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O CAMPO DO CURRÍCULO NO BRASIL:

CONSTRUÇÃO NO CONTEXTO DA ANPED

ANTONIO FLAVIO BARBOSA MOREIRA


Professor Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro
afmcju@infolink.com.br

RESUMO

O campo do currículo está se caracterizando, em diferentes países, por uma significativa diversi-
ficação de temas e de influências teóricas. Apoiando-se no conceito de campo de Bourdieu, o
texto aborda o campo no Brasil, tal como vem sendo construído no Grupo de Trabalho – GT – de
Currículo da ANPEd. Examina o funcionamento do grupo, procurando situá-lo no contexto mais
amplo da associação e das políticas de pós-graduação. Focaliza, a seguir, os trabalhos apresen-
tados nos encontros ocorridos no período de 1996 a 2000. Critica o grande número de textos
selecionados, o que tem contribuído para a secundarização da discussão de problemas educacio-
nais que carecem de atenção. Propõe perguntas e sugere estratégias que possam enriquecer o
processo de construção do conhecimento desenvolvido no GT.
CURRÍCULO – CAMPO – GRUPO DE TRABALHO – CONSTRUÇÃO DE CONHECIMENTO

ABSTRACTS

THE FIELD OF CURRICULUM IN BRASIL: CURRICULUM BUILDING IN THE CONTEXT OF


ANPED. The field of curriculum has been characterized, in different countries, by a remarkable
diversity of themes and theorethical infuences. Drawing on Bourdieu’s conception of field, the
article focuses on the field of curriculum in Brazil, as it has been constructed at the Curriculum
Working Group – GT – of the National Association of Research and Graduate Studies in
Education – ANPEd. It examines the dynamics of the meetings and analyses it taking into
account both the main features of the Association and the recent educational policies for
graduate studies in Brazil. It also discusses the papers presented in the meetings from 1996 to
2000. The author argues that the great number of papers has prevented the discussion of major
educational problems that should be considered by the researchers. The article proposes
questions and suggests strategies that could enrich the process of knowledge construction that
has been developed by the Working Group.
CURRICULUM – FIELD – WORKING GROUP – KNOWLEDGE CONSTRUCTION

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A insatisfação com os rumos do campo do currículo nos Estados Unidos,
desde sua emergência nas primeiras décadas do século XX até o início da década
de 70 do mesmo século, levou numerosos pesquisadores a se engajarem no mo-
vimento que procurou promover sua reconceptualização. Unia-os a rejeição: a) ao
caráter prescritivo e pretensamente apolítico dos estudos até então desenvolvidos;
b) à ausência de uma perspectiva histórica, expressa no escasso diálogo entre as
diversas gerações de investigadores; c) à excessiva preocupação em melhorar o
trabalho desenvolvido nas escolas; d) à persistência de temas como objetivos esco-
lares e planejamento; e e) à indefinição referente ao objeto de estudo do campo e
às suas relações com outros campos. Herbert Kliebard (1975), um dos mais
renomados participantes do grupo, chegou mesmo a sugerir que a tarefa para os
cinqüenta anos subseqüentes deveria ser encontrar alternativas para o modo de
refletir sobre currículo que dominou os primeiros cinqüenta anos do campo.
Nos vinte anos que se seguiram à eclosão do movimento de reconceptua-
lização, foram intensos e frutíferos os debates sobre questões de currículo, em
diferentes partes do mundo. Lições foram aprendidas, ainda que tenham restado
dúvidas em relação aos rumos da teoria curricular, à promoção de práticas curriculares
progressistas e ao desenvolvimento do diálogo entre os pesquisadores da univer-
sidade, os professores das escolas e os membros participantes de movimentos
sociais (Silva, 1992).
Nos Estados Unidos, cuidadoso mapeamento do campo, realizado nos anos
90 do século XX, permitiu que se identificasse, nos textos sobre currículo, uma
profusão de novos problemas, novas tendências e novas perspectivas. De duas
tendências presentes na emergência do campo – uma voltada para os interesses da
criança e outra para a formação do adulto supostamente necessário à sociedade –
chegou-se, em 1995, a um total de onze diferentes modalidades de textos – políti-
cos, raciais, de gênero, fenomenológicos, pós-modernistas e pós-estruturalistas,
biográficos e autobiográficos, estéticos, teológicos, centrados nas instituições esco-
lares, históricos e internacionais. A preocupação com o desenvolvimento curricular
praticamente desapareceu do cenário, passando a predominar o propósito de com-
preender o processo curricular (Pinar et al., 1995).
No Brasil, estudos recentes têm procurado traçar o panorama atual de nos-
so campo. Como nos Estados Unidos, identificou-se uma sensível diversificação das
influências teóricas nas pesquisas entre nós (Macedo, Fundão, 1996). Discutiu-se a
situação de crise da teoria curricular crítica, sugerindo-se, para sua superação, um
empenho maior na investigação da prática curricular, bem como a promoção de
freqüentes diálogos no campo do currículo (Moreira, 1998). Acentuou-se, ainda,

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com base em entrevistas com renomados pesquisadores da área, a necessidade de
uma definição mais clara dos contornos do campo, de um maior diálogo entre a
universidade e a escola, bem como de revisão dos métodos e dos conteúdos ensi-
nados nos cursos de currículo no país (Moreira, 2000). Como nos Estados Unidos,
o desenvolvimento curricular afastou-se das preocupações de nossos investigado-
res. Em síntese, nos estudos de currículo que temos desenvolvido evidenciam-se
avanços, omissões e desafios a serem enfrentados.
O campo tem-se ampliado e diversificado cada vez mais. Produzem-se, com
regularidade crescente, teses, dissertações, documentos oficiais, artigos e livros so-
bre currículo. Faz-se necessário, portanto, analisar mais profundamente esse con-
junto de textos para que melhor se compreendam os caminhos seguidos, as ten-
dências, os processos de produção, as conquistas, as lacunas, bem como as possí-
veis influências na determinação de políticas e de práticas. Este estudo insere-se
nessa tarefa, visando, ainda que modestamente, favorecer sua consecução. Nele
tomei como alvo de atenção o Grupo de Trabalho (GT) de Currículo da Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Educação – ANPEd – , instituição que
promove, anualmente, o mais importante encontro de pesquisadores da área, limi-
tando-me a examinar o funcionamento do GT e os trabalhos apresentados de
1996 a 2000.
No GT de Currículo reúnem-se docentes e discentes que se dedicam a
investigar questões de currículo. Os mais produtivos autores do campo costumam
comparecer às reuniões, fazendo com que o que se passa no GT corresponda, de
fato, a uma caixa de ressonância do que se pesquisa sobre currículo no Brasil. Por
conseguinte, um estudo sobre o GT pode certamente contribuir para o maior co-
nhecimento do campo no Brasil. Talvez possa também, embora não seja seu pro-
pósito central, estimular reflexões sobre a forma como temos conduzido encon-
tros, seminários e congressos na área da educação.
Meu texto desdobra-se, daqui para a frente, em cinco partes. Na primeira,
esbocei um breve histórico do GT. Na segunda, procurei justificar o intenso empre-
go de perguntas no decorrer do estudo. Na terceira, apresentei o conceito de
campo de Pierre Bourdieu, empregando-o para abordar a dinâmica do GT. Na
quarta, focalizei os trabalhos selecionados para análise. Na quinta e última, ofereci
sugestões para a superação de problemas que, a meu ver, ocorrem nos encontros
do GT.
Não incluí, em minhas considerações, nem os trabalhos encomendados nem
os textos elaborados por membros do GT para sessões especiais ou mesas-redon-
das. Ainda, não me sustentei em dados empíricos mais sistematicamente reunidos.

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Remeti-me ao funcionamento do GT utilizando uma perspectiva de dentro: desde
1989, ano seguinte a minha defesa de tese de doutorado na Universidade de Lon-
dres, tenho estado presente em todas as reuniões, o que já me levou a ser
categorizado, inclusive em recente estudo (Cunha, 1997), como um membro his-
tórico do grupo. Com a intenção de suscitar discussões, levantei questões relativas
à dinâmica do GT.
Quanto aos trabalhos, focalizei-os com base em minha participação nas reu-
niões, em resultados de pesquisa que coordenei (Moreira, Macedo, 1997), na qual
foram examinados os textos apresentados nas reuniões do GT durante a primeira
metade da década de 1990, bem como em recente análise, que efetuei, dos que se
apresentaram de 1996 a 2000. Tendo-me situado em relação aos temas e aos
autores mais citados nas bibliografias, levantei questões sobre essa produção, bus-
cando também provocar indagações e reflexões.
Antes porém das perguntas formuladas e das considerações teóricas que as
embasam, passo ao histórico do GT.

UM BREVE HISTÓRICO DO GT DE CURRÍCULO

A decisão de organizar o Grupo de Trabalho de Currículo foi tomada na


oitava Reunião Anual da ANPEd. O primeiro encontro de seus membros ocorreu
em dezembro de 1985, no 1º Seminário Nacional de Currículo, promovido pelo
Programa de Estudos Pós-Graduados em Supervisão e Currículo da Pontifícia Uni-
versidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Algumas questões básicas orientaram as
discussões no seminário e vieram a configurar, posteriormente, os eixos dos traba-
lhos do GT que se formava: a reconceptualização do campo do currículo; o ensino
de currículo na universidade brasileira; e a pesquisa em currículo no país. Procurou-
se também, durante o seminário, estabelecer os pontos a serem debatidos sobre o
tema central da 9a Reunião – “Educação e Constituinte”, ocorrida no Rio de Janeiro,
em 1986.
Nessa oportunidade, o GT reuniu-se pela primeira vez, coordenado por
Ana Maria Saul. Decidiu-se, então, desenvolver, em âmbito nacional, a pesquisa O
Currículo do Ensino de Primeiro Grau, sob a responsabilidade de José Luiz
Domingues, Iracema Lima Pires Ferreira, Ana Maria Saul e Nilda Alves.
Na 10a Reunião, em 1987, em Salvador, procedeu-se à análise de entrevis-
tas e de alguns dados coletados na pesquisa mencionada. Ao mesmo tempo, o
grupo reservou espaço para a discussão de questões referentes à nova Lei de Dire-
trizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN – e para a definição de compromis-

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sos a serem assumidos pelos membros do GT. Debateram-se, então, os mecanis-
mos de mobilização necessários ao cumprimento desses compromissos. Ao final
do encontro, José Luiz Domingues foi eleito o novo coordenador do GT.
Na 11a Reunião, em 1988, em Porto Alegre, o grupo discutiu a pesquisa na
área do currículo, bem como conteúdos e bibliografias da disciplina Currículos e
Programas. Apresentaram-se também moções sobre a LDBEN. Certo consenso
foi estabelecido ao final: o campo teórico do currículo carecia de melhor delimita-
ção. Com base nessa constatação, propôs-se como tema do próximo encontro: a
questão do currículo como matéria do pensamento pedagógico, visando-se à pro-
posição de uma concepção de currículo mais significativa para a realidade brasileira.
Na 12a Reunião, em São Paulo, em 1989, os trabalhos do GT centraram-se
em dois eixos: diretrizes e bases da educação brasileira – propostas específicas na
área do currículo; e teoria do conhecimento e currículo. Duas decisões foram to-
madas: elaborar um projeto de pós-doutoramento em currículo, no Brasil e no
exterior; e sistematizar a história e a produção do GT. Iracema Lima Pires Ferreira
foi eleita a nova coordenadora.
A 13a Reunião realizou-se, em 1990, em Belo Horizonte. Nela foram apre-
sentados dez trabalhos de pesquisadores da área, além de um trabalho elaborado
por Lucíola Santos, na época membro do GT de Didática. Voltou-se a discutir o
projeto de pós-doutoramento e preparou-se a reunião subseqüente. Acordou-se
que os trabalhos do ano seguinte deveriam focalizar: currículo e conhecimento; o
fazer pedagógico do professor de Currículo; e pesquisas desenvolvidas na área.
Cada um dos temas ficou a cargo de um ou dois integrantes do GT (Moreira,
1995).
A reunião de 1990 pode ser considerada, em razão do número de trabalhos
e da dinâmica desenvolvida, um verdadeiro marco no funcionamento do GT, uma
linha divisória. De 1991 em diante, os encontros passaram a privilegiar a apresenta-
ção de trabalhos. A discussão de políticas educacionais e temas emergentes e/ou de
interesse dos pesquisadores precisou, quando ocorreu, de horários extraordinários.
Os coordenadores subseqüentes foram Teresinha Fróes Burnham, Antonio Flavio
Moreira, Nilda Alves, Alfredo Veiga-Neto, Alice Lopes e Sandra Corazza.
Vale ressaltar, ainda, que, mais recentemente, os trabalhos selecionados e
apresentados nos encontros têm refletido a expansão de nosso sistema de pós-
graduação e o modelo de avaliação implementado pela Coordenação de Aperfei-
çoamento do Pessoal de Nível Superior – Capes. Ou seja, as transformações que
se verificaram no GT precisam, a meu ver, ser relacionadas às mudanças que foram
ocorrendo no panorama da pós-graduação em educação no país. Como uma das

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metas dos programas, em busca de maior pontuação nas avaliações, tem sido o
aumento e a socialização da produção científica de mestrandos e doutorandos, os
trabalhos apresentados no GT passaram a constituir-se, dominantemente, em ver-
sões condensadas de dissertações e teses defendidas, ou por defender. Com isso,
lucram os programas, os orientadores e os orientandos. Estará de fato lucrando,
com isso, o GT?
Com a ANPEd completando 25 anos de funcionamento em 2002, pode-se
afirmar que os grupos de trabalho têm representado uma verdadeira força-motriz
das reuniões anuais, propiciando significativo espaço de discussão, construção e
reconstrução do conhecimento. Não se pode negar que os GTs têm estimulado e
propiciado uma consistente e sistemática produção em diferentes áreas do campo
educacional. Mas, cabe perguntar, será que as mudanças que se introduziram, prin-
cipalmente nos anos de 1990, no funcionamento dos GTs, têm favorecido o desen-
volvimento de saberes que se elaboram na tensão permanente entre a dimensão
prático-pragmática e o domínio teórico-empírico do projeto educacional?
(Brandão, 1998). Em outras palavras, em que medida as transformações ocorridas
nos GTs têm de fato incrementado o avanço do conhecimento pedagógico e a
realização de pesquisas pertinentes, voltadas para as candentes questões da educa-
ção brasileira?

SOBRE PERGUNTAS E REFERENCIAIS TEÓRICOS

Penso, como Fleuri (2000), que fazer perguntas pode ser um modo de orien-
tar nossos olhares para vermos o que ainda não foi visto. Talvez seja mesmo um
passo necessário à elaboração de uma linguagem para dizermos o que ainda não foi
dito. Daí minha preocupação em formular perguntas, questões e hipóteses que nos
estimulem a ver o que ainda não vimos e a melhor compreender o que ainda não
compreendemos suficientemente.
Antes de começar a perguntar, recorro aos comentários de Beatriz Sarlo
sobre a nostalgia. Minha intenção, ao citá-la em trecho a meu ver bastante expres-
sivo, é antecipar-me às possíveis acusações de que estou sendo nostálgico ao lasti-
mar o que se tem perdido com a consolidação do atual modelo de GT.

Há nostalgia? Melhor dizendo, há elementos no passado que não pareçam invaria-


velmente piores que os que se encontram no presente? Todo juízo que não afirme
que o passado foi pior é nostálgico? Eu creio que a escola argentina foi mais eficaz
para os setores populares do começo do século até a década de cinqüenta. Creio
que o cinema italiano das décadas de cinqüenta e sessenta foi melhor que o atual. O

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mesmo acho do cinema francês dos anos sessenta. Sinto nostalgia por Visconti, por
Truffaut ou pela escola número 14 do distrito escolar 15 em 1920? É nostálgico
pensar que a escola em que as crianças aprendiam a ler e a escrever bem em quatro
anos preparava os setores populares melhor que aquela que os deixa semi-alfabeti-
zados quando abandonam a escola? É nostálgico quem pensa que a gente ganhava
mais há dez anos atrás que agora?
Convenhamos que é absurdo afirmar que um juízo se torna nostálgico pelo simples
fato de relacionar valorativamente presente e passado. Como não tenho supersti-
ção em relação ao passado, é possível que não me contamine com o otimismo
experiencial do presente. (2001, p.225-226)

Pergunto, então: é nostálgico pensar que o GT de Currículo já promoveu


reuniões mais produtivas que as atuais? É nostálgico considerar que o ambiente
mais informal, menos burocratizado, do GT que inicialmente conheci, favorecia
mais que o de hoje, tão regrado e controlado, o aprofundamento de temas que nos
interessavam e sobre os quais julgávamos pertinente nos debruçar? É nostálgico
julgar que a rapidez com que se apresentam e discutem inúmeros trabalhos acaba
provocando menos interesse que as discussões travadas no “outro” GT? É nostálgi-
co dizer que formávamos um grupo mais coeso e permanente que o de hoje, que
se renova apressadamente à medida que um novo trabalho se sucede a outro?
Ainda com o suporte de Sarlo, sustento que ser nostálgico é querer introdu-
zir no presente as condições passadas. Não é esta a minha intenção. Não a desejo,
nem a vejo, mesmo, como possível. Todavia, insisto em que analisemos criterio-
samente como temos conduzido nossos encontros e como, nas condições atuais,
poderíamos abrir, como no passado, mais espaço para discussões que nos insti-
guem e para o exame cuidadoso de questões teóricas e práticas que devam ser
enfrentadas. Ainda que os problemas que aponto no GT de Currículo possam tam-
bém ser encontrados em outros GTs, precisamos buscar mecanismos próprios que
nos permitam superá-los, ao menos parcialmente.
O que estou tentando argumentar é que a rápida discussão de trabalhos
advindos, dominantemente, de teses e dissertações defendidas em nossos progra-
mas de pós-graduação não tem sido adequada para recuperar, em nova forma,
alguns elementos do GT passado que gostaria de ver preservados. Não se trata de
desvalorizar as evidentes conquistas do presente, certamente facilitadas por aspec-
tos do passado. Em outras palavras, tanto no passado como no presente encon-
tram-se elementos a serem mantidos, elementos a serem renovados e transforma-
dos e elementos a serem rejeitados. Separar uns de outros constitui nossa tarefa,
da qual não devemos nem podemos escapar.

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Conquistas e retrocessos precisam ser pensados no quadro mais amplo de
mudanças sucedidas no panorama dos eventos educacionais e da pós-graduação
no país. Na medida em que não mais se promovem as Conferências Brasileiras de
Educação (a última realizou-se em 1991) e em que se vem reduzindo o espaço
para a área da educação nas reuniões da Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência – SBPC – , é natural que haja aumentado consideravelmente o público nas
reuniões da ANPEd. O encontro transformou-se, mesmo, em um megaevento, o
que também se explica pela considerável elevação do número de programas de
pós-graduação (temos hoje cerca de 55 programas recomendados pela Capes).
Mais professores e mais estudantes, portanto, acorrem à reunião.
As mudanças sofridas no processo de avaliação dos programas, coordenado
pela Capes, também contribuem para o aumento do público: como já comentei,
cada vez mais se valoriza, na avaliação, a apresentação de trabalhos em eventos
científicos, tanto por docentes como por discentes. Cada vez mais se abre espaço,
no GT, para tais trabalhos. Nesse panorama, não constituem surpresa nem o au-
mento do número de grupos de trabalho (hoje igual a 20), nem a maior rigidez na
forma da reunião, expressa tanto na introdução de um Comitê Científico e de
consultores ad hoc para avaliar os trabalhos, como nas inúmeras regras para a orga-
nização dos encontros dos GTs, das mesas-redondas e das sessões encomendadas.
A reunião, como um todo, burocratizou-se, na mesma proporção em que o GT,
antes um estimulante espaço de discussões, se transformou em uma enfadonha
“passarela” de trabalhos.
Proponho, então, mais perguntas. Como organizar nosso encontro de modo
que favoreça discussões mais ricas e relevantes? Como poderíamos nos beneficiar
mais dos trabalhos que vêm sendo apresentados? Como poderíamos reservar tempo
suficiente para outros temas e problemas que muitos de nós desejariam discutir e
aprofundar? Que aspectos do funcionamento do GT precisariam ser mudados e
que aspectos precisariam ser preservados?
Cabe esclarecer que nada tenho, nem poderia ter, contra os trabalhos deri-
vados dos relatórios das pesquisas feitas por estudantes da pós-graduação. Pelo
contrário, como professor e orientador de pós-graduação, tenho tido o prazer de
assistir a alguns de meus orientandos apresentarem e discutirem seus estudos no
espaço deste GT. Das dissertações e das teses defendidas na pós-graduação têm
derivado importantes contribuições para o pensamento pedagógico contemporâ-
neo. Porém, julgo que essa produção discente, ainda que necessária, não é suficien-
te para garantir que se avance teórica e praticamente no campo do currículo.

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A fim de melhor desenvolver argumentos e apresentar minhas perguntas,
inspiro-me no trabalho de Magda Soares (2000) sobre o campo da Didática. Soa-
res recorreu ao conceito de campo de Bourdieu e o empregou não como uma
teoria, mas como um método ou instrumento de análise. Desenvolveu sua refle-
xão como alguém que foi de dentro e hoje se encontra de fora dos Encontros
Nacionais de Didática e de Prática de Ensino – Endipes. Apresentou hipóteses, em
forma de perguntas, não afirmações, e esclareceu não se ter fundamentado em
tratamento rigoroso de dados empíricos, mas em conhecimentos adquiridos em
breve exame da programação dos nove encontros.
A trajetória de Soares é bastante similar à que pretendo seguir. Como já
afirmei, também não me apóio em levantamento rigoroso dos temas e trabalhos
discutidos nas reuniões do GT e também apresento perguntas que visam provocar
estranhamento e inquietação. Ainda, também pretendo utilizar o conceito de cam-
po de Bourdieu como um método ou instrumento de análise. Diferentemente,
porém, situo-me como alguém que tem sido de dentro, como alguém que vem
sistematicamente participando dos últimos 14 encontros. Por isso, embora tam-
bém formule hipóteses, atrevo-me, em certos momentos, a sugerir respostas, cau-
sas, efeitos, ciente dos riscos que corro e da complexidade envolvida no processo.
Como Soares, proponho-me a estimular reflexões que favoreçam a compreensão
do que se passa no GT; diferentemente dela, atrevo-me a julgar e a avaliar proce-
dimentos, práticas e resultados. Do mesmo modo, explicito também o conceito de
campo com o qual trabalharei.
Antes, também conforme Soares, esclareço de que campo pretendo tratar.
Vou focalizar o campo institucionalizado pelas reuniões do GT de Currículo,
estruturado de modo a incluir as teorias, as práticas e as políticas de currículo, que
correspondem às temáticas dominantemente tratadas nos trabalhos. Denomino-o,
para fins da análise que efetuo, de campo do currículo, consciente dos problemas
que podem resultar do emprego arbitrário e restrito do conceito de campo, tal
como formulado por Bourdieu.

SOBRE O CONCEITO DE CAMPO E PERGUNTAS QUE SUSCITA

Pierre Bourdieu pode certamente ser considerado um dos maiores sociólo-


gos da contemporaneidade. Seu pensamento marcou a Sociologia e suas obras são
hoje referenciais, devido à fertilidade dos instrumentos conceituais que emprega
para compreender as estratégias de reprodução da desigualdade e as lutas simbóli-
cas que os agentes sociais travam, no plano cultural, por apropriação de bens e,

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conseqüentemente, por monopólio da competência e do poder. Dentre as catego-
rias que utiliza, a noção de campo tem-se mostrado bastante fecunda, por relacio-
nar-se às lutas que determinados grupos desenvolvem pela manutenção de vanta-
gens e posições, ou seja, pela preservação de privilégios materiais e simbólicos.
Nos diferentes campos – arte, religião, ciência, educação, esporte – evidenciam-se
embates entre diferentes agentes, portadores de autoridade e legitimidade diferen-
ciadas (Canesin, 2002). Para este estudo, foram particularmente úteis as análises
que Bourdieu efetua sobre as disputas travadas no interior do campo científico.
Nelas amparei-me para desenvolver minha argumentação.
Para Bourdieu (1983, 1997), campo é o universo no qual estão inseridos os
agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatu-
ra ou a ciência. É um mundo social como os outros, mas que obedece a leis sociais
mais ou menos específicas, distintas das leis sociais a que está submetido o
macrocosmo. Todo campo é um campo de forças e um campo de lutas para con-
servar ou transformar o campo de forças.
Referindo-se particularmente ao campo científico, Bourdieu (1983, 1997)
argumenta que a estrutura das relações objetivas entre os diferentes agentes (que
são as fontes do campo) comanda os pontos de vista, as intervenções científicas, os
locais de publicação, os objetos a serem investigados. É essa estrutura que vai dizer
o que pode e o que não pode ser feito. É, em síntese, a posição que os agentes
ocupam nessa estrutura que define ou orienta seus posicionamentos.
Como se determina essa estrutura? Segundo Bourdieu, pela distribuição do
capital científico, em um certo momento, entre os diferentes agentes engajados no
campo. O capital científico é uma espécie particular de capital simbólico que consis-
te no reconhecimento concedido pelos pares, no seio do campo. Os maiores de-
tentores de capital científico são certamente os pesquisadores dominantes. São eles
que, em geral, indicam o conjunto de objetos importantes, ou seja, o conjunto de
questões que devem importar para os pesquisadores e sobre as quais eles preci-
sam se concentrar de modo a serem devidamente recompensados.
Algumas perguntas já podem, neste momento, ser formuladas. Que diferen-
tes posições podem ser encontradas no campo do currículo? Que lutas se travam
em seu interior? Quais são os pesquisadores dominantes? Quem tem de fato con-
tribuído para determinar as questões, os métodos e os temas importantes, bem
como para definir os arranjos e a burocracia do funcionamento do GT? Será que os
trabalhos selecionados e apresentados refletem essas determinações?
Ainda segundo Bourdieu, no interior do campo está sempre em jogo o po-
der de impor uma definição da ciência, isto é, a delimitação do que pode ser consi-

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derado científico. A adoção da definição mais apropriada é necessária para que o
pesquisador tenha seus talentos científicos reconhecidos e possa ocupar legitima-
mente a posição dominante na estrutura. Outras perguntas, então, mostram-se
pertinentes: como, no seio do GT, tem-se determinado o que considerar como
currículo e como forma apropriada de estudá-lo? Quem tem contribuído para es-
sas determinações? Como elas têm afetado o caráter das investigações desenvol-
vidas?
Voltando a Bourdieu: à medida que estão em jogo na luta a própria definição
dos critérios de julgamento e dos princípios de hierarquização, ninguém é bom juiz
que não seja, ao mesmo tempo, juiz e parte interessada. Para Bourdieu, então, não
pode ser visto como inocente o recurso a “juízes” para definir as hierarquias carac-
terísticas de um campo determinado, seja a hierarquia dos agentes ou a das institui-
ções. Assim, as análises “científicas” do estado da ciência não são inocentes; não são
outra coisa senão a justificação, cientificamente mascarada, do estado particular da
ciência ou das instituições científicas com a qual compactuam. Cabe, então, pergun-
tar: como essa perspectiva se expressa nas avaliações dos consultores ad hoc e do
Comitê Científico? Que estado particular dos estudos de currículo e das instituições
que os desenvolvem tem sido privilegiado nessas análises “científicas”?
Recorro, de novo, a Bourdieu: a estrutura da distribuição do capital científico
está na base das transformações do campo científico e se manifesta por intermédio
das estruturas de conservação ou de subversão da estrutura que ele mesmo pro-
duz. Em todo campo se situam, com forças mais ou menos desiguais segundo a
estrutura da distribuição do capital no campo (grau de homogeneidade), os domi-
nantes e os dominados, isto é, os “novatos”. Na luta que os opõe, os dominantes e
os “novatos” costumam recorrer a estratégias antagônicas, profundamente opostas
em sua lógica e no seu princípio. Os interesses que os motivam e os meios que
podem colocar em ação para satisfazê-los dependem estreitamente de sua posição
no campo, isto é, de seu capital científico e do poder que tal capital lhes confere. Os
dominantes consagram-se às estratégias de conservação, visando assegurar a per-
petuação da ordem científica estabelecida com a qual compactuam. Segundo a
posição que ocupam na estrutura do campo, os “novatos” podem orientar-se para
as estratégias de sucessão, próprias para assegurar-lhes, ao término de uma carreira
previsível, os lucros prometidos aos que realizam o ideal oficial da excelência cien-
tífica, sem ultrapassar os limites autorizados; ou para as estratégias de subversão,
investimentos mais custosos e arriscados, que só podem assegurar os lucros pro-
metidos aos detentores do monopólio da legitimidade científica em troca de uma
redefinição completa dos princípios de legitimação da dominação.

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Pergunto: em que medida, em nosso campo, distinguem-se de fato diferen-
tes estratégias empregadas por dominantes e “novatos”? Quem emprega estraté-
gias de conservação, quem emprega estratégias de sucessão e quem emprega es-
tratégias de subversão? Como essas estratégias se evidenciam nas decisões refe-
rentes à organização do GT? Qual tem sido, nesse processo, o papel da diretoria da
ANPEd e da coordenação do GT?
As estratégias que solidificaram o modelo implantando a partir de 1991, têm
sido mais defendidas pelos “novatos” por razões que, a meu ver, sugerem mais
mudanças na estrutura de relações do GT do que propriamente compromisso
com o avanço do conhecimento científico. Ainda, penso que o tempo dedicado à
apresentação de trabalhos visa propiciar o espaço necessário à maior divulgação de
pesquisas desenvolvidas por mestrandos e doutorandos, conferindo aos autores e
aos orientadores maior prestígio no GT e na comunidade acadêmica, assim como
mais pontos na ficha de avaliação do programa na Capes. Mesmo que os pesquisa-
dores dominantes também lucrem com a inclusão (muitas vezes provisória) de seus
orientandos na “comunidade” do currículo, levanto a hipótese de que são os orienta-
dores “novatos” os que mais se beneficiam (ou se beneficiarão) com a ampliação do
tempo concedido aos trabalhos. Mas, cabe perguntar: são mesmo claras as distin-
ções entre estratégias de conservação e estratégias de sucessão ou elas diferem
apenas na ênfase maior ou menor dada à apresentação de trabalhos? Não estaria o
GT carecendo de estratégias de subversão que de fato renovassem o debate no
interior do campo e incrementassem a interlocução com outras áreas? Não estamos
sendo um pouco passivos?
O grande problema, a meu ver, é que, nos trabalhos em pauta, costuma-se
tratar de tudo (em alguns casos até mesmo não se discute currículo), característica
que já marcou (e talvez, em certo grau, ainda marque) as teses e as dissertações
defendidas em nossos programas. Em outras palavras, o que estou argumentando
é que esse processo, por demais aberto, acaba por produzir um efeito de disper-
são, já exaustivamente denunciado em análises de nossa pós-graduação (Warde,
1990; Cunha, 1991, 2002). Penso que o campo do currículo, ao qual me refiro,
não constitui uma exceção. Julgo que, ao concedermos excessivo espaço para a
apresentação de trabalhos, temos secundarizado tanto o aprofundamento de ques-
tões teóricas e metodológicas que demandam nossa atenção como os graves e
persistentes problemas da educação brasileira, particularmente os que se incluem
na esfera do currículo, que precisam ser mais bem entendidos e atacados. Quem
lucra com isso? O GT? O campo do currículo?

