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ISSN 2525-5703

“Por uma Geografia Escolar Crítica”

Revista GeoSertões
(Unageo-CFP-UFCG)
Vol. 5, nº 10, jun./dez. 2020
Revista GeoSertões – ISSN 2525-5703

A GeoSertões é uma revista acadêmica com publicação semestral em meio eletrônico


da Unidade Acadêmica de Geografia do Centro de Formação de Professores, campus
Cajazeiras, da Universidade Federal de Campina Grande. Seu objetivo principal é
oportunizar a divulgação de múltiplos conhecimentos da Ciência Geográfica e áreas
afins.

EXPEDIENTE

EDITOR-GERENTE E EDITOR
Dr. Santiago Andrade Vasconcelos, Universidade Federal de Campina Grande (CFP-
UFCG), Brasil.

EDITORES DE SEÇÕES
Dr. Santiago Andrade Vasconcelos, Universidade Federal de Campina Grande (CFP-
UFCG), Brasil.
Dr. Paulo Sérgio Cunha Farias, Universidade Federal de Campina Grande (UAEd-CH-
UFCG), Brasil.

CONSELHO EDITORIAL
Dr. Aloysio Rodrigues de Sousa, Universidade Federal de Campina Grande (CFP-UFCG),
Brasil.
Dra. Ivanalda Dantas Nóbrega Di Lorenzo, Universidade Federal de Campina Grande
(CFP-UFCG), Brasil.
Dra. Cícera Cecília Esmeraldo Alves, Universidade Federal de Campina Grande (CFP-
UFCG), Brasil.
Dr. Marcelo Brandão, Universidade Federal de Campina Grande (CFP-UFCG), Brasil.
Dra. Jacqueline Pires Gonçalves Lustosa, Universidade Federal de Campina Grande (CFP-
UFCG), Brasil.
Dr. Santiago Andrade Vasconcelos, Universidade Federal de Campina Grande (CFP-
UFCG), Brasil.

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CONSELHO CIENTÍFICO
Dr. Caio Augusto Amorim Maciel, Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil
Dr. Ivan Silva Queiroz, Universidade Regional do Cariri – (URCA), Brasil
Dr. Paulo Sérgio Cunha Farias, Universidade Federal de Campina Grande – (UAEd-CH-
UFCG), Brasil
Dr. Gleydson Pinheiro Albano, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
Dra. Firmiana Fonseca Siebra, Universidade Regional do Cariri – (URCA, Dep.de
Geociências), Brasil
Dra. Emília de Rodat Fernandes Moreira, Universidade Federal da Paraíba (UFPB),
Brasil
Dr. Marco Antônio Mitidiero Jr., Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Brasil
Dr. Wagner Costa Ribeiro, Universidade de São Paulo (USP), Brasil

APOIO TÉCNICO OPERACIONAL

Antônio Lourenço Filho

CAPA, LAYOUT E DIAGRAMAÇÃO


Santiago Andrade Vasconcelos

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FICHA CATALOGRÁFICA
Revista GeoSertões – Unidade Acadêmica de Geografia do Centro de Formação de Professores da
Universidade Federal de Campina Grande. – v. 5, n. 10 (2020). Cajazeiras: Universidade Federal de
Campina Grande, 2016 -
Semestral: 2016 –

ISSN: 2525-5703

I Ensino superior – Periódicos. II. Universidade Federal de Campina Grande. III. Título

Revista GeoSertões (<https://cfp.revistas.ufcg.edu.br/cfp/index.php/geosertoes/index>)


E-mail: geosertoes@gmail.com
Unidade Acadêmica de Geografia (Unageo)
Centro de Formação de Professores, Universidade Federal de Campina Grande (CFP-UFCG)
Rua Sérgio Moreira de Figueiredo s/n - Casas Populares – CEP: 58900-000 - Cajazeiras - PB
Tel.: (83) 3532-2000 (ramal 2101)

Licença

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SUMÁRIO

EDITORIAL/APRESENTAÇÃO

Por uma Geografia Escolar Crítica [p. 6-11]


Paulo Sérgio Cunha Farias
Santiago Andrade Vasconcelos

DOSSIÊ: “Por uma Geografia Escolar Crítica”


A geografia escolar crítica e a formação para a [p. 12-39]

cidadania
Paulo Sérgio Cunha Farias

Reflexões sobre a importância da geografia crítica na [p. 40-57]

formação do ator ativo, consciente e crítico para a


compreensão dos espaços que frequentam e habitam
João Manoel de Vasconcelos Filho

O ensino de geografia na perspectiva da cidade [p. 58-83]

educadora
Elany Cristina Barros da Silva
Genylton Odilon Rêgo da Rocha

Geografia agraria na sala de aula: novos desafios para [p. 84-106]

entender o “novo rural”


Gleydson Pinheiro Albano

O estudo do meio e o (re) pensar a prática de ensino na [p. 107-125]

perspectiva crítica da geografia


Marlene Macario Oliveira

A cartografia escolar no movimento da geografia [p. 126-150]

crítica: elementos para debates


Ângela Massumi Katuta

Discutindo a geografia crítica na prática de ensino [p. 151-166]


Maria Francineila Pinheiro dos Santos
Mariana Guedes Raggi

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A geografia crítica nas experiências do PIBID [p. 167-183]


Sérgio Luiz Malta de Azevedo
Josandra Araújo Barreto de Melo

A geografia crítica: um olhar sobre a diversidade na [p. 184-206]

educação geográfica
Sonia Maria de Lira

A questão racial e a geografia escolar crítica: [p. 207-225]

caminhos para uma educação antirracista


Aiala Colares Oliveira Couto

O ensino de geografia nos anos iniciais: o lugar em [p. 226-240]

Milton Santos como ponto de partida


Virgínia Célia Cavalcante de Holanda

Caminhos pedagógicos no período histórico atual: [p. 241-255]

esteios à construção de uma “prisão”


racionalista/instrumental de seres alienados e
maquínicos, ou uma ágora de “razão e emoção”
libertadoras e cidadãs?
Alcindo José de Sá

ARTIGO

Riscos e vulnerabilidades socioambientais [p. 257-276]

decorrentes de eventos climáticos e geomorfológicos


na cidade de Campina Grande–PB
Rejane do Nascimento Silva
Sérgio Murilo Santos de Araújo

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DOSSIÊ: “Por uma Geografia Escolar Crítica”

EDITORIAL/APRESENTAÇÃO

Por uma Geografia Escolar Crítica

A
Revista GeoSertões tem a satisfação de colocar à disposição dos
leitores o dossiê “Por uma Geografia Escolar Crítica”. O referido
dossiê nasce das urgências históricas do tempo do presente, no qual
a perversidade sistêmica da globalização do capitalismo neoliberal se
impõe. Esse período da história humana vem se amparando nas tecnologias da
informação e em parâmetros normativos que reforçam o caráter ubíquo do
capital e solapam ou precarizam o trabalho. Isso tem aprofundado as
desigualdades sociais e espaciais e, portanto, as contradições inerentes às
formações socioespaciais regidas pela economia de mercado. Nasce, também,
da insatisfação dos autores com as políticas curriculares e educacionais em
geral, que, ao considerar a educação como serviço a ser buscado no mercado e
ao adotar modelos pedagógicos pragmáticos para os sistemas de ensino, que a
reduzem ao papel de formar visando a preparação para o trabalho e proclamar
as excelências do livre mercado e da livre iniciativa, têm se resumido a atender
às margens corretivas e interesseiras do capital. Isso tem interditado as
pedagogias histórico-críticas e extirpado a Geografia Crítica dos sistemas de
ensino, o que dificulta a leitura espacial dessas contradições por parte de
professores e alunos no processo ensino/aprendizagem da Geografia Escolar.
Essas questões foram observadas, pelos autores, a partir da realidade brasileira
contemporânea.
Para além da urgência do presente dossiê, ele representa também a
comemoração da Revista GeoSertões que chega ao seu número 10. Apesar das
dificuldades enfrentadas por este ser um periódico sediado no interior do país,
ou melhor, no(s) Sertão(ões) e a “margem” dos grandes e tradicionais centros
universitários, seguimos resistindo e persistindo para não sucumbir. O dossiê
ora disponibilizado ao nosso público leitor é a maior prova que estamos
conseguindo vencer as adversidades e nos fortalecer. Somos gratos a todos e
todas que colaboram e têm acreditado na Revista GeoSertões.
- *** -

Apresentação do dossiê
O dossiê traz estudos de releitura e a incorporação de novas abordagens e temas
para a Geografia Escolar Crítica, o que traduz a pluralidade de ideias, teorias e
temáticas dos seus autores. Assim, para uma melhor compreensão, passamos a
sintetizar o conteúdo de cada artigo.
Paulo Sérgio Cunha Farias, no ensaio intitulado A Geografia Escolar Crítica
e a formação para a cidadania, discute o papel da educação fundamentada na
filosofia da práxis e a educação geográfica na Geografia Escolar Crítica como
instrumentos necessários à superação do modelo de sociedade brasileira atual
e da sua cidadania atrofiada, mutilada e amputada, traduzida na figura do
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cidadão produtivo e consumidor, que as propostas curriculares pragmáticas


oficiais contemporâneas objetivam a formar. Considera, ainda, que a Geografia
Crítica Escolar, por possibilitar a leitura das contradições do espaço, pode
contribuir para a formação da consciência política necessária às lutas para a
edificação da cidadania real, integral, irrestrita e concreta.
João Manoel Vasconcelos Filho, no seu artigo Reflexões sobre a importância
da Geografia Crítica na formação do ator ativo, consciente e crítico para a
compreensão dos espaços que frequentam e habitam, analisa a relevância e as
contribuições da Geografia, em geral, e da Geografia Crítica, em particular,
para a construção do ser social ativo, participativo e consciente de sua história
e do cotidiano vivido nos diferentes espaços em que mora e frequenta. Para
isso, a leitura do espaço e da cidade se torna condição ímpar ao entendimento
da teia de relações sociais construídas e impostas, pelo Estado, o mercado e
suas instituições, à classe trabalhadora. Especifica que essa teia de relações nos
espaços de moradia, na escola e na cidade limitam e impedem o processo
ensino/aprendizagem conscientizador da Geografia nos sistemas de ensino
brasileiros.
Genylton Odilon do Rego Rocha e Elany Cristina Barros da Silva, no texto
O ensino de geografia na perspectiva da cidade educadora, apresentam uma
discussão teórica sobre o ensino da disciplina geográfica na educação básica a
partir da cidade educadora enquanto perspectiva de seleção, organização e
construção do conhecimento a ser trabalhado nas aulas. Esclarecem que esse
perspectiva educativa possibilita, ao ensino de Geografia, o redescobrimento
da cidade e a ampliação da noção do espaço de aprendizado, ao tomá-la em sua
totalidade/totalização como um espaço educativo.
Gleydson Pinheiro Albano, na reflexão Geografia Agraria na sala de aula:
novos desafios para entender o “novo rural”, elabora uma proposta
direcionada aos professores de Geografia, com o objetivo de fazê-los refletir
sobre alguns temas importantes e atuais da Geografia Agrária na sala de aula.
Com isso, chama a atenção sobre as novas dinâmicas do espaço agrário,
apresentando-as na perspectiva geográfica crítica.

Marlene Macário de Oliveira, no ensaio denominado O estudo do meio e o


(re) pensar a prática de ensino na perspectiva crítica da Geografia, discute a
contribuição da metodologia do estudo meio a partir do lócus da Geografia
Crítica. Sua análise evidencia que, com essa metodologia nessa perspectiva
teórica do ensino da Geografia, é possível construir um olhar crítico e
investigativo sobre a cidade e o processo de urbanização contemporânea,
incluindo a crítica à exclusão, à pobreza, à violência, aos diferenciados tipos
de segregação no currículo escolar, ao reconhecimento das identidades
socioespaciais, contribuindo, assim, para a emancipação dos sujeitos e o
exercício da cidadania.
Ângela Massumi Katuta, no artigo A Cartografia Escolar no movimento da
Geografia Crítica: elementos para debates, evidencia os desafios inerentes à
Cartografia e Geografia ensinadas em um movimento mais amplo de
democratização das relações sócio territoriais em âmbito planetário;

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problematiza os limites e desafios da Cartografia Escolar; defende que a


Geografia e a Cartografia estão fortemente imbricadas; demonstra que,
historicamente, os mapas foram instrumentos de poder dos grupos
hegemônicos; esclarece que, no Brasil, o fortalecimento do Estado democrático
de direito, das instituições e grupos que atuaram junto aos movimentos
populares para pôr fim à ditadura, ampliaram os produtores e usuários de
mapas, que passaram a diversificar, ampliar e interrogar o repertório
cartográfico existente para a defesa dos direitos às suas geografias
historicamente negadas, sobretudo, aqueles ligados ao reconhecimento dos
seus territórios e territorialidades. Finaliza a reflexão abordando a constituição
do campo de conhecimento denominado Cartografia Escolar no contexto da
Geografia Crítica, apontando seus desafios, sobretudo, no que se refere ao
âmbito do ensino de Geografia voltado ao entendimento dos diferentes modos
de estar no mundo, fundados na solidariedade e na defesa de vida digna para
todos os seres vivos.
As professoras Maria Francineila Pinheiro dos Santos e Mariana Guedes
Raggi, no texto A Geografia Crítica no contexto do Estágio Supervisionado,
tecem reflexões sobre como vem sendo discutida e/ou não a Geografia Crítica
no âmbito do estágio supervisionado em Geografia na UFAL, oportunizando o
entendimento de demais questões, que podem estar, diretamente e/ou
indiretamente, associadas aos percalços encontrados no ambiente escolar.
Sérgio Luiz Malta de Azevedo e Josandra Araújo Barreto de Melo assinam
o texto A Geografia Crítica nas experiências do PIBID. Nele, apresentam
algumas práticas desenvolvidas com o Programa de Iniciação à Docência
(PIBID) na Universidade Estadual da Paraíba – UEPB e Universidade Federal
de Campina Grande – UFCG, no período de 2012 a 2020. Destacam, nesse
estudo, que a formação inicial embasada nas tendências críticas de ensino de
Geografia, com destaque para método dialético, deveria se materializar e
difundir-se no currículo da escola básica, através da dimensão crítica na
Geografia escolar.

