SKLIAR, 2002).
5 Ipseidade refere-se ao processo de individuação que faz com que alguém
seja ele mesmo e se diferencie de qualquer outro.
6 Ao dizer “está bem”, ou “está mal”, não estou pensando em nenhum atributo
moral. Simplesmente, trata-se, de um processo de afirmação do outro que entra
em contradição com o habitual processo de negação do outro na pedagogia.
Referências
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poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2001. p. 281-296.
Recebido em 03/04/2003
Aprovado em 15/06/2003
Carlos Skliar
Rua Manoel Leão, 35
CEP 91760-560 Porto Alegre, RS
e-mail: skliar@piaget.edu.ufrgs.br
RESUMO
Anais da VI Jornada Ibero-Americana de Pesquisas em Políticas Educacionais e Experiências Interdisciplinares na Educação. Brasília, DF. 2022.
Esta pesquisa objetiva compreender os contextos que viabilizam a implementação da Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) e Base Nacional Comum para a Formação de
Professores da Educação Básica (BNC-FI), as influências que as impulsionam e seus textos; e
investigar como estão se efetivando na prática, fazendo uma leitura crítica do discurso
pedagógico que elas contêm, a fim de perceber poder e o controle que exercem sobre os
sujeitos e as brechas discursivas que possuem. É uma pesquisa de abordagem qualitativa,
nível exploratório e caracteriza-se como uma análise documental. A análise tomou por
fundamentos a opção teórico-metodológica da Abordagem do Ciclo de Políticas de Ball e
colaboradores, com destaque para o contexto da influência e o contexto da produção do texto
da política BNC-FI. Procurando compreender as noções de poder e controle, assumimos a
Teoria Sociológica de Basil Bernstein. O texto da BNC-FI foi analisado utilizando
aproximações com a Análise Textual Discursiva, processo que permitiu a construção das
categorias a priori Formação Acadêmico-Profissional (FAP), Formação Democrática (FD),
Formação Crítico-Inovadora (FCI), emergindo no processo a categoria Formação
Subordinada às Competências (FSC). Concluímos argumentando que as normativas
apresentam brechas discursivas que permitem uma atuação na e sobre a política, garantindo
uma formação acadêmico-profissional docente, se distanciando do viés regulatório e
mercadológico que predomina nos textos analisados.
ABSTRACT
This research aims to understand the contexts that enable the implementation of the National
Curricular Common Base (BNCC) and Common National Base for Basic Education Teacher
Training (BNC-FI), the influences that drive them and their texts; and to investigate how they are
being carried out in practice, making a critical reading of the pedagogical discourse they contain, in
order to perceive the power and control they exert over the subjects and the discursive gaps they
have. It is a research with a qualitative approach, exploratory level and is characterized as a
documental analysis. The analysis was based on the theoretical-methodological option of the Policy
Cycle Approach by Ball and collaborators, highlighting the context of influence and the context of
the production of the text of the BNC-FI policy. Seeking to understand the notions of power and
control, we assume the Sociological Theory of Basil Bernstein. The BNC-FI text was analyzed
using approaches to Discursive Textual Analysis, a process that allowed the construction of the a
priori categories Academic-Professional Training (APT), Democratic Training (DT), Critical-
Innovative Training (CIT), emerging in the process the category Training Subject to Competencies
(TSC). We conclude by arguing that the regulations present discursive gaps that allow action in and
on politics, guaranteeing an academic-professional teacher training, distancing themselves from the
regulatory and marketing bias that predominates in the analyzed texts.
279
1. INTRODUÇÃO
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada em 2018 e reunida em um
Anais da VI Jornada Ibero-Americana de Pesquisas em Políticas Educacionais e Experiências Interdisciplinares na Educação. Brasília, DF. 2022.
documento único em 2019, vem dando o tom para as demais políticas educacionais
aprovadas no país desde então, sobretudo às normativas referentes à formação de professores,
como a Base Nacional Comum para a Formação de Professores da Educação Básica - BNC-
FI (BRASIL, 2019). Todas essas políticas estão alinhadas aos preceitos neoliberais e
conservadores, que transparecem na busca por resultados idealizados nas avaliações
estandardizadas, de viés mercadológico, cosmopolita e performático, impresso também nas
normativas. Nesse sentido, é importante compreender os contextos que viabilizam essas
políticas, as influências que as impulsionam e seus textos, bem como investigar como estão
se efetivando na prática (BALL; BOWE, 1992). Relevante também fazer a leitura crítica do
discurso pedagógico que as políticas contêm, percebendo o poder e o controle que exercem
sobre os sujeitos e as brechas discursivas que possuem. (BERNSTEIN, 1996).