92 Cadernos de Pesquisa, n. 117, novembro/ 2002


TRABALHOS APRESENTADOS NO GT: 1996-2000

Volto-me agora para a produção científica correspondente aos trabalhos apre-


sentados no GT, de 1996 a 2000. Um exame das bibliografias permite que se
constate a presença de autores associados ao currículo, tanto nacionais como es-
trangeiros. Os nomes mais freqüentemente citados, dentre os estrangeiros, são os
de Michael Apple, Basil Bernstein, Deborah Britzman, Cleo Cherryholmes, Jean
Claude Forquin, José Gimeno Sacristán, Henry Giroux, Ivor Goodson, Peter
McLaren, António Nóvoa, Thomas Popkewitz, Jurjo Torres Santomé, Valerie
Walkerdine. Dentre os nacionais: Nilda Alves, Sandra Corazza, Paulo Freire, Alice
Lopes, Antonio Flavio Moreira, Lucíola Santos, Tomaz Tadeu da Silva, Alfredo Veiga-
Neto. São também freqüentes as citações a autores associados a outras áreas, pe-
dagógicas ou não. Destaco: Theodor Adorno, Jean Baudrillard, Pierre Bourdieu,
Michel Foucault, Gilles Deleuze, Michel de Certeau, Félix Guatarri, Stuart Hall, Jurgen
Habermas, Jorge Larrosa, Edgar Morin, Nikolas Rose, Boaventura de Sousa Santos,
Raymond Williams.
Pode-se observar que as bibliografias evidenciam, dominantemente, o re-
curso a especialistas em Currículo e a autores da Filosofia, da Sociologia, dos Estu-
dos Culturais. A presença de autores pós-modernos e pós-estruturalistas é signifi-
cativa. A presença de autores ligados à chamada ciência pós-moderna é rarefeita.
São também escassas as menções a autores associados à Psicologia e à Antropolo-
gia e, mais raras ainda, as referências a autores relacionados à História, mesmo nos
estudos de cunho histórico.
Um breve exame dos trabalhos evidencia preocupações com o cotidiano
escolar, com a construção do conhecimento em redes, com distintos artefatos cul-
turais, com propostas curriculares, com o multiculturalismo, com o poder de con-
trole e de governo do currículo, bem como com a história do pensamento curricular
e das disciplinas. Fortes críticas são explicitamente dirigidas à Didática, a Paulo Freire,
à interdisciplinaridade. Não se encontram críticas abertas a outros autores, nacio-
nais e estrangeiros, que se têm dedicado ao estudo de questões de currículo. Pou-
co se dialoga com as outras áreas pedagógicas, principalmente com a produção
brasileira. Vale perguntar: lucra-se com esse escasso diálogo? Avança-se teórica e
metodologicamente? Avança-se prática e pragmaticamente?
Como se pode observar, são variados os interesses dos pesquisadores que
constroem o campo, assim como são diversificadas as fontes e influências teóricas.
Não se observa uma concentração em determinados temas ou questões. Cabe

Cadernos de Pesquisa, n. 117, novembro/ 2002 93


indagar: lucra-se com essa dispersão? Avança-se teórica e metodologicamente? Avan-
ça-se prática e pragmaticamente?
Para continuar a perguntar, amparo-me em autores que têm em comum a
preocupação com o processo de construção do conhecimento, tanto no campo da
educação como fora dele. Seletivamente, escolho alguns de seus argumentos e a
eles recorro para levantar questões. Emprego-os, como fiz com Bourdieu, mais
como uma metodologia, com o propósito de incitar novas reflexões e novas traje-
tórias.
Começo com Wolf Lepenies (1983) e seu interesse no processo de forma-
ção de disciplinas, principalmente no século XIX. O autor propõe uma história das
disciplinas que se desdobre com base no ponto de vista de que o ambiente cognitivo,
histórico e institucional de uma disciplina deriva, essencialmente, dos ambientes
configurados por outras disciplinas. Acrescenta, porém, que uma economia dos
recursos requer que toda disciplina que pretende formular, sistematizar e
institucionalizar um conjunto de idéias e práticas se esforce, também, por se distin-
guir de outras disciplinas. Somente assim poderá candidatar-se ao reconhecimento
dos pares universitários e ao apoio de um público mais amplo.
Nessa perspectiva, a história das disciplinas corresponde a uma história dos
associados e dos contemporâneos, na qual as séries de influências são menos im-
portantes que a rede conformada pelas relações interdisciplinares. Em outras pala-
vras, a história de uma disciplina seria a das relações com outras disciplinas, que ela
toma como modelos, considera aliadas, tolera como vizinhos, rejeita como con-
correntes ou menospreza como inferiores. Quero argumentar, contudo, que a
apropriada ênfase nas relações entre as disciplinas não precisa acarretar a
desconsideração das influências que se entrelaçam em uma disciplina. Por vezes,
determinar essas influências pode favorecer uma melhor explicitação das relações
que o especialista alemão intenta esclarecer.
Lepenies focaliza a Filosofia e procura construir sua história por meio do
exame de suas relações tensas e complexas com outras disciplinas. Remete-se a
dois processos: de um lado, a diferenciação de enfoques, de ramos e de especiali-
zações na Filosofia; de outro, a separação de novos domínios com relação à Filoso-
fia. Exemplifica seus pontos de vista com as relações da Filosofia com a Psicologia, e
da Filosofia com a Sociologia.
O campo do currículo, contudo, como campo de estudos e de práticas (Alves,
1999), não pode ser referido tão diretamente a uma diferenciação de enfoques e
de especializações de uma dada disciplina e a uma posterior separação do novo
conjunto em relação à disciplina. O campo surgiu, na virada do século XIX para o

94 Cadernos de Pesquisa, n. 117, novembro/ 2002


XX, nos Estados Unidos da América, como já se destacou exaustivamente, de
necessidades de ordem administrativa, que incluíram a organização e o controle
das escolas e dos sistemas administrativos. Ao emergir, procurou apoio nos princí-
pios da administração científica, ao mesmo tempo que tomou de empréstimo da
Sociologia e da Psicologia comportamental seus pressupostos básicos e sua
metodologia.
Os rumos posteriores do campo do currículo evidenciaram novos “emprés-
timos”: nos anos de 1970, a Filosofia e a Teoria Social européia constituíram as
principais fontes em que os estudiosos do currículo buscaram sustentação. A partir
dos anos 90, os estudos culturais, o pós-modernismo, o pós-estruturalismo, os
estudos de gênero, os estudos de raça, os estudos ambientais, dentre outros, pas-
saram a fornecer a referência para a compreensão dos problemas e das questões
envolvidas no campo do currículo em geral (Pinar et al., 1995). Certamente o
exame das bibliografias, por mim empreendido, confirmou essa diversificação e
indicou que o campo construído no GT de Currículo da ANPEd segue trajetória
similar à de seus congêneres do Primeiro Mundo, parecendo mesmo caminhar,
como sugere Alves (1999), mais por pontes e fusões do que pelos muros que
delimitam os territórios disciplinares. Acresça-se, todavia, que especializações e se-
parações evidenciam-se no interior do campo, observáveis, por exemplo, no des-
dobramento dos textos raciais e de gênero dos textos políticos.
A despeito das diferenças entre a Filosofia e o currículo, julgo que os pontos
de vista de Lepenies são úteis para sugerir algumas perguntas. Que disciplinas po-
dem ser vistas, no campo do currículo, como modelos, como aliadas, como vizi-
nhos, como concorrentes, como superiores, como inferiores? Como entender as
ênfases e as omissões? Como entender os empréstimos mais evidentes? Como se
têm processado as pontes e as fusões? Que especializações e separações estariam
ocorrendo no interior do campo? Em que medida tais processos indicam a constru-
ção de um campo centrado na formulação de teorias e na busca de soluções, par-
ciais e aproximativas, para os problemas existentes e localizados na educação brasi-
leira? Por que caminhos os conhecimentos produzidos no campo do currículo têm
(ou não) entrado nas escolas? Que uso cotidiano tem sido feito de tais conhecimen-
tos? Quem se tem beneficiado desse uso?
Volto a Lepenies, em sua apropriação por Mirian Warde (1998) para análise
das questões teóricas e metodológicas enfrentadas pela História da Educação no
Brasil. Examinando a presença dessa disciplina nos currículos da formação docente
em nosso país, Warde destaca sua emergência como “irmã siamesa” da Filosofia da
Educação, ressalta os esforços posteriores por construir uma História da Educação

Cadernos de Pesquisa, n. 117, novembro/ 2002 95


brasileira mais autônoma e por promover um diálogo com a Sociologia da Educa-
ção. Warde realça, por fim, a recente interlocução da História da Educação com a
História, principalmente com a História Cultural. Sem dados disponíveis para afir-
mar que esse movimento de aproximação é de mão dupla, a autora levanta a hipó-
tese de que o diálogo decorre mais da iniciativa dos que se situam na área da
educação. Tais considerações estimularam-me outras perguntas. Nossos diálogos
com as outras áreas do conhecimento constituem aproximações de mão dupla ou
aproximações provocadas pelos especialistas em currículo? Por que se mostra débil
o diálogo com autores de outros campos do conhecimento pedagógico, a despeito
da ocorrência de sessões encomendadas e mesas-redondas que reúnem partici-
pantes de diferentes GTs? Será que nos move algum sentimento de superioridade
em relação aos demais campos? Por que evitamos a crítica entre nós, pesquisado-
res do campo? Ainda: temos procurado comparar o trajeto de nosso campo com
os trajetos em outros países? Com que resultados?
Recorro, agora, à Zaia Brandão (1998), cujo interesse pela identidade do
campo da educação, como campo de produção de conhecimentos sistematizados,
tem-se evidenciado em inúmeros estudos. Para ela, as investigações sobre fenôme-
nos educacionais, em diferentes enfoques (sociológico, histórico, filosófico, psicoló-
gico) permitiram que se acumulasse um conjunto de conhecimentos que nem sempre
se acomodou ou se articulou, sem disputa ou conflitos, nos espaços disciplinares já
constituídos. A produção de conhecimentos sobre questões mais específicas dos
processos educacionais – como ensinar, como selecionar e organizar conteúdos
curriculares, como organizar e institucionalizar processos de socialização/
escolarização, como formar especialistas em educação – terminou por constituir
uma base epistêmica, afastada dos tradicionais cânones disciplinares, legitimando
um espaço próprio ao campo da educação. A seu ver, em uma perspectiva multi,
inter ou transdisciplinar, os educadores vêm sistematizando conhecimentos em um
processo de agregação ou articulação de diferentes tradições disciplinares.
Nessa perspectiva, cabe ao educador manter uma estreita vinculação com
os campos científicos para melhor referenciar suas análises, opções e ações. No
entanto, há que se evitar, em pesquisas pouco rigorosas, costuras ecléticas e incon-
gruentes de perspectivas disciplinares distintas, sinais evidentes de um campo com
escassa tradição disciplinar.

A socialização disciplinar facilita a incorporação de um ethos de trabalho que inclui: o


exercício do pensamento sistemático, com base no conhecimento das formulações
desenvolvidas pelos clássicos de uma disciplina; a capacidade de escolha dos concei-

96 Cadernos de Pesquisa, n. 117, novembro/ 2002


tos e referências teóricas mais adequadas à construção de um determinado objeto
de pesquisa; e a capacidade de definir o recorte mais pertinente para problemas
situados em um âmbito disciplinar. (Brandão, 1998, p. 103)

Por fim, devemos, ao nos aproximarmos dos diferentes campos disciplina-


res, estar atentos aos riscos de nos fascinarmos em demasia por novidades acadê-
micas, novas roupagens e novas abordagens. Essa fascinação excessiva pode nos
impedir o exercício constante de autocrítica e dificultar o necessário aperfeiçoa-
mento da prática educacional que o conhecimento deve promover.
Antes das últimas perguntas que pretendo formular, volto-me para Franklin
(1974), um dos mais importantes estudiosos da emergência do campo do currícu-
lo, que chama a atenção para os riscos envolvidos quando conteúdos se transferem
diretamente de um campo do conhecimento para outro. A seu ver, no campo em
que os conteúdos são originalmente desenvolvidos existe um contexto auto-corre-
tivo que responde por ajustes, modificações e redirecionamentos, permitindo que
novas questões se levantem e novas respostas se elaborem. No campo em que as
idéias são ancoradas, todavia, a ausência desse contexto, bem como a precarieda-
de da interlocução entre os especialistas dos dois campos, pode ocasionar uma
incipiente forma de recepção em que os elementos recebidos perdem seu dina-
mismo, seu vigor e, conseqüentemente, sua capacidade analítica. Franklin exemplifica
seu ponto de vista argumentando que a categoria controle social, cunhada na socio-
logia no início do século XX e integrada ao campo do currículo, sofre evidentes
transformações em estudos sociológicos posteriores, preservando-se, contudo,
inalterada nas reflexões e nas análises dos especialistas do novo campo pedagógico.
Proponho, então, mais perguntas. Como temos entendido rigor, ecletismo
e incongruência em nossas pesquisas sobre currículo? Temos nos seduzido demais
por novos paradigmas ou temos sabido exercer com acuidade a crítica e a
recontextualização de idéias? Temos sabido ser ecléticos ou estamos inconsistente-
mente combinando o que não poderia ser sequer colocado lado a lado? Temos
conseguido nos articular suficientemente com as chamadas disciplinas científicas de
modo a dispensarmos o contexto autocorretivo, de que nos fala Franklin, ou ainda
continuamos, como já fizemos em outros momentos, a empregar, apressada e
limitadamente, parcelas ou formulações inicias de determinadas teorizações, igno-
rando perigosamente desdobramentos e transformações posteriores? Temos nos
preocupado, ao construirmos os objetos de nossas pesquisas, em acompanhar,
como sugere Brandão (1998), o que ocorre nas configurações concretas das práti-
cas curriculares, das quais emergem as questões que nos são próprias?

Cadernos de Pesquisa, n. 117, novembro/ 2002 97


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme Soares (2000), vejo como saudáveis as lutas que se travam no


campo do currículo em torno de posições, estratégias e definições. Se essas lutas
não ocorressem, não teríamos um campo que se vem renovando e desenvolven-
do. Por outro lado, a despeito das lutas, com certeza estamos todos interessados
em preservar o campo, em deixá-lo existir, o que nos obriga, como acentua Bourdieu,
a uma cumplicidade que se coloque além das lutas que nos venham opor. Ou seja,
é indispensável que perdure a cumplicidade que nos une, apesar de eventuais anta-
gonismos.
Com esse ponto de vista em mente, ofereço, além das perguntas formula-
das ao longo do texto, algumas sugestões que, a meu ver, podem evitar fragmenta-
ções e desintegração do campo.
Em primeiro lugar, creio que se faz necessário um acordo, provisório e instá-
vel que seja, em relação ao que entendemos por um Grupo de Trabalho. É espaço
privilegiado de apresentação de trabalhos ou é espaço de discussão e de
aprofundamento das “questões que nos são próprias”, de frutífera tensão entre
ciência e política? Vejo como inadiável um maior equilíbrio entre o tempo reserva-
do aos variados trabalhos produzidos em nossos programas de pós-graduação e as
discussões de “nossas questões”, que certamente não se esgotam nas abordadas
nos trabalhos.
Em segundo lugar, penso que uma outra pesquisa sobre o campo mais amplo
do currículo, no Brasil e em outros países, pode ser útil. Acredito que essa pesquisa,
decidida no âmbito do GT, pode nos permitir melhor estabelecer, também em acor-
do instável e provisório, qual deve ser nosso objeto de estudo e quais as questões
mais prementes sobre as quais devemos nos debruçar. Acrescento que toda essa
discussão pode enriquecer as atividades de ensino que desenvolvemos nas nossas
universidades. Recordo-lhes que Kliebard, em 1975, já denunciava os riscos envolvi-
dos na pouca clareza quanto ao objeto de estudo do campo do currículo, bem como
de suas relações com outros campos.
Em terceiro lugar, sugiro que dialoguemos mais entre nós, estudiosos de
currículo. O exame que fiz dos trabalhos apresentados levou-me a concluir que,
em geral, caminhamos em vias expressas paralelas. Faltam intersecções, cruzamen-
tos e choques. Os trabalhos derivados de teses e dissertações refletem muito a
influência dos programas, dos orientadores e das linhas a que se filiam. Expressam,
também, mais a aplicação de idéias e teorias que a formulação (ainda que inicial) de
novas idéias e novas teorizações. Tendem, ainda, a não desenvolver críticas às po-

98 Cadernos de Pesquisa, n. 117, novembro/ 2002


sições antagônicas. No entanto, para que o novo de fato se crie, confrontos entre
idéias, princípios e teorizações precisam ocorrer com mais freqüência. O conheci-
mento, como se sabe, caminha contra os conhecimentos anteriores, caminha com
base nas críticas aos conhecimentos anteriores, buscando superar suas lacunas e
equívocos. Para que isso aconteça, temos de nos criticar mais. Penso que somente
assim avançaremos de fato e poderemos conferir maior autonomia ao campo do
currículo que temos ajudado a construir. Mais uma vez recorro a Kliebard que, em
1975, alertava para a importância de adotarmos, em nossos estudos, uma postura
histórica, o que requer um intenso diálogo entre os atuais pesquisadores do campo
e deles com seus antecessores.
Por fim, retomo Beatriz Sarlo (2001), pedindo-lhes, agora, que atentem
para suas ponderações sobre as conferências. Para a autora, as universidades sub-
meteram-se a uma espécie de pauta acadêmica segundo a qual os congressos,
simpósios e painéis passaram a constituir parte relevante dos curricula vitae dos
professores, obrigando-os a “condensações milagrosas em intervenções de quin-
ze ou vinte minutos, com dez minutos absurdamente fugazes para uma discussão
geral” (p.184). A seu ver, essas intervenções orais somente em casos excepcionais
conseguem provocar a pulsação necessária para torná-las um “acontecimento úni-
co”. Usualmente, acabam por assimilar as características do show business. Vaida-
de e burocracia viram as marcas registradas. Mas, Sarlo acrescenta, em circuns-
tâncias particularmente especiais, conferencista e público podem encontrar-se em
um momento de necessidade verdadeira, romper a rotina, subverter as normas
acadêmicas, burlar a “produção em série” e produzir “um acontecimento”. Nesse
sentido, situações menos formais e menos organizadas podem ser mais instigantes
que os cenários das conferências e dos painéis. Não seria bom se nosso GT pu-
desse ser assim?

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Recebido em: agosto 2002


Aprovado para publicação em: setembro 2002

Cadernos de Pesquisa, n. 117, novembro/ 2002 101


Estudos de currículo...

ESTUDOS DE CURRÍCULO:
AVANÇOS E DESAFIOS NO
PROCESSO DE INTERNACIONALIZAÇÃO 1

ANTONIO FLAVIO BARBOSA MOREIRA


Professor titular do Mestrado em Educação do Centro de
Teologia e Humanidades da Universidade Católica de Petrópolis
afmcju@infolink.com.br

RESUMO

O artigo focaliza a etapa da internacionalização dos estudos sobre currículo, em desenvolvimento


no momento atual. Essa fase segue-se à de reconceptualização, que transformou a feição do
campo, substituindo seu caráter instrumental hegemônico pela preocupação em compreender
o processo curricular. Após explicitar sinais evidentes da internacionalização, o texto discute,
com o apoio das categorias hibridização, cosmopolitismo e tradição, o quanto as conversas
complicadas que configuram o campo podem tanto contribuir para o avanço e a democratização
do conhecimento quanto para estimular movimentos em direção à homogeneização, que terminem
por sufocar tradições e interesses locais. Possibilidades e riscos implicados no processo precisam,
portanto, ser cuidadosamente considerados.
CURRÍCULO – EDUCAÇÃO – INTERNACIONALIZAÇÃO

ABSTRACT

CURRICULUM STUDIES: ADVANCES AND CHALLENGES ON THE INTERNATIONALIZATION


PROCESS. The article focuses on the internationalization process that has been characterizing
curriculum studies nowadays. This moment follows the reconceptualization of the field, which
changed its instrumental feature into an effort of understanding curriculum. After presenting some
evidences of how the internationalization process has been developed, the text discusses, drawing
on the categories of hybridization, cosmopolitism and tradition, how the complicated conversation
that marks the present field can contribute to deepen and democratize curriculum knowledge,
as well as to stimulate movements towards homogenization, that ends up by suffocating local
traditions and interests. Possibilities and risks implicated in the process have, therefore, to be
carefully considered.
CURRICULUM – EDUCATION – INTERNATIONALIZATION

Texto apresentado na mesa de encerramento do 4º Colóquio Luso-Brasileiro sobre Questões


Curriculares, na Universidade Federal de Santa Catarina, em Florianópolis, em setembro de 2008.

Cadernos de Pesquisa, v.39,


v. 39,n.137,
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Antonio Flavio Barbosa Moreira

No presente momento do século XXI, o campo do currículo vem pas-


sando por um processo de internacionalização, cujos primeiros sinais já se fazem
sentir (Pinar, 2004, 2006). Criaram-se espaços transnacionais, em que acadêmicos
de diferentes localidades buscam participar do reenquadramento e do descen-
tramento de suas próprias tradições de conhecimento, assim como negociar a
confiança recíproca indispensável para um trabalho coletivo. A internacionalização
de um campo, tão afetado por culturas nacionais distintas, tem demandado novas
linguagens e novos públicos que possam produzir novas narrativas.
Em termos cronológicos e em termos intelectuais, o movimento de
internacionalização, que se vem acelerando, sucede o de reconceptualização
que, no início da década de 70, desafiou a hegemonia do enfoque instrumental,
dominante por cinquenta anos. Naquele momento emergiu novo paradigma
centrado no propósito de compreensão do processo curricular. Atualmente,
espera-se outra mudança de paradigma, cujos contornos ainda começam a
ser delineados.
Alguns novos espaços evidenciam a intensidade do processo de interna-
cionalização. Em 2001, organizou-se a Associação Internacional para o Avanço
dos Estudos Curriculares, em grande parte em decorrência dos empreendi-
mentos de William Pinar, professor da Universidade de British Columbia, em
Vancouver. Encontros trienais já foram organizados na China, em 2003, e na
Finlândia, em 2006. Prevê-se a realização de novos encontros na África do Sul,
em 2009, e no Rio de Janeiro, em 2012 (Gough, 2003; Pinar, 2003, 2006a).
Os colóquios luso-brasileiros sobre questões curriculares, entre nós,
constituem uma das iniciativas que podem ser associadas à internacionalização do
campo. Além da presença de estudiosos de Portugal e do Brasil, os colóquios
têm propiciado a participação de pesquisadores dos Estados Unidos, da Argen-
tina, Espanha, Finlândia, França e do Canadá. Aproximam-se, assim, especialistas
de distintos países, contribuindo para que se socializem questões e teorizações
tanto de interesse geral quanto local.
Os temas centrais dos colóquios já realizados, incluindo-se o que ora se
desenvolve, expressam determinadas tendências nos rumos dos elos que têm
aproximado investigadores brasileiros e portugueses. As temáticas dos quatro
colóquios foram, respectivamente, Currículo e Produção de identidades; Cur-
rículo: Pensar, Inventar, Diferir; Globalização e Educação: desafios para políticas
e práticas; e Currículo, teorias, métodos.

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Estudos de currículo...

Um olhar mais atento para as introduções dos anais dos encontros


permite considerar que as atenções dos pesquisadores se têm voltado, expres-
sivamente, para as relações entre currículo e conhecimento escolar e entre
currículo e cultura, temas clássicos nos estudos de currículo, que parecem
continuar a despertar o interesse dos participantes. Nesse amplo panorama,
algumas temáticas mais específicas se destacaram – identidade, diferença,
desigualdade, inclusão, políticas curriculares –, abordadas tanto segundo reali-
dades locais quanto com referência a contextos internacionais (Pacheco, 2002;
Moreira, Pacheco, Garcia, 2004; Moreira, Pacheco, 2006).
Os focos observados nos colóquios confirmam os pontos de vista de Silva
(1999, 1999a), para quem toda teoria de currículo tem como pano de fundo a
discussão do conhecimento a ser ensinado aos estudantes. Ao mesmo tempo,
acrescenta Silva (1999a), a pergunta relativa ao que ensinar jamais se separa
de outra: que se espera que os alunos venham a ser? Em síntese, as preocu-
pações com o conhecimento escolar e com as identidades dos estudantes têm
merecido a atenção de pesquisadores de distintos países. Cabe esperar que
essas (e outras) temáticas venham a inspirar estudos que possam incrementar
a internacionalização do campo e contribuir para sua maior sofisticação teórica,
assim como para consolidar o compromisso dos pesquisadores com justiça
social e equilíbrio ecológico (Pinar, 2006).
Neste texto, apresento algumas reflexões sobre o referido processo de
internacionalização, considerando avanços e desafios nele implicados. Levanto
algumas hipóteses sobre seus possíveis rumos. Não me proponho, no entanto,
a discutir como transcorreram eventos marcantes do novo momento, nem a
analisar textos e conhecimentos neles socializados.
As reflexões desenvolvidas se originaram, ao menos em parte, de estudos,
anteriormente desenvolvidos, sobre o processo de transferência educacional. Em
pesquisa realizada há vinte anos, analisei a emergência do campo do currículo
no Brasil, sob forte influência norte-americana (Moreira, 1997). Concebendo o
processo de transferência educacional como o movimento de ideias, modelos
institucionais e práticas de um país para outro (Ragatt, 1983), verifiquei que, em
uma primeira etapa, correspondente ao período dos anos 20 e 30 até o final dos
anos 70, procedeu-se, no país, dominantemente, a uma adaptação instrumental
do discurso curricular norte-americano, no esforço de dar cor local ao material
transferido e de melhor aproveitá-lo em nossa realidade.

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Antonio Flavio Barbosa Moreira

Nas décadas subsequentes, em que ocorreram significativas mudanças


políticas, econômicas e culturais, tanto no panorama nacional quanto no ce-
nário internacional, intentou-se promover uma adaptação crítica de materiais
recebidos de distintos países, com vistas a um desenvolvimento mais autônomo
do campo do currículo. Em resumo, sustentei, na investigação em pauta, que
a recepção de material estrangeiro envolveu trocas, leituras, confrontos e
resistências, cuja intensidade e cujo potencial subversivo variaram de acordo
com circunstâncias locais e internacionais (ver também Moreira, 2003). Afirmei:

...não há transporte mecânico de conhecimento de um país a outro. Entre a


transferência e a recepção, processos mediadores (dentre os quais destacam-se
o dinamismo e as especificidades do contexto receptor, bem como a atuação dos
agentes envolvidos na transferência) afetam o modo como determinada teoria
ou prática estrangeira é recebida, difundida e aplicada. (Moreira, 1997, p.206)

A categoria transferência educacional foi, então, por mim reconceptua-


lizada, já no estudo em questão, de modo a superar modelos simplificados
que reduzissem o fenômeno a simples instrumento de controle e dominação,
empregado por países do Primeiro Mundo e facilmente imposto e recebido
no Terceiro Mundo. Propus, na ocasião, um enfoque alternativo, configurado
por três elementos.
O primeiro correspondeu ao contexto internacional, cuja análise se
mostrou indispensável para o entendimento da influência estrangeira na edu-
cação brasileira em geral e no campo do currículo em particular. O segundo
compreendeu os contextos socioeconômico e político brasileiros, tendo-se
em mente que as decisões e atividades curriculares nunca são isoláveis das
lutas econômicas, políticas e ideológicas travadas na sociedade mais ampla.
Por fim, o último elemento consistiu dos contextos institucionais, culturais
e ideativos. Considerá-lo foi fundamental para que se entendesse como o
desenvolvimento do campo foi afetado por instituições, propostas e reformas
curriculares, encontros, temáticas estudadas e ensinadas, discussões, conflitos
e alianças entre pesquisadores.
Em estudo mais recente (Moreira, Macedo, 2006), argumentei que o
caráter contraditório e complexo das sociedades contemporâneas, em um
mundo globalizado, não permitia mais uma visão restrita de transferência

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Estudos de currículo...

educacional, com base na qual se visse como aceitável o mero transporte de


elementos culturais produzidos no Primeiro Mundo. Análises do processo de
globalização, então efetuadas, já destacavam a intensa movimentação de in-
formações e de conhecimentos (sempre facilitada por um avanço tecnológico
sem precedentes), que se processava e continua a se processar, ainda que
desigualmente, nas diferentes partes do globo. Apesar da possibilidade (e de
eventuais propósitos) de homogeneização cultural, são nítidos os indícios de
tensões, contradições, oposições, convergências e divergências, que tornam
o fenômeno extremamente complexo.

Ao mesmo tempo que se difundem os benefícios decorrentes da ampla mobi-


lização de conhecimentos científicos de todos os tipos, esboçam-se com mais
intensidade os riscos decorrentes das traduções e interpretações pasteurizadas
de uma mídia globalizada, nas quais as imagens da realidade e as visões de
mundo transmitidas são as que beneficiam os grupos sociais poderosos. Assim,
diferentes saberes, formas de vida e visões de mundo encontram-se, atritam-
se, confrontam-se, subordinam-se, renovam-se. Se o processo pode causar
homogeneização, invasão, destruição de manifestações culturais, pode, por
outro lado, estimular uma apropriação crítica de ideias e teorias elaboradas
pelo “outro”. (Moreira, Macedo, 2006, p.18-19)

Rejeita-se, nessa perspectiva, a exequibilidade de ideias e manifestações


culturais em estado puro, não contaminadas por outras, passíveis de serem
transladadas de um espaço a outro. Desconfia-se, assim, da utilidade, na
contemporaneidade, do conceito de transferência educacional que, tal como
empregado nos anos 80, não parece mais dar conta das múltiplas e intensas
trocas que acontecem em nosso mundo globalizado. Propus, então, no estudo
desenvolvido por Moreira e Macedo (2006), que as categorias “globalização”,
“hibridização cultural” e “cosmopolitismo” fossem utilizadas no esforço de
repensar e aprofundar a noção de transferência educacional.
A temática é retomada neste texto, para abordar a corrente internaciona-
lização do campo. Consideradas as flagrantes e significativas transformações do
mundo nos últimos dez anos, faz sentido repensar os processos de troca cultural
que se verificam, ainda mais quando se procura, explicitamente, promovê-los,
como ocorre nos atuais esforços de internacionalização. Como já se afirmou

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reiteradamente (Appadurai, 1994), a nova ordem cultural global apresenta


um caráter disjuntivo, superposto e complexo. Nela, os fluxos provenientes
de várias metrópoles, ao se constituírem em novas associações, tendem a se
transformar, assumindo certo grau de consonância com a realidade em que
são inseridos. Nessa situação, portanto, mostram-se pouco úteis modelos
dicotômicos, como os de centro e periferia ou de consumidores e produtores.
Levanto a hipótese de que as categorias de hibridização e cosmopoli-
tismo continuam a oferecer contribuição significativa para a compreensão das
interações culturais contemporâneas. Ainda que carentes de certos reajustes e
aprofundamentos, as referidas categorias não perderam seu potencial explica-
tivo. Focalizo, ao procurar defender meu ponto de vista, os dois fenômenos,
ampliando as concepções anteriormente apresentadas (Moreira, Macedo,
2006). Nas considerações finais, reúno os argumentos desenvolvidos ao longo
do texto, destacando desafios a serem enfrentados pelos que se propõem a
favorecer a internacionalização do campo do currículo.