Sonia Maria de Lira, na reflexão intitulada A geografia crítica: um olhar


sobre a diversidade na educação geográfica, verifica como algumas
normatizações e documentos curriculares ressaltam sobre as diversidades,
através das relações nos microespaços, envolvendo especificamente indígenas,
negros e mulheres. Discute como a Geografia Crítica pode contribuir com essas
reflexões através da disciplina escolar. Conclui que, a Geografia Crítica, pela
sua característica militante, precisa ampliar suas análises sobre tais temáticas,
influenciando os espaços educacionais e contribuindo para a formação cidadã
comprometida com as mudanças socioespaciais.

Aiala Colares de Oliveira Couto, no artigo A questão racial e a Geografia


Escolar Crítica: caminhos para uma educação antirracista, enfatiza que, no
movimento da chamada Geografia Crítica, as questões étnicorraciais foram
negligenciadas ou invisibilizadas nos vários debates que trouxeram temas
pertinentes que tratavam das contradições históricas da relação capital e

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trabalho. Todavia, destaca que o racismo se constituiu como uma ferramenta


importante na estruturação do capitalismo e, por isso, vários problemas de
ordem política, econômica, social e cultural têm suas bases na ideia de raça.
Portanto, o ensino de Geografia escolar Crítica deve incorporar as pedagogias
antirracistas na sala de aula e nas escolas, contribuindo para o enfretamento ao
racismo.
Virgínia Célia Cavalcante de Holanda, no ensaio O ensino de Geografia nos
anos iniciais: o lugar em Milton Santos como ponto de partida, esclarece que
a perspectiva do trabalho com o lugar é apontada como uma ponte para os
alunos dos anos iniciais desenvolverem a capacidade de identificar e refletir
sobre os diferentes aspectos da relação dialética sociedade-natureza, base
necessária a efetivação de uma Geografia Crítica no processo de leitura do
espaço nos anos subsequentes. Suas reflexões ocorrem em diálogos com
diversos autores do campo da teoria crítica, mas ancoradas, sobretudo, nas
contribuições do geógrafo Milton Santos para compreensão do conceito do
lugar, pensando-o dentro da dialeticidade da totalidade-mundo.

Alcindo José de Sá, no texto Caminhos pedagógicos no período histórico


atual: esteios à construção de uma “prisão” racionalista/instrumental de seres
alienados e maquínicos, ou uma ágora de “razão e emoção” libertadoras e
cidadãs?, aborda, com base na Geografia, Filosofia e várias áreas correlatas,
os percursos pedagógicos do período histórico contemporâneo, buscando
compreender seu papel de destaque na estruturação das sociedades brasileira e
global baseadas em padrões civilizados (civitas) de cidadania e pertencimento
territorial. Salienta, entretanto, que as articulações entre a razão e o dinheiro, o
Estado e o mercado sedimentaram uma base disciplinar pedagógica
matematicamente fria e calculada, alienante e alienada, destinada a pensadores
e fazedores maquínicos e burocráticos, bem como a trabalhadores dotados
apenas de sua força de trabalho como mercadoria vil. No entanto, diante da
fragmentação e da precariedade atual do trabalho e do mundo, afirma que a
história ainda sequer começou. Nesse contexto, alerta que, para uma
sobrevivência humana civilizada, é necessário criar/ resgatar uma paideia em
que a economia não seja mais o fulcro, a base de todos os valores da sociedade,
mas, antes, um simples apêndice, promovendo o resgate de uma sociedade
baseada na verdadeira política. Nesse sentido, defende que, no processo
histórico atual e, em última instância, no processo de ensino/aprendizagem, o
cálculo não deverá ir ao encontro do coração e da carne viva. Portanto, o ensino
de conhecimentos relevantes deve ser, em primeiro lugar, uma iniciação no
âmbito da contextualização, no caso brasileiro, da sua precariedade ambiental
e social.
- *** -

Apresentação do artigo
Na seção de artigos, no presente número contamos com a contribuição de
Rejane do Nascimento Silva e Sérgio Murilo Santos de Araújo. Esses
pesquisadores nos apresentam o estudo Riscos e vulnerabilidades

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socioambientais decorrentes de eventos climáticos e geomorfológicos na


cidade de Campina Grande–PB, que tem por objetivo oferecer os resultados
da pesquisa que analisa os riscos naturais e as vulnerabilidades sociais
decorrentes de eventos climáticos e geomorfológicos na área urbana de
Campina Grande-PB. Os resultados mostraram que a cidade possui áreas de
risco e setores que possuem nível elevado de vulnerabilidade, principalmente
nas margens do perímetro urbano, contrastando com o baixo nível de
vulnerabilidade social verificado na área central da cidade. Os autores
concluem que os mecanismos de defesa civil ainda são insuficientes,
notadamente no que diz respeito a educação para a redução de riscos de
desastres (ERRD) das áreas vulneráveis.
- *** -
Esperamos ter cumprido com os objetivos estabelecidos pelo dossiê, que é o de
propor a leitura crítica do real - o espaço geográfico, por professores
formadores, professores e alunos de Geografia da Educação Básica. Da mesma
forma dos objetivos propostos para dossiê, almejamos o mesmo dos artigos que
também compõem este número. Por fim, desejamos ao leitor uma boa leitura!

Paulo Sérgio Cunha Farias


Editor do Dossiê

Santiago Andrade Vasconcelos


Editor-Gerente/Editor da Revista GeoSertões

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A GEOGRAFIA ESCOLAR CRÍTICA E A FORMAÇÃO


PARA A CIDADANIA

THE CRITICAL SCHOOL GEOGRAPHY AND THE CITIZENSHIP FORMATION

Ravena Valcácer de Medeiros (1)


Paulo Sérgio Cunha Farias (1)

João Manoel de Vasconcelos Filho (2)

(1)
Professor na Universidade Federal de Campina Grande - UAEd-CH, Graduação em Geografia pela
UEPB, mestre e doutor em Geografia pela UFPE
E-mail: pscfarias@bol.com.br

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Resumo

Este ensaio objetiva analisar o papel educativo da Geografia Escolar Crítica na formação para a cidadania no
Brasil. Para isso, amparou-se nos princípios da pesquisa bibliográfica e nos fundamentos da teoria crítica.
Procura revelar como a Educação e a Geografia Escolar, em suas diferentes perspectivas e em diferentes
contextos históricos do país, estiveram no centro dos conflitos inerentes à cidadania. Conclui que a educação
fundamentada na filosofia da práxis e a Geografia Escolar Crítica podem contribuir para a superação do modelo
de sociedade brasileira atual e da sua cidadania atrofiada, mutilada e amputada, que se traduz na figura do
cidadão produtivo e consumidor, que as propostas curriculares pragmáticas oficiais contemporâneas objetivam
formar. Considera que a Geografia Crítica Escolar, por possibilitar a leitura das contradições do espaço, pode
contribuir para a formação da consciência política necessária às lutas para a edificação da cidadania real,
integral, irrestrita e concreta.

Palavras-chave
Educação; Ensino de Geografia; Geografia Escolar Crítica; Cidadania.

Abstract
This essay aims to analyze the Critical School Geography educational role in the formation of citizenship in
Brazil. For this, it relied on the principles of bibliographic research and the foundations of critical theory. It
seeks to reveal how Education and the School Geography, in their different perspectives and in different
historical contexts of the country, are at the center of conflicts inherent to citizenship. It concludes that education
based on the philosophy of praxis and the Critical School Geography can contribute to overcoming the current
Brazilian society model and its stunted citizenship, mutilated, and amputated, which translates into the figure
of the productive and consumer citizen, that contemporary official pragmatic curriculum proposals aim to this
formation. It considers that the Critical School Geography, by enable the space contradictions readings, it can
contribute to the political awareness formation, necessary to the struggles for the construction of real, integral,
unrestricted, and concrete citizenship.

Keywords:
Education; Geography teaching; Critical School Geography; Citizenship.

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Introdução

C
allai (1998), ao levantar os porquês de se estudar Geografia, afirmou que há três
razões que devem ser consideradas, quais sejam: conhecer o mundo e obter
informações; analisar, conhecer e explicar o espaço produzido pela sociedade, as
causas que lhe deram origem; e, por último, algo que não se refere ao conteúdo em si, mas ao
objetivo maior que dá conta de todo o mais: a formação cidadã.
Para ela (op. cit., 57), “instrumentalizar o aluno, fornecer-lhe as condições para que seja
realmente construída a sua cidadania é o objetivo da escola, mas à geografia cabe um papel
significativo nesse processo, pelos temas, pelos assuntos que trata”.
Partindo desse pressuposto, essa reflexão se propõe a analisar os vínculos entre a
educação, a Geografia Escolar e a formação para a cidadania. No entanto, consideramos que
resgatar ou restituir a educação fundamentada nos princípios da filosofia da práxis e a educação
geográfica nos fundamentos da Geografia Escolar Crítica, tão negadas e esquecidas nas
propostas curriculares dos anos de 1990 em diante, é essencial para se alcançar uma educação
geral e geográfica capaz de contribuir para a construção de uma consciência socioespacial
transformadora, necessária à edificação da cidadania plena.
A Geografia Escolar Crítica, pela sua abordagem centrada na instância espacial em suas
contradições e pelos seus objetivos políticos de emancipação e libertação humanas, pode
colaborar para uma leitura geográfica consciente da realidade, condição para a ação política
capaz de superar o modelo social vigente, que atrofia, mutila ou amputa a cidadania no Brasil.
Por isso, a urgência em retomá-la nos nossos sistemas de ensino. Muito além disso, ela deve
contribuir para a resistência e a militância política de professores e alunos contra o status quo
de uma sociedade que se assenta na exploração do trabalho e inibe a concretização do cidadão.
Na Geografia, a questão da cidadania foi tratada por Milton Santos nos idos anos de
1990 do século passado, quando publicou o livro O Espaço do Cidadão, no qual analisa, entre
outros temas, a importância do território usado, o seu aparelhamento e a sua gestão, como
condição para o exercício da cidadania concreta. Nesse livro, levanta duas questões para uma
país onde a figura do cidadão é tão esquecida: quantos habitantes no Brasil são cidadãos?
quantos nem sabem que não são? O tema da cidadania também perpassa o seu livro O país
distorcido, publicado em 2002. Essas questões continuam atuais, o que reafirma as prioridades
esquecidas de uma educação e uma Geografia Escolar para a construção da cidadania.
Assim, em função da urgência e relevância do tema, nesse ensaio, abordamos as
concepções de cidadania e o papel da Geografia Escolar para construí-las. Focalizamos a
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importância da Geografia Escolar Crítica em uma educação geográfica voltada à formação para
a cidadania plena e, finalmente, tecemos algumas considerações finais acerca da temática desse
estudo.

Concepções de cidadania e a Geografia Escolar

Para Cavalcanti (2008), a cidadania é o exercício do direito a ter direitos e, cidadão,