280
comunidades. É importante garantir ainda uma formação que prime por princípios
democráticos, desde sua composição mais radical, entendida por Freire (1979) como a forma
Anais da VI Jornada Ibero-Americana de Pesquisas em Políticas Educacionais e Experiências Interdisciplinares na Educação. Brasília, DF. 2022.
de compreendermos o mundo, o poder, as relações e os elementos de mudança social. Nesse
sentido, a formação de professores também deve partir de princípios crítico-inovadores. A
criticidade, conceito central da pedagogia freireana, potencializa processos transformadores,
por meio da ação-reflexão-ação, da participação e leitura de mundo (FREIRE, 1979). A
inovação pedagógica que defendemos e demarcamos teórico-epistemologicamente, é
originada de ações que não necessitam ser inéditas, mas que tenham a intencionalidade de
produzir mudanças nas estratégias de construção ou organização de conhecimentos e garantir
a aprendizagem. (MELLO; SALOMÃO DE FREITAS, 2017).
281
influência e no contexto da produção do texto da política BNC-FI. Para compreender o poder,
o controle e as brechas discursivas presentes no discurso pedagógico da normativa nos
Anais da VI Jornada Ibero-Americana de Pesquisas em Políticas Educacionais e Experiências Interdisciplinares na Educação. Brasília, DF. 2022.
amparamos na Teoria Sociológica de Basil Bernstein (1998).
282
Visando melhorar a compreensão, além da criação de categorias de análise e das
unidades de significado atribuídas a elas, foi realizada a análise das habilidades
Anais da VI Jornada Ibero-Americana de Pesquisas em Políticas Educacionais e Experiências Interdisciplinares na Educação. Brasília, DF. 2022.
correspondentes a cada competência específica, em que foi efetuado o mesmo processo de
codificação e categorização, resultando na codificação exemplificada a seguir: FSC1.1 -
dominar direitos de aprendizagem, competências [...] estabelecidos na BNCC. A escrita do
metatexto analítico é explicitada a seguir.
2. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Para construir a discussão, tomamos por referência a ACP, especialmente o seu contexto de
influência e as possibilidades de interpretação do texto da política em análise, identificando
disputas, instituições e sujeitos envolvidos na construção inicial da política (BALL; BOWE,
1992; MAINARDES, 2006). Assumimos, então, como contexto de influência da BNC-FI, a
BNCC, pois foi a partir dessa normativa que se desdobraram as demais políticas de formação
de professores, estando as mesmas instituições privadas e sujeitos envolvidos na busca por
garantir ampliação do alinhamento baseado em valores neoliberais e conservadores. Esse
entrelaçamento por interesse das normativas, tanto da Educação Básica como da Educação
Superior para a formação de professores, evidencia-se na semelhança e no uso dos mesmos
verbos nas descrições das competências gerais da BNCC e BNC-FI, aspecto já sinalizado por
Rodrigues, Pereira e Mohr (2020) ao comparar os textos das duas legislações e apontar
aproximações intencionais nas suas elaborações. É importante ressaltar ainda, a influência
exercida por grandes corporações educacionais, que pressionam para que a formação de
professores seja aligeirada e possa acontecer de forma simplista, reducionista e
financeiramente barata, transformando cursos de licenciatura em cursos preparatórios para
implementadores da BNCC (DINIZ-PEREIRA, 2021).
283
influência da BNCC sobre ela, quando é afirmado no texto da política que esse alinhamento é
realizado para assegurar a “coerência” entre as Diretrizes, o que segundo Diniz-Pereira
Anais da VI Jornada Ibero-Americana de Pesquisas em Políticas Educacionais e Experiências Interdisciplinares na Educação. Brasília, DF. 2022.
(2021), representa um mecanismo de uniformização dos currículos com rígido controle
(BERNSTEIN, 1996), como já visto e feito no Brasil na época da Ditadura Militar.