A FAVOR DA CATEGORIA HIBRIDIZAÇÃO

Pinar (2002) sugere que o processo de internacionalização do campo


se acelere, por meio de alguns princípios. Limito-me a destacar os que, parti-
cularmente, se relacionam às categorias que escolhi examinar.
O autor afirma ser crucial, no contato com a produção científica de
outros países, que os pesquisadores, notadamente os do chamado Terceiro
Mundo, preservem sua autonomia e sua capacidade crítica, de modo a evitar
absorções apressadas de teorias e de ideias estranhas aos propósitos e aos
interesses locais e específicos. Em outras palavras, descarta a crença em uma
suposta homogeneização, com base na qual se enfraqueceriam produções au-
tóctones e se difundiriam conhecimentos construídos em centros hegemônicos.
Concordando com Pinar, defendo a viabilidade de um processo de hibridização
cultural, no qual elementos de distintas origens e posições hierárquicas se
desterritorializem e se reterritorializem.
Focalizo, então, o termo hibridização, já bastante usual em análises
de variados contatos culturais contemporâneos, desdobrado em cenários
diversificados. Na educação, por exemplo, a própria noção de currículo
tem sido associada à hibridização, uma vez que o currículo resultaria de

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uma alquimia que seleciona elementos da cultura e os traduz para um dado


ambiente, destinando-os a uma audiência específica. Os discursos curricu-
lares têm também sido analisados como híbridos, por combinarem distintas
tradições e movimentos disciplinares, construindo alianças que propiciam
certos consensos (Dussel, Tiramonti, Birgin, 1998). No campo do currículo
contemporâneo, por exemplo, o processo parece marcar o desenvolvimento
de sua internacionalização.
A hibridização apresenta uma história repleta de colonialismo, mas tam-
bém de lutas anti e pós-coloniais, o que certamente abre novas perspectivas
para a análise de processos de produção culturais, políticos e sociais contempo-
râneos, sem que se romantizem os aspectos de pluralidade e de transgressão
neles implicados (Dussel, 2002). No atual momento, na hibridização, diferentes
discursos têm sido incorporados, em certas situações, com grande velocida-
de, o que acaba por provocar a perda de seus marcadores originais. Como
exemplo dessa dinâmica, pode-se citar a apropriação de reformas curriculares
estrangeiras, pautada pela absorção de variadas influências, o que diluiu as
características dos contextos originais, disseminando-as em uma profusão de
textos cujas fontes deixaram de ser reconhecíveis.
A hibridização opera, então, por meio da mobilização de distintos dis-
cursos em um âmbito particular. Articula tanto modelos externos (por vezes
repetindo movimentos tradicionais do “centro para a periferia”), quanto dife-
rentes tradições e teorizações. A hibridização supõe um processo de tradução,
que coloca novas experiências e direções em contato com outras previamente
disponíveis. Interrompem-se, no processo, as hierarquias estabelecidas dos dis-
cursos, sem que, necessariamente, se configure uma outra, mais democrática.
Na nova hierarquia, reafirmam-se e sancionam-se alguns discursos, ao mesmo
tempo em que se negligenciam e reprimem outros.
Segundo Beatriz Sarlo (1999), se a hibridização é hoje, efetivamente, um
modo de construção cultural, os materiais que entram no caldeirão podem e
devem ser escolhidos da maneira mais livre possível, mais igualitária do ponto
de vista institucional e econômico. Levanto a hipótese, porém, de que, mes-
mo em encontros acadêmicos internacionais, em que as trocas se mostram
desejadas e desejáveis, há cuidados a serem tomados. Abordo alguns deles.
Apoiando-me em Peter Burke (2003), argumento, em primeiro lugar, a
favor da importância de se definir (ou descobrir e criticar), claramente, as lógicas

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das escolhas, conscientes ou inconscientes, que respondam, nesse processo,


pela seleção de alguns itens e pela rejeição de outros. Sugiro, ainda, que se
investigue como e até que ponto diferentes elementos têm sido “misturados”
e fundidos em decorrência das trocas e das interações.
Há que se atentar, também, para as intenções subjacentes. Para Burke,
não faz sentido pressupor que as trocas culturais se inspiram sempre por
posturas como tolerância e mente aberta. Outros interesses envolvem o pro-
cesso e algumas perguntas devem ser feitas. Que condições e que limitações
se observam na composição dos espaços organizados especificamente para
os contatos? Que temas e que discursos são privilegiados nesses momentos?
Que vozes se revelam mais poderosas? Há ocasiões mais favoráveis que outras
para que as trocas se efetivem? Por quê?
Outras perguntas podem ser também significativas: que fatores respon-
dem por mecanismos de aceitação, rejeição ou adaptação dos materiais? Como
transcorrem os movimentos de descontextualização e recontextualização, com
base nos quais se retira um dado item de seu local original, modificando-o,
posteriormente, para se encaixar em outro ambiente? São perceptíveis perdas
e ganhos em todo esse dinamismo? Que resultados se obtêm com as trocas?
Burke admite a possibilidade do que denomina “diglossia cultural” – situação em
que as pessoas são capazes de transitar entre distintas culturas da mesma forma
como se alternam entre diferentes línguas ou registros linguísticos, escolhendo
o que avaliam como mais apropriado à situação em que se encontram. Vale
indagar: temos favorecido a diglossia cultural em nossos encontros? Temos
propiciado sínteses de formas previamente existentes, bem como a emergência
de novas configurações?
Se, como acentuou Said (apud Burke, 2003), “a história de todas as
culturas é a história do empréstimo cultural” (p.13), o processo de internacio-
nalização do campo do currículo é, além de inevitável, bastante bem-vindo.
Não há por que pressupor que se estejam pavimentando caminhos para a
homogeneização cultural. Mas há, acrescento eu, que se discutir sempre como
valorizar e preservar histórias e idiossincrasias locais. Defendendo a intensifi-
cação de encontros, interações e trocas, responsáveis por inegáveis avanços
no aprofundamento das discussões do campo, local e internacionalmente,
insisto na necessidade de se analisarem, cuidadosamente, como propõe Burke,
situações, reações e consequências implicadas nesses processos.

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Talvez possa ser útil, nesse momento, a argumentação de Santos (2002).


O autor acentua que a globalização promove homogeneização e diversidade.
Afirma, porém, ser necessário se elucidarem as relações de poder que catali-
sam tanto um caso quanto outro. Sem que essa distinção se esclareça, os dois
resultados terminam por igualar-se, o que impede que se verifiquem vinculações
e hierarquia entre eles. Essa elucidação é particularmente importante para
a análise dos processos de hibridização que resultam do confronto e/ou da
convivência, no cenário cultural, de tendências favoráveis à homogeneização
e de tendências orientadas para a particularização. Cabe, portanto, indagar:
como se evidenciam, na internacionalização do campo, as relações de poder,
não necessariamente igualitárias, entre diferentes países?

A FAVOR DA CATEGORIA COSMOPOLITISMO

Em segundo lugar, e em decorrência do que venho argumentando, o


atual projeto de desenvolvimento do campo do currículo precisa evidenciar-se
como simultaneamente internacional e local (Pinar, 2002). Ou seja, cada um
de nossos campos nacionais e regionais deve estar atento aos desdobramentos
que se processam local e globalmente.
A intensificação de fluxos entre as nações, no que se refere à produção
e à circulação do conhecimento, originou convergências, isomorfismos e hi-
bridizações entre as distintas culturas nacionais. Como já afirmei neste texto,
tais processos não promovem, necessariamente, uma cultura global. A cultura
é, por definição, um processo social construído na intersecção do universal e
do particular. Segundo Appadurai (apud Santos, 2002), o cultural é o campo
das diferenças, dos contrastes, das comparações. A cultura seria, nesse caso,
em uma concepção bem simples, a luta contra a uniformidade. Todavia, se a
intensificação dos contatos entre nações e da sua interdependência tem aberto
novas oportunidades para o exercício do respeito, do ecumenismo, da solida-
riedade e do cosmopolitismo, não é menos verdade que, simultaneamente,
podem surgir novas formas e manifestações de intolerância, chauvinismo, ra-
cismo, xenofobia e imperialismo. Trata-se de favorecer, sempre, os processos
que transitam em direção à solidariedade e ao cosmopolitismo.
Em outro estudo (Moreira, Macedo, 2006), argumentei em prol da
utilidade da categoria do cosmopolitismo para a compreensão do processo de

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trocas culturais. Com base em Hannerz (1994), a perspectiva cosmopolita foi


vista como decorrente de relacionamentos com uma pluralidade de culturas,
que expressa uma posição em relação à diversidade, uma predisposição de
se envolver com o outro. Em outras palavras, foi concebida como algo que
corresponde a uma posição intelectual de abertura para experiências culturais
divergentes, a uma busca de contrastes, ao invés de uniformidade.
O cosmopolita seria um indivíduo livre para recolher de uma dada cultura
somente o que lhe interessasse, ou, então, para aceitá-la de modo mais amplo.
Acolhendo parcial ou totalmente a cultura estrangeira, o cosmopolita não se
limitaria ao compromisso com esta; ao contrário, garantiria sempre sua habilidade
de “encontrar a saída”. O cosmopolita utilizaria sua mobilidade para incorporar,
crítica e seletivamente, experiências e significados apreendidos em sua trajetória
por inúmeros territórios culturais. Na sociedade global, o intelectual cosmopolita
seria capaz de explorar as oportunidades e os efeitos decorrentes do incessante
fluxo de ideias e teorias, bem como de empregá-las para evitar homogeneização
e situações de opressão e de imperialismo (Moreira, Macedo, 2006).
Tendo sugerido a utilidade da categoria cosmopolitismo para a análise de
trocas culturais, ao final da década de 90, julgo que cabe avaliar sua pertinência
neste momento. Para justificá-la, recorro mais uma vez a Santos (2002), para
quem o uso do termo cosmopolitismo pode parecer inadequado para enfocar
práticas e discursos de resistência no mundo contemporâneo, em decorrência
de sua ascendência modernista. Para o autor, entretanto, vale concebê-lo como
uma prática e um discurso contra-hegemônicos, gerados em coligações pro-
gressistas de classes ou grupos subalternos e seus aliados. Nessa perspectiva,
à qual me associo, as coligações cosmopolitas visam à luta pela emancipação
de grupos dominados por mecanismos de discriminação, de opressão ou de
exploração. Talvez por isso, o cosmopolitismo não tenda a gerar uniformidade
nem a solapar diferenças, autonomias e identidades locais.
Amparo-me, ainda, em Pollock et al. (2002), para quem o cosmopolitis-
mo constitui um projeto cujo conteúdo conceitual e cujo caráter pragmático não
estão e não podem estar especificados previamente, o que o torna passível de
adequação a situações outras que não aquelas para as quais foi originalmente
pensado. Conforme os autores sugerem, o cosmopolita deve conservar-se
inteiramente aberto, sem definições ou limites antecipados, decorrentes das
demandas de quaisquer sociedades ou discursos.

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O cosmopolitismo precisa, como alternativa, considerar a necessidade de


se apoiar o senso de solidariedade em condições cambiantes e de se aprender
a viver tenazmente em terrenos de transição histórica e cultural. Na medida
em que esses territórios são negociados, está-se nos interstícios do velho e
do novo, no confronto do passado e do presente.
Cabe, então, indagar: que significa ser cosmopolita hoje? Apoiando-me
nos autores citados, sustento que o cosmopolitismo adequado a este momento
de transição não se confunde com noções românticas de uma coexistência
cosmopolita. A perspectiva que defendo não se ampara em ideais de soberania
nacional e de nacionalismo, segundo as quais se espera que o cosmopolita
transite em um mundo supostamente sincrônico em termos éticos, ainda que
inundado por desigualdades em termos políticos e econômicos.
Ainda conforme Pollock et al. (2002), o atual cosmopolitismo não deriva
das virtudes capitalizadas da racionalidade, da universalidade e do progresso.
Não se harmoniza com o mito da nação, que se expressa na ideia de cidadão
do universo. Ao contrário, o cosmopolita hodierno pode ser uma vítima da
modernidade, alguém que não alcançou a ascensão social propiciada pelo
capitalismo e que acabou sendo, de fato, privado dos benefícios da pertença
nacional. Refugiados, povos da diáspora, migrantes e exilados também corpo-
rificam, hoje, o espírito da comunidade cosmopolita.
O cosmopolitismo hodierno precisa efetivamente abrir espaço para uma
pluralidade de histórias e comportamentos – não necessariamente comparti-
lhados regional, nacional ou internacionalmente – que, na verdade, compõem
a perspectiva cosmopolita. Mais que em cosmopolitismo, melhor pensar em
cosmopolitismos. Evita-se, assim, no que se refere aos debates intelectuais, tanto
o aprisionamento a questões de centro e de periferia, quanto a imposição de te-
orias e práticas próprias de determinadas situações históricas e de lugares outros.
Alguns problemas precisam, então, ser enfrentados. Primeiramente: como
conceber um cosmopolitismo que não se baseie no conceito de cidadão do
universo? Quem é o sujeito da cidadania? Será a cidadania, de fato, um enqua-
dramento comum, indispensável, universalmente compartilhado? Deverá o cos-
mopolitismo centrar-se, necessariamente, na produção de interesses individuais,
vontades e crenças que a maioria das ideologias da cidadania parece requerer?
Qual seria a base para um cosmopolitismo que compreendesse a solidariedade
como algo além da coincidência e da coordenação de vontades individuais?

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Em segundo lugar, se o cosmopolitismo implica uma visão ampla, como


pensar, em seu âmbito, a intimidade, sem reduzi-la à esfera doméstica? Como
criar um espaço, pautado pelo comprometimento, que não constitua um mero
pano de fundo para a globalização nem um antídoto para o nacionalismo? Sugiro
que uma nova concepção de cosmopolitismo incorpore o foco em projetos
da esfera íntima, reconhecendo que o doméstico não se reduz, espacial ou
socialmente, à esfera privada.
Com o apoio de novas compreensões do público, do doméstico e do
íntimo, pode-se sugerir que as esferas da intimidade exercem pressão legí-
tima em qualquer visão de solidariedade e cosmopolitismo. O cosmopolita
corresponderia, então, ao signo a favor de um universalismo situado, capaz
de convidar outros universalismos para um debate mais amplo, baseado no
reconhecimento da condição de ser situado. Nesse caso, poderia ser viável
um quadro distinto, de universalismos mais públicos.
Ao se olhar o mundo no esforço por transcender um dado tempo e um
dado espaço, pode-se verificar como as pessoas têm refletido e agido além do
local. Pode-se, assim, deparar com um imenso número de possibilidades do
humano. Cosmopolitismo, nesse enfoque, não corresponderia a uma ideia, mas
sim a formas infinitas de ser. O argumento caminha a favor, por conseguinte,
de um cosmopolitismo crítico e dialógico, no interior do qual a diversidade se
delineie como um projeto universal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na obra em que reúne 36 ensaios, referentes a 29 nações, Pinar (2003)


propõe-se a oferecer uma visão abrangente de como os estudos de currículo se
vêm desenvolvendo internacionalmente. Em sua opinião, o livro contribui para
a “conversa complicada” ou “conversa instigante” (como prefiro denominar),
envolvida na internacionalização desses estudos e na formação de um campo
globalmente configurado. No momento em que tais processos se apuram,
frequentes e vigorosas conexões se estabelecem, afetando a organização de
associações e sociedades científicas, livros, periódicos e eventos.
O apoio às conversas acadêmicas, que se verificam no interior e além de
fronteiras regionais e nacionais, constitui um esforço por aprofundar e socializar
as pesquisas e os estudos que se centram no conteúdo, no contexto e no des-

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dobramento do processo educativo, cujo centro organizacional e intelectual é


o currículo. Os resultados dessas conversas podem representar consideráveis
conquistas na proposta de se aumentar a compreensão do processo curricular.
O termo conversa, no sentido empregado por Pinar (2004), e por mim
aceito, remete-se ao ponto para o qual convergem diversas enunciações pre-
sentes na comunicação humana. Nele, escuta-se uma diversidade de vozes:
discursos se encontram, se reconhecem, se atritam e se relacionam, sem
que nenhum se imponha ou seja imposto ao outro. Ou seja, em conversas
instigantes (mais que complicadas) promove-se, inevitavelmente, um processo
de hibridização.
Nessas conversas, deseja-se a confluência, mas não a homogeneização,
de distintos modos de pensar, de imaginar e de improvisar. Nelas, autonomia,
respeito e cosmopolitismo precisam ocupar lugares de destaque, para que não
se desvalorizem ou se subjuguem discursos, vozes e interesses locais.
As instigantes conversas, a serem incentivadas no campo do currículo,
jamais serão totalmente transparentes, pautadas por concessões, acomodações,
apropriações, negociações e reconciliações que se desenvolvam sem quaisquer
questionamentos. Pelo contrário, as relações de autoridade e de poder não de-
saparecem completamente, quaisquer que sejam os rumos seguidos no contexto
educacional global, no qual se intenta robustecer a internacionalização do campo.
Daí a importância de precauções. Ao mesmo tempo, não se trata de buscar um
aparente consenso, que mascare uma apatia desgastante ou intenções ocultas.
Em um projeto democrático, há que se garantir pluralidade e embate. Deseja-
se tanto um choque vibrante de posições políticas e de perspectivas científicas,
quanto um conflito claro e aberto de interesses (Mouffe, 1996).
Na defesa da hibridização e do cosmopolitismo, talvez seja desejável
acrescentar a valorização da tradição, bastante distinta da noção de tradi-
cionalismo. A tradição permite pensar nossa inserção na historicidade, assim
como o fato de sermos criados como sujeitos por meio de diferentes discursos
circulantes: por meio da tradição o mundo nos é dado e nossa ação nesse
mundo se torna viável. Mas a tradição precisa constituir-se em um elemento
de liberdade, pois mesmo a mais sólida delas não persiste naturalmente ou
como decorrência de uma inércia do existente. Precisa ser afirmada, abraçada,
cultivada. Há, assim, que se enfatizar o caráter composto, heterogêneo e aberto
da tradição. Variadas estratégias e interpretações se mostram possíveis, o que

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permite que diferentes partes ou aspectos da tradição se atritem e se desafiem.


Desarticulam-se e se rearticulam, assim, elementos característicos das práticas
em que estamos envolvidos (Mouffe, 1996). No processo de internacionali-
zação do campo do currículo, o que se espera, então, é que a hibridização e
o cosmopolitismo, que devem marcá-lo, favoreçam um clima democrático no
qual possam ocorrer desafiantes conversas e profícuos embates entre variadas
tradições e perspectivas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Cultura global: nacionalismo, globalização e modernidade. Petrópolis: Vozes, 1994. p.311-327.

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DUSSEL, I.; TIRAMONTI, G.; BIRGIN, A. Hacia una nueva cartografia de la reforma curri-
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380 Cadernos de Pesquisa, v. 39, n. 137, maio/ago. 2009

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Recebido em: outubro 2008


Aprovado para publicação em: janeiro 2009

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outros temas
TEORIA DO CURRÍCULO: O QUE É E POR QUE É IMPORTANTE

http://dx.doi.org/10.1590/198053142851

TEORIA DO
CURRÍCULO:
O QUE É E POR QUE
É IMPORTANTE
MICHAEL YOUNG
TRADUÇÃO Leda Beck
REVISÃO TÉCNICA E NOTAS Paula Louzano

RESUMO
190 Cadernos de Pesquisa v.44 n.151 p.190-202 jan./mar. 2014

Este artigo discute a importância da teoria do currículo e de seus especialistas


no debate contemporâneo sobre currículo escolar. Após um breve relato sobre
a evolução no campo dos estudos curriculares, o autor discorre sobre os papéis
Palestra proferida em
1º de novembro de 2013
crítico e normativo da teoria do currículo, sugerindo que esses dois objetivos
no II Seminário têm sido separados, em detrimento de ambos. Em seguida, ao defender que a
FE/USP sobre currículo
“Escola e Sociedade do educação é uma atividade prática e especializada, o autor sugere que a teoria do
Conhecimento: aportes para
a discussão dos processos currículo una esses dois papéis e enxergue o currículo como forma de conhecimento
de construção, seleção e
organização do currículo”, especializado. Finalmente, postula que os teóricos do currículo se debrucem sobre
realizado na Faculdade de
Educação da Universidade
como desenvolver currículos que ampliem – e não somente reproduzam – as
de São Paulo – FE/USP.
Disponível em: <http://
oportunidades de aprendizagem.
iptv.usp.br/portal/video.
action?idItem=18988>.
Acesso em: fev. 2014. CURRÍCULO • CONHECIMENTO • TEORIA DO CURRÍCULO
CURRICULUM THEORY: WHAT IT IS

Michael Young
AND WHY IT IS IMPORTANT
ABSTRACT

In this paper we discuss the importance of curriculum theory and its specialists in
the current debate on school curriculum. After a short account on the evolution of
the field of curriculum studies, we delve into the critique and normative aspects of
the curriculum theory, suggesting that these two objectives have been separated,
much to the demise of both of them. Next, when defending education as a practical
and specialized activity, we suggest that the curriculum theory unite both aspects
and regard the curriculum as a form of specialized knowledge. Lastly, we postulate
that curriculum theorists concentrate their efforts on the development of curriculum
that not just reproduce learning opportunities, but rather broaden them.

CURRICULUM • KNOWLEDGE • CURRICULUM THEORY

TEORÍA DEL CURRÍCULO: QUÉ ES


Y POR QUÉ ES IMPORTANTE
RESUMEN
Cadernos de Pesquisa v.44 n.151 p.190-202 jan./mar. 2014 191

Este artículo discute la importancia de la teoría del currículo y de sus especialistas


en el debate contemporáneo sobre el currículo escolar. Luego de un breve relato
sobre la evolución en el ámbito de los estudios curriculares, el autor discurre sobre
los papeles crítico y normativo de la teoría del currículo, sugiriendo que estos dos
objetivos han sido separados en detrimento de ambos. En seguida, al defender
que la educación es una actividad práctica y especializada, el autor sugiere que
la teoría del currículo una estos dos papeles y lo considere al currículo como una
forma de conocimiento especializado. Finalmente, postula que los teóricos del
currículo se dediquen a desarrollar currículos que amplíen – y no sólo reproduzcan
– las oportunidades de aprendizaje.

CURRÍCULO • CONOCIMIENTO • TEORÍA DEL CURRÍCULO


TEORIA DO CURRÍCULO: O QUE É E POR QUE É IMPORTANTE

E
stou convencido de que não há questão educacional mais crucial hoje

em dia do que o currículo. Para colocar o problema mais diretamente,


precisamos responder à pergunta: “o que todos os alunos deveriam
saber ao deixar a escola”?
Como teóricos do currículo, deveríamos ter as respostas para
perguntas desse tipo. Afinal, somos os especialistas em matéria de
currículo. Isso não significa que somos autoridades inquestionáveis no
assunto – longe disso. Mas significa, na minha opinião, que temos a
responsabilidade que acompanha a especialização: dizer a verdade em
nosso campo, como a vemos. Ao mesmo tempo, tais questões sobre “o
que ensinar na escola” constituem apenas um nível de investigação para
a teoria do currículo. O currículo foi associado por tempo demais apenas
a escolas. Faculdades e universidades também têm currículos. Portanto,
192 Cadernos de Pesquisa v.44 n.151 p.190-202 jan./mar. 2014

a teoria do currículo aplica-se a toda instituição educacional.


As perguntas relativas ao currículo estão longe de ser diretas
e claras – e isso é dificultado pelo fato de que todo mundo acha que
tem respostas para elas, especialmente em relação ao currículo escolar.
Aqueles que detêm o poder político em geral não reconhecem a autori-
dade do conhecimento dos especialistas em currículo. Essa falta de reco-
nhecimento é parcialmente por nossa culpa: há pouco acordo entre os
especialistas em currículo sobre qual deveria ser o objeto de sua teoria.
Inicialmente, vou contar uma brevíssima história da teoria do
currículo, com base na experiência de dois países que conheço um
pouco: a Inglaterra e os Estados Unidos. Os dois países começaram com
formas muito restritas, mas muito diferentes de teoria do currículo.
Nos Estados Unidos, essa teoria derivou do gerenciamento científico

Michael Young
desenvolvido por F. W. Taylor e, em seguida, foi aplicada às escolas, de
maneira que os teóricos do currículo podiam dizer aos professores o
que ensinar, como se fossem trabalhadores manuais – é por isso que
muitos departamentos de currículo nas universidades estadunidenses se
chamam Departamento de Currículo e Instrução.1 Na Inglaterra, tivemos
uma tradição bem diferente: era uma visão elitista e complacente
do que deveria ser ensinado nas escolas, conhecida como “educação
liberal”. Partia de duas premissas: a primeira, de que uma teoria não era
necessária; e a segunda, de que se os alunos não aprendiam era porque
lhes faltava inteligência.
Essas tradições perderam muito de sua credibilidade a partir das
décadas de 1960 e 1970, embora a ideia de que as escolas precisam ser
“mais eficientes”, como fábricas, nunca tenha desaparecido por com-
pleto em nenhum dos dois países. No entanto, é difícil, hoje, quando se
olham as publicações acadêmicas, saber exatamente quais são os atuais
limites do campo: não apenas o que é teoria do currículo, mas também o que
não é a teoria do currículo.
Ocorreram várias linhas de evolução no campo dos estudos
curriculares, todas críticas das duas primeiras tradições:

1. A interação entre a tradição anglo-estadunidense e as tradições


alemã e do norte da Europa de teorias educacionais.
2. O desenvolvimento da teoria crítica do currículo, que levou ao
rompimento com as tradições inglesa e estadunidense; nos EUA, esses
teóricos eram os reconceitualistas associados a Bill Pinar, que se inspirou
principalmente em Dewey, e os neomarxistas críticos e pós-marxistas,
como Michael Apple e Tom Popkewitz (fiquei chocado com a recente
morte de um deles, Jean Anyon).
3. Os historiadores do currículo, liderados por meu colega inglês Ivor
Goodson.
4. Os sociólogos da educação, tanto na tradição construtivista como na
realista, a quem tenho sido associado.
Cadernos de Pesquisa v.44 n.151 p.190-202 jan./mar. 2014 193

Devo mencionar também Basil Bernstein,2 embora infelizmente 1


Ler a propósito o excelente
só in memoriam. Na minha opinião, em seus escritos tardios, mais do que livro de Raymond Callahan,
Education and the cult
nenhum outro autor, foi ele que pôs a teoria do currículo no mapa. Com of efficiency (1964).

certeza, foi ele que me ensinou que não é possível ter uma teoria do 2
currículo sem uma teoria do conhecimento. Basil Bernstein (1924-2000),
sociólogo inglês conhecido
Temos, portanto, todas essas tradições positivas, sobre as quais por seus trabalhos na
área da sociologia da
podemos construir, mesmo nestes tempos difíceis. Sem elas, a teoria do educação. A evolução do
seu pensamento aparece
currículo poderia facilmente voltar ao seu passado tecnicista ou elitista fundamentalmente nos
cinco volumes da obra Class,
ou, mais provavelmente, poderia não ter futuro. Codes and Control, lançada
pela editora londrina
Routledge & Kegan Paul.
O PAPEL CRÍTICO E O PAPEL NORMATIVO
TEORIA DO CURRÍCULO: O QUE É E POR QUE É IMPORTANTE

DA TEORIA DO CURRÍCULO
O que significa dizer que somos “especialistas em currículo”? Sugiro
que significa que temos dois papéis importantes: um papel crítico e um
papel normativo.
Como críticos, nossa tarefa deveria ser a análise das premissas
e dos pontos fortes e fracos dos atuais currículos, além de analisar
também os modos como o currículo conceitual é usado. A questão difícil
e muito debatida é: o que deve significar exatamente essa noção de
crítica? Falando da minha própria experiência, uma coisa que aprendi
nos últimos dez anos é que não se pode ter crítica sem uma tradição.
Pensada assim, a teoria do currículo é muito parecida com música e
arte: tem suas tradições, que são rompidas e transformadas, mas não
podemos viver sem elas – até anarquistas têm tradições. Extraio minha
tradição da sociologia e fico feliz de ter lido os longos textos de Durkheim
e Weber, mesmo sem saber por que na época. Essa foi minha biografia
particular e com isso não quero dizer que a sociologia é a única tradição
para a teoria do currículo. Longe disso. Aprendi muito com psicólogos,
historiadores e filósofos, embora nunca tenha feito parte das tradições
deles. Para mim, ainda está aberta ao debate a questão de saber se
existe tradição e uma disciplina distintas da “teoria do currículo” e
quais seriam suas bases. Alguns teóricos do currículo, particularmente
aqueles da tradição estadunidense, fazem um uso eclético de teorias de
um amplo leque de fontes. É complexa a relação entre o objeto da teoria –
“o que é ensinado nas escolas e faculdades” – e o desenvolvimento de
uma teoria desse objeto. Trata-se, por exemplo, de uma disciplina em si
mesma ou ela bebe em diferentes disciplinas?

O QUE SIGNIFICA DIZER QUE A TEORIA DO


CURRÍCULO TEM UM PAPEL NORMATIVO?
Há dois significados quando se diz que a teoria do currículo tem um
194 Cadernos de Pesquisa v.44 n.151 p.190-202 jan./mar. 2014

papel normativo. Um deles refere-se às regras (ou normas) que orientam


a elaboração e a prática do currículo; o outro refere-se ao fato de que a
educação sempre implica valores morais sobre uma boa pessoa e uma
“boa sociedade” – em outras palavras, para que estamos educando?
Aqui, estou preocupado principalmente com o primeiro senti-
do, o normativo. Trata-se das implicações de nossas análises para o que
deveria ser um “currículo melhor”. O que está claro para mim é que a vi-
são normativa da teoria do currículo se torna uma forma de tecnicismo –
dizer aos professores o que fazer – se estiver separada de seu papel crítico.
Do mesmo modo, é difícil ver um propósito no papel críti-
co da teoria do currículo se ele estiver separado de suas implicações
normativas – críticas não podem ser um fim em si mesmas. No meu
país, o governo está fazendo grandes mudanças no currículo escolar. É

Michael Young
perturbador que a voz da teoria do currículo quase não seja ouvida.
Uma espiadela na história do currículo sugere que os objetivos
crítico e normativo têm sido claramente separados, em detrimento de
ambos. Por exemplo, os que prescrevem modelos para um currículo
“melhor” raramente se engajam em análises críticas, o que os obriga-
ria a examinar suas premissas. Eles presumem que ninguém poderia
seriamente discordar de suas prescrições, independentemente de elas
enfatizarem resultados, objetivos, competências ou habilidades fun-
cionais. Acredita-se que as premissas subjacentes a esse tipo de modelo
curricular não precisam do apoio de evidências ou argumentos – são
tomadas como óbvias, da mesma forma que, no passado, se tomavam
os axiomas de Euclides. Presume-se que tudo ruiria se as premissas não
fossem verdadeiras. Na minha visão, se o currículo for definido por
resultados, competências ou, de forma mais abrangente, avaliações,
ele será incapaz de prover acesso ao conhecimento. Entende-se conhe-
cimento como a capacidade de vislumbrar alternativas, seja em lite-
ratura, seja em química; não pode nunca ser definido por resultados,
habilidades ou avaliações.
O que dizer, então, de uma teoria do currículo que adota um pa-
pel crítico sem se sentir obrigada a desenvolver suas implicações concre-
tas? A crítica é vista como autojustificadora – “dizer a verdade ao poder”
é uma frase popular – e os críticos objetam quando se lhes pergunta: “e
daí?”. Foucault é muito popular entre teóricos críticos do currículo e foi
assim que ele justificou a crítica sem consequências:

Não vou desempenhar, de maneira alguma, o papel de quem


prescreve soluções. Sustento que o papel do intelectual, hoje, não
é [...] propor soluções ou profetizar, já que, ao fazer isso, só se
contribui para uma determinada situação de poder que deve ser
criticada. (FOUCAULT Michel, 1991, p. 157,3 apud MULLER, 2000)

O problema com o argumento de Foucault, na minha opinião,


Cadernos de Pesquisa v.44 n.151 p.190-202 jan./mar. 2014 195

é que ele presume que princípios alternativos equivalem a soluções.