portanto, é aquele que a exerce ativa e democraticamente, inclusive, criando e ampliando
direitos. É na sua plenitude que se torna possível transformar um direito formal em um real,
através da transformação da sua escrita nas letras da lei em sua realização social concreta.
Assim sendo, a cidadania perpassa a conquista e a constante recriação dos direitos civil,
político e social. Além disso, ela pressupõe o princípio de igualdade. Portanto, um conjunto de
direitos e deveres que incondicionalmente deve ser exercido por todos, irrestritamente e, para
isso, as questões relativas ao espaço são fundamentais.
Conforme argumenta Santos (2002b), para passar de abstrata à condição concreta, a
cidadania pressupõe o indivíduo no lugar. Passa, portanto, pela compreensão do território usado
onde ela se materializa ou não. Desse modo, as formas de gestão, os equipamentos no território,
a garantia do seu uso coletivo, representam importantes condicionantes para a sua concretização
ou não. Por isso, é preciso “ultrapassar a vaguidade do conceito e avançar da cidadania abstrata
à cidadania concreta”, para isso, “a questão territorial não pode ser desprezada”. (op. cit., p.
151)
No entanto, cabe descortinar como a noção de cidadania se inscreve na história e os
compromissos da educação e da Geografia Escolar para a sua construção.
Conforme afirma Santos (op. cit.), a palavra cidadão se impõe com as grandes rupturas
históricas que ocorreram na Europa e demarcaram a superação da sociedade feudal e a
emergência da sociedade capitalista. Isso aboliu os vínculos de servidão entre o dono da terra e
o servo, consequentemente, trouxe para a paisagem social europeia o trabalhador livre, os donos
dos meios de produção. Foi nos burgos que essas transformações se concretizaram. Assim,
com o homem do burgo, o burguês, nasce o cidadão, o homem do trabalho livre, que habita um
lugar livre, a cidade.
No entanto, essas rupturas não se efetivaram em todos os contextos territoriais ao
mesmo tempo. Segundo o referido autor (op. cit.), isso demandou um caudal de cultura, um
pensamento revolucionário e sua expansão, que estimularam a rebeldia assentada no êxito, que
desembocou nas relações sociais e de trabalho.
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Entretanto, desde então, a noção de cidadania também foi se definindo ao sabor dos
embates sociais que marcaram a sociedade capitalista. De acordo com Heguette (apud
SANTOS, op. cit., p. 9, nota 1), “no século XIX, com a emergência do Estado-nação em toda a
Europa, este conceito adquiriu um importante elemento: a qualidade de membro”. Assim, a
cidadania era exercida pelo fato do sujeito ser membro de um Estado-nação. Ainda no século
XIX, “o direito de associação - que representa importante direito político -foi incorporado ao
status da cidadania, proporcionando as bases para a classe trabalhadora adquirir direito político”
(HEGUETTE apud SANTOS, op. cit., p. 9, nota 2). A partir da segunda metade do século XX,
“um terceiro conjunto de direitos – os direitos sociais – garantia ao indivíduo um padrão de
vida decente, uma proteção mínima contra a pobreza e a doença, a participação na herança
social” (HEGUETTE apud SANTOS, op. cit., pp. 9-10, nota 3), foi incorporado à cidadania
nos Estados europeus do bem-estar social.
A conquista dos direitos políticos e sociais não foi obra do acaso, ela resultou das lutas
históricas dos trabalhadores, organizados em sindicatos, e dos movimentos sociais, denotando
a capacidade de organização da sociedade civil para alcançá-la.
Por outro lado, como o escopo da cidadania não é o mesmo nos países metrópoles e
satélites, como sugere Haguette (apud Santos, op. cit.), nos países periféricos, como o Brasil, a
garantia e extensão dos direitos políticos dependem da consolidação de regimes democráticos,
que são sempre instáveis, e sociais, que nunca foram garantidos e consolidados de fato. Por
isso, este autor (op. cit.) advoga que, no nosso país, existem diversas categorias de cidadãos,
desde os que têm todos os direitos (os da classe alta), os que querem privilégios e não direitos
para todos (os da classe média) e os que não têm direitos (os pobres).
Ao longo desse processo, cabe-nos atentar como a educação e a Geografia escolar se
inseriram. Podemos afirmar que, sem sombra de dúvidas, ambas estiveram/estão no epicentro
dos embates pela cidadania ao longo do tempo.
A constituição dos sistemas escolares nacionais foi parte do projeto burguês na criação
dos Estados nacionais. Primeiro, com a educação nacional e universal, essa classe, que passa a
exercer a hegemonia política, econômica, social e cultural, fez da escola o lugar de difusão da
sua da ideologia e de combate a do velho regime. Assim, segundo Vesentini (1998), procurou,
através da educação, deslegitimar as raízes pretensamente biológicas (o sangue) e criadas por
Deus da classe nobre e criar uma legitimidade nova, calcada no estudo, no mérito escolar, no
diploma. Segundo, buscou difundir uma ideologia patriótica e nacionalista, para inculcar,
através da escola, que o Estado-nação é natural e eterno, além de apagar da memória coletiva
as formas anteriores de territorialidade das sociedades, a exemplo da cidade-estado, do

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principado, do pequeno reino ou do feudo. Além disso, as pretensas potencialidades naturais, a


originalidade do território nacional, eram enfatizadas como condicionadoras do futuro glorioso
que o esperava.
Por trás do caráter cívico dado ao ensino de cada país, era objetivo da classe burguesa
perpetuar, através dos sistemas educativos nacionais, “a estrutura das relações de classe e, para
legitimá-la, dissimular que as hierarquias escolares que ela produz reproduzem hierarquias
sociais” (BORDIEU e PASSERON apud VESENTINI, 1998, p. 31). Nessa tessitura, a escola
contribuiu para a reprodução do capital, habituando os alunos à disciplina necessária à indústria
moderna, realizando tarefas sem discutir os seus objetivos, respeitando as hierarquias e
funcionando como absorvente do exército de reserva, segurando ou jogando contingentes
humanos no mercado, conforte as demandas da economia. (VESENTINI, op. cit.)
Nesse sentido, conforme Pereira (1999), os sistemas escolares e a escolarização da
população se afirmam ao longo do século XIX, momento de consolidação do Estado nacional
e do capitalismo, sob a hegemonia da burguesia. Esta, detentora do poder político, percebe que
não o manteria apenas pela repressão, mas também pela disseminação dos seus valores de
classes, apresentados como universais. Para isso, criaram-se redes de escolas no interior dos
territórios nacionais europeus que assumiram um caráter nacional, uma vez que, para a criação
do território nacional, escala territorial ideal para a reprodução das burguesias nacionais nessa
fase de internacionalização do capitalismo, a imposição da nacionalidade era fundamental.
Assim, a educação assumia um importante papel na construção da cidadania como
qualidade de membro. Por isso, ela foi colocada a serviço da formação de uma unidade comum
entre os sujeitos, definida pela identidade e pelo pertencimento ao território nacional,
delineando o que chamamos de cidadão patriota. Essa condição de cidadania era, como ainda
o é hoje, atestada civilmente pelos documentos comprobatórios dessa nacionalidade, o que
garantia/garante aos cidadãos viverem no interior de fronteiras comuns. Os espaços escolares
deveriam também praticar o culto aos símbolos nacionais. Daí, o canto cotidiano ou em datas
cívicas do hino e o hasteamento da bandeira nacional. Por outro lado, esse elemento de
unificação encobriu as contradições entre o capital e o trabalho, inerentes ao modelo de
sociedade que se configurava e consolidava.
Para a construção do cidadão patriota, condicionado ao exercício de um civismo
alienado, coube à escola unificar e ensinar a língua nacional, impondo a dos vencedores,
transformando em dialeto ou apagando a dos povos subjugados; contar a história nacional,
organizada em torno de fatos e personagens oriundos das ações dos vencedores, olvidando-se
da dos vencidos; naturalizar a origem, descrever e mapear o “corpo” da pátria, a fim de inculcar

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a ideia de pertencimento a esse espaço atemporal, para o que a Geografia Escolar foi matéria
relevante, justificando a sua inserção curricular em alguns países europeus, mesmo antes da sua
constituição como ciência nas Universidades, como foi exemplar o caso alemão.
No caso brasileiro, a produção do cidadão patriota, embora já estivesse na pauta do
governo imperial, ganha relevo nos anos de 1930, com a emergência do Estado Novo e do
Varguismo. Esse período foi marcado pelo prenúncio da industrialização, da modernização e
da integração do território nacional. Nessa conjuntura, a Geografia se apresentava como ciência
e disciplina escolar de muita relevância para o controle e gestão do território e para soldar a
unidade nacional em torno do projeto modernizador conservador e ditatorial pela via da
construção da identidade patriótica e nacional. Para isso, além da sua manutenção e renovação
nos sistemas de ensino, conforme Andrade (2006) e Santos (2002a), criou-se o Conselho
Nacional de Geografia (CNG) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), além
dos primeiros cursos de Geografia na UFRJ, então Universidade Nacional, e USP, com objetivo
de formar os professores para lecioná-la.
Os balbucios da industrialização e, consequentemente, dos primeiros esboços da
integração do território nacional, através da criação de sistemas de normas e da montagem dos
primeiros sistemas de fluxos articulados, revelaram a diversidade histórica e espacial de um
país de dimensões continentais. Tais diferenciações regionais pouco interagiam e se conheciam,
já que, historicamente, em função da lógica extrovertida das suas economias agroexportadoras,
teciam a vida de relações com os lugares distantes.
Assim, era preciso soldar a unidade dessa diversidade que espacialmente se introvertia.
Para isso, o apelo ao nacionalismo patriótico funcionou como elemento de amálgama social e
territorial. Nesse empreendimento, a educação e, em particular, a Geografia, assumiram um
importante papel, pois ajudaram a forjar o cidadão patriota brasileiro.
Entretanto, esse nacionalismo deveria ser do tipo ilustrado, ou seja, o bom brasileiro,
como delegava os fundamentos do positivismo clássico, que inspirava o projeto, deveria ser o
cidadão forjado nos princípios da ciência. As normatizações desse modelo de educação nacional
foram estabelecidas pelas Leis Orgânicas nos anos de 1930, que ficaram conhecidas como as
reformas de Capanema. Na base desse modelo de educação ilustrativa, voltado para a
transmissão da verdade científica ao aluno, através do discurso do professor, estavam os
fundamentos da pedagogia tradicional.
Os objetivos e fins da educação nacional, ao se centralizarem na formação do cidadão
patriota e, para isso, ampararem-se nos fundamentos da pedagogia tradicional, definiram quais
os componentes curriculares a serem estudados e o que deveriam abordar, através dos quais se

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operacionalizou essa formação. Nesse sentido, a ênfase recaiu no ensino da língua nacional e
da matemática, sem que a palavra e o cálculo se articulassem com o mundo da vida, com as
condições materiais de existência do sujeito aprendiz. Por outro lado, às ciências humanas,
como a História e a Geografia, couberam ensinar a história nacional e descrever as
características fisiográficas do território, respectivamente.
Para formar o cidadão patriota brasileiro, a Geografia Escolar, fortemente amparada no
possibilismo geográfico oriundo da França, assumiu “a ideologia do nacionalismo patriótico
em sua prática pedagógica” (VLACH, 1998; VESENTINI, 1998; PEREIRA, 1999 e GEBRAN,
2003). Para isso, segundo Vesentini (op. cit.), o estudo do Brasil deveria começar pela área e
forma do território, latitude e longitude, além de fusos horários, e destacar sua imensa riqueza
natural, nunca esquecendo de, ao esboçar o seu mapa, colocar sempre a sua capital em seu
“centro geográfico”, no coração do país.
Para o controle, a gestão e o estudo do território nacional se adotou, também, os recortes
regionais (Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Leste e Sul) , elaborados por Fábio Guimarães,
engenheiro/geógrafo do IBGE, no começo da década de 1940. Estes se fundamentavam no
conceito de região natural. A eleição desse parâmetro de regionalização do país se justificava
porque, para o seu autor, as bases físicas apresentavam mais durabilidade. Portanto,
viabilizavam as descrições necessárias ao projeto de nação e de nacionalidade que se pretendia
construir.
Assim, nas escolas, a identificação e o pertencimento do educando com o território
nacional foram construídos tomando como base os estudos sobre as regiões brasileiras. Tais
estudos também revelariam o quadro diverso da sua natureza, capaz de acenar com o destino
glorioso que era resguardado à nação. No entanto, nesses estudos, seguindo a tradição da escola
geográfica de La Blache, somente o título era “regional”, pois a análise se segmentava nos
“famosos” aspectos físicos, humanos e econômicos, e pouca coisa se percebia ou aprendia a
respeito do arranjo socioespacial regional.
Além dessa compartimentação e fragmentação do e entre o físico e o humano, essa
perspectiva escolar da Geografia se pautou em uma abordagem descritiva, objetiva e
congeladora dos conceitos de que tratou (GEBRAN, 2003). Estes, abordados nos moldes da
pedagogia tradicional, com quem, segundo Straforini (2004), ela estabeleceu longo e exitoso
matrimônio, ambas fundamentadas no método positivista, eram distantes e alheias da realidade
dos alunos, a quem cabia memorizá-los e reproduzi-los nos exercícios e provas bimestrais.
Em suma, a Geografia Escolar, ao se colocar a serviço da construção do cidadão patriota
que, para isso, deveria conhecer o “corpo da nação” retalhado em recortes regionais, suporte

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material do civismo alienado que ajudou a construir, serviu para encobrir os conflitos, a
violência e a historicidade inerentes à formação territorial brasileira, às desigualdades e
contradições recorrentes e sempre recriadas na produção da sua formação socioespacial. Ela
descrevia o mundo para o estudante, sem explicá-lo e sem fornecer as ferramentas necessárias
para mudá-lo. Serviu e serve para mascarar a realidade, os problemas enfrentados pela
sociedade, como denunciou Lacoste (1997), ao que denominou de Geografia dos professores.
Assim, contribuiu para a manutenção da ordem vigente e necessária ao progresso exclusivo das
elites nacionais e estrangeiras.
A edificação da cidadania baseada na criação, garantia e ampliação de direitos políticos,
civis e sociais também não fez parte da pauta principal de outros projetos subsequentes de
modernização da sociedade e do território, a exemplo do Plano de Metas de JK (1956-1961).
Este ampliou o processo de industrialização/urbanização, consolidou a integração do território,
reorientou a ordem geopolítica interna, ao transferir a capital para a recém criada Brasília, mas,
ao fazer isso, revelou-se como um projeto conservador, elitista e excludente. Por outro lado, a
Geografia Escolar se manteve fiel à postura positivista, advinda da herança da escola geográfica
francesa e, em virtude disso, silenciou sobre as desigualdades e contradições características
dessa etapa de modernização da formação socioespacial brasileira.
As tentativas de concretizar um embrionário projeto de cidadania tomam relativa forma
com as reformas de base de Jango (1961-1964). Entretanto, o golpe civil/militar, orquestrado
pela burguesia e forças armadas nacionais, com forte apoio interno da classe média e externo
dos Estados Unidos, interditou tais reformas e mergulhou o país em 21 anos de ditadura militar
(1964-1985), que suprimiu direitos políticos, retroagiu os direitos civis e interditou a agenda
urgente dos direitos sociais dos trabalhadores brasileiros, deixando um legado de heranças para
a nossa cidadania atrofiada no presente.
Em função do projeto de modernização conservadora do regime militar que assaltou o
poder, baseado no modelo tripé de industrialização, como ressaltam Becker e Egler (2003), no
qual cabia ao Estado atuar no setor da indústria de base; ao capital nacional, na indústria de
bens de consumo não-duráveis; e ao capital internacional, na indústria de bens de consumo
duráveis, tomam forma os mecanismos de produção dos sujeitos sociais que Frigotto e Ciavata
(2003, p. 50) nomeiam de cidadão produtivo, que corresponde ao “trabalhador que faz, produz
mais rapidamente, tem qualidade e é mais competente”, ao mesmo tempo em que deve ser
desprovido de historicidade, da consciência de classe e do conhecimento de viver em uma
sociedade concreta baseada na exploração do seu trabalho. Para a formação desse tipo de
cidadão, a educação assumiu um papel de extrema relevância.