Para a análise aqui apresentada nos detivemos aos anexos da Resolução CNE/CP Nº
2/2019, na qual é apresentada a Base Nacional Comum para Formação Inicial de Professores
da Educação Básica (BNC-FI). Consideramos este trecho em especial do texto da política,
pois entendemos que é nele que podemos vislumbrar os subsídios básicos para as reformas
dos currículos das licenciaturas. Contudo, este anexo é limitado a um conjunto de 10 (dez)
“Competências Gerais Docentes” e 12 (doze) “Competências Específicas”, separadas em três
dimensões - “Conhecimento Profissional”, “Prática Profissional” e “Engajamento
Profissional” - com quatro competências descritas para cada uma (BRASIL, 2019, p.14). O
texto da BNC-FI desdobra-se ainda em uma lista de 62 (sessenta e duas) “Habilidades” que o
futuro docente deve desenvolver para cada competência específica (BRASIL, 2019, p.15-20).
Buscamos encontrar no texto de cada competência específica indícios que nos permitisse
afirmar, a partir da compreensão do exposto no discurso pedagógico explicitado na normativa
(BALL; BOWE, 1992; BERNSTEIN, 1996), que há possibilidade de promover a formação
docente na perspectiva acadêmico-profissional, democrática e crítico-inovadora, mesmo com
a implementação da normativa nos currículos.
284
diferentes recursos, inclusive as tecnologias da informação e comunicação” (BRASIL, 2019,
p.20), recurso de ensino-aprendizagem amplamente difundido no texto das políticas,
Anais da VI Jornada Ibero-Americana de Pesquisas em Políticas Educacionais e Experiências Interdisciplinares na Educação. Brasília, DF. 2022.
imprimindo forte controle sobre as formas de aprender e ensinar e que precisam ser
problematizados frente a participação de grandes empresas de tecnologia nas redes de ensino
do país (BERNSTEIN, 1996).
285
fragmentações, sendo intencional e buscando a ruptura com o contexto social imposto
(VEIGA, 2003). Sendo assim, esse viés formativo é crítico e representa brechas discursivas
Anais da VI Jornada Ibero-Americana de Pesquisas em Políticas Educacionais e Experiências Interdisciplinares na Educação. Brasília, DF. 2022.
na normativa, ou seja, possibilidades de alternativas à própria formação regulatória proposta
pela BNC-FI (BERNSTEIN, 1988). Contudo, é necessário estar atento às formas de como o
poder e o controle são expressos no texto de cada habilidade e como se mostrarão nos
currículos de cada curso de licenciatura, quais conhecimentos e expressões serão válidas, bem
como quais métodos de ensino, aprendizagem e avaliação serão validados (SILVA, 2019).
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
286
retomamos as intenções dessa pesquisa que visa compreender os contextos que viabilizam a
implementação da BNCC e BNC-FI, as influências que as impulsionam, seus textos e
Anais da VI Jornada Ibero-Americana de Pesquisas em Políticas Educacionais e Experiências Interdisciplinares na Educação. Brasília, DF. 2022.
investigar como estão se efetivando na prática, fazendo uma leitura crítica do discurso
pedagógico que elas contêm, a fim de perceber poder e o controle que exercem sobre os
sujeitos e as brechas discursivas que possuem.
Dito isso, a análise nos permitiu concluir que o entrelaçamento que marca as políticas
que estruturam os currículos da Educação Básica e Superior, evidenciados pela semelhança
no uso dos verbos, é um mecanismo de rigorosa regulação e uniformização dos currículos e
que acaba por transformar os cursos de formação de professores em preparatórios para a
execução do que preconiza a BNCC. Contudo, ao analisarmos as habilidades que se
desdobram das dimensões que constituem a BNC-FI, conseguimos perceber brechas
discursivas que permitem o desenvolvimento de um trabalho de formação docente na
perspectiva acadêmico-profissional, democrática e crítico-inovadora, sendo a ACP e a teoria
sociológica de Bernstein valiosos suportes teórico-metodológicos para encontrar e atuar sobre
essas brechas.