Nenhum professor quer soluções da teoria do currículo – no sentido de
“ser instruído sobre o que ensinar”. Isso é tecnicismo e enfraquece os
professores. Contudo, como em qualquer profissão, sem a orientação e
os princípios derivados da teoria do currículo, os professores ficariam iso-
lados e perderiam toda autoridade. Em outras palavras, os professores
precisam da teoria do currículo para afirmar sua autoridade profissional.
3
Uma visão mais extrema, adotada por alguns teóricos associados FOUCAULT, M. Remarks
à tradição pedagógica crítica, livra-os de propor alternativas concretas, on Marx: conversations
with Diccio Tombadori.
pois se identificam com um hipotético movimento global dos destituí- R. J. Goldstein and J.
Cascaito’ Translation. New
dos, como sugeriram Hardt e Negri em seu livro Império (2001). “A crítica York: Semiotext(e), 1991.
pela crítica, sem alternativas”, é como chamo essa pedagogia crítica,
TEORIA DO CURRÍCULO: O QUE É E POR QUE É IMPORTANTE

a menos que se considere “esperança num futuro improvável” como


alternativa.
A consequência das “críticas sem alternativas” é o endosso
daquilo que Stuart Hall, prestigiado sociólogo e teórico da cultura,
chamou certa vez, ironicamente, de “currículo da vida”. Com efeito, a
menos que a vida seja ela mesma um currículo, isso significa não ter
currículo e, portanto, não ter sequer escolas.
Então, por que temos essa divisão do trabalho entre crítica e
implementação ou alternativas? Não é uma característica de outros
campos especializados do conhecimento, como a saúde ou a engenharia.
A culpa é parcialmente nossa: não concordamos sobre qual é o objeto
de nossa teoria, nem mesmo sobre quais são os limites dela, e então
buscamos conceitos críticos na filosofia, na ciência política e na teoria
literária, embora nenhum desses campos tenha jamais tratado de
questões educacionais, quanto mais de currículos. Um artigo recente no
Journal of Curriculum Studies referiu-se a esse problema como a fuga do
currículo na teoria do currículo. Outro dia me mandaram um artigo sobre
Derrida e a geografia. Era uma “desconstrução” elegante e sistemática da
geografia, descrita como algo sem qualquer tipo de coerência. Como seria
possível, então, ensinar geografia? O autor não seguiu até o fim a lógica
de seu argumento e, portanto, não sugeriu que parássemos de ensinar
geografia. Ele poderia ter feito o mesmo com história ou ciências.
Por que Derrida? Sem dúvida, trata-se de um filósofo brilhante.
Mas será que isso significa que ele seja também um teórico do currículo?
Não creio. Não li muito Derrida e seus textos não são fáceis. O que sei
devo às interpretações do filósofo inglês Christopher Norris. O projeto
de Derrida, segundo Norris, é uma desconstrução crítica da tradição
filosófica do Iluminismo iniciada por Kant – um belo projeto para um
filósofo, mas não para um teórico do currículo. Repito: não creio que o
seja. Ao buscar tais elementos, acredito que a teoria do currículo corre o
risco de desconsiderar duas questões relacionadas e cruciais.
A primeira é que a educação é uma atividade prática, como saúde,
196 Cadernos de Pesquisa v.44 n.151 p.190-202 jan./mar. 2014

transporte ou comunicações. Não é como física, filosofia ou história


– campos de investigação que buscam a verdade sobre nós e sobre o
mundo e o universo que habitamos. A educação trata de fazer coisas
com e para os outros; a pedagogia é sempre uma relação de autoridade
(lembrem-se da zona de desenvolvimento proximal de Vygotsky: a dife-
rença entre o que o estudante e o professor sabem) e devemos aceitar
essa responsabilidade. É justamente aí que entra a teoria do currículo.
A educação preocupa-se, antes de mais nada, em capacitar as pessoas a
adquirir conhecimento que as leve para além da experiência pessoal, e
que elas provavelmente não poderiam adquirir se não fossem à escola
ou à universidade. Sugiro que o papel da teoria do currículo deva ser a
análise desse conhecimento – a maior parte dele já existe nas escolas – e

Michael Young
a proposta das melhores alternativas que possamos encontrar para as
formas existentes.
A segunda questão é que a educação é uma atividade especia-
lizada. No tempo em que a maioria não frequentava escolas, educação
era uma coisa simples, assumida por pais e anciãos como extensão na-
tural do resto de suas vidas. Não requeria nenhum conhecimento para
além das experiências e memórias de infância das pessoas. À medida
que as sociedades foram se tornando mais complexas e mais diferencia-
das, desenvolveram-se instituições especializadas – escolas, faculdades
e, claro, universidades. Assim, embora permaneça uma atividade práti-
ca, a educação se tornou cada vez mais especializada. Os currículos são
a forma desse conhecimento educacional especializado e costumam de-
finir o tipo de educação recebida pelas pessoas. Precisamos entender os
currículos como formas de conhecimento especializado para podermos
desenvolver currículos melhores e ampliar as oportunidades de apren-
dizado. É esse tipo de meta que dá sentido à teoria do currículo, assim
como tratamentos e remédios melhores dão sentido à ciência médica.
Voltemos, então, ao currículo como conceito educacional.

O CURRÍCULO COMO CONCEITO EDUCACIONAL


Estou cada vez mais convencido de que o currículo é o conceito mais
importante que emergiu do campo dos estudos educacionais. Nenhuma
outra instituição – hospital, governo, empresa ou fábrica – tem um cur-
rículo no sentido em que escolas, faculdades e universidades têm. Todas
as instituições educacionais afirmam e presumem dispor de um conhe-
cimento ao qual outros têm direito de acesso e empregam gente que
é especialista em tornar esse conhecimento acessível (os professores)
– obviamente, com graus variados de sucesso. Quem quer adquirir um
conhecimento especializado pode começar por ler um livro ou consul-
tar a internet, mas, se for sério, vai a uma instituição com um currículo
que inclua o que quer aprender e tenha professores que sabem ensinar.
Cadernos de Pesquisa v.44 n.151 p.190-202 jan./mar. 2014 197

Isso nos leva à questão crucial: qual conhecimento deveria com-


por o currículo? Não no sentido absoluto de conhecimento verdadeiro,
o que seria melhor definido como crença, mas no sentido de “o melhor
conhecimento que temos em qualquer campo”. Se não pudermos res-
ponder a essa questão ou se não houver um conhecimento “melhor”,
nossa autoridade como teóricos do currículo estará em xeque, como
também estarão em xeque as bases sobre as quais esperamos que os pais
confiem nos professores quando entregam seus filhos a eles. A verdade
é que não sabemos muito sobre currículos, exceto nos termos cotidia-
nos – grade horária, listas de disciplinas, roteiros de exames e, cada vez
mais, matrizes de competências ou habilidades.
Para desenvolver um argumento sobre o que significaria o con-
TEORIA DO CURRÍCULO: O QUE É E POR QUE É IMPORTANTE

ceito de currículo, empresto uma ideia de um artigo recente de meu


colega David Scott (SCOTT; HARGREAVES, 2014). Seu ponto de partida
não é propriamente o currículo, mas o aprendizado como a mais básica
atividade humana. O que torna humano o aprendizado humano, diz
ele, é o fato de que se trata de uma atividade epistêmica – em outras
palavras, tem a ver com a produção de conhecimento. Por que outra
razão aprenderíamos senão para descobrir algo ou como fazer algo –
portanto, produzindo conhecimento? É útil estender a ideia de Scott um
pouco mais e ver o aprendizado como um continuum em dois sentidos:
histórico, já que, ao longo do tempo, o aprendizado tornou-se cada vez
mais complexo e diferenciado; e em termos de tipos de aprendizado
disponíveis nas sociedades modernas.
Pensemos, pois, num continuum de aprendizado em qualquer
sociedade moderna – há uma miríade de formas de aprendizado que
compõem nossas vidas de todos os dias. Nesses processos de aprendi-
zado, produzimos conhecimento o tempo todo, geralmente tácito,
raramente codificado ou escrito, e às vezes lembrado, outras vezes,
não. Esse “aprendizado de todo dia” está estreitamente relacionado ao
conhecimento cotidiano de senso comum que construímos ao longo de
nossas vidas. No sentido amplo dos termos, esses tipos de aprendizado
são atividades epistêmicas ou de produção de conhecimento, embora o
conhecimento que gerem esteja sempre ligado a lugares, contextos e
pessoas específicas. É um conhecimento útil, e até necessário, para levar
nossas vidas adiante, mas não é suficiente nas sociedades modernas. E é
por isso que temos escolas e currículos: para armazenar e disponibilizar
o conhecimento especializado de que nossos ancestrais não precisavam
e que não tinham descoberto.
No outro extremo do continuum, temos as atividades de produção
de conhecimento exercidas por pesquisadores de ponta nas diferentes
disciplinas, a maioria em universidades, mas não apenas nelas. Eles estão
envolvidos na produção de novo conhecimento a ser testado, criticado
e avaliado por seus pares. É uma atividade altamente especializada e
198 Cadernos de Pesquisa v.44 n.151 p.190-202 jan./mar. 2014

envolve linguagens e símbolos, como a matemática, que muitos de nós


não entendem. Em algum ponto no meio do continuum, há um leque
de tipos de conhecimento, inclusive o conhecimento especializado de
muitas profissões e o conhecimento escolar ou currículo, que compõe
os programas educacionais dos primeiros anos até os mestrados e
doutorados.
O conhecimento no currículo é basicamente um conhecimento
especializado, em geral (mas nem sempre) organizado para ser trans-
mitido de uma geração a outra. Uso o verbo “transmitir” sem presumir
que seja um processo de mão única, como pode insinuar a metáfora. O
conhecimento no currículo é o fenômeno sobre o qual os teóricos do
currículo dizem ter conhecimento especializado, e é essa teoria do cur-

Michael Young
rículo que deveria nos permitir analisar e criticar suas diferentes formas
e, esperemos, desenvolver e propor alternativas melhores de currículo.
Poderíamos descrever os teóricos do currículo como especialis-
tas em uma forma específica de conhecimento aplicado – conhecimento
que é aplicado para torná-lo tanto “ensinável” como “aprendível” por
alunos de diferentes etapas e idades. O conhecimento no currículo é
sempre conhecimento especializado e é especializado de duas maneiras:

(i) Em relação às fontes disciplinares: conhecimento produzido por


especialistas nas áreas de conhecimento – história, física, geografia.
Os especialistas disciplinares nem sempre concordam ou acertam,
e, embora seu propósito seja descobrir a verdade, às vezes são
influenciados por outros fatores, além da busca da verdade. Contudo,
é difícil pensar em uma fonte melhor para “o melhor conhecimento
disponível” em qualquer campo. Não há país com um bom sistema
educacional que não confie nos seus especialistas disciplinares como
fontes do conhecimento que devem estar nos currículos.
(ii) Em relação a diferentes grupos de aprendizes: todo currículo é elaborado
para grupos específicos de aprendizes e tem de levar em considera-
ção o conhecimento anterior de que estes dispõem.

Os elaboradores de currículo em qualquer nível envolvem-se


no processo que Bernstein chamou de recontextualização, uma palavra
relativamente simples para um processo extremamente complexo. O
termo refere-se ao modo como os elementos do conhecimento disciplinar
são incorporados ao currículo para aprendizes de diferentes idades e
conhecimentos anteriores. Considero que é nossa responsabilidade, como
teóricos do currículo, investigar esses processos de recontextualização.
Há pouquíssimas pesquisas desse tipo.
A teoria de Bernstein nos dá duas pistas sobre os tipos de
perguntas a que uma pesquisa assim deveria tentar responder. Uma
delas é a distinção entre discursos pedagógicos oficiais e discursos
Cadernos de Pesquisa v.44 n.151 p.190-202 jan./mar. 2014 199

pedagógicos de recontextualização. No primeiro caso, ele se refere ao


governo e suas agências; no segundo, às associações profissionais de
especialistas da comunidade educacional, particularmente professores.
Essa distinção aponta para a inevitável tensão entre os papéis do
governo e das comunidades educacionais na elaboração do currículo. Os
teóricos do currículo podem envolver-se como membros especializados
da comunidade educacional ou, em alguns casos, como consultores
do governo (e, às vezes, as duas coisas). Na Inglaterra, os teóricos do
currículo tendem a se ver como advogados dos professores contra os
governos, o que é compreensível, mas não necessariamente produtivo.
Alguns de nós estão tentando mudar isso.
A segunda pista oferecida por Bernstein está na identificação
TEORIA DO CURRÍCULO: O QUE É E POR QUE É IMPORTANTE

de três processos envolvidos na recontextualização: como o conheci-


mento é selecionado, como é sequenciado e como progride. Se uma
escola, um estado ou um país inteiro está redesenhando seu currículo,
os elaboradores de currículo precisarão se concentrar no propósito desse
currículo: o que ele está tentando fazer ou como está tentando ajudar os
professores a fazer? Minha definição de propósito de um currículo é
como ele promove a progressão conceitual ou aquilo que o filósofo
Christopher Winch chama de “ascensão epistêmica”. Na minha opinião,
a ascensão epistêmica requer disciplinas para estabelecer marcos e fron-
teiras conceituais, de forma que os alunos possam de fato “ascender”.
Os desafios que isso levanta para diferentes campos de
conhecimento ou disciplinas vão depender de suas estruturas de
conhecimento. Bernstein distingue entre estruturas verticais e horizontais
de conhecimento, referindo-se, grosso modo, às ciências exatas e humanas.
Há muito pouca pesquisa sobre a utilidade desses conceitos de Bernstein
para analisar currículos. Contudo, um exemplo de pesquisa em
andamento na Cidade do Cabo, na África do Sul, ilustra as possibilidades
no que concerne ao currículo universitário da Engenharia (SMIT, 2012).
É um caso muito específico, mas ilustra o papel que a teoria do currículo
que tenho discutido pode ter na pesquisa curricular em geral.
Como quaisquer outros, os currículos de engenharia são formas
complexas de conhecimento especializado organizado socialmente, que
são reunidas e modificadas ao longo dos anos – neste caso – por especia-
listas em engenharia.
Uma questão que surgiu durante a pesquisa foi o ensino da física
como parte do currículo para futuros engenheiros. Um tema-chave da
física para a engenharia é a termodinâmica. No entanto, embora a teoria
(neste caso, as equações) conhecida como termodinâmica seja a mesma
para engenheiros e físicos, os dois grupos interpretam-na de maneira
muito diferente. Para os engenheiros, a termodinâmica é útil para ajudar
200 Cadernos de Pesquisa v.44 n.151 p.190-202 jan./mar. 2014

a resolver problemas de engenharia – para entender por que a caldeira de


uma estação de energia parou de funcionar ou para projetar um reator
nuclear. Já para os físicos, a termodinâmica trata de entender as leis
gerais relacionadas ao calor e ao trabalho. Espera-se que os alunos possam
mover-se livremente de um significado para outro da termodinâmica,
embora, talvez, seus professores não estejam completamente
familiarizados com os dois. Esse é um exemplo de problema comum
naquilo que Bernstein chama de currículos “integrados” em todos os
níveis, quando os alunos aprendem com diferentes especialistas e, por
isso, podem fazer a “integração” sozinhos.
SUMÁRIO E CONCLUSÃO

Michael Young
Ponderei que o objeto da teoria do currículo deve ser o currículo – o que
é ensinado (ou não), seja na universidade, na faculdade ou na escola.
Assim, o currículo sempre é:

• um sistema de relações sociais e de poder com uma história


específica; isso está relacionado com a ideia de que o currículo pode
ser entendido como “conhecimento dos poderosos”;
• sempre é também um corpo complexo de conhecimento especializado
e está relacionado a saber se e em que medida um currículo representa
“conhecimento poderoso” – em outras palavras, é capaz de prover
os alunos de recursos para explicações e para pensar alternativas,
qualquer que seja a área de conhecimento e a etapa da escolarização.

Johan Muller e eu já argumentamos em outras instâncias que, no


passado, a teoria do currículo não estabeleceu um bom equilíbrio entre
esses dois aspectos. Concentrou-se demasiadamente no currículo como
“conhecimento dos poderosos” – um sistema concebido para manter as
desigualdades educacionais – e negligenciou o currículo como “conhe-
cimento poderoso”. O resultado é que certas questões sobre o conheci-
mento são evitadas. Por exemplo:

• O que há de poderoso no conhecimento que é característico dos


currículos das escolas de elite?
• Por que, às vezes, os professores se assustam com a ideia do conhecimento
e acham que devem resistir a ele, como algo inevitavelmente opressivo e
não como algo libertador que deve ser encorajado?
• O que há de poderoso nesse “conhecimento poderoso”?
• Por que esse “conhecimento poderoso” deve ser separado do
conhecimento cotidiano dos alunos, mesmo que alguns alunos
possam facilmente considerá-lo alienante?
• Quais são as formas especializadas que o currículo pode assumir, suas
Cadernos de Pesquisa v.44 n.151 p.190-202 jan./mar. 2014 201

origens, seus propósitos e seus processos de seleção, sequenciamento


e progressão?

É através desses processos em diferentes campos que os


currículos reproduzem – ou não – as oportunidades sociais. Não
sabemos muito sobre o conhecimento nos currículos, exceto no nível de
generalizações excessivamente abrangentes. Uma das razões pelas quais
os currículos existentes continuam a manter o acesso para alguns e a
excluir outros é que não investigamos em que medida os processos de
seleção, sequenciamento e progressão são limitados, de um lado, pela
estrutura do conhecimento e, de outro, pela estrutura dos interesses
sociais mais amplos.
Se vamos enfrentar essa pesquisa como teóricos do currículo,
TEORIA DO CURRÍCULO: O QUE É E POR QUE É IMPORTANTE

temos de nos tornar “especialistas duplos”. Nossa especialização


principal é a teoria do currículo. Mas também precisamos de um certo
nível de familiaridade com os campos especializados que estamos
pesquisando, seja engenharia ou alfabetização. Em geral, é aqui que a
teoria do currículo fracassa, e talvez seja por isso que não se desenvolve:
as duas formas de especialização – a teoria do currículo e o campo
específico sob exame – são raramente reunidas.
Há muito a fazer.

REFERÊNCIAS
CALLAHAN, Raymond. Education and the cult of efficiency. Chicago: The University of Chicago
Press, 1964.

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001.

MULLER, Johan. Reclaiming knowledge: social theory, curriculum and education policy. London:
Routledge/Falmer,2000.

SCOTT, David; HARGREAVES, Eleanore (Ed.). Handbook on learning. London: Sage, 2014.

SMIT, Reneé. Transitioning disciplinary differences: does it matter in engineering


education? In: AUSTRALASIAN ASSOCIATION FOR ENGINEERING EDUCATION CONFERENCE,
2012. Proceedings… Melbourne, Victoria: AAEE, 2012.

MICHAEL YOUNG
Instituto de Educação, da Universidade de Londres (Reino Unido)
m.young@ioe.ac.uk
202 Cadernos de Pesquisa v.44 n.151 p.190-202 jan./mar. 2014

Recebido em: JANEIRO 2014 | Aprovado para publicação em: FEVEREIRO 2014
TENTATIVAS DE PADRONIZAÇÃO DO
CURRÍCULO E DA FORMAÇÃO DE
PROFESSORES NO BRASIL
Lucíola Licínio de Castro Paixão Santos1
Júlio Emílio Diniz‑Pereira1

RESUMO: Este artigo analisa as tentativas de padronização do


currículo e da formação de professores no Brasil que, dentro
de um processo de ampliação do controle sobre o trabalho
docente, se relacionam à crescente penetração na educação de
um ideário produzido no campo empresarial. Conclui‑se que a
padronização da formação docente termina sendo secundarizada,
uma vez que o professor, no exercício de suas atividades, sofre
diferentes formas de controle que, inexoravelmente, levam a
padronizações do trabalho docente em escolas que seguem o
currículo nacional e as avaliações sistêmicas.
Palavras‑chave: Currículo. Formação de professores.
Padronização. Brasil.

Attempts at standardizing
curriculum and teacher education in Brazil

ABSTRACT: This article seeks to analyze the attempts at


standardizing the curriculum and teacher education in Brazil,
within a process of expansion of control over teaching work,
related to the increasing influence in education of ideas
produced in the business field. The findings show that the

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Faculdade de Educação – Belo


1

Horizonte (MG), Brasil. E‑mail: luciolaufmg@yahoo.com.br; juliodiniz@ufmg.br


DOI: 10.1590/CC0101-32622016171703

Cad. Cedes, Campinas, v. 36, n. 100, p. 281-300, set.-dez., 2016 281


Padronização de currículos no Brasil

standardization of teacher education ends up being sidelined,


since teachers in the exercise of their activities suffer different
forms of control that inexorably lead to standardization of
teaching work in schools that follow the national curriculum
and standardized tests.
Keywords: Curriculum. Teacher education. Standardization. Brazil.

INTRODUÇÃO

O
propósito deste artigo é analisar as tentativas de padroniza‑
ção do currículo e da formação de professores da educação
básica, no Brasil, nos últimos 20 anos, ou seja, após a aprova‑
ção da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394/96
ou, simplesmente, LDBEN), em dezembro de 1996 (BRASIL, 1996).
As tentativas de padronização dos currículos, dentro de um processo
crescente de controle sobre o trabalho docente, relacionam‑se à crescente
penetração, na educação, de um ideário produzido no campo empresarial,
tributárias de uma visão economicista e voltada apenas à produtivida‑
de e a eficiência dos sistemas de ensino. As padronizações submetem o
trabalho docente a determinações tomadas por técnicos e especialistas,
desrespeitando a autonomia das escolas e de seus professores, a diversida‑
de cultural dos alunos e seus ritmos de aprendizagem.
O artigo está dividido em duas partes: a primeira focaliza o
crescente movimento de padronização dos currículos das diferentes
etapas da educação básica e a segunda, a padronização no campo da for‑
mação docente.

AS TENTATIVAS DE PADRONIZAÇÃO
DOS CURRÍCULOS DA EDUCAÇÃO BÁSICA

De forma crescente, amplia‑se o processo de padronização


dos currículos da educação básica, tanto no Brasil como em diferentes

282 Cad. Cedes, Campinas, v. 36, n. 100, p. 281-300, set.-dez., 2016


Lucíola Licínio de Castro Paixão Santos e Júlio Emílio Diniz‑Pereira

países do mundo. Nesta seção será abordada a maneira como têm sido
tratados os currículos da educação básica, nas últimas décadas, bus‑
cando mostrar suas tendências homogeneizadoras, a partir de decisões
legais e ações governamentais, bem como do cenário em que tais me‑
didas são tomadas.
No final dos anos 1990, duas iniciativas no campo do currí‑
culo mobilizaram a atenção da área educacional. A primeira diz respeito
às Diretrizes Curriculares Nacionais e a segunda se refere aos Parâmetros
Curriculares Nacionais. Inicialmente, serão abordadas as diretrizes cur‑
riculares para depois serem discutidas as novas formas de padronização
instituídas pelo governo central.

AS DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica


decorreram da Lei nº 9.394 (LDBEN), de 1996, que estabeleceu em
seu inciso IV do artigo 9º que a União, em colaboração com estados,
municípios e distrito federal, deveria elaborar diretrizes para cada eta‑
pa da educação básica de “modo a assegurar formação básica comum”
­(BRASIL, 1996). Em função disso, entre 1998 e 2000, foram elabora‑
das e aprovadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
Infantil, para o Ensino Fundamental, para o Ensino Médio, a Edu‑
cação de Jovens e Adultos, a Formação de Professores na Modalidade
Normal, em nível médio, a Educação Profissional de Nível Técnico e a
Educação Indígena1.
Essas diretrizes constituíram‑se em normas obrigatórias
para orientar o trabalho dos sistemas de ensino e das escolas, bem
como preconizaram que os currículos escolares deveriam ter uma
parte comum e uma parte diversificada. Elas definiram, na parte
comum, os conteúdos curriculares de cada etapa e modalidade da
educação básica, em termos de áreas de estudos ou disciplinas a se‑
rem trabalhadas, além de apresentarem objetivos e propósitos mais
gerais da educação e de mostrarem os valores e os comportamentos
a serem alcançados.

Cad. Cedes, Campinas, v. 36, n. 100, p. 281-300, set.-dez., 2016 283


Padronização de currículos no Brasil

Um rápido quadro do que estava sendo discutido no campo


do currículo, nos anos 1990, proporciona uma ideia do cenário em
que essas diretrizes foram geradas, e possibilita entender suas reper‑
cussões na área educacional (ver SANTOS, 2007). Além da influência
dos estudos curriculares, as diretrizes refletem questões que estavam
sendo discutidas no campo do ensino das diversas disciplinas estando,
portanto, bastante sintonizadas com as ideias pedagógicas predomi‑
nantes na época.
Com base nessas ideias e coerente com essas diretrizes, foi ela‑
borada grande parte das propostas curriculares dos estados e de vários
municípios nos anos 1990 e 2000. Um grande número dessas propostas
contou com a assessoria de especialistas das diferentes áreas de conheci‑
mento e de acadêmicos e estudiosos do campo do currículo.
A ênfase à diversidade e à diferença ganhou destaque, e nes‑
se clima foram realizadas diversas alterações na legislação, incluindo a
obrigatoriedade do ensino sobre História e Cultura Afro‑Brasileira e In‑
dígena. Além disso, o ensino fundamental passou a ter nove anos e foi
ampliada a obrigatoriedade do ensino gratuito, que passou a incluir todas
as etapas da educação básica, dos 4 aos 17 anos de idade. Essas e outras
modificações provocaram a necessidade de atualização e de revisão das
diretrizes em vigor e da incorporação, em uma nova legislação, das nor‑
mas legais na década de 2000.
Ao finalizar este item, é importante destacar que as diretrizes
não podem ser interpretadas como uma tentativa de padronização do
ensino, pois constituem orientações gerais para cada etapa da educação
básica. Certamente elas revelam a hegemonia de certas ideias no campo
do currículo e da educação, bem como apontam conteúdos, aspectos,
princípios e valores que devem ser observados pelos sistemas de ensino
e pelas escolas. Nesse sentido, as diretrizes definem as áreas de ensino
ou disciplinas a serem trabalhadas na educação básica, na parte comum
do currículo, indicando a interdisciplinaridade, a transversalidade e a
contextualização como instrumentos adequados para um ensino de qua‑
lidade. De uma maneira geral, elas apontam ainda a responsabilidade da
escola na elaboração do Projeto Político Pedagógico, ressaltam a impor‑
tância da avaliação, mostram a necessidade de uma boa relação família e
escola, bem como de uma gestão participativa, entre outras orientações,

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Lucíola Licínio de Castro Paixão Santos e Júlio Emílio Diniz‑Pereira

como forma de oferecer subsídios políticos e pedagógicos para os siste‑


mas de ensino e as instituições escolares.

A PRIMEIRA TENTATIVA DE PADRONIZAÇÃO NACIONAL

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) foram ado‑


tados a partir de 1997 e, apesar de não serem obrigatórios, estes se
constituíram em orientações mais detalhadas sobre o ensino de cada
disciplina. Eles se destinaram a orientar as propostas curriculares das
escolas e à elaboração de livros e materiais didáticos, e ao sistema na‑
cional de avaliação. Foi, especialmente, esse último ponto que levou
a grandes controvérsias e discussões envolvendo a comunidade acadê‑
mica. Além de serem criticados pelo modo como foram elaborados e
por inibirem as iniciativas das escolas, a crítica principal na literatu‑
ra especializada se baseou em reformas educacionais de outros países.
Os PCN configuravam‑se como um currículo nacional e as críticas a
esse tipo de currículo e sua relação com os sistemas nacionais de ava‑
liação já estavam sendo apresentadas por vários autores, entre os quais
destacavam‑se acadêmicos estrangeiros de grande prestígio no Brasil
como, por exemplo, Apple (1994) e Santomé (1996), bem como auto‑
res brasileiros: Moreira (1996), Ávila e Moll (1996), Macedo (1999),
Lopes (1999), entre outros.
As críticas aos PCN mostravam como a proposta de um cur‑
rículo nacional estava associada a um sistema nacional de avaliação, em
que as escolas eram classificadas pelo seu desempenho, com a justifica‑
tiva de que isso facilitaria aos pais a escolha do estabelecimento escolar
para seus filhos2. Essa proposta se apoiava na ideia de que, ao ranquear
as escolas, se introduziria a competição entre elas, aumentando a produ‑
tividade do sistema educacional. O que não era explicitado, mas que foi
reiteradamente apontado pelos críticos, é que tais políticas partiam de
uma lógica de mercado, alicerçadas em uma visão economicista da edu‑
cação. Apesar das discussões geradas por essa polarização, os estudiosos
do campo do currículo, de maneira geral, defendiam o multicultura‑
lismo, cujas ideias ganhavam prestígio crescente no final da década de
1990, como já visto anteriormente. No campo educacional, faziam‑se

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Padronização de currículos no Brasil

fortes críticas ao governo central, acusado de conduzir o país com base


no ideário neoliberal. As críticas aos PCN geraram a publicação de mui‑
tos artigos e a explicitação de muitos pronunciamentos; todavia, Galian
(2014) mostra que, segundo dados de uma pesquisa realizada em 20103,
foi grande a influência dos PCN na elaboração de propostas curriculares
de estados e municípios brasileiros, especialmente, na primeira década
dos anos 2000.

A ATUAL TENTATIVA DE PADRONIZAÇÃO DO CURRÍCULO

Apesar das diferentes orientações teóricas existentes no campo


do currículo4, existe hoje uma posição consensual entre os acadêmicos
do campo, mesmo que fundamentada em argumentos diferentes. Tra‑
ta‑se da rejeição e das críticas à proposta atual da Base Nacional Comum
Curricular (BNCC).
A BNCC, defendida como um instrumento importante para
a gestão do currículo, é uma temática que tem hoje centralidade no
debate educacional. Segundo a página eletrônica do Ministério de
Educação (MEC),

A BNCC vai deixar claro os conhecimentos essen‑


ciais aos quais todos os estudantes brasileiros têm
o direito de ter acesso e se apropriar durante sua
trajetória na Educação Básica, ano a ano, desde o
ingresso na Creche até o final do Ensino Médio.
Com ela os sistemas educacionais, as escolas e os
professores terão um importante instrumento de
gestão pedagógica e as famílias poderão participar
e acompanhar mais de perto a vida escolar de seus
filhos (BRASIL, 2016).

Sua elaboração é justificada como uma exigência de preceitos


legais, como a LDBEN de 1996, no seu artigo 26; a Resolução do Con‑
selho Nacional de Educação/Câmara de Educação Básica (CNE/CEB),
de 7 de dezembro de 2012, que fixa as Diretrizes Curriculares Nacionais

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Lucíola Licínio de Castro Paixão Santos e Júlio Emílio Diniz‑Pereira

para o Ensino Fundamental de nove anos (BRASIL, 2010) e o que está


expresso nas estratégias propostas para a Meta 7 do Plano Nacional de
Educação de 2014 (BRASIL, 2014).
A BNCC, na forma como está sendo proposta, vai de encontro
às políticas de inclusão, uma vez que a diferença e a diversidade não po‑
dem ser alcançadas a partir de uma base nacional comum5.
Os estudos no campo do currículo (APPLE, 1994; BALL,
2012a) apontam para a impossibilidade, na prática, de implantação
de uma base nacional comum, porque aquilo que for definido em ní‑
vel nacional será reinterpretado/recontextualizado de acordo com as
experiências e tradições de diferentes esferas: as secretarias estaduais e
municipais de educação, a escola, o professor e o aluno. Assim, uma base
nacional comum não é garantia de que os estudantes brasileiros terão res‑
guardados seus direitos a determinados conhecimentos, como argumenta
o discurso oficial.

A BASE NACIONAL COMUM CURRICULAR E A


PADRONIZAÇÃO E MERCANTILIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO

Ao consultar a página eletrônica do Movimento pela BNCC,


observa‑se que se destacam entre os defensores dessa iniciativa funda‑
ções e organizações não governamentais mantidas por bancos e por
empresas, pessoas ligadas ao sistema de avaliação e associações de ges‑
tores em diferentes níveis. Observa‑se ainda que o apoio à BNCC
decorre do interesse na melhoria dos resultados das escolas nos tes‑
tes nacionais e, consequentemente, na posição que elas ocupam nas
classificações nacionais e estaduais. Um dos argumentos em defesa da
BNCC é que ela melhoraria os resultados das escolas nos testes nacio‑
nais, e do país em testes internacionais. Em relação ao interesse dos
empresários sobre esse tema, é necessário observar que, atualmente,
a educação, ao mostrar‑se como um campo rentável de negócios, vai
se tornando cada dia mais um empreendimento que engloba, entre
outras atividades, grandes redes de escolas de educação básica e su‑
perior, mantidas por empresas que também investem em prestação
de serviços, assessorias, venda de diferentes tipos de material didático

Cad. Cedes, Campinas, v. 36, n. 100, p. 281-300, set.-dez., 2016 287


Padronização de currículos no Brasil

e pedagógico e de diferentes cursos para professores e gestores. Nes‑


sa direção, as soluções para os problemas educacionais passam a ser
pensadas em termos de mercado e vários serviços prestados pelo setor
público passam a ser privatizados. Assim, se no passado os empresários
já exerciam influência na educação, hoje, de forma crescente, eles não
apenas fazem pressão ou tentam infiltrar suas ideias no mundo educa‑
cional, mas também penetram nele, passando a operar em seu interior
(BALL, 2012b).
Para os empresários, a definição de padrões comuns é algo
importante na formação de uma mão de obra com os requisitos básicos
para o trabalho. Essa medida abre um grande campo de investimento
e de interesse do setor privado ao se relacionar, entre outros, com a
produção de material didático e com a oferta de cursos para a formação
docente e de gestores, movimentando ainda uma grande parcela de
recursos públicos6.
De acordo com Mathis (2010), os assessores políticos e as
organizações empresariais colocam a competividade dos países como
uma das principais razões para a elaboração de padrões comuns de
aprendizagem. No entanto, os dados mostram que nações que adotam
padrões comuns de aprendizagem geralmente tendem a apresentar um
desempenho nem melhor nem pior em testes internacionais do que as
que não os adotam. Para o autor, a presença ou ausência de standards
nacionais não diz nada a respeito de equidade e qualidade ou de provi‑
são de recursos educacionais.
A proposta de uma BNCC termina sendo uma medida inó‑
cua, pois a experiência tem mostrado que os professores, com raras
exceções, não consultam os documentos oficiais para preparar suas au‑
las. Outras medidas são necessárias para elevar o padrão de qualidade da
educação brasileira, que incluem desde a melhoria dos prédios e equi‑
pamentos escolares até a melhoria da carreira, do salário e da formação
dos professores. Docentes bem qualificados são indispensáveis para a
democratização da educação, contribuindo para que as crianças e jovens
das camadas populares possam ter uma trajetória escolar mais longa e
sem grandes percalços.