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Assim sendo, através dos acordos estabelecidos entre o MEC e a USAID, a educação
básica, para atender aos objetivos do regime que se instaurou com a ditadura militar, foi
reformulada pela Lei 5.692/71 e assumiu a tendência pedagógica tecnicista. Com isso, segundo
Gebran (2003), seu objetivo passou a ser a formação do trabalhador para o conhecimento de
formas de organização do trabalho e o manuseio de máquinas que a indústria em expansão
exigia.
Além disso, a educação, pelo papel que também pode exercer na reprodução e no
controle social, ocupou posição estratégica nesse projeto de hegemonia. Por isso, a estrutura do
currículo foi reformulada, os conteúdos curriculares controlados, os professores foram
“amordaçados”, vigiados e os que ousaram descumprir os ditames do regime, perseguidos e
torturados. Esperava-se, com isso, que a escola silenciasse ou não assumisse qualquer postura
crítica diante da violência física e simbólica do modelo imposto e que se alicerçava nas
desigualdades socioespaciais e no cerceamento de direitos essenciais à afirmação de uma
cidadania de fato.
Nesse modelo educacional, as Ciências Humanas foram secundarizadas, por não servir
ao projeto pedagógico tecnicista ou pelas suas possibilidades de abordagem crítica da
sociedade, constituírem-se em ameaças à hegemonia do regime ditatorial. Quando muito, na
academia, tiveram que se adequar aos interesses do planejamento estatal e empresarial, ou, na
escola, reproduzir o teor nacionalista do seu discurso pedagógico, em datas comemorativas
nacionais, como foi o caso da Geografia.
Nesse período, na estrutura universitária brasileira foi introduzido o paradigma
neopositivista da ciência geográfica, caracterizado pelo objetivismo, neutralidade e
cientificidade da linguagem da lógica, da matemática e da estatística. Assim sendo, a Geografia
se transformou em mero exercício de quantificação dos padrões espaciais, alheio à historicidade
da sociedade, tomando a forma do que se convencionou a chamar de Nova Geografia, Geografia
Quantitativa, Pragmática ou Teorética. Partindo de modelos dedutivos de análise, essa
perspectiva se constituiu em importante ferramenta para diagnósticos sobre regiões, territórios
e lugares, necessários às ações do planejamento estatal e empresarial. Por isso, seus
fundamentos inspiraram pesquisas em órgãos do Estado, como o IBGE e a SUDENE.
Por outro lado, nos sistemas escolares, esse paradigma não se traduziu diretamente em
uma variante pedagógica para a Geografia Escolar, apesar de ter-lhe legado temas, conceitos,
instrumentos de síntese e organização de dados (tabelas e gráficos), formas de regionalização
(regiões homogêneas e funcionais), exercícios indutores da construção do raciocínio espacial
instrumental pelo aluno.

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Esses elementos foram introduzidos em uma disciplina escolar esvaziada e reduzida,


que se manteve descritiva, objetiva, neutra, dual e fortemente voltada à memorização, lembrada,
como enfatiza Gebran (op. cit.), nas datas comemorativas nacionais, o que evidenciava o
persistente uso do nacionalismo patriótico como amálgama social ao projeto e como elemento
de dissimulação ou acobertamento da brutalidade, das desigualdades e das contradições que
estavam em suas bases. Tal persistência se evidenciava no lema dos militares, segundo o qual
o brasileiro deveria amar o Brasil, caso contrário, deveria deixá-lo.
Pelo exposto, sob os auspícios da Lei 5.692/71, à escola coube formar o cidadão
produtivo, necessário ao projeto de modernização pela via da industrialização, mas com a
consciência política entorpecida pelo nacionalismo patriótico alienado.
Assim sendo, o modelo de educação tecnicista voltado para atender ao projeto de
formação do cidadão produtivo, dotando-o de habilidades necessárias à economia industrial,
impactou profundamente na estrutura do currículo e, por conseguinte, na Geografia Escolar.
Esta, nos primeiros anos escolares, foi fundida com a História, originando uma disciplina
fragmentada e sem identidade, denominada de Estudos Sociais. Nas outras etapas do ensino,
teve a carga horária reduzida para abrir espaço às matérias Educação Moral e Cívica e OSPB,
que foram criadas pelo regime militar para inculcar o civismo alienado, o moralismo
conservador, a formação política calcada na apologia ao regime e para a compreensão da
estrutura e do funcionamento do Estado.
Além disso, com a Lei 5.692/71, foi estabelecido que, a partir do segundo ano do Ensino
Médio, o aluno poderia optar pela formação técnica para completar essa etapa da escolaridade,
o que a fez desaparecer completamente como matéria formativa, principalmente dos filhos dos
trabalhadores que conseguiam adentrar aos sistemas públicos de ensino. Isso, por outro lado,
corroborou para dificultar o acesso desses jovens às Universidades, já que seus conteúdos
continuaram sendo cobrados nos vestibulares.
Em suma, nesse período, a inserção do país no contexto da guerra fria, aliando-se
geopoliticamente no bloco capitalista liderado pelos EUA, e o concomitante engajamento em
uma política econômica subordinada, que conduziu ao “milagre econômico”, com forte
endividamento externo, apoiado pela elite e a classe média em expansão, funcionaram como os
vetores para a supressão das liberdades civis e políticas e interditaram qualquer iniciativa para
a conquista dos direitos sociais pelos trabalhadores brasileiros.
Assim, essa modernização conservadora agravou a concentração da riqueza e as
injustiças já existentes entre pessoas, lugares e regiões, corroborando para o aumento da massa
empobrecida e o aprofundamento das desigualdades socioespaciais.

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Entre as variáveis da sua contribuição para a elaboração do cidadão mutilado e, por


conseguinte, da cidadania amputada, como define Santos (2002b), este circunscrito à condição
de produtor e consumidor, que aceitou ser chamado de usuário, está a degradação das escolas.
Estas, ao adotarem o modelo educacional tecnicista, deram forma a um ensino unilateral, dual
e excludente, funcionando como uma barreira ao acesso do filho do trabalhador a uma formação
integral, universal e omnilateral1, o que prejudicou a construção da sua consciência política
crítica e transformadora sobre a sua realidade até hoje, funciona como uma herança que inibe a
tomada de consciência dos trabalhadores brasileiros para a defesa, exigência e ampliação dos
seus direitos políticos, civis e sociais.
No entanto, dialeticamente, as forças de resistência ou as contra hegemonias, no sentido
atribuído por Gramsci (2006), ganham forma na sociedade do período em foco. Nelas, a
educação, como instância social fundamental, constituiu-se como importante arena para as suas
manifestações. Estas se materializaram na constatação de que os sistemas escolares não só
reproduziam a sociedade, mas também poderiam ser o locus para a contestação das suas
hierarquias sociais e, portanto, para a sua transformação.
É desse modo que, como assevera Gohn (2000), apesar do forte controle e repressão do
regime, a partir de 1974, com a crise internacional do petróleo, o milagre econômico brasileiro
também entrou em crise, com isso, os movimentos sociais ressurgem das cinzas e o setor de
educação também se mobilizou e surgiram várias associações e uniões de professores.
No contexto dos movimentos sociais em renascimento ganhou relevo a compreensão
freiriana de uma educação libertadora e conscientizadora, voltada para a geração de um
processo de mudança na consciência dos indivíduos, orientada para a transformação deles
próprios e do meio social onde vivem (FREIRE, 1987). Por outro lado, a reorganização política
dos docentes ensejou as contestações ao modelo pedagógico pragmático e reprodutivista da Lei
5.692/71, o que abriu margem para se pensar a educação sob o enfoque da filosofia da práxis
ou como um ato político, possibilitando a emergência das tendências pedagógicas histórico-
sociais, críticas ou culturais e libertadoras na prática curricular nas escolas. Isso ganhou formas
mais concretas em propostas curriculares de alguns estados e municípios com a
redemocratização, como é exemplar a do Estado de São Paulo, na década de 1980.
No campo específico da Geografia, veio à baila a insatisfação com as perspectivas
teóricas vigentes, alimentando os questionamentos sobre o seu comprometimento com a ordem
social do capital e com a inocuidade do seu arsenal metodológico para tratar às contradições da

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Marx refere-se ao termo como uma formação humana oposta à formação unilateral que, por sua vez, é provocada
pelo trabalho alienado, pela divisão do trabalho, pelas relações burguesas.
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realidade. Assim, no bojo da resistência ao regime militar, emergiram as perspectivas críticas


dessa ciência como possibilidades para se enxergar os dilemas da sociedade brasileira e fazer
do saber geográfico um dos instrumentos para superá-los.
Como propõe Vesentini (2004), esse processo se iniciou com os professores da educação
básica, que levaram temáticas sociais e ambientais inovadoras e críticas das escolas para os
cursos de pós-graduação em Geografia.
No entanto, a maioria dos historiadores do pensamento geográfico brasileiro considera
o Encontro Nacional de Geógrafos de 1978, realizado pela AGB, em Fortaleza-CE, como um
marco para a afirmação e consolidação das Geografia Crítica no Brasil. Nesse encontro se
debateram os rumos da disciplina, a necessidade da sua renovação epistemológica e
metodológica e a importância do seu engajamento político para a superação do regime militar
e da sociedade de classes.
Esse movimento de renovação do pensamento geográfico encetou o diálogo dos
geógrafos com a teoria crítica, a exemplo dos pensadores da Escola de Frankfurt, dos
anarquistas (Réclus e Kropotkin), de Michel Foucault, de Marx e dos marxistas não dogmáticos,
como Gramsci. (VESENTINI, op. cit.)
Na construção desse diálogo contribuíram três obras de geógrafos estrangeiros e
nacionais, que são tidas como seminais para o pensamento geográfico crítico no Brasil: os livros
Geografia isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra, do francês Yves Lacoste;
Marxismo e Geografia, do italiano Máximo Quaini, e Por uma geografia nova, do brasileiro
Milton Santos.
Nessa última obra, inspirado em Marx, o autor analisou a história e os fundamentos do
pensamento geográfico; discutiu a importância da definição do objeto de estudo da Geografia
como o caminho, em vez da insistência dos geógrafos em tentar conceituá-la; constatou o estado
de viuvez dela em relação ao espaço; destacou o espaço geográfico como instância do social;
estabeleceu as categorias internas para o seu estudo (forma, função, estrutura e processo);
elaborou o conceito de formação socioespacial, evidenciando que toda formação
socioeconômica, como estabelece o pensamento marxista, possui uma variante espacial.
Doravante, em virtude do compromisso político de superação das injustiças sociais que
a Geografia assumiu com a renovação crítica, ela se abriu para os movimentos sociais, com a
finalidade de contribuir para a construção ou ampliação dos direitos civis e sociais, o que
explicita o seu compromisso com a edificação do cidadão integral.
Assim, os postulados da Geografia Crítica se constituíram e se constituem na criticidade
e no engajamento. A primeira, compreendida como a leitura do real, do espaço geográfico, sem

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omitir as suas tensões e contradições sociais, como fazia e faz a Geografia Tradicional. O
segundo, pelo seu caráter de não neutralidade e pelo seu compromisso com a justiça social, com
a correção das desigualdades socioeconômicas e regionais. (VESENTINI, op. cit.)
Diferente do que propõe Vesentini (op. cit.), é consenso entre os geógrafos que, das
Universidades, esses pressupostos da renovação da Geografia chegaram às escolas, através dos
professores formados nas suas licenciaturas, das propostas curriculares, do livro didático etc.,
que passaram a incorporar os seus fundamentos teórico-metodológicos.
Entre as propostas curriculares, pela influência que exerceu na elaboração e avaliação
de cursos de Licenciatura em Geografia e em outras documentos curriculares pelo Brasil afora,
destacou-se a da Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP) do Estado de São
Paulo, na década de 1980. Elaborada sob a orientação de professores da USP, ela não se
restringiu em elencar conteúdos, mas efetuou uma revisão metodológica com base nos
fundamentos da Geografia Crítica. Assim, explicitou novas posições teóricas e metodologias
para a compreensão do espaço geográfico que, dialeticamente, buscavam integrar o espaço com
as relações sociais. (PONTUSCHKA, PAGANELLE e CACETE, 2007)
Com a redemocratização, foi elaborada e promulgada a chamada Constituição cidadã
de 1988. Ela acenou com a garantia e a ampliação de direitos à população. Essa conjuntura era
favorável ao forte potencial da Geografia Crítica Escolar para a formação da consciência
sociopolítica do educando, relevante às lutas sociais para transformar os direitos formais,
contidos na lei Magna do país, em direitos reais e concretos. No entanto, essa potencialidade
enfrentou diversos entraves para se concretizar nas práticas pedagógicas dos professores.
Com relação a esses entraves, Oliveira e Farias (2014) destacam que a resistência e a
rejeição de muitos professores aos seus novos conteúdos e as suas novas formas de abordá-los
retardaram a sua afirmação nas escolas. Além disso, esclarecem que, ao se priorizar os aspectos
socioeconômicos da produção/reprodução do espaço, negligenciou-se as bases físico-naturais
sobre as quais, pelo metabolismo do trabalho, dialeticamente, a sociedade atua. Defendem,
ainda, que, ao privilegiar uma visão generalista da totalidade, desconsiderando os espaços de
vivência concreta dos alunos, negou-se que a cidadania pressupõe o lugar. Atestam, também,
que houve dificuldades de se utilizar o método dialético para superar a dicotomia na abordagem
das relações sociedade/natureza, legada da perspectiva positivista da Geografia Escolar
Tradicional.
No tocante à organização do processo pedagógico e das práticas de ensino dos
professores de Geografia em sala de aula nessa perspectiva, outros entraves dificultaram a sua
assimilação nas escolas.