287
pela BNCC. A homogeneização das políticas evidencia as intencionalidades de uma
coerência entre a BNC-FI e a BNCC, resultantes das pressões advindas das avaliações em
Anais da VI Jornada Ibero-Americana de Pesquisas em Políticas Educacionais e Experiências Interdisciplinares na Educação. Brasília, DF. 2022.
larga escala que poderão servir como parâmetros para classificação e regulação das
instituições e sujeitos.
4. REFERÊNCIAS
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Disponível em: t.ly/Ihjf. Acesso em: 09 mar. 2022.
autor1
Doutoranda em Educação em Ciências:
Química da Vida e Saúde pela Universidade
Federal do Pampa. Professora na Rede
Municipal de Ensino de São Gabriel/RS e
Professora Substituta no Curso de
Licenciatura em Ciências Biológicas da
UNIPAMPA. Pesquisadora no Grupo de
Pesquisa em Inovação Pedagógica na
Formação Acadêmico-Profissional dos
Profissionais da Educação - GRUPI.
autor2
Doutorando em Educação em Ciências
Química da Vida e Saúde pela Universidade
Federal do Pampa. Professor na Rede
Municipal de Ensino de Uruguaiana/RS.
Pesquisador no Grupo de Pesquisa em
Inovação Pedagógica - GRUPI.
autor3
Doutora em Educação. Professora
Associada da Universidade Federal do
Pampa, atuando no PPG Educação em
Ciências. Líder do Grupo de Pesquisa em
Inovação Pedagógica - GRUPI.
289
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Programa de Pós-graduação Educação: Currículo
Revista e-curriculum ISSN: 1809-3876
RESUMO
Este artigo busca refletir sobre as contribuições propiciadas pelo uso das tecnologias digitais
de informação e comunicação na aprendizagem, no ensino e no desenvolvimento do currículo,
identificar as possibilidades de mudanças educacionais evidenciadas com sua inserção nas
escolas ligadas a distintos sistemas de ensino público ou privado. Tem como argumento
central a integração das tecnologias ao currículo, desenhando o termo web currículo para
cunhar esse conceito em construção. Toma como elemento fundante para esta construção o
conceito de currículo enquanto uma construção social que se desenvolve na ação, em
determinado tempo, lugar e contexto, com o uso de instrumentos culturais presentes nas
práticas sociais. Para contribuir com essa construção, este artigo pontua, ainda, alguns dos
temas que emergiram em relevantes debates entre educadores durante a realização do I e II
Seminário Web Currículo.
ABSTRACT
This paper reflects on the contributions offered by the use of Information and Communication
Technology (ICT) in teaching, learning and curriculum structuring. Identifies possibilities for
educational changes evidentiated by the inclusion of technologies in education systems. The
main idea of this paper is the integration of technologies into the curriculum and aims to draw
the concept of web curriculum. The founding element for structuring this concept considers
curriculum as social construction that develops in action at any given time, place and context,
using these cultural tools in social practices. Contributing to this articulation, this article also
points out some of relevant discussions among educators which happened during the I and II
Seminar Web Currículo.
1. CONTEXTUALIZAÇÃO
Nas últimas décadas grupos de pesquisa de diferentes partes do mundo ocidental vêem
se dedicando ao desenvolvimento de estudos sobre tecnologias na educação, considerado
como um tema da ciência, que traz em seu bojo os conceitos de pluralidade, inter-relação,
abertura e intercâmbio crítico de ideias, concepções, experiências e saberes advindos de distintas
áreas de conhecimento, que se integram com as tecnologias e interferem nos modos de pensar,
fazer e se relacionar.
Após um período de estudos sobre porque, o que e para que utilizar tecnologias na
educação, as investigações se voltaram para a concepção, gestão e avaliação dos processos de
ensino e de aprendizagem que se desenvolvem mediatizados pelas tecnologias digitais. Essas
investigações versam sobre o uso de tecnologias digitais de informação e comunicação –
TDIC em ambientes de aprendizagem com suporte em plataformas instaladas em servidores
dedicados, constituídos de ferramentas que propiciam a comunicação, a organização de
conteúdos hipermidiáticos e a gestão de informações, recursos e participações, com acesso
restrito viabilizado por meio de senhas.