288 Cad. Cedes, Campinas, v. 36, n. 100, p. 281-300, set.-dez., 2016


Lucíola Licínio de Castro Paixão Santos e Júlio Emílio Diniz‑Pereira

AS TENTATIVAS DE PADRONIZAÇÃO DOS


CURRÍCULOS DOS CURSOS DE FORMAÇÃO DOCENTE

No que diz respeito à formação de professores da educação


básica no Brasil, as tentativas de padronização dos currículos dos cur‑
sos voltados à preparação de novos docentes (as licenciaturas) foram
mais fortes e mais evidentes antes de 1996, ano em que se aprovou a
LDBEN. Após a redemocratização do país, em meados dos anos 1980,
o maior desafio dos governos eleitos a partir de então tem sido assumir
mais explicitamente o modelo de formação docente que se pretende
adotar no país.
Como sabemos, os cursos de formação de professores (as li‑
cenciaturas) foram criados, no Brasil, nas antigas faculdades de filosofia,
nos anos 1930, principalmente, como consequência da preocupação
com a regulamentação do preparo de docentes para o ensino secundá‑
rio7. Além de um modelo de formação de professores que se mostrou,
desde o início, inadequado, em razão das licenciaturas serem tratadas
como meros apêndices dos bacharelados, os cursos de formação de pro‑
fessores das faculdades de filosofia eram bastante elitizados, o número
de formados era muito pequeno e, por via de consequência, tais cursos
não respondiam quantitativamente à demanda de preparação de novos
docentes para o país.
Para atender a essa demanda de certificação de um número
maior de novos professores, criaram‑se, na década de 1960, os pri‑
meiros cursos superiores de “curta duração” com o objetivo de formar
professores para o “ginásio” e o ensino secundário (CANDAU, 1987).
Ao assumir a ideia de formação do “professor polivalente”, o MEC
apresentou, na década de 1970, um conjunto de indicações e parece‑
res — a chamada “Proposta Valnir Chagas” — visando à criação das
licenciaturas de primeiro grau de curta duração, conhecidas como “li‑
cenciaturas curtas”8.
É importante ressaltar que o chamado currículo mínimo, por
meio do qual se determinavam até mesmo os nomes de disciplinas obri‑
gatórias e suas respectivas cargas horárias, foi o mecanismo utilizado na
época para padronizar não apenas os currículos dos cursos de formação

Cad. Cedes, Campinas, v. 36, n. 100, p. 281-300, set.-dez., 2016 289


Padronização de currículos no Brasil

de professores (as licenciaturas), mas de todos os demais cursos de gra‑


duação do país9.
Fica clara, então, a intenção dos governos do regime militar
em solucionar o problema da demanda crescente de novos professo‑
res para o país — e a “solução” encontrada, como vimos, foi aligeirar
a formação docente por meio da diminuição das cargas horárias dos
cursos, ou seja, da criação das “licenciaturas curtas e polivalentes”.
Além disso, os governos da época exerceram forte controle sobre
os cursos superiores em geral e de formação de professores em par‑
ticular, pois esses deveriam se organizar por meio dos chamados
currículos mínimos.
As mudanças na estrutura jurídico‑legal da educação brasi‑
leira a partir de 1996 exigiram um projeto pedagógico para a formação
e profissionalização de professores, em consonância com as modifi‑
cações pretendidas na educação básica. À medida que a reforma na
educação básica se consolidava, percebia‑se que a tarefa de coordenar
processos de desenvolvimento e aprendizagem era extremamente com‑
plexa e exigia, já a partir da própria educação infantil, profissionais
com formação superior.
Nesse sentido, para uma coerência com as mudanças pretendi‑
das na educação brasileira e com as incumbências que foram atribuídas
aos docentes pela LDBEN (artigo 13), tornou‑se necessário pensar a
formação de um profissional que compreendesse os processos humanos
mais globais, seja ele um professor da educação infantil, dos primeiros ou
dos últimos anos da escola básica.
Para traduzir esse princípio geral em propostas curricula‑
res para os programas de formação de professores no país, a própria
LDBEN de 1996 estabeleceu que os cursos de graduação no país — e
não apenas as licenciaturas — deveriam se organizar a partir de diretri‑
zes curriculares nacionais.
Segundo interpretação dos Conselheiros do CNE, expressa
no Parecer da Câmara de Educação Superior (CES) nº 776/97, o espí‑
rito da LDBEN de 1996 estava voltado para uma maior flexibilidade
na organização dos cursos na educação em geral e no ensino superior
em particular. Dessa maneira, os currículos mínimos e sua excessiva

290 Cad. Cedes, Campinas, v. 36, n. 100, p. 281-300, set.-dez., 2016


Lucíola Licínio de Castro Paixão Santos e Júlio Emílio Diniz‑Pereira

rigidez foram considerados extemporâneos, algo que atrapalharia as


instituições na busca de inovações e de diversificações em suas propos‑
tas curriculares.
Em 3 de dezembro de 1997, a Secretaria de Educação Su‑
perior do Ministério da Educação (SESu/MEC) publicou o Edital
SESu nº 4, convidando as diferentes organizações, entidades e insti‑
tuições a enviarem propostas de diretrizes curriculares para os cursos
de graduação superior. Para análise e sistematização dessas propostas,
a SESu/MEC compôs uma comissão de especialistas por curso de
graduação, com base em indicação de nomes pelas instituições. Toda‑
via, não se criou uma comissão que se responsabilizasse por diretrizes
curriculares comuns a todas as licenciaturas. Por via de consequência,
as versões finais dos documentos dos cursos que, além do bacharelado
têm a licenciatura, contemplaram distintas concepções sobre a forma‑
ção de professores.
Apesar de muito tardio e de seguir um trajeto diferente daque‑
le realizado pelas comissões de especialistas, o processo de construção
das diretrizes dos cursos de formação de professores foi concluído com
a aprovação da Resolução CNE/CP nº 1, de 18 de fevereiro de 2002,
que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formação de
Professores da Educação Básica, em nível superior, curso de licenciatura,
de graduação plena.
A Resolução CNE/CP nº 01/02 definiu no artigo 7º inciso I que:

A organização institucional da formação dos


professores, a serviço do desenvolvimento de com‑
petências10, levará em conta que a formação deverá
ser realizada em processo autônomo, em curso de licen‑
ciatura plena, numa estrutura com identidade própria.
[grifo nosso]

Tal definição pode ser compreendida como uma resposta dos


legisladores ao fato de, historicamente, no Brasil, os cursos de licenciatu‑
ra funcionarem como apêndices dos cursos de bacharelado.

Cad. Cedes, Campinas, v. 36, n. 100, p. 281-300, set.-dez., 2016 291


Padronização de currículos no Brasil

O Parecer CNE/CP nº 009/2001 preconizou essa decisão


quando afirmou que:

[...] a Licenciatura ganhou, como determina a nova


legislação, terminalidade e integralidade própria
em relação ao Bacharelado, constituindo‑se em um
projeto específico. Isso exige a definição de currículos
próprios da Licenciatura que não se confundam com
o Bacharelado ou com a antiga formação de profes‑
sores que ficou caracterizada como modelo ‘3+1’.
[grifo nosso]

Para tal, o Conselho Pleno do CNE posicionou‑se claramen‑


te a favor da separação entre os cursos de licenciatura e de bacharelado
desde a entrada dos alunos na universidade. Mesmo que os dois cursos ti‑
vessem momentos em comum — por exemplo, várias disciplinas básicas
ou de “conteúdo específico” poderiam ser ministradas indiscriminada‑
mente para licenciandos e bacharelandos —, não poderia haver ali (no
caso, na licenciatura) dúvidas sobre qual profissional se pretendia formar.
A instituição e os educadores (formadores de professores) deveriam ter
clareza suficiente sobre o perfil de egresso que se deseja em um curso
de licenciatura. Porém, essa separação entre licenciatura e bacharelado,
desde a entrada na universidade, ainda hoje, não é um tema consensual
no debate acadêmico11.
Com a aprovação da Lei nº 9.394/96 e, posteriormente,
a entrada em vigor da Resolução CNE/CP nº 1, de 18 de feverei‑
ro de 2002, e da Resolução CNE/CP nº 2, de 19 de fevereiro de
2002, observa‑se também um aumento significativo da carga horária
teórico‑prática nos cursos de formação de professores12. Passou‑se a
discutir intensamente o que pretendia dizer o dispositivo legal do
artigo 65 da LDBEN — a obrigatoriedade das 300 horas de “prática
de ensino”.
Em primeiro lugar, adotou‑se a expressão “prática como com‑
ponente curricular” com a intenção de se esclarecer a diferença, na lei,
entre “prática de ensino” e “estágio curricular supervisionado”, além de
reforçar o princípio da articulação teoria e prática na formação de profes‑

292 Cad. Cedes, Campinas, v. 36, n. 100, p. 281-300, set.-dez., 2016


Lucíola Licínio de Castro Paixão Santos e Júlio Emílio Diniz‑Pereira

sores. Algo parecia claro na cabeça dos legisladores até aquele momento:
uma coisa era a “prática como componente curricular” e outra coisa era a
“prática de ensino” e o “estágio supervisionado”.
Pode‑se afirmar que, infelizmente, as universidades brasileiras,
de um modo geral, não souberam aproveitar o contexto bastante favorá‑
vel, do ponto de vista da legislação educacional da época, para a adoção
de medidas que significassem uma mudança verdadeiramente paradig‑
mática nos cursos de formação de professores no país13.
Pouco tempo após as universidades concluírem as reformas
curriculares dos cursos de licenciatura baseadas nas diretrizes curricula‑
res de 2002 — por exemplo, na Universidade Federal de Minas Gerais,
alguns cursos concluíram suas reformas apenas no ano de 2009 —,
definiram‑se novas diretrizes curriculares nacionais para os cursos de
formação de professores no país, por meio da aprovação da Resolução
CNE/CP nº 2, de 1º de julho de 2015.
Em linhas gerais, no que diz respeito aos cursos de licenciatura
plena, a resolução atual conserva o essencial das diretrizes curriculares
anteriores. Porém, ela aumenta a carga horária desses cursos de, no mí‑
nimo, 2.800 horas para, no mínimo, 3.200 horas14. Além disso, em
meio a polêmicas no campo, ela regulamenta algumas vias alternati‑
vas de formação de professores no país como, por exemplo, os cursos
de formação pedagógica para graduados não licenciados e os chamados
“cursos de segunda licenciatura”. A resolução de 2015 apresenta ainda,
em um único documento, as diretrizes para a formação inicial e para
a formação continuada de professores com a intenção de articular es‑
ses dois momentos do desenvolvimento profissional dos docentes da
educação básica. Outra novidade dessa resolução foi a existência de um
capítulo específico sobre a “valorização dos profissionais do magistério”
entendida como “uma dimensão constitutiva e constituinte de sua for‑
mação inicial e continuada”.
Diferente do currículo mínimo, mecanismo que define até
mesmo nomes e cargas horárias de disciplinas obrigatórias dos cursos
de graduação e, entre esses, dos cursos de formação de professores, as
diretrizes curriculares orientam, em linhas gerais, a reforma desses cur‑
sos. O currículo mínimo, ao enrijecer bastante a estrutura dos cursos,

Cad. Cedes, Campinas, v. 36, n. 100, p. 281-300, set.-dez., 2016 293


Padronização de currículos no Brasil

mostrou‑se muito mais eficiente em termos de sua padronização. As di‑


retrizes curriculares, ao intencionalmente possibilitarem a diversificação
e a inovação de propostas curriculares, não servem como mecanismo de
padronização dos currículos.
Em relação à reforma curricular dos cursos de graduação no
Brasil, e, mais especificamente, dos cursos de formação de professores,
como vimos, a opção, a partir da aprovação da LDBEN de 1996, foi
claramente pela diversificação dos currículos. Fortes instrumentos de
padronização, comuns durante o regime militar, como por exemplo o
currículo mínimo, foram substituídos por diretrizes após o processo de
redemocratização do país. As atuais tendências de se assegurar a coerência
entre as diretrizes curriculares nacionais para a formação de professores e
a BNCC podem representar a volta da opção pela adoção de mecanismos
que garantam a padronização das propostas curriculares dos cursos de
formação docente15.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como vimos neste artigo, há grandes diferenças entre o


processo de padronização dos currículos da educação básica e dos
currículos dos cursos de formação docente. Embora haja rumores em
relação à definição de uma base nacional comum curricular também
para os cursos de preparação para o magistério, o que está sendo
realmente discutida é a necessidade de se adequarem esses cursos às
propostas da BNCC. De qualquer maneira, sabe‑se que o crescente
processo de avaliação do desempenho docente, centrado no resul‑
tados dos testes aplicados aos estudantes, e a produção de material
didático de acordo com a BNCC já constituem processos que levam
à padronização do ensino. Nesse cenário, termina sendo secunda‑
rizada a questão da padronização da formação docente, uma vez
que o professor, no exercício de suas atividades, é colocado em um
universo regido por diferentes formas de controle que, inexoravel‑
mente, levam a padronizações do seu trabalho, ou melhor, daqueles
docentes e daquelas escolas que orientam seu trabalho em função das
avaliações sistêmicas.

294 Cad. Cedes, Campinas, v. 36, n. 100, p. 281-300, set.-dez., 2016


Lucíola Licínio de Castro Paixão Santos e Júlio Emílio Diniz‑Pereira

Se realmente o que se busca é a melhoria da qualidade de


ensino, as políticas públicas deveriam se voltar inicialmente para a
redução das assimetrias sociais, enquanto as políticas educacionais pre‑
cisariam considerar que um ensino de qualidade só se faz em condições
materiais adequadas e com um professorado preparado para enfrentar
os desafios da educação. Padronizar o currículo é reduzir as oportuni‑
dades educacionais dos estudantes e a autonomia docente. Padronizar
o currículo é negar o direito à diferença e desrespeitar as diversidades
culturais. Padronizar o currículo é buscar um caminho fácil para um
processo complexo e que não se resolve com medidas simplistas. Pa‑
dronizar o currículo é uma solução barata para substituir a soma de
investimentos que a educação necessita. Padronizar o currículo é, pois,
mais uma solução inócua para os graves problemas que desafiam o cam‑
po educacional.

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296 Cad. Cedes, Campinas, v. 36, n. 100, p. 281-300, set.-dez., 2016


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em: 16 de julho de 2010.

NOTAS

1. Este artigo se refere apenas às diretrizes curriculares para as etapas da educação básica
do ensino regular.
2. Tomou‑se como referência, especialmente, o caso inglês, cuja tradição de descentral‑
ização do sistema educacional fora radicalmente transformada pelas reformas educa‑
cionais implantadas por Margaret Thatcher, no contexto de uma política conservado‑
ra de orientação neoliberal.
3. Segundo Galian (2014), a pesquisa incidiu sobre 60 propostas elaboradas pelas secre‑
tarias de educação, em nível estadual e em nível municipal, entre o final da década de
1990 e a primeira década dos anos 2000.
4. As discussões no campo do currículo avançaram e, hoje, se têm no campo duas posições
mais nítidas. A primeira delas inclui os estudiosos que orientam seus trabalhos a partir
das teorias críticas e a segunda abarca aqueles cujos referenciais teóricos são tributários

298 Cad. Cedes, Campinas, v. 36, n. 100, p. 281-300, set.-dez., 2016


Lucíola Licínio de Castro Paixão Santos e Júlio Emílio Diniz‑Pereira

das chamadas teorias pós‑críticas ou pós‑estruturalistas (LOPES e MACEDO, 2014).


Apesar de existirem diferenças bem nítidas entre esses dois campos, segundo as autoras
citadas, uma das características do campo do currículo no Brasil é o hibridismo, ou
seja, a mescla de posições entre o discurso crítico e o pós‑crítico.
5. Tal posição está bem expressa no documento da Associação Nacional de Pós‑grad‑
uação e Pesquisa em Educação (ANPEd) que, por meio do Grupo de Trabalho GT
12: Currículo, e com o apoio da Associação Brasileira de Currículo (ABdC), mani‑
festa‑se contrariamente ao documento orientador de políticas para a educação básica
apresentado pela Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (SEB/
MEC) à consulta pública.
6. Mathis (2010) aponta que, nos Estados Unidos, foram dados 2,5 bilhões de dólares
para que os estados alinhassem seus currículos aos standards nacionais e 400 milhões
para adequar as avaliações aos novos standards.
7. Como se sabe, a formação de professores para o ensino primário existe no Brasil desde o
Império, com a criação das primeiras escolas normais no país a partir do ano de 1835.
8. Para Candau (1987, p. 25), havia uma diferença básica entre essas duas propostas:
“Enquanto que nos anos 60 ela tinha um caráter emergencial e, portanto, transitório,
nos anos 70, ela surge como um processo regular de formação de professores e ganha
inclusive uma justificativa pedagógica: a de formar o professor polivalente”.
9. A Lei nº 5.540/68, no artigo 26, definiu que “o Conselho Federal de Educação fix‑
ará o currículo mínimo e a duração mínima dos cursos superiores correspondentes
a profissões reguladas em lei e de outros necessários ao desenvolvimento nacional”
(BRASIL, 1968).
10. Um ponto de grande tensão nos debates sobre a recente legislação educacional brasileira
foi a respeito da utilização do “modelo de competências” ou “pedagogia das competên‑
cias” na formação de professores. Vários autores (por exemplo, DIAS e LOPES, 2003;
FREITAS, 2002; MAUÉS, 2003) teceram severas críticas à ideia da centralidade do
currículo por competências na preparação dos profissionais da educação.
11. Maria Helena Galvão Frem Dias da Silva, por exemplo, defendeu a proposta de in‑
gresso único para o bacharelado e a licenciatura. Segundo a autora, como o futuro
docente necessita dominar tanto o conteúdo específico da área do curso quanto o
conteúdo de pedagogia, não faz sentido separar a entrada dos alunos. Além disso, de
acordo com seus argumentos, os estudantes entram nas universidades ainda muito
jovens, com cerca de 19 anos, e, por esse motivo, sem muita condição para fazer uma
escolha consciente sobre qual habilitação seguir (DIAS‑DA‑SILVA et al., 2008).
12. Alguns autores (por exemplo, DIAS‑DA‑SILVA, 2005; MAUÉS, 2003) criticaram
o aumento da carga horária “prática” e a imposição das 1.000 horas de “atividades
práticas” — prática como componente curricular (400 horas), estágio supervisionado
(400 horas) e atividades científico‑culturais (200 horas) — nos currículos dos cursos
de formação de professores.

Cad. Cedes, Campinas, v. 36, n. 100, p. 281-300, set.-dez., 2016 299


Padronização de currículos no Brasil

13. Algumas publicações sobre as reformulações nos cursos de licenciatura em universi‑


dades brasileiras parecem confirmar essa tese. Elizabeth Krahe, por exemplo, afirma
que a tendência da reforma das licenciaturas na Universidade Federal do Rio Grande
do Sul (UFRGS) foi apenas acomodar os cursos às propostas curriculares legais, sem
necessariamente reformular a fundo o sistema de formação de professores nessa uni‑
versidade (KRAHE, 2004). Para Diniz‑Pereira e Viana, na Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG), os colegiados de cursos tiveram grande autonomia para de‑
cidirem suas reformulações curriculares e isso fez com que essa reforma acontecesse
sem um “norte” ou um direcionamento maior por parte da administração central
da UFMG (DINIZ‑PEREIRA e VIANA, 2008). Na Universidade Federal de Santa
Maria (UFSM), Eduardo Terrazan chegou a uma conclusão semelhante quanto às
licenciaturas em Física, Química e Ciências Biológicas da UFSM. Para ele, não houve
um padrão quanto às formas de organização dos componentes curriculares, ainda que
esses cursos pertencessem à mesma universidade (TERRAZZAN et al., 2008).
14. É importante lembrar que a Pedagogia, por meio da Resolução CNE/CP nº 1, de 15
de maio de 2006, que institui as diretrizes curriculares nacionais para esses cursos, pas‑
sa a ser tratada como uma licenciatura e aumenta a sua carga horária para, no mínimo,
3.200 horas.
15. A Professora Helena de Freitas afirma, por meio do seu blog, que o MEC havia ini‑
ciado um “processo de reforma curricular dos cursos de formação de professores, com
vistas à adequá‑los à BNCC”. Segundo ela, essa seria uma maneira de “recuperar a
proposta de currículo mínimo, ultrapassada na década de 90”. Disponível em: https://
formacaoprofessor.com

Recebido em 17 de agosto de 2016.


Aprovado em 4 de novembro de 2016.

300 Cad. Cedes, Campinas, v. 36, n. 100, p. 281-300, set.-dez., 2016


RESENHAS

A escola, nós e os outros: diferença


e alteridade na realidade escolar*

Amurabi Oliveira**

O livro Marcas da Diferença no Ensino Escolar é uma


coletânea organizada por Richard Miskolci, fruto do material
produzido para o curso de Gênero e Diversidade na Escola (GDE),
oferecido na modalidade à distância pela Universidade Federal de
São Carlos. Essa obra busca falar diretamente aos educadores e
toda a linguagem utilizada é voltada para os docentes que atuam
em sala de aula. Contudo, mostra-se também relevante para
pesquisadores e professores em formação.
A coletânea está organizada em cinco capítulos,
subdivididos em partes iniciadas com a delimitação do Objetivo de
Aprendizagem, e com a Visão Geral do Capítulo. Ao final,
possuem um resumo e outras referências na forma de Estudos
Complementares, o que reforça seu formato de material
especialmente desenvolvido para educadores.
No capítulo Cultura e a Escola, de Elizabeth Macedo, busca-
se chamar a atenção para o fato de que a cultura não é algo uno,
pelo contrário, é plural, contraditória. Como salienta a autora:

O destaque da diversidade cultural tem imposto a


necessidade de criação de respostas multiculturais. Muitos
projetos multiculturais têm buscado domesticar a
diversidade de modo a garantir a governabilidade sob os
mesmos moldes anteriores. Outros buscam formas legítimas
de lidar com a diversidade sem cair na intolerância, um

*
Resenha de MISKOLCI, Richard. (org.) Marcas da Diferença no Ensino Escolar.
São Carlos: EdUFSCar, 2010. Recebida para publicação em 9 de fevereiro de
2012, aceita em 5 de dezembro de 2012.
**
Professor de Antropologia da Educação do Centro de Educação da
Universidade Federal de Alagoas (UFAL). amurabi_cs@hotmail.com.

cadernos pagu (40), janeiro-junho de 2013:359-368.


A escola, nós e os outros: diferença e alteridade na realidade escolar

perigo sempre à espreita. Outros, infelizmente, preferem as


cruzadas com vistas a aniquilar o outro. A questão é que
tem sido difícil criar formas de convivência entre as culturas
que se contraponham à exclusão sem cair em posturas
universalizantes (p.19).

Tais questões mostram-se interessantes para abrir o debate,


uma vez que nos fazem pensar acerca das diversas respostas
dadas a questão da diversidade cultural. A autora nos chama a
atenção, em linhas gerais, para o questionamento em torno da
representação da escola enquanto espaço culturalmente neutro,
apontando que muitas das estratégias nele adotadas conseguem
lidar com a diversidade, mas não com a diferença. Ao remeter à
prática escolar docente, Macedo destaca a necessidade de
desconstruirmos os conteúdos escolares, colocando-os sempre sob
a ótica da dúvida. Dá relevo ainda à necessidade de
desconstruirmos nós mesmos, enquanto sujeitos.
No segundo capítulo, intitulado Gênero, Iara Beleli propõe
sua discussão teórica articulada com imagens veiculadas pela
mídia, nas quais os conceitos apresentados apontariam para a
formulação de identidades, delimitadas pelas marcas corporais.
A autora inicia esse capítulo apontando para o não inatismo
das questões de gênero, ou seja, busca desnaturalizar as
características atribuídas aos indivíduos com base no sexo,
apontando para o fato de que elas se apresentam enquanto
construção social e cultural. Beleli destaca que, desde à infância,
os sujeitos são direcionados para um enquadramento com base
nas características corpóreas. “Esses corpos são vigiados pela
sociedade (família, escola, mídia), de forma a não apresentar
ambiguidades e se ajustar a comportamentos percebidos como
‘normais’” (p.61). Para a autora, as discussões travadas em torno
da questão de gênero no universo escolar podem ultrapassar esse
espaço, possibilitando a reatualização de concepções que
naturalizam comportamentos, atitudes e gestos.

360
Amurabi Oliveira

Na última parte do capítulo, busca-se realizar uma discussão


em articulação com o que é veiculado na mídia, em especial em
termos imagéticos. A autora mostra uma imagem veiculada pela
publicidade de uma companhia de seguros, de 1995, em que há
dois bebês, sendo uma menina e um menino. Nessa imagem,
ambos estão desnudos, porém, possuem enquadramentos
diversos e atribuições socialmente estabelecidas com base
unicamente no sexo. Tais imagens, segundo a argumentação da
autora, naturalizam e reafirmam características construídas
socialmente como sendo inatas, situando o homem e a mulher em
polos estáticos, ativo/passivo, público/privado, algo que já
apontara Bourdieu em A Dominação Masculina (2010).
O argumento central nessa última parte do capítulo 2 é que
muitas imagens veiculadas na mídia reforçam concepções que
associam atributos de masculinidade e feminilidade ao sexo,
negando/ocultando outras possibilidades, qualquer marca corporal e
condutas que gerem ambiguidades e fujam dos padrões
hegemônicos. Para a autora, as imagens discutidas servem para os
educadores questionarem as concepções essencializantes, que
apontam para como devem ser as relações entre meninos e meninas.
No capítulo 3, Sexualidade e Orientação Sexual, Richard
Miskolci discute questões que visam fornecer elementos para a
discussão de convenções “de maneira a promover o respeito às
diferenças nessa esfera tão importante de nossas vidas” (p.75).
Busca-se tanto demonstrar como em nossa sociedade ainda são
impostas barreiras à expressão de identidades, como também,
mostrar que o espaço escolar pode ser um locus relevante para o
desenvolvimento de uma visão mais aberta, democrática e
respeitosa de como lidar com as diferenças que tangem à vida
sexual e afetiva. Para tanto, o texto parte de uma premissa
provocativa “O direito à educação e o compromisso de formar
cidadãs e cidadãos não será plenamente alcançado sem o
reconhecimento das diferentes formas como as pessoas vivem
suas relações afetivo-sexuais e suas identidades de gênero” (p.76).

361
A escola, nós e os outros: diferença e alteridade na realidade escolar

Sendo assim, o reconhecimento em torno das relações


afetivo-sexuais apresenta-se como condição sine qua non para o
desenvolvimento educacional no seu sentido amplo. Na primeira
parte do capítulo, novamente a neutralidade da escola é posta em
xeque, com a indagação “A escola é sexualmente neutra?”. Talvez
possamos afirmar que o mote principal dessa coletânea seja a
problematização em torno da suposta neutralidade da instituição
escolar, em suas diversas esferas, com destaque para a cultural,
sexual, étnica e de gênero.
Miskolci nos chama a atenção para o fato de que o
silenciamento da escola, por vezes, produz efeitos sobre a
realidade dos sujeitos que participam da dinâmica escolar.
Segundo o autor:

Silenciar sobre aqueles que se interessam por colegas do


mesmo sexo é uma forma de tratá-los como não sujeitos,
desmerecê-los porque não correspondem aos atributos
desejados socialmente e, sobretudo, relegá-los ao reino
daqueles que não podem nem existir, já que não podem ser
nomeados. Fora da sala de aula, eles serão insultados, uma
forma de declará-los inferiores e abjetos, pois o ato de
xingar não os denomina apenas, antes os classifica como
inferiores e indesejados (p.81).

Para o autor, a instituição que, em tese, deveria educar,


ensina aos que são marcados como estranhos a silenciar sobre si
mesmos. Para Miskolci, a quebra do silêncio sobre a sexualidade e
suas modalidades é o primeiro passo que a escola – e os
educadores de forma mais específica – pode tomar para alterar
esse cenário.
Na segunda parte, o autor realiza uma breve digressão em
torno da história da sexualidade, apoiando-se em autores como
Foucault e Halperin, apontando para o fato de que o que é tido
como normal e natural, em termos de sexualidade, remete, em
verdade, a uma construção histórico-social, que varia de acordo
com os interesses sociais e políticos.

362
Amurabi Oliveira

Na última parte, há um destaque para como as


“sexualidades alternativas” se apresentam na escola. Segundo o
autor

Ignorar a existência do interesse por pessoas do mesmo


sexo é uma das formas que a escola utiliza para construir
identidades de gênero tradicionais, mas vale sublinhar que
essa ignorância é intencional e ativa (p.100).

Aponta-se a escola como espaço privilegiado para a produção de


silenciamentos que se baseiam na naturalização das construções
histórico-sociais e, devido a tanto, também é o espaço escolar um
local privilegiado para o questionamento de tal naturalização.
Louro (2001), seguindo essa mesma perspectiva teórica, ao
analisar o currículo escolar, aponta a necessidade de
demonstrarmos que não apenas as “sexualidades alternativas” são
uma construção histórico-social, mas todas as sexualidades e
identidades.
O capítulo 4, Relações Étnico-Raciais, é organizado por
Valter Roberto Silvério e escrito com a colaboração de Karina
Almeida de Sousa, Paulo Alberto Santos Vieira, Tatiane Cosentino
Rodrigues e Thaís Santos Moya.Mais uma vez é indagada a
neutralidade da escola, dessa vez, enquanto instituição
racialmente neutra. De acordo com os autores

O padrão socialmente construído enquanto “normal” se


fundamenta em uma tríade de características socialmente
esperadas no que toca ao gênero, à sexualidade e à raça,
os quais apontam como padrão almejado e respeitado, o
homem masculino, branco e heterossexual (p.116).

Os autores também trazem os argumentos desenvolvidos


por Bourdieu e Passeron em A Reprodução (2008), em que é
apontado que a escola, dentro do seu atual modelo, ao invés de
diminuir as desigualdades sociais, as aprofundam. Apresentam
ainda outras pesquisas, como as desenvolvidas pelo Instituto

363
A escola, nós e os outros: diferença e alteridade na realidade escolar

Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira


(INEP) que são focadas nas questões racial e de gênero:

[...] corroboram com o acervo de denúncias desses


movimentos sociais que apontam a escola como instituição
que discrimina principalmente os(as) alunos(as) negros (as) e
perpetua o racismo, veiculando valores preconceituosos nos
livros didáticos e na abordagem errônea e omissa da história
oficial por não contemplar a luta e resistência negra (p.124).

A partir daí é feito um esforço que busca dimensionar a


relevância de se pensar as questões étnico raciais no âmbito
escolar, apontando tanto para como a escola reflete um processo
de exclusão mais amplo, e também como o reforça e o aprofunda.
Na segunda parte desse capítulo, são destacados os
processos de reconhecimento, o que se inicia com uma análise do
chamado “racismo científico”, que ganhou vulto na passagem do
século XIX para o XX, em especial com o neocolonialismo. Os
autores realizam ainda uma problematização tanto das teorias que
apregoavam o progressivo embranquecimento da população
brasileira, quanto daquelas que se assentavam no chamado “mito
da democracia racial”; este último, questionado por enésimas
pesquisas, com destaque para as realizadas por Florestan
Fernandes e Roger Bastide, que apontavam para desvantagens
nítidas para a população negra em relação à branca no Brasil.
Este debate intelectual em torno da dinâmica racial no Brasil
é apontado como encerrado pelo golpe militar de 1964, que passa
a adotar uma ideologia oficial, que apontara para uma narrativa
onírica em torno das relações raciais no Brasil, apresentando o
país como uma nação não racista. Com o processo de
redemocratização, o debate foi reacendido, culminando com a
implementação das ações afirmativas em diversas universidades
públicas brasileiras, e com as modificações na Lei de Diretrizes e
Bases da Educação – LDB, incluindo a obrigatoriedade do ensino
de história e culturas afro-brasileira e africana nas redes de ensino

364
Amurabi Oliveira

oficial e particular e o Estatuto da Igualdade Racial. Para os


autores, o entendimento da temática racial no Brasil
complexificou-se, o que se atrela, também (se não
principalmente), ao próprio Movimento Negro, que se tornou um
dos principais atores políticos da contemporaneidade na
sociedade brasileira.
Na terceira parte, os autores chamam a atenção para o esforço
teórico e empírico de desconstrução da escola enquanto entidade
apartada do restante da sociedade, alardeando o fato de que:

Essa imagem imaculada do ambiente escolar, além de ser


mentirosa, é perigosa, pois permite a perpetuação dos
dispositivos que discriminam simbólica e materialmente as
pessoas. Também é improdutiva porque cerceia o potencial
transformador e inventivo da educação (p.145).