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Assim, muitos professores não conseguiram desenvolver a construção dos conceitos


geográficos a partir dos conceitos espontâneos dos alunos, o que pressupõe considerar tais
conceitos como mediações simbólicas para a leitura crítica do real; os processos para a sua
internalização como uma atividade interna do educando, mediados pela relação dele com o
mundo, os outros, o docente, através da mediação pedagógica; as condições intelectuais para
generalizá-los. Com isso, os conceitos, muitas vezes, continuaram sendo trabalhados como
prontos e acabados, a partir do discurso do professor, do livro didático e alheios à realidade
concreta do aluno.
Mesmo quando se procurou fazer a crítica social dos conteúdos ou a articulação dos
saberes científicos sistematizados com os do aluno, como propõem a pedagogia crítica social
dos conteúdos ou a histórico-crítica, reproduzia-se, na Geografia Escolar, a criticidade do livro
didático pelo discurso do professor, indiferente ao lugar social e ao ponto de vista do aluno.
Aliás, o livro didático, que se constituía/constitui como a principal referência para as
aulas dessa disciplina, vulgarizou bastante os pressupostos teórico-metodológicos da Geografia
Crítica. Muitos deles, conforme atestam Oliveira e Farias (op. cit.), continuaram reproduzindo
a compartimentação entre natureza e sociedade. Outros, ao sobrecarregarem os textos com as
categorias da economia política marxista, sem a necessária espacialização, acabaram por
confundir a Geografia com a Sociologia, a Economia e a História, assim como veicularam
conceitos marxistas incompatíveis com o desenvolvimento cognitivo do aluno.
Além disso, as estruturas físicas e pedagógicas das escolas públicas, o número excessivo
de aulas e alunos, a baixa remuneração pelo trabalho docente, estão no cerne das dificuldades
do professor para assimilar o ensino crítico de Geografia e a avaliação contínua que ele exige,
tendo o aluno e a sua espacialidade social como centros do processo educativo.
Contudo, Oliveira (apud PONTUSCHKA, PAGANELLE e CACETE, op. cit.) atesta
que, entre todos esses fatores, destacaram-se as dificuldades para a assimilação do método
dialético pelo professor de Geografia. Para ele, esse método é inquietante e agitador, põe em
xeque como será a realidade no futuro e reflete sobre qual será esse futuro que se deseja
alcançar. Através dele, não se transmite o conceito ao aluno, mas, a partir da realidade concreta
de sua vida, o conceito vai sendo construído.
Essa dificuldade de assimilação do método dialético como princípio pode ser a razão
para a pouca articulação do ensino de Geografia com os pressupostos dialéticos da teoria
educacional, a exemplo da vigotskiana, da crítica social dos conteúdos e da histórico crítica em
geral. Straforini (op. cit.) enfatiza tais dificuldades, destacando que, nos sistemas de ensino, não

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ocorreu o matrimônio exitoso e duradouro entre a Geografia Crítica Escolar e os postulados


teóricos críticos da educação.
Tal questão também foi constatada por Kaercher (2014), através de pesquisa realizada
em escolas públicas do Rio Grande do Sul. Em sua linguagem metafórica, ele define a
Geografia Escolar como um pastel de vento e que, por isso, o gato come a Geografia Crítica. A
ideia de pastel de vento se refere a sua pouca densidade teórica para tratar os assuntos, ou seja,
uma disciplina com aparência agradável, moderna, porém, com conteúdos dispersivos e
reflexões superficiais. Assim sendo, sem a criticidade necessária para solidificar a compreensão
do mundo pelo aluno.
Algumas hipóteses podem ser levantadas para explicar esse quadro. Ao nosso ver, ainda
persistem as dificuldades de transposição pedagógica do que se aprende na formação do
professor de Geografia para a prática do seu ensino nas escolas, o que evidencia o descompasso
entre ambas. Além disso, os cursos de licenciatura dessa matéria ainda continuam separando a
Geografia Física da Humana, a relação entre os paradigmas dessa ciência e a Geografia Escolar,
a pesquisa e o ensino, os conteúdos específicos e os pedagógicos. Ademais, falta maior
integração entre os cursos de licenciatura e as escolas, o que poderia ser corrigido através da
prática da formação continuada de professores e das atividades de extensão etc.
Enfim, isso se configurou como armadilhas que inibiram a Geografia Escolar Crítica de
aproveitar as possibilidades históricas para contribuir com a formação da criticidade do
educando a partir da análise/síntese espacial, fundamental às lutas políticas inerentes à
cidadania real, integral, irrestrita e concreta. Portanto, para a superação da cidadania mutilada,
amputada e atrofiada imperante na sociedade brasileira atualmente.
O contexto histórico que se abriu a partir da década de 1990 dificultou as perspectivas
de correção dos desvios da Geografia Crítica Escolar, através da elaboração da sua crítica
interna, importante para reorganizar os seus princípios voltados à formação para a cidadania.
Esse contexto histórico se caracterizou, no plano externo, pela crise do paradigma
fordista e a ascensão da flexibilização da produção como regime de acumulação capitalista,
mudança amparada nas tecnologias da informação, pelo fim da ordem mundial bipolar, com o
desmantelamento do bloco socialista e a transição dos países que o formava para a economia
de mercado, aprofundando a expansão e o avanço da globalização capitalista neoliberal. No
plano interno, o país buscava formas de superar os efeitos econômicos da década perdida (a de
1980) e se inserir no movimento global do capital. Esse conjunto de fatores levou a reforma
neoliberal do Estado brasileiro. Com isso, enfatizou-se o econômico em detrimento do social,

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o que vem solapando direitos estabelecidos e freando o avanço das parcas conquistas sociais,
reafirmando a atrofia dos espaços do cidadão no Brasil.
O receituário neoliberal foi estabelecido para o Brasil e demais países da América Latina
pelo Consenso de Washington, no final dos anos 1980, representando um conjunto de políticas
liberalizantes fixadas por instituições financeiras, com sede na capital dos EUA, como o FMI e
o Banco Mundial. Essas políticas pregavam a privatização, a redução do papel social do Estado
e a sua recaptura pelo capital, produzindo o aumento na concentração de riqueza, crises
econômicas e perda de direitos, portanto, a retração da cidadania em todo o mundo.
Com o neoliberalismo, segundo Chauí (2016), o núcleo da privatização também está em
outro lugar, está na transformação de um direito social em serviço que se compra e vende no
mercado. Por isso, a ideia é a de que um direito social e político é aquilo que pode ser
transformado em serviço e comprado no mercado. Nesse processo, a educação brasileira foi
modificada para contemplar os ditames do mercado, como delegaram o FMI e o Banco
Mundial, a partir do Consenso de Washington.
No campo das ideias, emergiram os paradigmas pós-modernos, pós-estruturalistas e
pós-críticos, que buscaram extirpar, interditar ou imobilizar as teorias críticas no campo do
pensamento. Com eles, passou-se a refutar a totalidade em processo de totalização empírica sob
a égide das contradições inerentes e mundializantes do mercado, com o argumento de que tal
perspectiva encobre o singular, o particular, o diverso e o subjetivo. Nesse processo, as Ciências
Humanas se enveredaram para análises mais finas e de pequenos recortes espaço-temporais,
deram ênfase as questões mais ligadas às subjetividades, identidades e diversidades humanas,
consequentemente, ficaram menos atentas às contradições sociais das sociedades capitalistas
concretas.
Tudo isso rebateu, sobremaneira, na educação em todo o mundo e, no Brasil, em
particular. É nessa perspectiva que podemos compreender a criação da nova LDB (Lei
9.396/1996), os sistemas nacionais de avaliação padronizadas, os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) etc., instituídos a partir da década de 1990.
Silva (1994), ao analisar a estrutura da reforma da educação brasileira dos anos 90,
afirma que ela, com neoliberalismo, é direcionada à preparação para o trabalho (preparação dos
alunos para a competitividade nacional e internacional) e à transmissão dos ideais que
proclamam as excelências do livre mercado e da livre iniciativa. Por isso, deve estimular o
empreendedorismo, a competição, o mérito, a individualização etc.
Em outras palavras, os objetivos educacionais são redirecionados para a formação do
cidadão produtivo e individualizado. Para atender a esses objetivos, a escola, especialmente a

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pública, deve ser gerida como uma empresa e considerada como o lugar da formação do
trabalhador nas competências e habilidades exigidas pela produção, pelo mercado. Cabe à
escola, também, difundir a ideia da inexorabilidade da história triunfante da sociedade de
mercado e de que cada um é responsável por si, através da difusão do modo de vida inerente à
lógica capitalista. Para Frigotto & Ciavatta (2003, p. 51), essa reforma, “trata-se de uma
cuidadosa elaboração superestrutural e ideológica da forma de representar, falsear e cimentar a
visão unidimensional do capitalismo sobre a realidade econômica, psicossocial, política e
cultural”.
Conforme Tiburi (2016), a instituição escolar associada ao mercado rebaixa a educação
ao comércio de mercadorias. Rebaixa as pessoas a produtores e consumidores que devem
apenas se encaixar em um mercado.
Portanto, a formação desse cidadão produtivo é contrária a do cidadão capaz do
exercício político crítico (FARIAS, 2020), ou seja, de desenvolver uma consciência vigilante e
questionadora das instituições que devem assegurar e ampliar os seus direitos integrais.
Constitui-se, assim, um cidadão parcial, exercendo uma cidadania incompleta.
Por sua vez, os PCN estabeleceram as orientações da estrutura dos currículos que
deveria formar o cidadão produtivo nos Estados e municípios. Para fundamentá-los à luz das
teorias pedagógicas, os seus elaboradores, segundo Saviani (2013), lançaram mão de categorias
educacionais precedentes, às quais se anteciparam prefixos do tipo “pós” ou “neo” para revesti-
las de novidade ou de conceitos tributários de outros campos do saber.
Nesse sentido, o conceito de capital humano, forjado por Teodoro Schultz, da Escola
Neoliberal de Chicago, na década de 1950, foi tomado de empréstimo e se constituiu como a
base dessa reforma educacional. Segundo este conceito, a educação é o principal capital
humano enquanto produtora de capacidade de trabalho, potenciadora do fator trabalho. Assim
sendo, “a escola se encarregaria de preparar a força de trabalho educada em um mercado de
mão de obra em expansão”. Deveria “formar progressivamente o trabalhador para que este fosse
incorporado pelo mercado, tendo em vista assegurar a competitividade das empresas e o
incremento social e da renda individual”. (SAVIANI, op. cit., p. 427)
Por se enquadrarem na concepção de educação nos moldes neoliberais, foram retomadas
as perspectivas pedagógicas pragmáticas coincidentes com a ideia de educação como formadora
do capital humano e com a concepção social neoliberal: neotecnicismo, pedagogia das
competências, neoescolanovismo, neoconstrutivismo e pedagogia corporativa (SAVIANI, op.
cit.). Com esses modelos pedagógicos se buscou instaurar a lógica do cálculo custo/benefício
na educação, os modelos de gestão das escolas inspirados em empresas, as parcerias público-

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privadas na gestão dos sistemas de ensino ou de escolas, os sistemas padronizados e unificados


de avaliações externas, a valorização do método em detrimento do conteúdo, o ensino por
habilidades e competências, o aprender a aprender, o controle sobre o trabalho docente, entre
outros. (FARIAS, 2017)
Além desse pragmatismo pedagógico, que expressava o projeto educativo para atender
às demandas da economia capitalista neoliberal, as elaborações curriculares também
incorporaram questões referentes ao subjetivo, à cultura, à diferença, às identidades sociais e
territoriais etc., o que denota a colonização do currículo pelas teorias pós-críticas, como
exemplifica o PCN de Geografia, fundamentado na perspectiva teórica de base fenomenológica.
Por outro lado, as ideias pedagógicas de esquerda, fundamentadas na filosofia da práxis,
a exemplo da pedagogia sócio-histórica, crítica social dos conteúdos e libertadora, que
ganharam certo terreno no campo educacional na década de 1980, sofreram grande inflexão
(FARIAS, op. cit.). A Geografia Escolar Crítica também passou por esse mesmo movimento
de inflexão nos currículos prescritos pelo Estado.
Por ser um momento marcado pelo descentramento ou desconstrução das ideias críticas
anteriores, como considera Saviani (op. cit.), com a emergência das teorias pós-críticas, pós-
modernas ou pós-estruturalistas no campo do pensamento, a Geografia escolar proposta pelos
PCN se enveredou, de acordo com alguns estudos já realizadas, para o psicologismo, ecletismo
ou fenomenologia (ROCHA, 1014). Este autor destaca que, nesses parâmetros, há a negação
das perspectivas tradicional e crítica de matriz marxista e a defesa da fenomenológica para a
Geografia Escolar.
A Geografia Escolar Fenomenológica, que se expressa nas concepções geográficas da
percepção, comportamental e humanista, centra-se no subjetivismo individualizado dos sujeitos
em suas relações como o espaço, focalizando o lugar como campo de significados.
Assim, pela natureza do seu objeto de estudo (o lugar) e do seu método
(fenomenológico/hermenêutico), impossibilita aos jovens e às crianças filhos de trabalhadores
brasileiros, uma leitura objetiva, crítica e coletiva dos processos sociais que estão na origem da
produção/reprodução do espaço geográfico, prejudicando a construção da sua consciência de
classe, da sua formação e a ação políticas. Portanto, interdita a construção da leitura geográfica
crítica, necessária a um projeto social que pense em rupturas no rumo da história humana e,
para isso, conceba a escola como lugar de formação para a cidadania integral.
Os governos de centro-esquerda do Partido dos Trabalhadores (2002-2016) deram
continuidade à inserção social pelo consumo e aos pressupostos curriculares gerais voltados à
formação do cidadão produtivo, embora tenham montado um embrionário projeto de inclusão