No momento em que distintos artefatos tecnológicos começaram a entrar nos espaços
educativos trazidos pelas mãos dos alunos ou pelo seu modo de pensar e agir inerente a um
representante da geração digital evidenciou-se que as TDIC não mais ficariam confinadas a
um espaço e tempo delimitado. Tais tecnologias passaram a fazer parte da cultura, tomando
lugar nas práticas sociais e resignificando as relações educativas ainda que nem sempre
estejam presentes fisicamente nas organizações educativas. Dentre os artefatos tecnológicos
típicos da atual cultura digital, com os quais os alunos interagem mesmo fora dos espaços da
escola, estão os jogos eletrônicos, que instigam a imersão numa estética visual da cultura
digital; as ferramentas características da Web 2.0, como as mídias sociais apresentadas em
diferentes interfaces; os dispositivos móveis, como celulares e computadores portáteis, que
permitem o acesso aos ambientes virtuais em diferentes espaços e tempos, dentre outros.
Com o propósito de identificar as contribuições propiciadas pelo uso das TDIC na
aprendizagem e no ensino e de identificar as possibilidades de mudanças educacionais
evidenciadas com a implantação de políticas públicas que viabilizaram sua inserção nas
escolas ligadas a distintos sistemas de ensino, passamos a nos dedicar a investigações sobre a
integração das tecnologias com o currículo. Na escola, as tecnologias não ficam apenas
isoladas em laboratórios e começam, pouco a pouco, a ser integradas às atividades de sala de
aula e a outros espaços da escola ou fora dela para uso de acordo com as necessidades e
interesses evidenciados a qualquer momento.
Desta forma, o emprego das tecnologias na educação como coadjuvantes nos
processos de ensino e aprendizagem para apoio às atividades ou, ainda, para motivação dos
alunos, gradualmente dá lugar ao movimento de integração ao currículo do repertório de
práticas sociais de alunos e professores típicos da cultura digital vivenciada no cotidiano
(SILVA, 2010).
Nessa perspectiva, tecnologias e currículo passam a se imbricar de tal modo que as
interferências mútuas levam a ressignificar o currículo e a tecnologia, e então começamos a
criar um novo verbete - web currículo, cuja construção analisamos neste artigo.
2. TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO
2005). Desse movimento emerge um novo significado, que integra novas e velhas mídias e
formas de representação do pensamento.
Assim, a escola, que se constitui como um espaço de desenvolvimento de práticas
sociais se encontra envolvida na rede e é desafiada a conviver com as transformações que as
tecnologias e mídias digitais provocam na sociedade e na cultura, e que são trazidas para
dentro das escolas pelos alunos, costumeiramente pouco orientados sobre a forma de se
relacionar educacionalmente com esses artefatos culturais que permeiam suas práticas
cotidianas. Diante dessa constatação, Wim Veen e Ben Vrakking (2009) usam, desde meados
desta década, a expressão Homo Zappiens para denominar essa geração de crianças e
adolescentes que "consideram a escola como um lugar de encontro com os amigos, mais do
que um ambiente de aprendizagem”. (p. 47). Crianças e adolescentes nascidos após a década
de 1980, que cresceram com a internet, habituaram-se a usar jogos eletrônicos, a produzir,
interagir e compartilhar informações por meio de redes sociais e a utilizar dispositivos
móveis, são chamados por geração Y ou, ainda geração pós-internet, e demandam a “inserção
das tecnologias digitais nas práticas educativas”. (LARA; QUARTIERO, 2010) e
provavelmente sentem a “não-presença destas tecnologias nos processos educativos” (idem,
p.3).
O percentual de crianças entre 5 a 9 anos que se situam nessa categoria vem
aumentando a passos largos, conforme resultados da pesquisa intitulada TIC Crianças 2009
(CGI.br, 2010), que identificou o percentual de 57% das crianças nessa faixa etária que já
utilizaram um computador e 29% das crianças brasileiras já acessaram a internet. Segundo o
mesmo estudo, “Apesar da importância da mídia na formação educacional da criança, as
escolas desempenham papel secundário como local de uso da Internet“ (p.24).
O pensamento das novas gerações se desenvolve no âmago de um sistema de co-
produção mediatizado pelas TDIC compondo uma ecologia cognitiva (LÉVY, 1993) na
medida em que transforma a configuração da rede social ao envolver pessoas, objetos
técnicos, valores, práticas, significados e pensamentos articulados em “uma rede na qual,
neurônios, módulos cognitivos, humanos, instituições de ensino, línguas, sistemas de escrita,
livros e computadores interconectam, transformam e traduzem as representações” (LÉVY,
1993, p.135).