Este destaque dá relevo ao papel não só da escola,


enquanto instituição, como também de seus docentes, é
caracterizado, devido à profissão, pela função de reproduzir os
conhecimentos estabelecidos. A intenção aqui não é cair em um
discurso culpabilizador acerca dos docentes, o que parece ser uma
operação delicada, uma vez que, um dos pontos de fragilidade da
obra encontra-se na sua construção teórica que deixa num
segundo plano, os contextos nos quais os professores da educação
básica se encontram tanto no que diz respeito ao processo de
formação no Brasil, quanto às condições de trabalho. Contudo, os
autores acertam em cheio ao apontar para a necessidade de
reformulação dos currículos e das metodologias pela escola.
O último capítulo, Curso Gênero e Diversidade na Escola: A
experiência da Universidade Federal de São Carlos, foi elaborado
por Fernando de Figueiredo Balieiro, Priscila Martins Medeiros,
Thaís Fernanda Leite Madeira e Tiago Duque. Busca situar o leitor
dentro das atividades desenvolvidas pelo curso oferecido pela
UFSCar, com uma apresentação panorâmica dos módulos
ministrados e um anexo, no qual constam cinco projetos

365
A escola, nós e os outros: diferença e alteridade na realidade escolar

elaborados por cursistas, que seriam desenvolvidos para a


aplicação no cotidiano escolar.
Nos módulos iniciais, Diversidade e gênero, demonstra-se
que o objetivo era convidar os docentes a pensar o gênero de uma
forma relacional e historicizada. Da mesma forma, no módulo
Sexualidade e Orientação Sexual, segundo os autores, buscou-se
problematizar a questão, analisando o estabelecimento de uma
relação direta entre gênero e orientação sexual, o que se
apresentou como algo presente entre os cursistas, sendo este
módulo o que tratou de um tema relatado como delicado, mas
também de grande interesse por parte daqueles que fizeram parte
do curso. Por fim, o módulo de Relações Étnico-Raciais buscou
seguir a articulação presente, discutindo, de forma crítica, o
racismo na sociedade brasileira, o que foi recebido com certa
resistência, segundo os autores, uma vez que muitos cursistas
sustentaram a opinião de que no país não haveria racismo, mas
sim preconceito referente à renda. Também segundo os autores,
ainda que não fosse o foco do curso, a questão das ações
afirmativas apareceram de forma contundente no decorrer das
discussões, apresentando um efeito positivo, inclusive com uma
mudança de percepção por parte de alguns docentes que
participaram do curso. O anexo desse capítulo mostra-se como
um rico material, principalmente para professores que atuam na
educação básica. Trata-se de um material desenvolvido pelos
próprios cursistas, atuantes na educação básica, com uma
descrição detalhada dos objetivos, da atividade como um todo,
das finalidades a serem atendidas.
Percebemos, ao longo desta coletânea, que a aproximação
entre as ciências sociais e a educação, apesar de permanecer
ainda tímida, como já apontara autores como Gouveia (1989),
Weber (2003), Gusmão (1997), mostra-se frutífera, na medida em
que as discussões e problematizações trazidas por essas ciências
nos levam a questionamentos instigantes acerca do universo
educacional de forma ampla, e escolar de forma mais estrita.

366
Amurabi Oliveira

A coletânea possui como diferencial que mais chama a


atenção, a própria estruturação dos capítulos, que demonstra a
preocupação para com o seu público alvo – os docentes que
atuam na educação básica –, sem perder de vista a qualidade
teórica das discussões suscitadas, de modo a servirem também
como referencial para pesquisadores da área e professores em
formação, com já frisamos. Também se mostra como um
diferencial, a própria aproximação com as discussões referentes à
educação básica, pois, como demonstram Weber e Martins (2010),
a maior parte das pesquisas desenvolvidas pela sociologia da
educação brasileira centra-se, principalmente, nas discussões que
remetem ao ensino superior, olvidando as questões que tangem à
educação básica.
Todavia, é válido destacar que há fragilidades na obra,
principalmente por haver, nas entrelinhas, uma série de
expectativas, em termos de mudanças atitudinais por parte dos
docentes. Contudo, nos trabalhos nela compilados não parecem
ser considerados os elementos contingenciais da prática docente,
que remetem, principalmente, às condições de trabalho e ao
processo de formação.
Também ficam num segundo plano as sutilezas da
complexidade do universo escolar, como o que diz respeito às
modalidades de ensino, às séries e às próprias variações regionais,
seja quando consideramos as realidades diversas entre os professores
do espaço urbano e do espaço rural, seja quando pensamos a
pluralidade regional em termos de Brasil. Claro que essa obra é fruto
de um curso específico, com um público específico, etc. Porém, essa
é a sua gênese apenas. Na medida em que esse material é
transformado em um livro, passa a dialogar com realidades diversas e
mais amplas, necessitando também considerá-las.
Porém, essas críticas, que visam apontar possíveis fissuras a
serem suprimidas em desdobramentos posteriores dessa discussão,
não ofuscam em nada essa bela coletânea, que se apresenta como
um trabalho bem elaborado, sério e, principalmente, necessário
para pensarmos as questões que tocam o cotidiano docente.

367
A escola, nós e os outros: diferença e alteridade na realidade escolar

Referências bibliográficas

BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Rio de Janeiro, Bertrand


Brasil, 2010.
__________; PESSERON, Jean-Claude. A Reprodução: elementos para
uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis-RJ, Vozes, 2008.
GOUVEIA, Aparecida. As ciências sociais e a pesquisa sobre educação.
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diálogo. Cadernos CEDES, vol.18, nº 43, dez 1997, pp.8-25.
LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer: uma política pós-identitária para a
educação. Revista Estudos Feministas, vol.9, nº 2, Florianópolis-SC,
2001, pp.541-553.
MISKOLCI, Richard. Marcas da Diferença no Ensino Escolar. São Carlos,
EdUFSCar, 2010.
WEBER, Silke. Profissionalização docente e políticas públicas no Brasil. Educação
e Sociedade, vol. 24, nº 85, Campinas-SP, 2003, pp.1125-1154.
__________; MARTINS, Carlos Benedito. Sociologia da Educação:
democracia e cidadania. In: MARTINS, Carlos Benedito; MARTINS,
Heloisa Helena T. de Souza. (orgs.). Horizontes das Ciências Sociais
no Brasil: Sociologia, vol. 1, São Paulo, ANPOCS, 2010, pp.131-201.

368
A educação e a pergunta pelos Outros: diferença,
alteridade, diversidade e os outros “outros”

Carlos Skliar

Resumo
No conjunto de questões que nos fazem pensar/imagi-
nar que está se criando uma mudança significativa na edu-
cação brasileira de hoje, a questão do outro, dos outros,
parece ocupar tanto um lugar de privilégio quanto de
uma renovada banalização.
Assim, três questões parecem traçar as linhas divisórias
nos discursos pedagógicos atuais: 1) trata-se, por acaso
de um outro que nunca esteve aqui? 2) trata-se, de um
outro que volta somente para nos contar as suas histó-
rias de discriminação e exclusão? ou; 3) trata-se, talvez,
de um “eu escolar” que, simplesmente, se dispõe a hos-
pedar e/ou se inquieta somente pela estética da sua pró-
pria hospedagem, mas que não se interessa pelo outro?
Neste artigo me proponho discutir algumas das imagens
do outro que recorrem os discursos educativos e escolares
e, em particular, discutirei a questão do “outro com neces-
sidades educativas especiais”.
Palavras Chave
Outro (Teoria do conhecimento).

Professor da Universidade Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS


Doutor em Fonologia

Ponto de Vista , Florianópolis, n.05, p. 37-49, 2003


Education and the question of the Others:
difference, alterity, diversity and the other “others”

Abstract
Among the set of questions that makes us think or
imagine that a significant change is underway in
Brazilian education, the issue of the other, or others,
appears to occupy both a place of privilege as well as
one of renowned banalization.
Thus, three questions appear to trace the dividing lines
in current pedagogical discourse: 1) does it concern, by
chance, an other that was never here? 2) does it concern
an other that only returns to tell us stories of
discrimination and exclusion? Or perhaps 3) does it
concern an “School I” that is simply prepared to be a
host and or gets upset only by the aesthetic of its own
hospitality, but is not interested in the other?
In this article I propose to discuss some of the images
of the other that recur in the educational and school
discourses and, in particular, I will discuss the issue of
the “other with special educational needs”.
Key words
Others minds (Theory of Knowlodge).

Ponto de Vista , Florianópolis, n.05, p. 37-49, 2003 38


A educação e a pergunta pelos Outros. Diferença, alteridade, diversidade e os outros “outros”

A pergunta pela educação


Há uma herança naquilo a que chamamos de educação; nela, a pergunta
pela educação se volta, hoje, para nós mesmos para nos obrigar a ver bem. Ver
bem a nossa pergunta, pois toda pergunta pode ser também um abandono, um
nevoeiro ou um cruel convite à sinceridade. O que perguntamos, quando per-
guntamos sobre a educação? Ou melhor ainda: por que perguntamos sobre a
educação sempre de uma forma retórica?
Uma das primeiras respostas que nossa herança nos sugere é que, na realida-
de, não estamos perguntando pela educação, mas pela insistência obstinada e pela
instabilidade de suas mudanças e de suas transformações, quer dizer, nos pergunta-
mos talvez para adiar, segurar e capturar aquilo que pensamos que é a educação.
Ao fazê-lo, assim, nos invade uma ilusão de mudança de alguma coisa so-
bre a qual não nos interrogamos. Preferimos mudar a educação — e mudá-la
sempre — antes de nos preocuparmos com a pergunta.
Sujeitamo-nos a transformar a transformação esquecendo — ou melhor,
negando — todo ponto de partida, adorando o turbilhão de uma mudança que
faça da educação algo parecido com um paraíso tão improvável quanto impos-
sível. E em questões de mudança, como diz Baudrillard (2002, p. 83), tudo é
possível: “O que faz falta é uma metamorfose, um acontecer.”
Tudo é possível com a mudança na educação: a insistência em uma única
espacialidade e em uma única temporalidade, mas com outros nomes; a infinita trans-
posição do outro em temporalidades e espacialidades homogêneas; a aparente magia
de alguma palavra que se instala pela enésima vez, ainda que não nos diga nada; a
pedagogia das supostas diferenças em meio a um terrorismo indiferente; chamar ao
outro para uma relação escolar sem considerar as relações do outro com outros; e a
produção de uma diversidade e uma alteridade que é pura exterioridade de nós
mesmos; uma diversidade que apenas se nota, apenas se entende, apenas se sente.
Não temos, nunca, compreendido o outro1 . O temos, sim, massacrado,
assimilado, ignorado, excluído e incluído, e, por isso, para negar o nossa invenção
do outro, preferimos hoje afirmar que estamos frente a frente com um novo
sujeito. Mas, é preciso dizer: com um novo sujeito da mesmice2 . Porque se mul-
tiplicam suas identidades a partir de unidades já conhecidas; se repetem
exageradamente os nomes já pronunciados; são autorizados, respeitados, aceitos
e tolerados apenas uns poucos fragmentos da sua alma.
Pensamos, agora, a mudança educativa como uma reforma do mesmo,
como uma reforma para nós mesmos. A mudança educativa nos olha, agora,
com esse rosto que vai se descaracterizando de tanta maquiagem sobre maquiagem.

Ponto de Vista , Florianópolis, n.05, p. 37-49, 2003 39


Carlos Skliar

Porque a mudança nos olha e, ao nos olhar, encontra somente uma repro-
dução infinita de leis, de textos, de currículos e de didáticas. Mas nenhuma pala-
vra sobre as representações como olhares ao redor do outro. Nenhuma palavra
sobre a necessidade de uma metamorfose nas nossas identidades. Nenhuma
palavra sobre a vibração com o outro.
As mudanças tem sido, então, quase sempre, a burocratização do outro,
sua inclusão curricular e, assim, a sua banalização, seu único dia no calendário,
seu folclore, seu detalhado exotismo.
Se, em algum momento da nossa pergunta sobre educação, tínhamos nos
esquecido do outro, agora detestamos sua lembrança, maldizemos a hora de
sua existência e da sua experiência, corremos desesperados a aumentar o nú-
mero de alunos e de cadeiras nas aulas, mudamos as capas dos livros que já
publicamos há muito tempo, re-uniformizamos o outro sob a sombra de no-
vas terminologias. Novas terminologias sem sujeitos.

A pergunta pelos outros da educação e da escola


Antes de nos perguntarmos quem é, quem são os outros, poderíamos, já
desde o início, discutir qual é o significado da pergunta pelo outro. É essa a minha
pergunta sobre o outro ou é uma pergunta do outro, que vem do outro? Antes
de dizer (A) pergunta do outro, caberia então precisar: pergunta (DO) outro.
Como entender essa diferença de acento? Para Derrida (2001) a pergunta do
outro são duas perguntas: trata-se, ao mesmo tempo, de uma pergunta do outro
e uma pergunta dirigida ao outro. Como se o outro fosse, antes que mais nada,
aquele que coloca a primeira pergunta ou aquele a quem se dirige a primeira
questão. Ou: como se o outro fosse o ser em questão, a pergunta mesma do ser
em questão, ou o ser em questão da pergunta.
É possível que os textos dedicados, hoje, à questão do outro tenham a
mesma natureza: uma espécie de luto paradoxal, em forma de negação, frente a
um componente que, no outro, já haveria desaparecido ou estaria em vias de
desaparição; Baudrillard tem chamado a esse componente “alteridade radical”. Para
expressá-lo simplesmente utilizarei as próprias palavras do filosófo francês:
em tudo outro (autre se refere a todo o outro, em termos
gerais; autri, por outro lado, poderia se traduzir pelo “próxi-
mo”, a outra pessoa) existe o próximo -esse que não é eu, esse
que é diferente de mim, mas que posso compreender, ver e

Ponto de Vista , Florianópolis, n.05, p. 37-49, 2003 40


A educação e a pergunta pelos Outros. Diferença, alteridade, diversidade e os outros “outros”

assimilar- e também o outro radical, (in)assimilável, incompre-


ensível e inclusive impensável. (BAUDRILLARD, 2002)

Há, então, um outro que nos é próximo, que parece ser compreensível
para nós, previsível, maleável etc. E há um outro que nos é distante, que parece
ser incompreensível, imprevisível, maleável. Assim entendido, o outro pode ser
pensado sempre como exterioridade, como alguma coisa que eu não sou, que
nós não somos. Mas há também a mesma dualidade acima apontada (outro
próximo - outro radical) em termos de interioridade, quer dizer, que esses
outros também podem ser eu, sermos nós.
O pensamento ocidental continua tomando o outro pelo próximo, reduzin-
do o outro ao outro próximo. Reduzir o outro ao próximo é uma tentação um
tanto difícil de evitar, pois a alteridade radical constitui sempre uma provocação e,
portanto, está destinada à redução e ao esquecimento na análise da memória, é isso
que chamamos de história. Porém, nesta gestão do próximo, fica sempre um
resíduo; no outro se esconde uma alteridade ingovernável, de ameaça, explosiva.
Aquilo que tem sido normalizado pode acordar em qualquer momento.
Com a modernidade, entramos numa era de produção do Outro. Não se
trata, já, de matá-lo, devorá-lo ou seduzi-lo, nem de enfrentá-lo ou rivalizar com
ele, também não de ama-lo ou odia-lo; agora, primeiro, trata-se de produzi-lo. O
outro tem deixado de ser um objeto de paixão para se converter num objeto de
produção. Poderia ser que o outro, na sua alteridade radical ou na sua singularida-
de irredutível, haja se tornado perigoso ou insuportável e, por isso, seja necessário
exorcizar a sua sedução? Ou será, simplesmente, que a alteridade desaparece
progressivamente com o aumento, em potência, dos valores individuais e a des-
truição dos valores simbólicos? Seja como for, o caso é que a alteridade começa
a faltar e que é imperiosamente necessário produzir o outro como diferença à
falta de poder viver a alteridade como destino.
O outro da educação foi sempre um outro que devia ser anulado, apa-
gado. Mas as atuais reformas pedagógicas parecem já não suportar o aban-
dono, a distância, o descontrole. E se dirigem à captura maciça do outro
para que a escola fique ainda mais satisfeita com a sua missão de possuí-lo,
tudo dentro de seu próprio ventre.
Dentre as figuras da alteridade radical que são hoje objeto de tradução/
aproximação/inclusão escolar, há um outro que tornou-se especialmente sensível
às reformas pedagógicas das últimas décadas: aquele outro fixado na expressão
“necessidades educativas especiais”, voz monótona que inclui num único proces-

Ponto de Vista , Florianópolis, n.05, p. 37-49, 2003 41


Carlos Skliar

so de alterização3 tanto aos membros de minorias étnicas e culturais, quanto a


meninos e meninas de rua, crianças super dotadas, grupos desfavorecidos ou
marginalizados, populações nômades e aqueles com condições físicas, intelectu-
ais, sociais, emocionais e sensoriais diferenciadas (BRASIL, 1999, p. 23).
“Necessidades educativas especiais” é, na atual reforma curricular brasileira,
alguma coisa parecida a “atenção à diversidade” na reforma espanhola da déca-
da anterior, aonde a diversidade é pensada e produzida como:
a) um problema;
b) um problema considerado de recente data;
c) um problema que começa no outro, na sua existência, ou melhor dito, na
sua experiência de ser outro;
d) o mesmo problema que aquele da heterogeneidade já antes indesejável;
e) um problema cuja retórica reformista anula o problema: todos temos ne-
cessidades educativas especiais – i.e. todos somos diversos –;
f) um problema educativo que parece de todos mas que acaba se focalizando
exclusivamente nos sujeitos considerados problemáticos;
g) um problema do outro, cuja única resposta possível da nossa parte é a nossa
tolerância, o nosso respeito, a nossa aceitação, o nosso reconhecimento;
h) porém, a tolerância, o respeito, a aceitação, acabam sendo apenas conteú-
dos curriculares a serem avaliados no outro;
i) a finalidade de tanto eufemismo e problematização do outro não é outra
coisa que o antigo e único objetivo do avanço no conhecimento curricular 4 .
Índios, imigrantes, surdos, pobres, nômades etc., constituem nos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN, em adiante) do Brasil – Adaptações Curriculares
(1999), esses outros com necessidades especiais que encontram nesse discurso uma
estranha referência de unanimidade e igualdade na experiência de ser outros. A todos
eles, como dizem Souza e Cardoso (2001) a escola deveria oferecer um programa
curricular reduzido, diminuído ou adaptado, para melhor atender às possíveis dificul-
dades encontradas por eles frente a exigência escolar.
Quais as imagens do outro que recorrem os PCN e que fazem desse outro
um objeto privilegiado da reforma do mesmo?
Há, em primeiro lugar, a imagem colonial de um outro, quer dizer, a
imagem de um outro maléfico. O outro colonial e maléfico é um corpo sem
corpo. Uma voz que fala sem voz. Que diz sem dizer. Que foi massacrado e
que segue sendo culpabilizado por seu próprio massacre. Uma representação
do outro que gira em torno de um eu completo, natural, concêntrico, oniscien-
te, disseminado, Todo-Poderoso.

Ponto de Vista , Florianópolis, n.05, p. 37-49, 2003 42


A educação e a pergunta pelos Outros. Diferença, alteridade, diversidade e os outros “outros”

Há, em segundo lugar, talvez de uma forma menos nítida, a imagem de um


outro multicultural. Um outro multicultural que ocupa uma espacialidade de cer-
to modo ancorada na política da mesmice — de pertencimento a uma comuni-
dade que deve estar sempre bem ordenada e solidificada —, talvez identitária,
ainda que submetida a uma única essência, a um único modus vivendi — e, quem
sabe, cultural — mas sempre de equivalência.
É um outro, a quem se faz oscilar entre o ser-radicalmente-outro, o
outro-igual e o-outro-a-ser tolerado (e/ou o aceito, e/ou a ser respeitado, e/
ou a ser reconhecido etc.).
O outro multicultural naufraga como imagem entre o ser-diverso e o
ser-diferente.
Mas o outro diverso e o outro diferente constituem, ao meu ver, outros dissimilares.
A tendência de fazer deles o mesmo, retorna todo discurso a seu trágico ponto de
partida colonial, ainda que vestido com a melhor roupagem do multiculturalismo.
É possível que, ao pensar nas diferenças, seja necessário, ao mesmo tempo,
afirmar a multiplicidade e a singularidade das valorações de um sujeito; como
sugere Hopenhayn (1999, p. 129):
a diferenciação, pensada como diferença operando ou aconte-
cendo [...], é ato de deslocamento plural entre muitas alterna-
tivas de interpretação, mas também é ato de posicionamento
singular frente a essa luta de interpretações possíveis.

A diferença, assim, não constitui um ponto de vista, mas uma distância que
separa de um outro ou outros; é uma diferença entre perspectivas, uma dobradi-
ça “que articula o singular de uma perspectiva e o plural de seus deslocamentos
virtuais” (HOPENHAYN, 1999, p.131).
Já não é, então, a relação entre nós e eles, entre a mesmice e a alteridade, o
que define a potência existencial do outro, mas a presença — antes ignorada,
silenciada, aprisionada etc. — de diferentes espacialidades e temporalidades do
outro; já não se trata de identificar uma relação do outro como sendo dependen-
te ou como estando em relação empática ou de poder com a mesmice; não é
uma questão que se resolve enunciando a diversidade e ocultando, ao mesmo tem-
po, a mesmice que a produz, define, administra, governa e contém; não se trata
de uma equivalência culturalmente natural; não é uma ausência que retorna
malferida; trata-se, por assim dizer, da irrupção (inesperada) do outro, do ser
outro que é irredutível em sua alteridade.

Ponto de Vista , Florianópolis, n.05, p. 37-49, 2003 43


Carlos Skliar

De certo modo, seria possível dizer que esse outro não é nem uma pura
identidade nem uma mera diferença; não é um outro redutível que o faz trans-
formar-se do indefinível em algo definível e do inominável em algo nominável.
Como sugere Gabilondo (2001, p.193): “a diferença não se reduz à diferença
de um consigo mesmo, nem simplesmente à de um com outro, mas é a expe-
riência viva de uma irrupção – da palavra e do olhar - que torna possível essas
outras formas de alteridade [ ... ]”
Sob a perspectiva de Lévinas (2000, p. 85), trata-se do questionamento e do
deslocamento da ontologia do outro, aquilo que em nome do Ser, do Ser como
o mesmo, acaba por reduzir e subordinar toda alteridade. O outro já não é dado
senão como uma perturbação da mesmice, um “rosto” que nos sacode etica-
mente. O outro não irrompe para ser somente hospedado ou bem-vindo, nem
para ser honrado ou insultado. Irrompe, em cada um dos sentidos, nos quais a
homogeneidade foi construída. Não volta para ser incluído, nem para narrarmos
suas histórias alternativas de exclusão. Irrompe, simplesmente, e nessa irrupção
sucede o plural, o múltiplo, a disseminação, a perda de fronteiras, a desorientação
temporal, o desvanecimento da própria identidade.
O outro irrompe, e nessa irrupção, nossa mesmice vê-se desamparada, des-
tituída de sua corporalidade homogênea, de seu egoísmo; e, ainda que busque
desesperadamente as máscaras com as quais inventou a si mesma e com as quais
inventou o outro, o acontecimento da irrupção deixa esse corpo em carne viva,
torna-o humano. O outro volta e nos devolve nossa alteridade, nosso próprio
ser outro; é o tornar-se outro e todavia
esse tornar-se outro não é o retorno do Uno que volta, mas
diferenças de diferenças, divergências transitórias, sempre mais
e menos a cada vez, mas nunca igual. Não é questão de limitar
esse devir, ordená-lo ao mesmo e fazê-lo semelhante
(GABILONDO, 2001. p. 163).

A irrupção do outro quebra a agonia do mesmo, de uma ipseidade5 que


sempre cobra poder sobre o outro. Somos, como diz Derrida, reféns do outro,
e não podemos ter relação com nós mesmos além da medida na qual a irrupção
do outro tenha precedido a nossa própria ipseidade (DERRIDA, 2001, p.51).
Agora, a irrupção do outro não faz do outro unicamente um fantasma,
ou um morto, ou um malefício, ou uma identidade que serve só para melhor
definir a nossa identidade.

Ponto de Vista , Florianópolis, n.05, p. 37-49, 2003 44


A educação e a pergunta pelos Outros. Diferença, alteridade, diversidade e os outros “outros”

Agora, a irrupção do outro pode instaurar uma nova e original relação com
a mesmidade. Mas não uma relação tranqüila, transparente, consistente, nem muito
menos incondicional ou empática. A irrupção do outro é uma diferença que
difere, que nos difere e que se difere sempre de si mesma. Um outro inalcançável,
efêmero em seu nome e em sua significação, inabordável, que se afasta em seu
mistério, com seu mistério. É o outro que “acontece de todas as formas. Ele cria
a todo momento a linha divisória” (BAUDRILLARD, 2002, p. 67).
O mistério do outro, o poder de sua alteridade. Não há relação com o outro
se seu rosto é ignorado. Ainda que o consideremos como um corpo-objeto, ainda
que façamos do outro uma simples anatomia e simplifiquemos o mundo que ele
expressa e, também, sua expressividade (DERRIDA, 1987, p. 414).
A relação com o outro não está mais cimentada só no saber, no conheci-
mento, na verdade, na intencionalidade. Uma consciência intencional que, ao en-
trar em relação com o outro, termina com sua própria essência, se reduz a nada
e, como bem diz Mélich (1997, p.171): “[...] acaba reduzindo-se a cinzas”.

A pergunta pela educação que se pergunta pelo outro, mas e se o


outro não estivesse aí?
É a educação, por acaso, o império da mesmice e a desolação da
alteridade? O outro em um único tempo, inscrito em um único mapa, em
uma única fotografia, em um único dia de festa por ano, o outro condenado
a uma única e última carteira? Ou, quem sabe, uma forma de irrupção naqui-
lo que já somos e quiséramos, muito, deixar de ser? Ser, não só aquele que já
fomos e que estamos sendo?
Não agregaria nada a essa discussão insistir sobre algo que já foi muito
estudado: a educação institucional, a instituição educativa, a escola é uma
invenção e um produto daquilo que denominamos como modernidade. As
conclusões, já conhecidas, sobre a relação entre modernidade, educação e
escola são evidentes: o tempo da modernidade e o tempo da escolarização
insistem em ser, como decalques, temporalidades que só desejam a ordem,
que teimam em classificar, em produzir mesmices homogêneas, íntegras,
sem fissuras, a salvo de toda contaminação do outro; a espacialidade da
modernidade e o espaço escolar insistem em ser, como irmãs de sangue,
espacialidades que só buscam restringir o outro para longe de seu territó-
rio, de sua língua, de sua sexualidade, de seu gênero, de sua idade, de sua
raça, de sua etnia, de sua geração etc.

Ponto de Vista , Florianópolis, n.05, p. 37-49, 2003 45


Carlos Skliar

Modernidade e escolaridade, onde duas coisas distintas não podem estar ao


mesmo tempo no mesmo lugar. O mesmo e o outro não podem, nessa temporalidade,
nessa escola, estar ao mesmo tempo. A mesmice da escola proíbe a diferença do outro.
Mas do mesmo modo com que o objetivo de ordem da modernidade termi-
nou sendo uma expressão de impossibilidade de um projeto igualmente impossível,
também a ordem da escola foi-se despedaçando, foi-se fragmentando nas várias
tonalidades do tempo presente. Um tempo presente que permita nos desvanecer
para criar uma outra pedagogia. Uma pedagogia do acontecimento, uma pedagogia
descontínua, que provoque o pensamento, que retire do espaço e do tempo todo
saber já disponível; que obrigue a recomeçar do zero, que faça da mesmidade um
pensamento insuficiente para dizer, sentir, compreender aquilo que tenha acontecido;
que emudeça a mesmidade. Que desordene a ordem, a coerência, toda pretensão de
significados. Que possibilite a vaguidade, a multiplicação de todas as palavras, a
pluralidade de todo o outro. Que desminta um passado unicamente nostálgico, so-
mente utópico, absurdamente elegíaco. Que conduza a um futuro incerto.
Pedagogia para um presente disjuntivo que é, ao mesmo tempo, ainda que em
outras temporalidades, três possíveis modos de entender a pedagogia:
a) o outro que deve ser anulado,
b) o outro como hóspede da nossa hospitalidade e
c) o outro que reverbera permanentemente.
A pedagogia do outro que deve ser anulado é aquela que diz ao outro: “está
mal ser o que és”, e que considera esta mensagem como o seu único ponto de
partida. Está mal ser índio, ser surdo, ser mulher, ser negro, menino da rua, jovem
etc. É, também, a pedagogia que adota como ponto de chegada uma outra
mensagem para o outro: “está bem ser alguma coisa que nunca poderás ser”6 —
está bem ser branco, ouvinte, homem, adulto etc.
Trata-se de uma pedagogia de sempre; uma pedagogia que nega duas vezes
e que o faz de uma forma contraditória: nega que o outro tenha existido como
outro e nega o tempo em que aquilo — a própria negação “colonial” do outro —
possa ter ocorrido. Não há um outro porque nem é enunciado, nem está aí para
enunciar-se. Não há senão em um anúncio forçado e inevitável. Em uma menção
etérea cuja voz se apaga a cada vogal, a cada consoante.
A pedagogia do outro que deve ser anulado é o nunca-outro e o sempre-
outro. Nunca existiu como outro de sua alteridade, como diferença. Sempre
existiu como um outro do mesmo, como uma repetição da mesmidade.
A pedagogia do outro como hóspede de nosso presente é a pedagogia
cujo corpo se “reforma” e/ou se “auto-reforma”; é a ambição do texto da
mesmidade que tenta alcançar o outro, capturar o outro, domesticar o outro,

Ponto de Vista , Florianópolis, n.05, p. 37-49, 2003 46


A educação e a pergunta pelos Outros. Diferença, alteridade, diversidade e os outros “outros”

dar-lhe voz para que diga sempre o mesmo, exigir-lhe sua inclusão, negar a
própria produção de sua exclusão e de sua expulsão, nomeá-lo, confeccioná-lo,
dar-lhe um currículo “colorido”, oferecer-lhe um lugar vago, escolarizá-lo cada
vez mais, para que, cada vez mais, possa parecer-se com o mesmo, ser o mesmo.
É uma pedagogia que afirma duas vezes e que nega também duas vezes:
afirma o “nós”, mas nega o tempo (provavelmente) comum; afirma o outro,
mas nega-lhe seu tempo.
É a pedagogia da diversidade como pluralização do “eu mesmo” e de
“o mesmo”; uma pedagogia que hospeda, que abriga; mas uma pedagogia
à qual não importa quem é seu hóspede, mas que se interessa pela própria
estética do hospedar, do alojar.
É a pedagogia que impõe as leis da hospitalidade — direitos e deveres
sempre condicionais e condicionantes — mas não a lei da hospitalidade — dar
a quem chega todo o lugar, sem lhe pedir o nome e sem cumprir nem a menor
condição (DERRIDA, 1997) —. Uma pedagogia que reúne, ao mesmo tempo,
a hospitalidade e a hostilidade em relação ao outro. Que anuncia sua generosida-
de e esconde sua violência de ordem.
Uma pedagogia que não se preocupa -e que se aborrece- com a identidade
do outro, quando não repete -até a exaustão- somente a ipseidade do “eu”.
A pedagogia do outro que reverbera permanentemente é a pedagogia de
um tempo outro, de um outro tempo. Uma pedagogia que não pode ocultar as
barbáries e os gritos impiedosos do mesmo, que não pode mascarar a repetição
monocórdia, e que não pode, tampouco, ordenar, nomear, definir, ou fazer
congruentes os silêncios, os gestos, os olhares e as palavras do outro.
Uma pedagogia que, no presente, poderia instalar-se, mas não se aco-
modar, entre a memória e o porvir. Mas, também, uma pedagogia que não
seja só a fabricação do futuro e que se abra ao porvir, esse tempo que, como
sugere Larrosa (2001, p.419),
nomeia a relação com o tempo de um sujeito receptivo, não
tanto passivo como paciente e passional, de um sujeito que se
constitui desde a ignorância, a impotência e o abandono, des-
de um sujeito, enfim, que assume sua própria finitude [...]