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dos mais pobres, através das políticas de garantia e ampliação de direitos sociais (algumas
iniciativas de criação de renda, ampliação do acesso à saúde, à educação e à moradia, por
exemplo). Entretanto, o golpe de 2016, com Impeachment fraudulento da presidenta
democraticamente eleita, Dilma Rousseff, inviabilizou a continuidade da montagem do
incipiente espaço do cidadão, realinhando o Brasil ao neoliberalismo radical e aprofundando a
sua transformação em espaço nacional da economia internacional.
Com a ascensão de Michel Temer ao poder, ratifica-se a privatização, a oligopolização
e a financeirização do território nacional, aprofundando a inserção subalterna do Brasil às
correntes da globalização. Por outro lado, retira-se direitos dos trabalhadores (reforma
trabalhista), reduz-se os investimentos públicos em educação, saúde e moradia, promovendo o
desmonte de direitos sociais garantidos pelo Estado. Com isso, presenciamos o fortalecimento
da estrutura estatal para atender aos reclamos das finanças e de outros interesses das elites
econômicas nacional e internacional, em detrimento dos cuidados com as populações
trabalhadoras cuja vida tenderá a se tornar ainda mais difícil.
Foi sob esse governo que tomou forma e foi aprovada a reforma da LDB (Lei
9.396/1996), com a Lei 13.415/2017, que reforça o caráter da educação voltada para a formação
do cidadão produtivo e consumidor, o que ratifica os seus princípios pedagógicos pragmáticos.
De acordo com essa lei, a formação profissional passa a ser um dos itinerários do currículo a
partir do segundo ano do Ensino Médio. Por outro lado, a Geografia e a História, não aparecem
como matérias obrigatórias nos três anos dessa etapa da escolaridade, status reservado apenas
aos componentes curriculares Língua Portuguesa e Matemática. Isso prejudicará a formação
humanista dos filhos dos trabalhadores e, por isso, a construção da sua consciência política
crítica, tão importante para a organização e ação em defesa dos seus direitos civis, políticos e
sociais. Além disso, produzirá um fosso entre a educação ampla dos filhos das elites e a
restritiva dos filhos dos trabalhadores, a quem se destina a formação profissional, configurando
a educação nacional como minimalista, dual e desigual. (FARIAS, 2020)
No conjunto dessas reformas foi aprovada e homologada, em 2018, a Base Nacional
Comum Curricular (BNCC). Em sua introdução, fica claro que ela objetiva enquadrar a
educação nacional às exigências das avaliações internacionais (PISA) e que seu esteio é o
desenvolvimento de habilidades e competências exigidas pelo mercado, portanto, fundamenta-
se na Pedagogia das Competências.
A BNCC dedicada a Geografia, sem muita clareza, deixa transparecer um certo
ecletismo da sua fundamentação teórica-metodológico, embora evidencie uma certeza, a
Geografia Crítica não aparece nela contemplada. Portanto, as contradições e lutas que

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caracterizam a produção/reprodução dos espaços local, regional e nacional, expressas nas


desigualdades socioespaciais, não compõem o principal repertório da base. Não esclarece as
condições do trabalho alienado que estão no cerne dessa produção/reprodução. Isso pressupõe
que o aluno egresso da classe trabalhadora terá dificuldades para compreender criticamente o
seu lugar social e se organizar para as lutas coletivas necessárias à superação da condição de
cidadania atrofiada em que vive.
Além disso, pelas amarras normativas ditadas pelo MEC, ela impactará a formação do
professor, a concepção de Geografia que a escola deve assumir, o livro didático e outros
materiais de apoio, as formas de avaliar, as concepções de homem e sociedade que a escola
deve construir etc.
Para agudizar esse panorama, em 2018, foi eleito um presidente de extrema direita, com
forte tendência fascista e conservadora, com ampla votação entre os trabalhadores, o que denota
a fragilidade da consciência política no seio dessa classe. Ao tomar posse, em janeiro de 2019,
esse gestor começou o trabalho de extirpação dos direitos dos trabalhadores (a reforma
previdenciária) e de direitos sociais da população, ao reduzir os investimentos e extinguir
programas nos campos da saúde (Mais médicos), educação (drásticas reduções orçamentárias
e paralização de investimentos na ampliação do ensino técnico e superior), moradia (Minha
casa, minha vida), entre outros, ao mesmo tempo em que reafirma as políticas privatizantes e
de estímulo ao grande capital, tanto no campo quanto na cidade.
Essa conjuntura vem aprofundando os níveis de empobrecimento, desemprego e
desemparo da população trabalhadora, o que reforça as engrenagens sociais de produção do
não-cidadão no Brasil e reafirma a importância de uma educação geral e geográfica
fundamentada na filosofia da práxis e na Geografia Crítica Escolar, necessárias à construção da
consciência crítica coletiva e participativa nas lutas para a superação desse modelo de sociedade
que mutila a cidadania.

Educação para a cidadania plena e a Geografia Escolar Crítica

Em função das questões analisadas anteriormente, evidenciamos que a educação


representa um instrumento imprescindível para a construção da consciência política crítica
necessária à formação para a cidadania integral, real, irrestrita e concreta. Para isso, ela deve
objetivar a emancipação e libertação humanas. Por isso, deve ser integral, universal e
omnilateral. Esse modelo educativo deve se fundamentar na filosofia da práxis.

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Nessa perspectiva de educação, a análise espacial é parte substancial, pois possibilita ao


educando aprender a ler geograficamente o mundo. E isso é, antes de tudo, conforme nos
assevera Perez (2001), compreender o seu contexto, localizar-se no espaço social mais amplo.
Em outras palavras, a construção do sentido do mundo deve ser o eixo norteador da
educação nessa perspectiva. Nessa construção, a Geografia Escolar Crítica tem muito a
contribuir para que ela se realize, através da leitura consciente e crítica do seu objeto de estudo:
o espaço geográfico (FARIAS, 2007 e 2014).
Enfatizar a importância da leitura crítica do espaço geográfico é dar a devida
importância ao papel da Geografia Escolar Crítica no contexto amplo da formação dos jovens
e das crianças da classe trabalhadora brasileira. Assim, ela representa um instrumento
importante para a compreensão/transformação da realidade socioespacial, por sua criticidade
do real – as contradições e lutas do/no espaço geográfico próximo ou distante; por,
metodologicamente, abrir-se às possibilidades de partir dos conceitos espontâneos para
construir os conceitos científicos da Geografia na prática pedagógica nas escolas, essenciais à
mediação da leitura geográfica sistemática do mundo pelo educando; por se centralizar nos
problemas socioambientais concretos vividos por ele.
Dessa maneira, a educação geográfica crítica contribui para a formação cidadã do aluno,
pois lhe permite pensar e ler criticamente o espaço e nele se organizar na luta contra a opressão
e a injustiça que dão forma a sua condição de não-cidadão. A consciência dessa condição é
fundamental para a ação política organizada em defesa da cidadania socioespacial integral.
Desse modo, o saber geográfico crítico deve permitir as relações das crianças e jovens da classe
trabalhadora com o mundo, mediadas pela prática transformadora desse mundo.
Sobre a leitura de mundo a partir do espaço geográfico, Perez assim se coloca:
[...] Ler o mundo é ler o espaço: construção social e histórica da ação humana.
Como instância da sociedade, o espaço é o objeto da Geografia; disciplina que
o analisa, o interpreta e o explica, como resultado da economia, da política e
da cultura. Assim, ler o mundo é estudar a sociedade; é estudar o processo de
humanização do homem a partir do território usado: é pelo uso do território
que o homem se produz; a humanização do homem se realiza na produção de
uma cultura técnica que determina o tipo de vida que levamos - do controle
do fogo à conquista da Lua, a humanidade desenvolveu capacidades técnicas
que construíram o seu modus vivendi. (PEREZ, 2001, p. 105)

Com efeito, como assevera Santos (2002b, p. 6), ao tratar da questão da cidadania no
Brasil, “é no território tal como ele atualmente é que a cidadania se dá tal como ela é hoje, isto
é, incompleta. Para ele, “mudanças no uso e na gestão do território se impõem, se quisermos
criar um tipo de cidadania, uma cidadania que se nos ofereça como respeito à cultura e como
busca da liberdade”.

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Esse uso do território no Brasil tem sido seletivo, atendendo aos reclamos do capital
monopolista/oligopolista e das finanças, tanto no campo quanto na cidade. Por trás dessa
seletividade do uso, está a lógica da separação entre os detentores dos meios de produção e da
força laboral, e a divisão social e territorial do trabalho, que produzem/reproduzem as
desigualdades socioespaciais entre os sujeitos, os lugares e as regiões, cujos processos atuais
de privatização, inclusive do território, e a retração dos direitos dos trabalhadores tendem a
torná-las mais profundas, acenado com a continuidade da nossa cidadania incompleta.
Por outro lado, a cidadania pressupõe o lugar, os seus equipamentos para o uso coletivo
ou individual. O tipo de uso pode transformar o direito formal em real ou não. Nesse sentido, o
lugar precisa ser considerado como especificidade da compartimentação espacial da produção
e dos homens, uma particularidade objetiva e concreta da universalidade, mais o lastro da
história das pessoas que nele vivem, o que inclui a identidade e o pertencimento geográficos.
Portanto, não se constitui apenas como produto da percepção individual do sujeito, a qual define
o seu comportamento geográfico, ou como campo exclusivo de significado e de identificação,
como propõem os PCN e a BNCC. A Geografia Escolar precisa retomar essa abordagem, se
pretende fazer o aluno compreender e superar o sentido de mundo imposto pelas engrenagens
da sociedade capitalista. Isso porque “[...] o sentido do mundo está no próprio mundo, ler o
espaço é aprender o seu sentido”. (PEREZ, 2001, p. 108)
Por outro lado, a leitura transformadora do mundo através da Geografia Escolar Crítica,
que pressupõe a leitura do espaço geográfico, dos usos dados ao território, das particularidades
objetivas e concretas dos lugares, dos movimentos históricos superficiais e de fundo que dão
conformação às paisagens, da diversidade regional, não pode ser operacionalizada sem o
domínio de determinados procedimentos metodológicos que são próprios à ciência geográfica,
tais como: observar, descrever, analisar, sintetizar, compreender, explicar e representar
cartograficamente os espaços.
Como na construção dos conceitos geográficos mediadores da leitura geográfica do
mundo pelo educando, tais procedimentos devem ser construídos pelo aluno, auxiliado pelo
professor, tomando os seus lugares como objeto de estudo, o que evidencia a importância da
metodologia do estudo do meio como propositora do próprio currículo.
São essas as habilidades e competências capazes de permitir ao aluno, filho da classe
trabalhadora, construir a sua consciência política, tomar decisões e posicionamentos acerca da
sua realidade social e exercitar a sua cidadania integral, permitindo-lhe, desse modo, agir no
mundo e com o mundo de maneira mais estruturada, elaborada e consciente. Enfim, construir

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o raciocínio geográfico “para saber pensar o espaço e nele saber agir” (LACOSTE, 1997),
condição essencial para o exercício da sua condição cidadã.
Isso é importante para se construir a “revanche dos/nos lugares”, ou seja, organizar as
resistências aos processos de construção da cidadania incompleta dos trabalhadores brasileiros,
pois são neles que se vivenciam as experiências de escassez ou as suas potencialidades. Em
função disso, a sua compreensão instrumentaliza os sujeitos às lutas diárias para participarem
nas decisões que afetam às suas vidas, manterem as suas estratégias produtivas de sobrevivência
e reproduzirem as suas manifestações culturais. Assim sendo, a educação geográfica crítica,
que possibilite a construção de raciocínios geográficos, tem muito a colaborar com o “educar
para que todos tenham condições de se tornar governantes” (GRAMSCI apud PEREZ, 2001,
p. 119), uma vez que pode contribuir para a formação de sujeitos críticos e participativos
das/nas decisões que afetam seus contextos territoriais.
Assim sendo, a cidadania plena implica a organização e a participação política, a
consciência do desempenho do trabalho alienado e da necessidade de superá-lo, a valorização
das diferenças culturais, a prática dos valores democráticos radicais que possibilite a conquista
e ampliação de direitos civis, sociais e políticos, o exercício da liberdade de expressão, entre
outros fatores.
Portanto, “a ideia de cidadania plena está ligada à ideia de indivíduo forte, que se
diferencia da ideia do sujeito [produtor]/consumidor fraco, débil, até mesmo debiloide”
(SANTOS apud PEREZ, 2001, pp. 111-112), que as propostas curriculares oficiais atuais se
propõem a continuar formando.
Nesses termos, o alcance da cidadania plena passa também pelo saber pensar e agir sobre
o espaço geográfico. Uma educação que forme para a conquista dessa condição deve ajudar a
criança e ao jovem a desenvolverem raciocínios geográficos que lhes permitam a atuar
ativamente para a superação da sua incompletude atual. Para isso, deve objetivar uma ampla
transformação social capaz de permitir que a cidadania seja exercida em toda a sua plenitude.
Afinal, como bem enfatizou Santos (2002b), o grande desafio do Brasil atualmente é o de
construí-la para a maioria da sua população.
No entanto, parafraseando Mészarós (2008), as propostas contemporâneas para a
educação no Brasil, implementadas pelo Estado, têm-se limitado a atender às margens
corretivas e interesseiras do capital, o que significa abandonar, de uma só vez, conscientemente
ou não, o objetivo de uma transformação social qualitativa. Desse modo, ainda segundo o
referido autor (op. cit., p, 27), “procurar margens de reforma sistêmica na própria estrutura do
capital é uma contradição em termos”. Por isso, para ele, “é necessário romper com a lógica do