A efetiva participação da escola nessa ecologia implica em promover a formação de
educadores oferecendo-lhes condições de integrar criticamente as TDIC à prática pedagógica.
Para tanto, é preciso que o educador possa apropriar-se da cultura digital e das propriedades
intrínsecas das TDIC, “utilizá-las na própria aprendizagem e na prática pedagógica e refletir
sobre por que e para que usar a tecnologia, como se dá esse uso e que contribuições ela pode
trazer à aprendizagem e ao desenvolvimento do currículo” (ALMEIDA, 2010, p.68).
Além dos educadores, é preciso criar condições para que a escola como um todo tome
parte da cultura digital e, portanto, se articule com a comunidade global, que se estrutura,
dentre outros componentes, por meio das TDIC e mídias digitais.
Para compreender o porquê, para que, com quem, quando e como se integrar com a
cultura digital por meio do uso das TDIC, é importante assumir uma posição crítica,
questionadora e reflexiva diante da tecnologia, que expresse o processo de criação do ser
humano, com todas as suas ambiguidades e contradições, uma vez que
permite ao educador identificar a razão de ser da tecnologia e de seus usos (FREIRE, 1984) de
modo a utilizá-la em favor de uma educação emancipadora, que conduza à humanização do
professor. Trata-se da reeducação do olhar pedagógico do docente (Arroyo, 2000), voltada à
compreensão de seu papel como sujeito participante na transformação da educação e do
mundo (FREIRE, 1977) e ao reconhecimento do aluno como sujeito de conhecimento,
construtor da própria história com o uso de instrumentos da cultura. A integração das TDIC
ao currículo demanda, dessa forma, que os agentes da educação (professor, aluno, gestor e
comunidade) façam a leitura crítica do mundo digital, o interprete e “lancem sobre ele suas
palavras” (ALMEIDA, 2009). Mas “a leitura deste mundo não pode ser feita com os mesmos
instrumentos de mundos passados” (idem, p. 30).
As tecnologias por si só não garantem a educação democrática, mas estar conectado,
saber ler, participar do mundo digital e da rede de comunicação, são condições prévias e
alimentadoras da liberdade – e por ela alimentadas (ALMEIDA, 2011). A inclusão das TDIC
na educação demanda políticas públicas voltadas para a inclusão social e para a inserção da
população na sociedade digital.
No entanto, ainda que nos últimos anos as iniciativas de uso das TDIC na educação
tenham se constituído como uma das prioridades das políticas públicas de diferentes países e
que diversos programas e projetos tenham sido executados, as análises dos impactos do uso
pedagógico dessas tecnologias nas escolas evidenciam resultados diferentes. Diversos
estudiosos desse tema (ALMEIDA, 2008; COSTA e VISEU, 2007; COSTA, 2004) indicam
que a presença das TDIC nas escolas por si só não é garantia de resultados satisfatórios na
melhoria da aprendizagem e no desenvolvimento do currículo e, muitas vezes o uso das TDIC
se restringe a atividades pontuais sem uma real integração ao currículo (VALENTE;
ALMEIDA, F., 1997; ALMEIDA, 2008).
De fato, relatório da Comissão Européia (BALANSKAT; BLAMIRE; KEFALA,
2006) sobre o uso das TDIC na educação não superior identifica diferenças consideráveis nos
resultados entre escolas de uma mesma região ou país. Ele recomenda que a formação de
educadores para o uso pedagógico das TDIC tenha foco na escola e nas necessidades
específicas de desenvolvimento pessoal e profissional contínuo dos professores, bem como
em práticas pedagógicas baseadas no desenvolvimento de projetos, na resolução de problemas
e na aprendizagem ativa.
É importante salientar que a formação do professor para o uso das TDIC é referência
para sua prática pedagógica e assim a concepção embasadora e as práticas desenvolvidas no
processo de formação se constituem como inspiração para que ele possa incorporar as TDIC
3. WEB CURRÍCULO
Integrar as TDIC com o currículo significa que essas tecnologias passam a compor o
currículo, que as engloba aos seus demais componentes e assim não se trata de ter as
tecnologias como um apêndice ou algo tangencial ao currículo e sim de buscar a integração
transversal das competências no domínio das TDIC com o currículo, pois este é o orientador
das ações de uso das tecnologias. Logo, precisamos esclarecer o que entendemos por
currículo, cujo conceito é polissêmico.