A pedagogia do outro que reverbera permanentemente é aquela que con-


traria as duas mensagens da pedagogia de outro que deve ser anulado, e que diz,
com uma voz suave porém intensa: “não está mal ser o que és”, mas também:
“não está mal ser outras coisas além do que já és” (SKLIAR, 2002).

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Carlos Skliar

Notas
1 Sartre, no livro O ser e o nada, diz que “além de breves e terríficas ilumina-
ções, os homens morrem sem ter suspeitado o que era o Outro”.
2 Mesmice, segundo o Dicionário Aurélio significa: “ausência de variedade
ou de progresso; inalterabilidade”. No contexto do meu texto pode-se ler,
também, no sentido de um se próprio, do mesmo, pejorativo.
3 Processo de “alterização” significa colocar a ênfase na produção do outro
como alteridade e também de duvidar, ao mesmo tempo, que esse outro
exista “naturalmente”.
4 As questões que aqui descrevo em relação a atenção à diversidade são o
resultado inicial de um projeto de pesquisa realizado nos meses de outubro,
novembro e dezembro de 2002 na Universidade de Barcelona, Departa-
mento de Didática e Organização Educativa (SKLIAR, 2002).
5 Ipseidade refere-se ao processo de individuação que faz com que alguém
seja ele mesmo e se diferencie de qualquer outro.
6 Ao dizer “está bem”, ou “está mal”, não estou pensando em nenhum atributo
moral. Simplesmente, trata-se, de um processo de afirmação do outro que entra
em contradição com o habitual processo de negação do outro na pedagogia.

Referências
BAUDRILLARD, Jean. A troca impossível. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.
DERRIDA, Jacques. Psyché. L’invention de l’autre. Paris: Galilée, 1987.
______. Anne Duforurmantelle invite Jacques Derrida à répondre De l’hospitalité. Paris:
Calmann-évy, 1997.
______. ¡Palavra! Instantáneas filosóficas. Madrid: Editorial Trotta, 2001.
GABILONDO, Angel. La vuelta del Otro. Diferencia, identidad, alteridad. Madrid:
Editorial Trotta, 2001.
HOPENHAYN, Martín. Transculturalidad y diferencia. In: B. ARDITI (Ed.) El reverso de
la diferencia. Identidad y política. Caracas: Nueva Sociedad, 1999. p. 69-80.
LARROSA, Jorge. Dar a palavra. Notas para uma dialógica da transmissão. In:
LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos (Eds.) Habitantes de Babel: Políticas e
poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2001. p. 281-296.

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A educação e a pergunta pelos Outros. Diferença, alteridade, diversidade e os outros “outros”

LÉVINAS, Emmanuel. Ética e infinito. Madrid: La balsa de la Medusa, 2000.


BRASIL. Ministério de Educação. Parâmetros Curriculares Nacionais – Adaptações
Curriculares: estratégias para a educação de alunos com necessidades educacio-
nais especiais. Brasília: MEC, 1999.
MÈLICH, Joan-Carles. A resposta ao outro: a caricia. In: LARROSA,
Jorge; PÉREZ DE LARA, Nuria (Org.s). Imagens do outro. Petrópolis:
Vozes, 1997. p.170-179.
SKLIAR, Carlos. E se o outro não estivesse aí? notas para uma pedagogia (improvável) da
diferença. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
SOUZA, Regina Maria de; CARDOSO, Silvia Helena Barbi. Inclusão escolar
e linguagem revisitando os PCNs. Pro-posições, Campinas, v. 12, n. 2-3, p. 32-
46, jul./nov., 2001.

Recebido em 03/04/2003
Aprovado em 15/06/2003

Carlos Skliar
Rua Manoel Leão, 35
CEP 91760-560 Porto Alegre, RS
e-mail: skliar@piaget.edu.ufrgs.br

Ponto de Vista , Florianópolis, n.05, p. 37-49, 2003 49


ISSN: 2525-9571 Eixo TEMÁTICO: Formação de
Vol. 6 | Nº. 1 | Ano 2022
Professores

Mayra da Silva Cutruneo DISCUSSÕES SOBRE A BNC-FI:


Ceschini
Universidade Federal do Pampa
regulação e uniformização dos currículos
mayraceschini.aluno@unipampa. de formação docente?
edu.br

Ronan Moura Franco


DISCUSSIONS ABOUT BNC-FI:
Universidade Federal do Pampa regulation and standardization of teacher
ronanfranco.aluno@unipampa.ed
u.br
training curricula?
Elena Maria Billig Mello
Universidade Federal do Pampa
elenamello@unipampa.edu.br
_______________________________________________________________________________

RESUMO

Anais da VI Jornada Ibero-Americana de Pesquisas em Políticas Educacionais e Experiências Interdisciplinares na Educação. Brasília, DF. 2022.
Esta pesquisa objetiva compreender os contextos que viabilizam a implementação da Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) e Base Nacional Comum para a Formação de
Professores da Educação Básica (BNC-FI), as influências que as impulsionam e seus textos; e
investigar como estão se efetivando na prática, fazendo uma leitura crítica do discurso
pedagógico que elas contêm, a fim de perceber poder e o controle que exercem sobre os
sujeitos e as brechas discursivas que possuem. É uma pesquisa de abordagem qualitativa,
nível exploratório e caracteriza-se como uma análise documental. A análise tomou por
fundamentos a opção teórico-metodológica da Abordagem do Ciclo de Políticas de Ball e
colaboradores, com destaque para o contexto da influência e o contexto da produção do texto
da política BNC-FI. Procurando compreender as noções de poder e controle, assumimos a
Teoria Sociológica de Basil Bernstein. O texto da BNC-FI foi analisado utilizando
aproximações com a Análise Textual Discursiva, processo que permitiu a construção das
categorias a priori Formação Acadêmico-Profissional (FAP), Formação Democrática (FD),
Formação Crítico-Inovadora (FCI), emergindo no processo a categoria Formação
Subordinada às Competências (FSC). Concluímos argumentando que as normativas
apresentam brechas discursivas que permitem uma atuação na e sobre a política, garantindo
uma formação acadêmico-profissional docente, se distanciando do viés regulatório e
mercadológico que predomina nos textos analisados.

Palavras-chave: Política Curricular. Formação acadêmico-profissional docente. Abordagem


do Ciclo de Políticas. Teoria Sociológica.

ABSTRACT

This research aims to understand the contexts that enable the implementation of the National
Curricular Common Base (BNCC) and Common National Base for Basic Education Teacher
Training (BNC-FI), the influences that drive them and their texts; and to investigate how they are
being carried out in practice, making a critical reading of the pedagogical discourse they contain, in
order to perceive the power and control they exert over the subjects and the discursive gaps they
have. It is a research with a qualitative approach, exploratory level and is characterized as a
documental analysis. The analysis was based on the theoretical-methodological option of the Policy
Cycle Approach by Ball and collaborators, highlighting the context of influence and the context of
the production of the text of the BNC-FI policy. Seeking to understand the notions of power and
control, we assume the Sociological Theory of Basil Bernstein. The BNC-FI text was analyzed
using approaches to Discursive Textual Analysis, a process that allowed the construction of the a
priori categories Academic-Professional Training (APT), Democratic Training (DT), Critical-
Innovative Training (CIT), emerging in the process the category Training Subject to Competencies
(TSC). We conclude by arguing that the regulations present discursive gaps that allow action in and
on politics, guaranteeing an academic-professional teacher training, distancing themselves from the
regulatory and marketing bias that predominates in the analyzed texts.

Keywords: Curriculum Policy. Academic-professional teacher training. Policy Cycle


Approach. Sociological Theory.

279
1. INTRODUÇÃO
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada em 2018 e reunida em um

Anais da VI Jornada Ibero-Americana de Pesquisas em Políticas Educacionais e Experiências Interdisciplinares na Educação. Brasília, DF. 2022.
documento único em 2019, vem dando o tom para as demais políticas educacionais
aprovadas no país desde então, sobretudo às normativas referentes à formação de professores,
como a Base Nacional Comum para a Formação de Professores da Educação Básica - BNC-
FI (BRASIL, 2019). Todas essas políticas estão alinhadas aos preceitos neoliberais e
conservadores, que transparecem na busca por resultados idealizados nas avaliações
estandardizadas, de viés mercadológico, cosmopolita e performático, impresso também nas
normativas. Nesse sentido, é importante compreender os contextos que viabilizam essas
políticas, as influências que as impulsionam e seus textos, bem como investigar como estão
se efetivando na prática (BALL; BOWE, 1992). Relevante também fazer a leitura crítica do
discurso pedagógico que as políticas contêm, percebendo o poder e o controle que exercem
sobre os sujeitos e as brechas discursivas que possuem. (BERNSTEIN, 1996).

O texto da BNCC é pautado pelos operadores curriculares escolhidos, as competências


(BRASIL, 2018). Segundo Macedo (2019), a ideia de competência que se materializa nas
políticas curriculares brasileiras, desde a década de 90, decorrente do viés neoliberal,
tecnicista e regulatório dos atuais modelos econômicos vigentes. A assunção do paradigma
regulatório imprime nos currículos brasileiros o controle sobre os sujeitos educandos e
educadores, transformando-os em cumpridores de mecanismos de regulação dominante
(VEIGA, 2003). Propor esse tipo de formação para o estudante da Educação Básica é negar-
lhe o direito ao desenvolvimento pleno de sua criticidade e emancipação (FREIRE, 2011).
Contudo, consideramos que alargar esse tipo de formação para o currículo destinado à
preparação de novos professores é um fator que, além do já citado, pode limitar as
possibilidades de desenvolvimento profissional e pessoal, restringindo os novos docentes a
executores da Base, um imenso reducionismo das dimensões formativas essenciais ao
desenvolvimento de atividades educativas transformadoras.

Compreendemos que a formação de professores ocorra na perspectiva “acadêmico-


profissional”, apontada por Diniz-Pereira (2008), na qual o processo formativo se desenvolve
por meio da necessária parceria entre universidade e escola, objetivando a construção de
conhecimentos potencialmente transformadores das realidades sócio-históricas das

280
comunidades. É importante garantir ainda uma formação que prime por princípios
democráticos, desde sua composição mais radical, entendida por Freire (1979) como a forma

Anais da VI Jornada Ibero-Americana de Pesquisas em Políticas Educacionais e Experiências Interdisciplinares na Educação. Brasília, DF. 2022.
de compreendermos o mundo, o poder, as relações e os elementos de mudança social. Nesse
sentido, a formação de professores também deve partir de princípios crítico-inovadores. A
criticidade, conceito central da pedagogia freireana, potencializa processos transformadores,
por meio da ação-reflexão-ação, da participação e leitura de mundo (FREIRE, 1979). A
inovação pedagógica que defendemos e demarcamos teórico-epistemologicamente, é
originada de ações que não necessitam ser inéditas, mas que tenham a intencionalidade de
produzir mudanças nas estratégias de construção ou organização de conhecimentos e garantir
a aprendizagem. (MELLO; SALOMÃO DE FREITAS, 2017).

Dessa forma, compreendemos que a formação de professores, necessita ser conduzida


sob perspectivas alargadas, que primem pelo diálogo entre universidade e escola, garantam a
participação democrática de todos e se amparem em princípios que proporcionem a existência
da criatividade, da criticidade e da inovação pedagógica, que levem os sujeitos a práticas
transformadoras de suas realidades sociais (DINIZ-PEREIRA, 2008; FREIRE, 1979;
MELLO; SALOMÃO DE FREITAS, 2017). Assim, diante da normativa proposta pela BNC-
FI nos deparamos com a questão que mobiliza a pesquisa aqui apresentada: como se mostram
as possibilidades formativas para os novos docentes frente aos contextos e discursos
presentes na BNC-FI?

A fim de responder a essa pergunta realizamos a análise documental da Base proposta


para a formação inicial de professores e o contexto que influenciou sua produção, objetivando
compreender as possibilidades formativas expressas na BNC-FI, bem como se mostram o
poder, o controle e as brechas discursivas no documento a partir dos contextos de influência e
de produção do texto da política.

1.1. Percurso Metodológico

A pesquisa foi desenvolvida em nível exploratório, sob uma abordagem qualitativa,


caracterizando-se como uma análise documental (GIL, 2008). Enquanto opção teórico-
metodológica, nos amparamos nos fundamentos e preceitos investigativos da Abordagem do
Ciclo de Políticas (ACP), proposto por Ball e Bowe (1992), focando no contexto da

281
influência e no contexto da produção do texto da política BNC-FI. Para compreender o poder,
o controle e as brechas discursivas presentes no discurso pedagógico da normativa nos

Anais da VI Jornada Ibero-Americana de Pesquisas em Políticas Educacionais e Experiências Interdisciplinares na Educação. Brasília, DF. 2022.
amparamos na Teoria Sociológica de Basil Bernstein (1998).

O texto da BNC-FI foi analisado utilizando aproximações à técnica de Análise Textual


Discursiva (ATD), descrita por Moraes e Galiazzi (2013, p.45) como um “processo auto-
organizado de construção de novos significados”, que se dão a partir de dois movimentos: o
primeiro de desconstrução; unitarização, categorização e o segundo de reconstrução e síntese
textual. Dessa forma, o corpus de análise foi o grupo de competências específicas elencadas e
separadas em três dimensões no documento, sendo elas desmontadas, separadas em unidades
de significado e relacionadas conforme semelhanças, sendo posteriormente categorizadas.
Para tanto criamos 3 (três) categorias a priori: Formação Acadêmico-Profissional (FAP),
Formação Democrática (FD), Formação Crítico-Inovadora (FCI); emergindo no processo
mais uma: Formação Subordinada às Competências (FSC). Tais categorias foram criadas para
auxiliar a compreensão do fenômeno estudado e são apresentadas no Quadro 1.

Quadro 1 – Organização do processo de categorização e atribuição de unidades de significado

Dimensão Competências Unidades de significado


Específicas

1.1 FSC1 - dominar os objetos de conhecimento [..]

1.2 FCI1 - [...] conhecimento sobre os estudantes e como eles aprendem


Conhecimento
Profissional 1.3 FAP1 - reconhecer os contextos

1.4 FD1 - conhecer a estrutura [...] dos sistemas educacionais

2.1 FCI2A - [...] ações de ensino que resultem em efetivas aprendizagens

2.2 FAP2 - [...] ambientes de aprendizagem


Prática
2.3 FCI2B - avaliar o desenvolvimento do educando [...]

2.4 FSC2 - conduzir as práticas pedagógicas [...] das competências e das


habilidades

3.1 FSC3 - comprometer-se com o próprio desenvolvimento profissional

Engajamento 3.2 FCI3 - comprometer-se com a aprendizagem [...]


Profissional
3.3 FD3 - participar [...]construção de valores democráticos

3.4 FAP3 - engajar-se [...] com a comunidade

282
Visando melhorar a compreensão, além da criação de categorias de análise e das
unidades de significado atribuídas a elas, foi realizada a análise das habilidades

Anais da VI Jornada Ibero-Americana de Pesquisas em Políticas Educacionais e Experiências Interdisciplinares na Educação. Brasília, DF. 2022.
correspondentes a cada competência específica, em que foi efetuado o mesmo processo de
codificação e categorização, resultando na codificação exemplificada a seguir: FSC1.1 -
dominar direitos de aprendizagem, competências [...] estabelecidos na BNCC. A escrita do
metatexto analítico é explicitada a seguir.

2. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Para construir a discussão, tomamos por referência a ACP, especialmente o seu contexto de
influência e as possibilidades de interpretação do texto da política em análise, identificando
disputas, instituições e sujeitos envolvidos na construção inicial da política (BALL; BOWE,
1992; MAINARDES, 2006). Assumimos, então, como contexto de influência da BNC-FI, a
BNCC, pois foi a partir dessa normativa que se desdobraram as demais políticas de formação
de professores, estando as mesmas instituições privadas e sujeitos envolvidos na busca por
garantir ampliação do alinhamento baseado em valores neoliberais e conservadores. Esse
entrelaçamento por interesse das normativas, tanto da Educação Básica como da Educação
Superior para a formação de professores, evidencia-se na semelhança e no uso dos mesmos
verbos nas descrições das competências gerais da BNCC e BNC-FI, aspecto já sinalizado por
Rodrigues, Pereira e Mohr (2020) ao comparar os textos das duas legislações e apontar
aproximações intencionais nas suas elaborações. É importante ressaltar ainda, a influência
exercida por grandes corporações educacionais, que pressionam para que a formação de
professores seja aligeirada e possa acontecer de forma simplista, reducionista e
financeiramente barata, transformando cursos de licenciatura em cursos preparatórios para
implementadores da BNCC (DINIZ-PEREIRA, 2021).

Ao nos debruçarmos sobre os textos das políticas, imergimos no contexto da produção


do texto da política que integra a ACP (BALL, BOWE, 1992). Tal contexto se apresenta na
forma de documentos, podendo ter diversas interpretações e contradições, assim como seus
desdobramentos em comentários e pronunciamentos formais e informais. O contexto da
produção do texto da política não é o momento em que se encerra a política educacional, pois
o texto da política é entendido enquanto produto que sofre influências das agendas que
marcam sua formulação. Cabe salientar que o discurso adotado na BNC-FI reafirma a

283
influência da BNCC sobre ela, quando é afirmado no texto da política que esse alinhamento é
realizado para assegurar a “coerência” entre as Diretrizes, o que segundo Diniz-Pereira

Anais da VI Jornada Ibero-Americana de Pesquisas em Políticas Educacionais e Experiências Interdisciplinares na Educação. Brasília, DF. 2022.
(2021), representa um mecanismo de uniformização dos currículos com rígido controle
(BERNSTEIN, 1996), como já visto e feito no Brasil na época da Ditadura Militar.

Para a análise aqui apresentada nos detivemos aos anexos da Resolução CNE/CP Nº
2/2019, na qual é apresentada a Base Nacional Comum para Formação Inicial de Professores
da Educação Básica (BNC-FI). Consideramos este trecho em especial do texto da política,
pois entendemos que é nele que podemos vislumbrar os subsídios básicos para as reformas
dos currículos das licenciaturas. Contudo, este anexo é limitado a um conjunto de 10 (dez)
“Competências Gerais Docentes” e 12 (doze) “Competências Específicas”, separadas em três
dimensões - “Conhecimento Profissional”, “Prática Profissional” e “Engajamento
Profissional” - com quatro competências descritas para cada uma (BRASIL, 2019, p.14). O
texto da BNC-FI desdobra-se ainda em uma lista de 62 (sessenta e duas) “Habilidades” que o
futuro docente deve desenvolver para cada competência específica (BRASIL, 2019, p.15-20).
Buscamos encontrar no texto de cada competência específica indícios que nos permitisse
afirmar, a partir da compreensão do exposto no discurso pedagógico explicitado na normativa
(BALL; BOWE, 1992; BERNSTEIN, 1996), que há possibilidade de promover a formação
docente na perspectiva acadêmico-profissional, democrática e crítico-inovadora, mesmo com
a implementação da normativa nos currículos.

O texto da normativa expressa a possibilidade da formação ocorrer na perspectiva


“acadêmico-profissional”, de forma contínua e por meio da necessária parceria entre
universidade e escola, objetivando a construção de conhecimentos potencialmente
transformadores das realidades sócio-históricas das comunidades (DINIZ-PEREIRA, 2008),
nas três dimensões do conhecimento profissional. Aparecendo em 8 (oito) habilidades como
exemplificadas nos excertos a seguir: FAP1.1 - “Identificar os contextos sociais [...] das
escolas em que atua”; FAP3.1 - “Comprometer-se com o trabalho da escola junto às famílias,
à comunidade [...]” (BRASIL, 2019, p. 16-20). Ambas evidenciam a necessária relação com
o contexto escolar desde a graduação. Todavia, mesmo nas competências desta categoria é
possível identificar o viés mercadológico impresso em toda BNC-FI como destacado no
excerto a seguir: FAP3.3 - “saber comunicar-se com todos os interlocutores [...], utilizando

284
diferentes recursos, inclusive as tecnologias da informação e comunicação” (BRASIL, 2019,
p.20), recurso de ensino-aprendizagem amplamente difundido no texto das políticas,

Anais da VI Jornada Ibero-Americana de Pesquisas em Políticas Educacionais e Experiências Interdisciplinares na Educação. Brasília, DF. 2022.
imprimindo forte controle sobre as formas de aprender e ensinar e que precisam ser
problematizados frente a participação de grandes empresas de tecnologia nas redes de ensino
do país (BERNSTEIN, 1996).

A perspectiva democrática para a formação de professores aparece em 7 (sete)


habilidades, 3 (três) relacionadas ao “conhecimento profissional” e quatro ao “engajamento
profissional” (BRASIL, 2019, p.16-20). O texto da política propõe que o licenciando deve
“conhecer a estrutura e a governança dos sistemas educacionais” (FD1), bem como participar
na construção de documentos, no trabalho coletivo e estabelecer “[...] relações democráticas
na escola” (FD3.4), pautadas por princípios como “[...] igualdade e equidade” (FD3.3) para
construção de uma sociedade mais justa. Explicitando no discurso pedagógico uma brecha
importante para uma atuação sobre a política (BERNSTEIN, 1996; BALL, BOWE, 1992), na
qual se proponham currículos democráticos para os cursos de licenciatura, que mantenham os
futuros docentes com a capacidade de ler o mundo e compreender as relações de poder e os
elementos de mudança social presentes no espaço escolar (FREIRE, 1979).

A formação na perspectiva crítico-inovadora é vislumbrada em 20 (vinte) habilidades


nas três “Dimensões do Conhecimento Profissional”, estando em maior número (nove) na
“dimensão da prática profissional” (BRASIL, 2019, p.16-20). O texto da política aponta a
importância do apoio ao estudante para a “[...] construção de sua autonomia [...]” (FCI1.2),
estimulando atitudes investigativas no processo de aprendizagem (FCI2A.3). Aponta ainda,
que os licenciandos devem “demonstrar conhecimento sobre os estudantes e como eles
aprendem” (FCI1), expressando a necessidade de compreender o desenvolvimento e os
contextos cotidianos, utilizando diferentes estratégias metodológico-avaliativas “[...]
considerando a heterogeneidade dos estudantes” (FCI2A.1), pensando no planejamento e
execução de “ações de ensino que resultem em efetivas aprendizagens” (FCI2A),
comprometendo-se com a aprendizagem, as diferentes identidades e necessidades dos
estudantes (FCI3) (BRASIL, 2019, p.15-19). A formação na perspectiva da inovação
pedagógica que consideramos possível a partir do discurso pedagógico explicitado no texto
da política é aquela assumida dentro do paradigma emancipador, visando a superação de

285
fragmentações, sendo intencional e buscando a ruptura com o contexto social imposto
(VEIGA, 2003). Sendo assim, esse viés formativo é crítico e representa brechas discursivas

Anais da VI Jornada Ibero-Americana de Pesquisas em Políticas Educacionais e Experiências Interdisciplinares na Educação. Brasília, DF. 2022.
na normativa, ou seja, possibilidades de alternativas à própria formação regulatória proposta
pela BNC-FI (BERNSTEIN, 1988). Contudo, é necessário estar atento às formas de como o
poder e o controle são expressos no texto de cada habilidade e como se mostrarão nos
currículos de cada curso de licenciatura, quais conhecimentos e expressões serão válidas, bem
como quais métodos de ensino, aprendizagem e avaliação serão validados (SILVA, 2019).

Das 62 habilidades elencadas na BNC-FI, 27 são diretamente subordinadas aos


operadores curriculares escolhidos, as competências, sendo elas ainda intimamente ligadas à
implementação/execução da BNCC na Educação Básica (BRASIL, 2019). Assim, emerge da
análise a categoria Formação Subordinada às Competências. Salienta-se que essas
habilidades são encontradas em todas as dimensões e se entrelaçam as demais, misturando-se
dentro das outras categorias, propondo que os licenciandos dominem “[...] competências e
objetos de conhecimento [...]” (FSC1.1), articulem estratégias metodológicas “[...] que
permitam aos estudantes desenvolver competências [...]” (FSC1.4), conheçam e criem
estratégias de melhoria dos resultados nas avaliações externas (FSC 2.2), além de se
comprometerem com pesquisas sobre problemas educacionais e se responsabilizarem por sua
constante formação (BRASIL, 2019, p.15-20). O discurso pedagógico explicitado no texto
dessas habilidades, além da própria estrutura na BNC-FI, organizada como uma matriz de
competências profissionais, explicita uma forte regulação de poder e controle, sendo exercida
sobre o quê e o como ensinar aos futuros professores, que devem ser talhados para aplicar a
BNCC nas escolas; sendo controlados sobre o quê e o como ensinar seus estudantes a nível
básico (BERNSTEIN, 1996). A presença maciça de habilidades dentro dessa categoria e a
estruturação do restante do texto da política e de todo o contexto de influência que a permeia
deixa clara a intencionalidade de padronizar os currículos das licenciaturas, buscando
“coerência” entre a BNC-FI, a BNCC e as avaliações estandardizadas (DINIZ-PEREIRA,
2021), além de explicitar o paradigma regulatório impresso na normativa, que busca o
controle burocrático sobre os docentes (VEIGA, 2003).

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para construir a síntese dos argumentos desenvolvidos ao longo do trabalho,

286
retomamos as intenções dessa pesquisa que visa compreender os contextos que viabilizam a
implementação da BNCC e BNC-FI, as influências que as impulsionam, seus textos e

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investigar como estão se efetivando na prática, fazendo uma leitura crítica do discurso
pedagógico que elas contêm, a fim de perceber poder e o controle que exercem sobre os
sujeitos e as brechas discursivas que possuem.

Dito isso, a análise nos permitiu concluir que o entrelaçamento que marca as políticas
que estruturam os currículos da Educação Básica e Superior, evidenciados pela semelhança
no uso dos verbos, é um mecanismo de rigorosa regulação e uniformização dos currículos e
que acaba por transformar os cursos de formação de professores em preparatórios para a
execução do que preconiza a BNCC. Contudo, ao analisarmos as habilidades que se
desdobram das dimensões que constituem a BNC-FI, conseguimos perceber brechas
discursivas que permitem o desenvolvimento de um trabalho de formação docente na
perspectiva acadêmico-profissional, democrática e crítico-inovadora, sendo a ACP e a teoria
sociológica de Bernstein valiosos suportes teórico-metodológicos para encontrar e atuar sobre
essas brechas.

Em relação à construção de conhecimento potencialmente transformador das


realidades sócio-históricas das comunidades, evidencia-se na dimensão “Conhecimento
Profissional”, 8 habilidades que destacam a necessária relação da formação docente com o
contexto escolar, ainda que nas competências presentes nas categorias analisadas exprima-se
forte controle e regulação sobre as formas de se ensinar e aprender, a partir da imposição de
processos tecnocráticos, que permitem o aumento da participação de empresas de tecnologia
nas escolas.

Ao analisarmos o texto das habilidades de dimensões de “Engajamento” e


“Conhecimento Profissional” encontramos possibilidades discursivas para a atuação na
política que resultem na construção de currículos democráticos nos cursos de licenciatura na
intenção de se garantir uma formação que permita a leitura do mundo e a compreensão das
relações de poder e da capacidade de transformação social que a educação efetiva no espaço
escolar. Na categoria emergente “Formação Subordinada às Competências” todas as
dimensões expressam, em suas habilidades, forte regulação e controle sobre o quê e as formas
com que se ensinam futuros professores, a partir dos conhecimentos arbitrariamente impostos

287
pela BNCC. A homogeneização das políticas evidencia as intencionalidades de uma
coerência entre a BNC-FI e a BNCC, resultantes das pressões advindas das avaliações em

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larga escala que poderão servir como parâmetros para classificação e regulação das
instituições e sujeitos.

4. REFERÊNCIAS

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Policy: an overview of the issues. Curriculum Studies, v.24, n.2, p.97-115, 1992.
BERNSTEIN, B. Poder, educación y consciencia: sociologia de la transmisión cultural.
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FREIRE, P. Educação e Mudança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
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MACEDO, E. F. de. Fazendo a Base virar realidade: competências e o germe da comparação.
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MELLO, E. M. B.; SALOMÃO DE FREITAS, D. P. A formação docente no viés da
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MORAES, R.; GALIAZZI, M. do C. Análise Textual Discursiva. 2 ed. Rev. Reimpressão.

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Disponível em: t.ly/Ihjf. Acesso em: 09 mar. 2022.

autor1
Doutoranda em Educação em Ciências:
Química da Vida e Saúde pela Universidade
Federal do Pampa. Professora na Rede
Municipal de Ensino de São Gabriel/RS e
Professora Substituta no Curso de
Licenciatura em Ciências Biológicas da
UNIPAMPA. Pesquisadora no Grupo de
Pesquisa em Inovação Pedagógica na
Formação Acadêmico-Profissional dos
Profissionais da Educação - GRUPI.

autor2
Doutorando em Educação em Ciências
Química da Vida e Saúde pela Universidade
Federal do Pampa. Professor na Rede
Municipal de Ensino de Uruguaiana/RS.
Pesquisador no Grupo de Pesquisa em
Inovação Pedagógica - GRUPI.

autor3
Doutora em Educação. Professora
Associada da Universidade Federal do
Pampa, atuando no PPG Educação em
Ciências. Líder do Grupo de Pesquisa em
Inovação Pedagógica - GRUPI.

289
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Programa de Pós-graduação Educação: Currículo
Revista e-curriculum ISSN: 1809-3876

CURRÍCULO, TECNOLOGIA E CULTURA DIGITAL:


ESPAÇOS E TEMPOS DE WEB CURRÍCULO

CURRICULUM, TECHNOLOGIES IN EDUCATION AND DIGITAL CULTURE:


SPACES AND TIMES IN WEB CURRICULUM

ALMEIDA, Maria Elizabeth B. de


Professora e coordenadora do
Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

SILVA, Maria da Graça Moreira da

Professora do Departamento de Ciências da Computação e do


Programa de Pós-graduação em Educação: Currículo
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

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RESUMO

Este artigo busca refletir sobre as contribuições propiciadas pelo uso das tecnologias digitais
de informação e comunicação na aprendizagem, no ensino e no desenvolvimento do currículo,
identificar as possibilidades de mudanças educacionais evidenciadas com sua inserção nas
escolas ligadas a distintos sistemas de ensino público ou privado. Tem como argumento
central a integração das tecnologias ao currículo, desenhando o termo web currículo para
cunhar esse conceito em construção. Toma como elemento fundante para esta construção o
conceito de currículo enquanto uma construção social que se desenvolve na ação, em
determinado tempo, lugar e contexto, com o uso de instrumentos culturais presentes nas
práticas sociais. Para contribuir com essa construção, este artigo pontua, ainda, alguns dos
temas que emergiram em relevantes debates entre educadores durante a realização do I e II
Seminário Web Currículo.

Palavras-chave: tecnologias na educação – currículo - web currículo - cultura digital.

ABSTRACT

This paper reflects on the contributions offered by the use of Information and Communication
Technology (ICT) in teaching, learning and curriculum structuring. Identifies possibilities for
educational changes evidentiated by the inclusion of technologies in education systems. The
main idea of this paper is the integration of technologies into the curriculum and aims to draw
the concept of web curriculum. The founding element for structuring this concept considers
curriculum as social construction that develops in action at any given time, place and context,
using these cultural tools in social practices. Contributing to this articulation, this article also
points out some of relevant discussions among educators which happened during the I and II
Seminar Web Currículo.