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capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente


diferente”.
Assim, para contribuir com a construção da cidadania plena, a educação e a Geografia
Escolar precisam educar para a ruptura com a lógica do capital. Afinal, segundo Marshall citado
por Santos (2002b) através de Weffort, no interior das democracias modernas existe uma tensão
permanente, uma guerra entre o princípio de igualdade implícito no conceito de cidadania e a
desigualdade inerente ao sistema capitalista e à sociedade de classes.
Contudo, como acreditamos na dialeticidade da história e no papel da práxis humana,
da educação e da Geografia Escolar Crítica, entendemos que, no interior do atual estágio das
coisas, o seu contrário precisa ser estimulado a ser gestando. Afinal
(...) o mundo não é. O mundo está sendo. Como subjetividade curiosa,
inteligente, interferidora na objetividade com que dialeticamente me
relaciono, meu papel no mundo não é só o de quem constata o que ocorre, mas
também o de quem intervém como sujeito das ocorrências. Não sou apenas
objeto da História, mas seu sujeito igualmente. No mundo da História, da
cultura, da política constato não para me adaptar, mas para mudar (...).
(FREIRE, 1996, p. 76-77).
Desse modo, pela sua criticidade e engajamento social e político, a função formadora
da Geografia Escolar Crítica pode ser um dos instrumentos para as mudanças sociais que
almejamos no Brasil. Sua opção político-pedagógica se define no pensar-fazer uma educação
geográfica que traduza uma pedagogia do sonho, da utopia e da esperança de construção de um
Brasil - mundo mais bonito, justo, solidário e gentil com todos os seus cidadãos. Afinal, como
asseverou Santos (2002b), a educação não tem como objetivo real armar o cidadão para uma
guerra, a da competição com os demais. Sua finalidade, cada vez menos buscada e menos
atingida, é a de formar gente capaz de se situar corretamente no mundo e de influir para que se
aperfeiçoe a sociedade humana como um todo, o que pressupõe a plenitude da cidadania.

Considerações finais

Mediante o exposto ao longo deste texto, concluímos que a educação geral e a


geográfica, em particular, devem objetivar a formação para a cidadania plena. No entanto, as
políticas educacionais e curriculares pragmáticas oficiais atuais, prescritas pela Estado
brasileiro, que se limitaram a atender às margens corretivas e interesseiras do capital neoliberal,
têm contribuído para a formação do cidadão parcial, produtivo e consumidor, o que corrobora
para a continuidade histórica da cidadania incompleta brasileira.

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Para superar essa condição e contribuir com a transformação social que permita edificar
a cidadania plena, a educação precisa se fundamentar na filosofia da práxis, portanto, nas
tendências pedagógicas críticas. É com ela que se pode construir a consciência social e política
crítica dos jovens e crianças da classe trabalhadora brasileira, instrumentalizando-os para as
ações organizadas de defesa e ampliação dos seus direitos civis, sociais e políticos.
Na dialogicidade com essa educação geral, a educação geográfica deve se amparar na
Geografia Escolar Crítica. Essa perspectiva geográfica de ensino, pela sua criticidade e
engajamento social e político, possibilita a leitura das contradições do espaço geográfico
elaborado pelas sociedades capitalistas concretas. Por isso, constitui-se em importante
instrumento para a tomada de consciência dessas contradições a partir dos arranjos espaciais,
dos usos dados ao território, das formas desses usos nos lugares. Isso é essencial para a
superação do modelo social brasileiro atual, no qual a cidadania é incompleta e, assim,
organizar as lutas para a edificação da cidadania real, integral, irrestrita e concreta, que deve
incluir mudanças na gestão e no uso do espaço.

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REFLEXÕES SOBRE A IMPORTÂNCIA DA


GEOGRAFIA CRÍTICA NA FORMAÇÃO DO ATOR
ATIVO, CONSCIENTE E CRÍTICO PARA A
COMPREENSÃO DOS ESPAÇOS QUE FREQUENTAM
E HABITAM

REFLECTIONS ON THE IMPORTANCE OF CRITICAL GEOGRAPHY IN THE


TRAINING OF ACTIVE, AWARE AND CRITICAL ACTORS TO UNDERSTAND THE
SPACES THEY FREQUENT AND INHABIT

REFLEXIONES SOBRE LA IMPORTANCIA DE LA GEOGRAFÍA CRÍTICA EN LA


FORMACIÓN DE UN ACTOR ACTIVO, CONSCIENTE Y CRÍTICO PARA LA
COMPRENSIÓN DE LOS ESPACIOS QUE FRECUENTA Y HABITA

João Manoel de Vasconcelos Filho (2)

João Manoel de Vasconcelos Filho (1)

(1)
Professor Adjunto do Departamento de Geografia/CERES/CAICÓ, Universidade Federal do Rio Grande
do Norte - UFRN
E-mail: vasconfilho@gmail.com

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Resumo

O trabalho objetiva discutir e refletir sobre o papel, a relevância e as contribuições da geografia de uma maneira
geral, e da geografia crítica de forma particular para a construção do ser social, mais ativo, participativo e
consciente de sua história e do cotidiano vivido nos diferentes espaços que mora e frequenta. Para este feito,
trouxemos à baila algumas breves discussões acerca das mudanças de caráter teórico metodológico que
ocorreram na geografia, evidenciando na contemporaneidade a necessidade de discutir temas e problemas que
façam parte do quadro da história de vida da sociedade, principalmente para os grupos em estado de
vulnerabilidade social. Nesse sentido, a leitura do espaço e da cidade, se torna condição ímpar para entendermos
a teia de relações construídas e impostas para esses grupos, por parte do Estado, do mercado e de suas
representações institucionais. Em um momento posterior, buscamos compreender as relações sociais
construídas pelos indivíduos nos espaços da moradia, da escola e da cidade. Assim, colocamos em pauta e
demos visibilidade, as limitações e até mesmo o impedimento para a construção do processo ensino
aprendizagem de crianças e adolescentes, veiculados por uma forma perversa e desigual da situação de pobreza
vivida por esses indivíduos, mostrando suas consequências na escola.

Palavras-chave
Geografia Crítica, Escola, Cidade

Abstract Resumen
The paper aims to discuss and reflect on the role, Este trabajo pretende discutir y reflexionar sobre el
relevance and contributions of geography in general, papel, la relevancia y las contribuciones de la
and critical geography in particular for the geografía en general, y de la geografía crítica en
construction of social beings, more active, particular a la construcción de seres sociales, más
participatory and aware of their history and daily lives activos, participativos y conscientes de su historia y de
in the different spaces they live and frequent. To this su vida cotidiana en los diferentes espacios que
end, we bring up some brief discussions about the habitan y frecuentan. Para ello, trajimos a colación
theoretical and methodological changes that have algunas breves discusiones sobre los cambios teóricos
occurred in geography, highlighting the contemporary y metodológicos ocurridos en la geografía, destacando
need to discuss issues and problems that are part of the la necesidad contemporánea de discutir temas y
life history of society, especially for groups in a state problemas que forman parte de la historia de vida de
of social vulnerability. In this sense, the reading of the la sociedad, especialmente para los grupos en estado
space and the city becomes a unique condition to de vulnerabilidad social. En este sentido, la lectura del
understand the web of relationships built and imposed espacio y de la ciudad se convierte en una condición
for these groups, by the State, the market and their única para comprender la red de relaciones construidas
institutional representations. At a later stage, we seek e impuestas para estos grupos, por el Estado, el
to understand the social relations built by individuals mercado y sus representaciones institucionales. En un
in the spaces of housing, school and city. Thus, we put momento posterior, buscamos comprender las
on the agenda and gave visibility to the limitations and relaciones sociales que construyen los individuos en
even the impediment to the construction of the los espacios de la vivienda, la escuela y la ciudad. Así,
teaching-learning process of children and adolescents, pusimos a la orden del día y dimos visibilidad, a las
conveyed by a perverse and unequal form of poverty limitaciones e incluso al impedimento de la
experienced by these individuals, showing its construcción del proceso de enseñanza-aprendizaje de
consequences at school. los niños y adolescentes, transmitido por una forma
perversa y desigual de la pobreza vivida por estos
individuos, mostrando sus consecuencias en la
escuela.

Keywords: Palabras clave:


Critical Geography, School, City. Geografía Crítica, Escuela, Ciudad.

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Introdução

O
trabalho objetiva discutir e refletir sobre o papel, a relevância e as
contribuições da geografia de uma maneira geral, e da geografia crítica de
forma particular para a construção do ser social, mais ativo, participativo e
consciente de sua história e do cotidiano vivido nos diferentes espaços que mora e frequenta.
Acreditamos ser pertinente buscar compreender a importância e o papel exercidos pela
Geografia Crítica, tomando como ponto de partida os caminhos seguidos pela Geografia
brasileira, desde sua institucionalização neste país. De antemão, a escolha metodológica pelo
percurso espaço-temporal, não segue a obediência teleológica, pois entendemos que esta é
insuficiente para fundamentar a reflexão que pretendemos fazer acerca da temática em pauta.
A opção teórica metodológica é tomada por uma vertente de pluralidade científica permeada
pela fundamentação do materialismo histórico-dialético do qual a Geografia Crítica se sustenta.
A busca deste conhecimento está pautada em fundamentos teórico-metodológicos de
autores que versam sobre essas distintas temáticas. A exemplo de Cavalcanti (2008), Santos
(1999), Moreira (2009), Gomes (2019), Andrade (1991) e Corrêa (2010), usados
preferencialmente na primeira secção. Já na secção II, buscamos respaldo teórico metodológico
em Harvey (1998), Santos (1999), Soja (1993), Lefebvre (1991) e Vasconcelos Filho (2003).
Por fim, as reflexões que trazem à tona a compreensão das interações e conexões entre o espaço
da moradia e o indivíduo, bem como deste com a escola e a cidade, estão sustentadas em
Bachelar (1989), Cavalcanti (2008) e Kohara (2009).
Na secção I, trouxemos à baila algumas breves discussões acerca das mudanças de
caráter teórico metodológico que ocorreram na geografia, evidenciando na contemporaneidade
a necessidade de discutir temas e problemas que façam parte do quadro da história de vida da
sociedade, principalmente para os grupos em estado de vulnerabilidade social. Nesse sentido, a
leitura do espaço e da cidade, se torna condição ímpar para entendermos a teia de relações
construídas e impostas para esses grupos, por parte do Estado, do mercado e de suas
representações institucionais.
Em um momento posterior, buscamos compreender as relações sociais construídas pelos
indivíduos nos espaços da moradia, da escola e da cidade. Assim, colocamos em pauta e demos
visibilidade, as limitações e até mesmo o impedimento para a construção do processo ensino
aprendizagem de crianças e adolescentes, veiculados por uma forma perversa e desigual da
situação de pobreza vivida por esses indivíduos, mostrando suas consequências na escola. Estes,

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por sua vez, são constantemente submetidos a lógica da exclusão social que tem rebatimentos
e se materializam no ambiente escolar e na vida desses seres sociais. Trouxemos para este feito,
as experiências de professores(as) e todo o corpo pedagógico que lidam diariamente com
problemas gerados por essa castração intelectual dos mais pobres da cidade.