As características da sociedade atual de instabilidade e mudança, a provisoriedade do
conhecimento, as transformações das ciências, as mudanças na organização do trabalho e o
surgimento constante de novas profissões indicam que o currículo visto como grade curricular
composta de unidades de ensino predefinidas ou conjunto de prescrições não responde aos
problemas atuais da educação. Concordamos com Goodson (2007) que não adianta substituir
as listas de conteúdos por novas prescrições ou efetuar reformas nos métodos e diretrizes, é
preciso “questionar a verdadeira validade das prescrições predeterminadas em um mundo em
mudança” (p. 242), que impulsiona a construção de currículo por narrativas de aprendizagem.
Entendemos o currículo como uma construção social (Goodson, 2001) que se
desenvolve na ação, em determinado tempo, lugar e contexto, com o uso de instrumentos
culturais presentes nas práticas sociais (ALMEIDA; VALENTE, 2011). Com base em Dewey
(1971), o desenvolvimento do currículo tem na experiência do aluno seu ponto de partida,
mas não se restringe a ela, uma vez que as atividades pedagógicas têm a intenção de propiciar
a aprendizagem e o desenvolvimento do aluno no sentido de avançar de um conhecimento do
senso comum para o conhecimento científico (VYGOTSKY, 1989).
Nossa compreensão de currículo alinha-se com a perspectiva sócio-cutural no sentido
proposto por Moreira (2007) que acentua a tensão existente no processo curricular entre dois
focos: o conhecimento escolar e a cultura. Isto significa que o currículo envolve tanto
propiciar ao aluno a compreensão de seu ambiente cotidiano como comprometer-se com sua
alunos (GIMENO SACRISTAN, 1998) com a mediatização das TDIC. Portanto, imerso num
ambiente cujas relações se estabelecem em grande parte por meio das tecnologias digitais, o
currículo e sua estruturação não poderiam ficar apartados da prática social.
Essa idéia sobre web currículo tomou vulto e conduziu nossas discussões para
distintos espaços de diálogo com pesquisadores, professores e outros profissionais, quando
então identificamos a importância de ampliarmos o debate com distintas audiências em um
espaço que fosse além do encontro físico, formando um entrelaçado de espaços físicos e
digitais. Assim nasceu a idéia de um evento que denominamos de web currículo.
Gráfico 1- Incidência das palavras-chave das apresentações orais do I Seminário Web Currículo
Gráfico 2 - Incidência das palavras-chave das apresentações orais do II Seminário Web Currículo
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
_______. A presença de Paulo Freire nas pesquisas e nas políticas públicas de tecnologias na
educação brasileira: reinventar a teoria, reconstruir a prática In: MERCADO, Luís Paulo
Leopoldo. Formação do pesquisador em educação: questões contemporâneas. Maceió:
EDUFAL, 2007. v.1, p.259 – 291.
LARA, Rafael; QUARTIERO, Elisa Cunha. Educação para uma geração pós-internet:
olhares a partir da formação inicial de professores. In: SANCHES, Jayme. Congreso
Iberoamericano de Informática Educativa. Santiago, Chile, 2010.
SANCHÉZ, Jaime H. Integración curricular de las TICs: conceptos e ideas. In: Actas do VI
Congresso Iberoamericano de Informática Educativa, Vigo: RIBIE, nov. 2002. 6p.
(disponível em:http://lsm.dei.uc.pt/ribie/pt/textos/doc.asp?txtid=40#top) Acesso em fevereiro
de 2011.
SANTAELLA, Lúcia. Linguagens líquidas na era da mobilidade. São Paulo: Paulus, 2007.
SILVA, Tomas Tadeu. Os novos mapas culturais e o lugar do currículo numa perspectiva
pós-moderna. In: SILVA, Tomaz Tadeu da; MOREIRA, Antônio Flávio (orgs).Territórios
Contestados: o currículo e os novos mapas culturais. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
VEEN, Wim; WRAKKING, Benn. Homo Zappiens: educando na era digital. Porto Alegre:
Artmed, 2009.