Key Words: technologies in education – curriculum - web curriculum - digital culture

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1. CONTEXTUALIZAÇÃO

Nas últimas décadas grupos de pesquisa de diferentes partes do mundo ocidental vêem
se dedicando ao desenvolvimento de estudos sobre tecnologias na educação, considerado
como um tema da ciência, que traz em seu bojo os conceitos de pluralidade, inter-relação,
abertura e intercâmbio crítico de ideias, concepções, experiências e saberes advindos de distintas
áreas de conhecimento, que se integram com as tecnologias e interferem nos modos de pensar,
fazer e se relacionar.
Após um período de estudos sobre porque, o que e para que utilizar tecnologias na
educação, as investigações se voltaram para a concepção, gestão e avaliação dos processos de
ensino e de aprendizagem que se desenvolvem mediatizados pelas tecnologias digitais. Essas
investigações versam sobre o uso de tecnologias digitais de informação e comunicação –
TDIC em ambientes de aprendizagem com suporte em plataformas instaladas em servidores
dedicados, constituídos de ferramentas que propiciam a comunicação, a organização de
conteúdos hipermidiáticos e a gestão de informações, recursos e participações, com acesso
restrito viabilizado por meio de senhas.
No momento em que distintos artefatos tecnológicos começaram a entrar nos espaços
educativos trazidos pelas mãos dos alunos ou pelo seu modo de pensar e agir inerente a um
representante da geração digital evidenciou-se que as TDIC não mais ficariam confinadas a
um espaço e tempo delimitado. Tais tecnologias passaram a fazer parte da cultura, tomando
lugar nas práticas sociais e resignificando as relações educativas ainda que nem sempre
estejam presentes fisicamente nas organizações educativas. Dentre os artefatos tecnológicos
típicos da atual cultura digital, com os quais os alunos interagem mesmo fora dos espaços da
escola, estão os jogos eletrônicos, que instigam a imersão numa estética visual da cultura
digital; as ferramentas características da Web 2.0, como as mídias sociais apresentadas em
diferentes interfaces; os dispositivos móveis, como celulares e computadores portáteis, que
permitem o acesso aos ambientes virtuais em diferentes espaços e tempos, dentre outros.
Com o propósito de identificar as contribuições propiciadas pelo uso das TDIC na
aprendizagem e no ensino e de identificar as possibilidades de mudanças educacionais
evidenciadas com a implantação de políticas públicas que viabilizaram sua inserção nas
escolas ligadas a distintos sistemas de ensino, passamos a nos dedicar a investigações sobre a
integração das tecnologias com o currículo. Na escola, as tecnologias não ficam apenas
isoladas em laboratórios e começam, pouco a pouco, a ser integradas às atividades de sala de

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aula e a outros espaços da escola ou fora dela para uso de acordo com as necessidades e
interesses evidenciados a qualquer momento.
Desta forma, o emprego das tecnologias na educação como coadjuvantes nos
processos de ensino e aprendizagem para apoio às atividades ou, ainda, para motivação dos
alunos, gradualmente dá lugar ao movimento de integração ao currículo do repertório de
práticas sociais de alunos e professores típicos da cultura digital vivenciada no cotidiano
(SILVA, 2010).
Nessa perspectiva, tecnologias e currículo passam a se imbricar de tal modo que as
interferências mútuas levam a ressignificar o currículo e a tecnologia, e então começamos a
criar um novo verbete - web currículo, cuja construção analisamos neste artigo.

2. TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO

Entendemos que as TDIC na educação contribuem para a mudança das práticas


educativas com a criação de uma nova ambiência em sala de aula e na escola que repercute
em todas as instâncias e relações envolvidas nesse processo, entre as quais as mudanças na
gestão de tempos e espaços, nas relações entre ensino e aprendizagem, nos materiais de apoio
pedagógico, na organização e representação das informações por meio de múltiplas
linguagens.
A disseminação e uso de tecnologias digitais, marcadamente dos computadores e da
internet, favoreceu o desenvolvimento de uma cultura de uso das mídias e, por conseguinte,
de uma configuração social pautada num modelo digital de pensar, criar, produzir, comunicar,
aprender – viver. E as tecnologias móveis e a web 2.0, principalmente, são responsáveis por
grande parte dessa nova configuração social do mundo que se entrelaça com o espaço digital.
As tecnologias móveis já começam a se fazer presentes na educação, em parte com os
computadores portáteis, telefones celulares ou outros dispositivos móveis, que propiciam a
conexão contínua e sem fio, a constituição de redes móveis entre “pessoas e tecnologias
nômades que operam em espaços físicos e não contíguos" (SANTAELLA, 2007, p.200), e a
fusão das fronteiras entre espaços físicos e digitais.
O uso dessas TDIC permite estabelecer relacionamentos e conexões entre distintos
contextos de práticas sociais, aninhados em diversos suportes digitais (textos, imagens,
vídeos, áudios, hipertextos, representações tridimensionais...) interativos, que propiciam aos
inter-atores a escolha dos elementos (nós) e caminhos a seguir, criando as próprias narrativas,
ou seja, produzindo uma nova obra e tornando-se co-autor da obra original (MANOVICH,

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2005). Desse movimento emerge um novo significado, que integra novas e velhas mídias e
formas de representação do pensamento.
Assim, a escola, que se constitui como um espaço de desenvolvimento de práticas
sociais se encontra envolvida na rede e é desafiada a conviver com as transformações que as
tecnologias e mídias digitais provocam na sociedade e na cultura, e que são trazidas para
dentro das escolas pelos alunos, costumeiramente pouco orientados sobre a forma de se
relacionar educacionalmente com esses artefatos culturais que permeiam suas práticas
cotidianas. Diante dessa constatação, Wim Veen e Ben Vrakking (2009) usam, desde meados
desta década, a expressão Homo Zappiens para denominar essa geração de crianças e
adolescentes que "consideram a escola como um lugar de encontro com os amigos, mais do
que um ambiente de aprendizagem”. (p. 47). Crianças e adolescentes nascidos após a década
de 1980, que cresceram com a internet, habituaram-se a usar jogos eletrônicos, a produzir,
interagir e compartilhar informações por meio de redes sociais e a utilizar dispositivos
móveis, são chamados por geração Y ou, ainda geração pós-internet, e demandam a “inserção
das tecnologias digitais nas práticas educativas”. (LARA; QUARTIERO, 2010) e
provavelmente sentem a “não-presença destas tecnologias nos processos educativos” (idem,
p.3).
O percentual de crianças entre 5 a 9 anos que se situam nessa categoria vem
aumentando a passos largos, conforme resultados da pesquisa intitulada TIC Crianças 2009
(CGI.br, 2010), que identificou o percentual de 57% das crianças nessa faixa etária que já
utilizaram um computador e 29% das crianças brasileiras já acessaram a internet. Segundo o
mesmo estudo, “Apesar da importância da mídia na formação educacional da criança, as
escolas desempenham papel secundário como local de uso da Internet“ (p.24).
O pensamento das novas gerações se desenvolve no âmago de um sistema de co-
produção mediatizado pelas TDIC compondo uma ecologia cognitiva (LÉVY, 1993) na
medida em que transforma a configuração da rede social ao envolver pessoas, objetos
técnicos, valores, práticas, significados e pensamentos articulados em “uma rede na qual,
neurônios, módulos cognitivos, humanos, instituições de ensino, línguas, sistemas de escrita,
livros e computadores interconectam, transformam e traduzem as representações” (LÉVY,
1993, p.135).
A efetiva participação da escola nessa ecologia implica em promover a formação de
educadores oferecendo-lhes condições de integrar criticamente as TDIC à prática pedagógica.
Para tanto, é preciso que o educador possa apropriar-se da cultura digital e das propriedades
intrínsecas das TDIC, “utilizá-las na própria aprendizagem e na prática pedagógica e refletir

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sobre por que e para que usar a tecnologia, como se dá esse uso e que contribuições ela pode
trazer à aprendizagem e ao desenvolvimento do currículo” (ALMEIDA, 2010, p.68).
Além dos educadores, é preciso criar condições para que a escola como um todo tome
parte da cultura digital e, portanto, se articule com a comunidade global, que se estrutura,
dentre outros componentes, por meio das TDIC e mídias digitais.
Para compreender o porquê, para que, com quem, quando e como se integrar com a
cultura digital por meio do uso das TDIC, é importante assumir uma posição crítica,
questionadora e reflexiva diante da tecnologia, que expresse o processo de criação do ser
humano, com todas as suas ambiguidades e contradições, uma vez que

[...] o exercício de pensar o tempo, de pensar a técnica, de pensar o


conhecimento enquanto se conhece, de pensar o quê das coisas, o para quê, o
como, o em favor de quê, de quem, o contra quê, o contra quem são
exigências fundamentais de uma educação democrática à altura dos desafios
do nosso tempo (FREIRE, 2000, p. 102).

A formação de professores é essencial para a leitura e a posição crítica frente às


tecnologias. Assim, a formação de professores para a incorporação e integração das TDIC
inter-relaciona as diferentes dimensões envolvidas no seu uso, quais sejam: dimensão crítica
humanizadora, tecnológica, pedagógica e didática (ALMEIDA, 2007). A dimensão crítica
humanizadora do ato pedagógico representa uma opção política ancorada em valores e
compromissos éticos que relacionam a teoria com a prática, a formação de educadores com o
fazer pedagógico e o pensar sobre o fazer, o currículo com a experiência e com a emancipação
humana. O domínio instrumental se desenvolve articulado com a prática pedagógica e com as
teorias educacionais que permitem refletir criticamente sobre o uso das TDIC na educação. A
dimensão tecnológica corresponde ao domínio das tecnologias e suas linguagens de tal modo
que o professor explore seus recursos e funcionalidades, se familiarize com as possibilidades
de interagir por meio deles e tenha autonomia para desenvolver atividades pedagógicas que
incorporem as TDIC. A dimensão pedagógica se refere ao acompanhamento de processo de
aprendizagem do aluno, a busca de compreender sua história e universo de conhecimentos,
valores, crenças e modo de ser, estar e interagir com o mundo mediatizado pelos instrumentos
culturais presentes em sua vida. A dimensão didática se refere ao conhecimento do professor
em sua área de atuação e às competências relacionadas aos conhecimentos globalizantes, que
são mobilizados no ato pedagógico.
Evidencia-se que o processo de formação se estrutura por meio de dinâmicas
propulsoras da inter-relação entre teoria e prática, constituindo a práxis contextualizada que

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permite ao educador identificar a razão de ser da tecnologia e de seus usos (FREIRE, 1984) de
modo a utilizá-la em favor de uma educação emancipadora, que conduza à humanização do
professor. Trata-se da reeducação do olhar pedagógico do docente (Arroyo, 2000), voltada à
compreensão de seu papel como sujeito participante na transformação da educação e do
mundo (FREIRE, 1977) e ao reconhecimento do aluno como sujeito de conhecimento,
construtor da própria história com o uso de instrumentos da cultura. A integração das TDIC
ao currículo demanda, dessa forma, que os agentes da educação (professor, aluno, gestor e
comunidade) façam a leitura crítica do mundo digital, o interprete e “lancem sobre ele suas
palavras” (ALMEIDA, 2009). Mas “a leitura deste mundo não pode ser feita com os mesmos
instrumentos de mundos passados” (idem, p. 30).
As tecnologias por si só não garantem a educação democrática, mas estar conectado,
saber ler, participar do mundo digital e da rede de comunicação, são condições prévias e
alimentadoras da liberdade – e por ela alimentadas (ALMEIDA, 2011). A inclusão das TDIC
na educação demanda políticas públicas voltadas para a inclusão social e para a inserção da
população na sociedade digital.
No entanto, ainda que nos últimos anos as iniciativas de uso das TDIC na educação
tenham se constituído como uma das prioridades das políticas públicas de diferentes países e
que diversos programas e projetos tenham sido executados, as análises dos impactos do uso
pedagógico dessas tecnologias nas escolas evidenciam resultados diferentes. Diversos
estudiosos desse tema (ALMEIDA, 2008; COSTA e VISEU, 2007; COSTA, 2004) indicam
que a presença das TDIC nas escolas por si só não é garantia de resultados satisfatórios na
melhoria da aprendizagem e no desenvolvimento do currículo e, muitas vezes o uso das TDIC
se restringe a atividades pontuais sem uma real integração ao currículo (VALENTE;
ALMEIDA, F., 1997; ALMEIDA, 2008).
De fato, relatório da Comissão Européia (BALANSKAT; BLAMIRE; KEFALA,
2006) sobre o uso das TDIC na educação não superior identifica diferenças consideráveis nos
resultados entre escolas de uma mesma região ou país. Ele recomenda que a formação de
educadores para o uso pedagógico das TDIC tenha foco na escola e nas necessidades
específicas de desenvolvimento pessoal e profissional contínuo dos professores, bem como
em práticas pedagógicas baseadas no desenvolvimento de projetos, na resolução de problemas
e na aprendizagem ativa.
É importante salientar que a formação do professor para o uso das TDIC é referência
para sua prática pedagógica e assim a concepção embasadora e as práticas desenvolvidas no
processo de formação se constituem como inspiração para que ele possa incorporar as TDIC

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ao desenvolvimento do currículo. Logo, a problemática da integração das TDIC na educação


precisa levar em conta a formação de professores em articulação com o trabalho pedagógico e
com o currículo, que é reconfigurado no ato pedagógico pelos modos de representação e
produção de conhecimentos propiciados pelas TDIC. Evidencia-se assim a constituição de um
currículo que é reconstruído por meio da web e demais propriedades inerentes às TDIC, o que
denominamos de web currículo.

3. WEB CURRÍCULO

Integrar as TDIC com o currículo significa que essas tecnologias passam a compor o
currículo, que as engloba aos seus demais componentes e assim não se trata de ter as
tecnologias como um apêndice ou algo tangencial ao currículo e sim de buscar a integração
transversal das competências no domínio das TDIC com o currículo, pois este é o orientador
das ações de uso das tecnologias. Logo, precisamos esclarecer o que entendemos por
currículo, cujo conceito é polissêmico.
As características da sociedade atual de instabilidade e mudança, a provisoriedade do
conhecimento, as transformações das ciências, as mudanças na organização do trabalho e o
surgimento constante de novas profissões indicam que o currículo visto como grade curricular
composta de unidades de ensino predefinidas ou conjunto de prescrições não responde aos
problemas atuais da educação. Concordamos com Goodson (2007) que não adianta substituir
as listas de conteúdos por novas prescrições ou efetuar reformas nos métodos e diretrizes, é
preciso “questionar a verdadeira validade das prescrições predeterminadas em um mundo em
mudança” (p. 242), que impulsiona a construção de currículo por narrativas de aprendizagem.
Entendemos o currículo como uma construção social (Goodson, 2001) que se
desenvolve na ação, em determinado tempo, lugar e contexto, com o uso de instrumentos
culturais presentes nas práticas sociais (ALMEIDA; VALENTE, 2011). Com base em Dewey
(1971), o desenvolvimento do currículo tem na experiência do aluno seu ponto de partida,
mas não se restringe a ela, uma vez que as atividades pedagógicas têm a intenção de propiciar
a aprendizagem e o desenvolvimento do aluno no sentido de avançar de um conhecimento do
senso comum para o conhecimento científico (VYGOTSKY, 1989).
Nossa compreensão de currículo alinha-se com a perspectiva sócio-cutural no sentido
proposto por Moreira (2007) que acentua a tensão existente no processo curricular entre dois
focos: o conhecimento escolar e a cultura. Isto significa que o currículo envolve tanto
propiciar ao aluno a compreensão de seu ambiente cotidiano como comprometer-se com sua

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transformação; criar condições para que o aluno possa desenvolver conhecimentos e


habilidades para se inserir no mundo como atuar em sua transformação; ter acesso aos
conhecimentos sistematizados e organizados pela sociedade como desenvolver a capacidade
de conviver com a diversidade cultural, questionar as relações de poder, formar sua identidade
e ir além de seu universo cultural.
A integração das TDIC na educação (Sánchez, 2002) pode ocorrer em três níveis:
aprendizagem, uso ou integração, sendo que o 1º nível trata de aprender sobre as TDIC; o
segundo se refere ao uso no âmbito de alguma atividade pedagógica, mas sem uma
intencionalidade clara do que se pretende com esse uso para a aprendizagem; no 3º nível é
que se enquadra o uso das TDIC integradas ao currículo com clareza das intenções
pedagógicas e das contribuições que se espera para a aprendizagem, sendo as TDIC
consideradas invisíveis. Nesse terceiro nível é que identificamos as possibilidades de as TDIC
trazerem contribuições ao desenvolvimento do currículo na concepção que adotamos, uma
vez que
Integrar curricularmente las TIC´s implica necessariamente la incorporación
y la articulación pedagógica de las TIC´s en el aula. Implica tambiém la
apropiación delas TIC´s, el uso de las TIC´s de forma invisible, el uso
situado de las TIC´s, centrando se em la tarea de aprender y no en las
TIC´s... (SANCHÉZ, 2002, p.4)

Nessa perspectiva integradora compreendemos que o currículo se desenvolve com a


exploração das propriedades das TDIC para a expressão do pensamento por meio da escrita,
da imagem, do som e da combinação de suas múltiplas modalidades, impulsionando a
comunicação, a criação de redes móveis (SANTAELLA, 2007) e a coautoria nas obras
(MANOVICH, 2005). O web currículo potencializa a criação de narrativas de aprendizagem
(GOODSON, 2007), o protagonismo pelo exercício da autoria, o diálogo intercultural
(MOREIRA, 2007) e a colaboração entre pessoas situadas em diferentes locais e a qualquer
tempo.
O desenvolvimento do web currículo propicia a articulação entre os conhecimentos do
cotidiano do universo dos alunos, dos professores e da cultura digital com aqueles
conhecimentos que emergem nas relações de ensino e aprendizagem e com os conhecimentos
considerados socialmente válidos e sistematizados no currículo escolar (SILVA, 1995). Os
registros dos processos e produções desenvolvidos pelos sujeitos do ato educativo permitem
identificar o currículo real (ALMEIDA, 2010), que decorre da recriação do currículo na ação.
Desse modo, o currículo real, experienciado na prática social, incorpora conteúdos,
métodos, procedimentos, experiências prévias e atividades desenvolvidas entre professor e

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alunos (GIMENO SACRISTAN, 1998) com a mediatização das TDIC. Portanto, imerso num
ambiente cujas relações se estabelecem em grande parte por meio das tecnologias digitais, o
currículo e sua estruturação não poderiam ficar apartados da prática social.
Essa idéia sobre web currículo tomou vulto e conduziu nossas discussões para
distintos espaços de diálogo com pesquisadores, professores e outros profissionais, quando
então identificamos a importância de ampliarmos o debate com distintas audiências em um
espaço que fosse além do encontro físico, formando um entrelaçado de espaços físicos e
digitais. Assim nasceu a idéia de um evento que denominamos de web currículo.

4. WEB CURRÍCULO EM DEBATE

O interesse pelo web currículo se originou de discussões em disciplinas da linha de


pesquisa de Novas Tecnologias em Educação, no momento em que começamos a analisar as
práticas pedagógicas com o uso de tecnologias móveis em atividades nas quais os alunos do
ensino básico tinham à mão a tecnologia para fazer uso sempre que esta pudesse trazer
contribuições para a compreensão de um tema em discussão e esse uso incorporava os
recursos da web, em especial, da Web 2.0. Os alunos e professores tinham, dessa forma, a
possibilidade de uso imersivo das tecnologias, com conexão à internet e com a possibilidade
de acesso móvel.
Essas situações evidenciavam que estávamos diante de novas possibilidades de
integração das TDIC com o currículo a serem investigadas para identificarmos as mudanças
geradas no currículo, na aprendizagem, nas relações entre professores, alunos e
conhecimentos, na gestão escolar e na própria tecnologia, uma vez que nessa integração todos
os elementos interatuam e se transformam mutuamente. Desde então foram realizados dois
seminários e diversos encontros com participação de educadores e pesquisadores de distintos
países.
No ano de 2008 foi realizado I Seminário Web Currículo cujo tema versou sobre a
Integração de Tecnologias de Informação e Comunicação ao Currículo, realizado pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, e concebido por pesquisadores do
Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo. O evento foi o primeiro realizado
especificamente para tratar de questões relacionadas com a integração de mídias e tecnologias
digitais ao currículo, tendo reunido especialistas do Brasil e de outros países da América
Latina e da Europa. O evento teve o objetivo de discutir investigações a respeito da integração
de tecnologias em práticas educativas, identificar aquelas que privilegiem concepções

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inovadoras de currículo, criar um espaço de divulgação de novas ideias, concepções e


propostas de formação e de trabalho em cooperação entre universidades, sistemas de ensino e
setor corporativo.
Essa concepção de currículo evidenciou que um evento sobre o tema web currículo
deveria trazer à participação distintas organizações que trabalham com o currículo com a
mediação de múltiplas linguagens e tecnologias, tanto no âmbito dos sistemas de ensino como
aquelas que desenvolvem produtos tecnológicos e oferecem serviços para a educação. Nesse
sentido, diversas organizações e profissionais foram convidados a participar com a
apresentação de suas experiências e produções, científicas ou tecnológicas e também com a
proposição de trabalhos para as sessões de comunicação oral, apresentação de pôsteres e
realização de oficinas.
No ano de 2010 foi realizado o II Seminário Web Currículo, com o apoio da CAPES,
tendo apresentado e discutido resultados de investigações e experiências de integração de
tecnologias à prática pedagógica e as concepções de currículo que se explicitam nessas
práticas. A par disso, pretendeu identificar referências teóricas e metodológicas que pudessem
guiar o desenvolvimento de modelos de inovação curricular com a integração da web.
Para compreender e vivenciar o significado do web currículo as atividades do evento,
com diferentes narrativas e ambientes virtuais, foram realizadas simultaneamente em distintos
espaços da PUC/SP e integradas com o meio virtual com ações utilizando web conferências,
mundos virtuais digitais tridimensionais (Second Life), apresentações online (streaming de
vídeo) com interações por meio da Chat, além de contar com um Blog e com o twitter
(twitter.com/webcurriculo), que funcionou como espaço de cobertura do evento e como
espaço de interação e construção de novas aprendizagens. O microblog@webcurriculo
também foi um canal instantâneo de comunicação com pesquisadores presentes ao evento ou
que o acompanhem virtualmente.
Durante o evento presencial foram realizados seminários, palestras de pesquisadores
do Brasil e do exterior, mesas-redondas, exposição de pôsteres, com apresentação de
trabalhos submetidos ao Comitê Científico, oficinas e relatos de práticas, buscando convidar
professores com experiências desenvolvidas em escolas ou outros ambientes educativos ao
debate sobre o tema.
A discussão desenvolvida durante o evento e posterior a ele, ampliou o debate sobe
Web Currículo e expandiu-se, tornando-se objeto de estudos e de integração entre as linhas de
pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Educação: Currículo – CED da PUC/SP, além de
nortear discussões com a comunidade externa.

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Conforme relatório do II seminário Web Currículo (CED-PUC/SP, 2010), dentre os


temas abordados no evento, observa-se no Quadro 1 apresentado a seguir, que, no conjunto
dos trabalhos inscritos há a predominância do tema tecnologia, currículo e formação de
educadores, seguido pelo tema integração de mídias e tecnologias ao currículo; o terceiro
tema é currículo e web 2.0. Já os temas de menor incidência foram: tecnologia, currículo e
avaliação; currículo e comunicação; tecnologia, currículo e cultura.

Comunicação Relato de Submissões


Tema Pôster
oral prática aprovadas
Tecnologia, currículo e formação de
28 11 9 48
educadores
Políticas Públicas para a inserção das
3 2 0 5
TIC no Currículo
Currículo e web 2.0 7 2 3 12
Tecnologias, Currículo e Cultura 3 0 1 4
Integração de mídias e tecnologias ao
9 4 19 32
currículo
Tecnologias móveis e currículo 5 1 1 7
Tecnologias, currículo e pesquisa 3 1 1 5
Currículo e Comunicação 3 0 1 4
Tecnologias, currículo e avaliação 1 0 0 1
Outros 1 4 4 9
Total de trabalhos aprovados 63 25 39 127
Quadro 1- Quantitativo de trabalhos aprovados para apresentação no II Seminário Web Currículo

Para ilustrar reflexões e práticas envolvendo a integração das tecnologias ao currículo,


apresentamos alguns dos temas abordados, a partir da análise da incidência de palavras chave
nas comunicações dos I e II Seminário Web currículo, conforme gráficos 1 e 2, a seguir.

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Gráfico 1- Incidência das palavras-chave das apresentações orais do I Seminário Web Currículo

O Gráfico 1 apresenta a frequência (em porcentagem) das palavras-chave das


apresentações orais no I Seminário Web Currículo. O gráfico indica que o tema Tecnologias
da Informação e Comunicação (31,7%) ocupou o primeiro lugar na atribuição de palavras
chave nas apresentações orais no ano de 2008. O tema Educação a Distância, por sua vez, foi
mencionado em 30% das apresentações, ao passo que Formação de Professores, em 26,7%
das palavras chave mencionadas e Currículo, em 20%. A incidência das palavras chave
relacionadas às Tecnologias e Educação a Distância chama a atenção para os debates no ano
de 2008.
A seguir, é apresentado o Gráfico 2 com as palavras chave referentes às comunicações
orais apresentadas no II Seminário Web Currículo:

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Gráfico 2 - Incidência das palavras-chave das apresentações orais do II Seminário Web Currículo

O Gráfico 2 apresenta a porcentagem das palavras-chave utilizadas nas apresentações


orais no II Seminário Web Currículo realizado no ano de 2010. A análise do gráfico indica
que os temas Formação de Professores (23,8%), Tecnologias da Informação de Comunicação
(22,2%) e Currículo (19%) apresentaram maior incidência nas palavras chave e, portanto,
indicam que os trabalhos sobre formação de professores ocupam o primeiro lugar nos debates.
O tema Tecnologias, que foi o mais citado no I Seminário, deixa de ser o principal
citado nas palavras chave no II Seminário e, embora com frequência significativa, se alinha
mais harmonicamente com os temas Currículo e Formação de Professores.
A menor incidência de palavras chave relacionadas ao tema Tecnologias no II Web
Currículo pode ser analisada, também, pela diminuição do emprego de palavras chave como
Ambiente Virtual de Aprendizagem, Blog, Ferramentas de Colaboração e Tecnologias
Educacionais no ano de 2010, dando lugar ao Desenho Didático e à Prática Pedagógica, mais
voltados à ação docente do que ao emprego ou à análise das tecnologias propriamente ditas.
O tema Educação a Distância (EaD), que aparece em 30% das palavras chave dos
artigos no I Seminário Web Currículo no ano de 2008, no II Seminário representou 14,3% das
palavras chave das apresentações. Ao passo que o tema Docência online (refere-se ao trabalho
do professor em ambientes virtuais), não mencionado no I Seminário, teve a incidência de
14,3% no ano de 2010. Essa evolução pode indicar que o termo Educação a Distância passou

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por uma diferenciação, emergindo novas denominações, que representam os desdobramentos


em funções mais específicas da atuação docente com o uso de TDIC e não exclusivamente em
EaD de modo mais amplo. Isto sugere um aprofundamento na compreensão da EaD e a
preocupação com o papel do docente nessa modalidade educativa.
A análise dos Gráfico 1 e Gráfico 2 indica a evolução dos debates entre os
pesquisadores e a emergência da tríade: Formação de Professores –tecnologias - Currículo nos
temas em estudo.
A análise dos temas tratados nos relatos de experiência no ano de 2010, por sua vez,
apresenta uma instigante característica, que comentamos a seguir.

Recurso Utilizado Incidência Atividades Desenvolvidas Objetivo


Combinação de mídias 7 Projeto com aluno Autoria
Autoria /Apoio ao ensino
Laptop educacional 6 Laboratório de Física presencial
Software de autoria 4 Ensino Apoio ao ensino presencial
Software de autoria 4 Projeto com aluno Autoria
Blog 3 Projeto com aluno Autoria
Computador-internet 3 Criação de webquest Apoio ao ensino presencial
3 Letramento digital do
Computador-internet Formação de professores professor
2 Letramento digital do
Educação a Distância Formação de professores professor
Software educacionais 2 Projeto com aluno Autoria
Quadro 2 - Relatos de Experiência - II Web Currículo

Os educadores que apresentaram suas experiências, em sua maioria, utilizaram uma


combinação de mídias presentes na escola (laboratório de informática) ou no cotidiano dos
alunos (câmera fotográfica, celulares etc.) para o desenvolvimento de projetos com os
próprios alunos sobre temas em estudo ou temas transversais.
Observamos no Quadro 2 uma forte incidência de atividades centradas no
desenvolvimento de projetos que privilegiam a autoria do aluno, o que sugere a adoção de
abordagens pedagógicas em consonância com as características das TDIC com indícios da
presença da cultura digital na escola. (Almeida, 2010).
Os laptops educacionais foram mencionados em relatos envolvendo atividades de
autoria com alunos ou apoio ao ensino presencial. Essa utilização voltada ao desenvolvimento
de projetos com foco na autoria reafirma, segundo(Manovich, 2005, que o uso dessas TDIC

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permite estabelecer relacionamentos e conexões entre distintos contextos de práticas sociais,


aninhados em diversos suportes digitais (textos, imagens, vídeos, áudios, hipertextos,
representações tridimensionais...).
Os relatos sobre as experiências voltadas à formação de professores estavam
relacionados ao letramento digital dos próprios professores, o que pode indicar um processo
de aprendizagem sobre as TDIC com vistas ao desenvolvimento da fluência tecnológica,
aproximando-se assim do nível I de uso das TDIC, conforme identificado por Sanches (2002).
É interessante pontuar que a maior parte dos recursos tecnológicos ou ferramentas
utilizadas para o trabalho com alunos e professores apresentados nos relatos referem-se ao uso
de recursos não específicos para a educação, como os software educacionais, mas recursos e
ferramentas de uso no dia a dia, dentro ou fora da escola, como computador, internet e
software de autoria, sugerindo a criação de uma ecologia cognitiva (Lévy, 1993) com o
envolvimento de tecnologias, pessoas, valores, práticas e significados, que se transformam
mutuamente nas práticas desenvolvidas.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise das palavras chave das comunicações orais no I e II Seminários Web


Currículo apontou que a tríade Tecnologias-Currículo-Formação de Professores tem tomado
a cena quando objetiva o debate a respeito da integração de tecnologias em práticas
educativas.
Essa análise reitera, como mencionado inicialmente neste artigo, a importância e
relevância da formação de professores em articulação com o trabalho pedagógico e com o
currículo, que é reconfigurado no ato pedagógico pelos modos de representação e produção de
conhecimentos propiciados pelas TDIC.
Pode-se identificar, também, pela análise dos temas debatidos nos dois seminários a
partir das apresentações de resultados de pesquisas e de relatos de experiências que as
tecnologias estão rompendo com o isolamento em laboratórios e começam a ser integradas às
atividades de sala de aula e a outros espaços da escola ou fora dela.
Corrobora-se a constituição de um currículo que é reconstruído por meio da web e
demais propriedades inerentes às TDIC, o que denominamos de web currículo.
Evidencia-se, portanto, a relevância da continuidade das pesquisas sobre a constituição
do web currículo na prática social de educadores e estudantes envolvidos com a construção do
currículo experienciado que se desenvolve na cultura digital.

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Breve Currículo do(s) autor/autora (s): Maria Elizabeth B. de Almeida é doutora em


Educação pela PUC/SP, com pós-doutorado na Universidade do Minho, Portugal, no Instituto
de Educação e Psicologia, Departamento de Currículo e Tecnologia Educativa. Possui
graduação em Matemática pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho
(1973), especialização em Informática na Educação pela Universidade Estadual de Campinas
(1989), mestrado em Educação (Currículo) pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (1996). Coordena o projeto de pesquisa “Integração de Tecnologias na Educação com o
uso de ferramentas da web 2.0”, com fomento do CNPq e o Projeto “Gestão Escolar e
Tecnologias”, da PUC/SP em parceria com Microsoft Brasil, CONSED, Undime e Centro
Paula Souza. É membro do grupo de assessores pedagógicos ao projeto Um Computador por
Aluno – UCA, do governo federal e Ministério da Educação e orientadora do experimento do
Projeto UCA no Estado do Tocantins.
Atualmente é Professor associado da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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Maria da Graça Moreira da Silva concluiu o doutorado em Educação (Currículo) pela


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 2004. Atualmente é docente do
Departamento de Ciências da Computação e docente participante do programa de Pós-
graduação em Educação: Currículo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Vem
atuando na implantação e coordenação de projetos de EAD em instituições de ensino superior,
com ênfase na formação de docentes para o uso de mídias e tecnologias na educação e no
desenho instrucional de materiais didáticos para EAD. Participou de diversos projetos junto à
SEED do MEC e em outras instituições. Em seu currículo Lattes os termos mais freqüentes na
contextualização da produção científica, tecnológica e artístico-cultural são: ambientes
virtuais de aprendizagem, educação a distância, computadores e educação, e-learning,
formação de professores, tecnologia educacional, computadores educação, educação especial,
design instrucional e educação e tecnologia.

Artigo recebido em 10/03/2011


Aceito para publicação em 01/04/2011

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