A geografia crítica: participação e relevância na formação do


cidadão

Acreditamos ser pertinente buscar compreender a importância e o papel exercidos pela


Geografia Crítica, tomando como ponto de partida os caminhos seguidos pela Geografia
brasileira, desde sua institucionalização neste país. De antemão, a escolha metodológica pelo
percurso espaço-temporal, não segue a obediência teleológica, pois entendemos que esta é
insuficiente para fundamentar a reflexão que pretendemos fazer acerca da temática em pauta.
A opção teórica metodológica é tomada por uma vertente de pluralidade científica permeada
pela fundamentação do materialismo histórico-dialético do qual a Geografia Crítica se sustenta.
A busca deste conhecimento está pautada em fundamentos teórico-metodológicos de autores
que versam sobre essas distintas temáticas. A exemplo de Cavalcanti (2008), Santos (1999),
Moreira (2009), Gomes (2019), Andrade (1991) e Corrêa (2010), dentre outros.
Iniciamos com algumas considerações e reflexões acerca do papel que a Geografia,
enquanto ciência, exerce na construção da cidadania. Sabemos que a ciência geográfica passou
por diferentes momentos históricos, sendo estes marcados por profundas mudanças que
ocorriam na sociedade, na política, na economia e na cultura. Desde sua gênese, a Geografia
constrói seus fundamentos científicos permeados por dois caminhos que se bifurcam. Por um
lado, a natureza e por outro a sociedade.
As duas vertentes geográficas provocam discussões acaloradas, até o momento
contemporâneo. Não obstante, é preciso pensar que toda geografia construída, desde seus
primórdios, até o momento contemporâneo, cumpre um papel de responder aos
questionamentos postos e apresentados pela sociedade e suas representações. Dito isto, estamos
afirmando que a geografia atende em última instância os desejos e necessidades da sociedade,
ou seja, é para esta que produzimos conhecimentos fundamentados na ciência geográfica,
independente dos posicionamentos exercidos pelos geógrafos ou professores de Geografia
Corrêa (2010), explica que o lastro teórico metodológico construído pela Geografia
brasileira, é marcado espaço temporalmente por fluxos em que se percebe permanências e
rupturas, cada qual acompanhadas de necessidades individuais e/ou coletivas de pensadores e

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instituições. E nesta dimensão constatamos relações assimétricas que se impõem sobre o espaço
nacional com reflexos nos espaços regionais e locais de cada parte do Brasil.
Os espaços da gênese da Geografia brasileira estão localizados no sudeste do país, e
estão representados por São Paulo – USP e pela Associação dos Geógrafos Brasileiros – AGB,
ambas criadas em 1934, e no Rio de Janeiro, a então Universidade do Distrito Federal, atual
UFRJ, em 1936. Completando este momento nós temos a fundação do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE, em 1939. Todas elas tiveram a participação de geógrafos
franceses, a exemplo de Francis Ruellan, Pierre Deffontaines e Pierre Monbeig, conforme
apontam Andrade (1991) e Corrêa (2010), afirmando que a geografia brasileira surgiu marcada
e caracterizada eminentemente por um viés Vidaliano, ou seja, permeada pelo
regionalismo/ambientalismo de Paul Vidal de la Blache.
A localização do nascimento da geografia brasileira na região sudestina do país, não
ocorre por acaso, pois é lá também que se forja as bases para a formação da região concentrada,
desde o final do século XIX e início do século XX. Estes espaços representam o poder
econômico – São Paulo e o poder político – Rio de Janeiro. Este último, enquanto representação
política, vigorou até antes da construção de Brasília, no início da década de 1960. Por sua vez,
São Paulo e Rio de Janeiro passam a ser considerados espaços metropolitanos, na década de
1970.
O movimento que culminou com a emergência da geografia crítica dá seus primeiros
sinais a partir da década de 1950, quando já se observava o esmaecimento da geografia
tradicional, e a impossibilidade desta de responder aos questionamentos que se apresentavam
pela sociedade e pela revolução técnica/científica que o mundo assistia. Outras mudanças,
também foram registradas no campo econômico, caracterizadas pela passagem do (capitalismo
concorrencial -capitalismo monopolista). Tudo isto colaborou para uma nova roupagem da
geografia e uma renovação do debate no campo metodológico e teórico.
Trazendo esta discussão de forma mais particularizada para o Estado brasileiro, cumpre
mencionar que a geografia brasileira, a partir da década de 1970, tendo como marco o
emblemático encontro de geógrafos, ocorrido em 1978, onde os autores que trabalham com a
história do pensamento geográfico afirmam, ser este momento crucial para entendermos os
novos papéis, uma nova forma de pensar e entender o espaço e o homem em seu contexto social
e histórico. Neste período, Santos lança em 1978 o livro: por uma geografia nova: da crítica da
geografia a uma geografia crítica. Onde novas percepções sobre o espaço geográfico são
lançadas no sentido de dar visibilidade a capacidade da geografia de questionar o status quo
vigente.

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Pensamos que esta época foi a mais representativa no sentido de percebermos que a
geografia passa a assimilar e abrigar de forma mais densa e coerente uma preocupação com a
sociedade, ao tempo, que traz à tona, sérias críticas ao modo de produção capitalista,
questionando a forma de agir dentro do espaço nacional e fora dele também. Esta virada do
pensamento geográfico na década de 1970, é um momento em que emerge a necessidade de
pensarmos criticamente o modelo capitalista de sociedade e de Estado que se impõe no e ao
Brasil.
Não havia condições, diante do cenário de mudanças, nos campos já mencionados, em
continuarmos com uma geografia tradicional/clássica, indiferente aos problemas sociais,
econômicos, políticos e culturais que se avolumavam e continuam a crescer cotidianamente no
território nacional. Era e é uma condição de sobrevivência e de permanência da ciência cumprir
este novo papel de dar respostas coerentes e plausíveis para uma gama de questionamentos e
de um corolário de problemas que passaram a ser registrados em diferentes regiões, estados e
cidades deste país.
Não cabia mais termos uma geografia inerte a um quadro de deterioração social e
econômica, concretizados, por exemplo, em nossas cidades, logo após um longo período de
apropriação/negação dos direitos civis, instituídos por uma perversa forma de governar,
representada e marcada por um caráter neoliberal e que no momento contemporâneo assumiu a
configuração ultra neoliberal.
Mas isto não começa agora, a ditadura militar deixara uma cicatriz profunda no seio da
sociedade brasileira. Era preciso então apresentar caminhos para a superação da crise. Estas
possibilidades de superação requisitavam teorias e métodos alicerçados e legitimados por um
caráter científico, que a um tempo desse visibilidade e questionasse a realidade social
pauperizada vivida por milhões de brasileiros.
Nesse sentido, a geografia apresentou-se mais que uma necessidade, ela se tornou uma
condição para pensarmos na construção de um modelo mais justo de desenvolvimento da nação.
Mas para contribuir com a sociedade brasileira, ela mesma – a geografia, tinha que superar seus
problemas internos, daí que o surgimento desta geografia comungada com os anseios da
sociedade, era mais que urgente. Sua proposta caminha para a desalienação do espaço e da
sociedade e dar luz a uma plena e necessária construção cidadã.
A necessidade de se construir uma sociedade e nela indivíduos que se perceba, que se
entenda no que diz respeito a está inserido numa dada classe social, entendendo os porquês da
contradição dialética pobreza/riqueza e nos caminhos necessários a esta superação, perpassa
pelo entendimento dos seus direitos e deveres, alicerçados na construção sociopolítica crítica

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de cada ator social. Não se constrói cidadania sem ter a percepção da garantia dos direitos aos
atores sociais, a exemplo do direito a educação pública e gratuita e direito à moradia, em um
ambiente adequado as necessidades destes indivíduos.
Há uma clara necessidade de afirmar que direitos não são negociáveis, eles são o que a
palavra etimologicamente os define. Portanto, não se deve associá-los a lógica capitalista que
o transforma em um bem, e sendo assim, gerador de lucro. Assim, a educação tem sido tratada
como um bem, e não como um direito, assim também a moradia, que é um direito à vida, e não
um bem forjado na filosofia capitalista.
Para dar visibilidade e fundamento a esta maneira de pensar era e é preciso desconstruir
as verdades postas e impostas, e para isto, se fazia necessário um pensamento crítico que
pudesse apresentar uma visão de espaço, sem nebulosidades. Neste interim, a geografia passa
também a perceber a necessidade de compreender o Estado, suas variantes e extensões.
Pois construir um pensamento crítico e consciente requer também fundamentos
científicos e filosóficos que deem respaldo para a transformação social que já se tornava urgente
dentro do território nacional. Foi aí que a geografia com a perspectiva e a proposta da geografia
crítica se fez presente como um dos caminhos de atenuação e superação das diversas crises
historicamente construídas e determinadas no Brasil.
Esta forma de fazer geografia fez com que esta ciência capacitasse os indivíduos para
que os mesmos pudessem externar suas inquietações e insatisfações com o modelo de Estado,
de governança e das políticas econômicas que se instalavam no país, apontando para a
possibilidade da formação de uma consciência cidadã. De certa forma, isto surtiu efeito, ainda
que não alcançou a magnitude desejada e necessária aos reclames sociais. Nesta perspectiva a
escola passou a ser o locus por excelência de aprendizagem, de construção de saberes que
viessem a contribuir com a construção de atores mais sensíveis a causas sociais.
Como desdobramento deste imperativo, percebeu-se a necessidade de mudar os
conteúdos dos livros didáticos de geografia, no sentido de inserir temas que versassem sobre a
problemática social. Ainda que isto tenha ocorrido muito tempo depois, é também reflexo desta
nova forma de construção do conhecimento geográfico. Saímos de uma geografia mnemônica
para uma geografia que despertava reflexões e questionamentos sobre as diferentes formas de
produzir, usar e morar na cidade e também no campo.
Todas estas mudanças estão permeadas pelo uso e entendimento do método dialético,
que se abre para questionamentos e nos ensina sair da situação de conformismo e aceitação
daquilo que nos apresenta enquanto verdade absoluta. Aprendemos que as verdades absolutas
são dogmas, travestidos de uma condição de submissão e de controle de um indivíduo sobre

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outro, de um grupo social sobre outro e de uma nação sobre outra. E nesta trajetória, passamos
a compreender dialeticamente o espaço, a cidade, o território, o lugar, a paisagem a região.
Por seu turno, a escola passou a ser também o espaço de discussões, reflexões e
questionamentos sobre a participação/inserção dos grupos em estágio de vulnerabilidade social
nos debates que versam sobre a produção e organização da cidade e da moradia, e como estes
espaços importam para a formação desses atores, uma vez que estes, são espaços de vivências
cotidianas.
Procuramos ler o espaço pelas lentes de uma geografia que segue um método que nos
faz rever nossa própria história, assim como nossas vidas cotidianas. Daí era e é necessário
procurarmos entender as contradições sociais no espaço. Mas ao lado disto buscamos refletir e
compreender como tais contradições surgem, como elas são forjadas e o porquê de sua
existência e permanência. Isto se traduz em uma outra prática que surge na geografia, saímos
do conhecimento amplo, generalista e enciclopédico, para nos determos a um aprofundamento,
uma verticalização da produção do conhecimento científico.
Pois esta nova forma de construir o conhecimento geográfico se traduziu como mais
seguro e mais coerente na perspectiva de entendermos a problemática social, e ao lado desta, a
política e a economia. Mais uma vez, o espaço escolar se tornou uma referência para construção
de saberes mais comprometidos com a sociedade e menos com o mercado. Este espaço também
se transformou em um ambiente de resistência a todas as formas de maquinações sinistras,
criadas por formas de governos e de representações sociais que trabalham insistentemente para
manter este quadro deteriorado da vida social.
Para tanto, diria que a Geografia Crítica não é apenas uma escolha, mas antes de tudo
uma necessidade, principalmente considerando uma nação em franco processo de deterioração
de suas instituições e representações sociais, constatados na contemporaneidade. Hoje, mais do
que em tempos pretéritos, comungar dos princípios dessa Geografia é condição si ne qua non,
para construirmos outro modelo de pensarmos a Escola, a moradia, a cidade, o Estado, a
Sociedade e o mercado. Este último, se impõe com tamanha força destruidora, em nome do
lucro. Este que transformou a casa, em um produto e mercadoria caros. Este que provocou a
mutação do sentido e do significado da cidade, de obra para produto do capital, como afirma
Lefebvre (1991).
Mas em contrapartida, em tempos de desprezo e negação à ciência, a Escola é a
instituição que mais sofre ataques, e por que não dizer a que foi mais vilipendiada, vandalizada,
extirpada em suas funções. A Escola enquanto instituição social, passou a ser vista como vilã e
não como aliada da sociedade. E para aumentar ainda mais esta contradição, o governo e o

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Estado brasileiro se voltaram contra a instituição escolar em suas diferentes escalas.


Aumentando o problema, se constata uma verdadeira “caça às bruxas” as áreas do
conhecimento que possuem um corpo teórico conceitual voltado para o social, ou seja, as
ciências humanas, regra geral, e de forma particular, a geografia são duramente atacadas.
Na reforma realizada pelo Conselho nacional de educação entre 2017-2018, o próprio
Estado brasileiro faz papel de vassalo das organizações privadas da educação que vê acima de
tudo a educação como uma mercadoria e não um direito básico a vida em sociedade. Esse
mesmo Estado que se projeta numa perspectiva e num discurso de mínimo, ganha força e
plenitude no momento que atende os anseios do mercado, daí ele age com toda as
potencialidades que lhe são inerentes e cria a Lei 13.415/2017.
Com uma análise lúcida e coerente das entranhas da Lei 13.415/2017, Farias (2020), faz
um traçado contextualizado com o momento pós-impeachment de 2016, que permitiu a tomada
a força e possibilitou a ascensão ao poder do grupo que rapinou o país.

O referido texto (BRASIL, Lei 13.415, 2017) trouxe: mudanças na carga


horária destinada à formação dos nossos jovens, que deverá passar das atuais
800 horas anuais (4 horas e trinta minutos diários em média) para 1.000 horas
(5 horas diárias), para, progressivamente, ainda ser ampliada para 1.400 horas
(7 horas diárias), o que configurará um sistema de educação integral, que deve
ser estabelecido no decorrer de cinco anos; na estrutura curricular, definindo
que apenas Matemática e Língua Portuguesa serão disciplinas obrigatórias nos
três anos desse nível da Educação Básica (Artigo 35-A, parágrafos 30 e 40);
impactos negativos na formação de alunos e prejuízos na dos professores, ao
prever a aceitação de profissionais de “notório saber” no exercício do
magistério de temas ou conteúdos que não são da sua formação.(FARIAS,
2020, p. 4)

Ao que parece, na esteira do golpe instituído e propagandeado pela mídia, pelo


congresso nacional e apoiado pelo judiciário e pelo mercado, criou-se através da Lei
13415/2017, a “lei do golpe na educação brasileira”, alardeada como aquela que trará um novo
ensino médio, recheado de melhorias para os estudantes. Na verdade, um engodo onde os
“ratos” se aproveitaram para corroer aquilo que ainda existia de qualidade na educação
brasileira, notadamente na esfera pública. Pois no momento que a esta Lei circunscreve a não
obrigatoriedade no currículo de ciências como a Geografia, História e Sociologia, exclui a
possibilidade de se formar o cidadão ao lado do profissional.
Os prejuízos apontados por Farias (2020) e Frigotto (2016), são imensos no campo da
construção de um ser social participativo, crítico e ativo de sua própria história, do seu próprio
cotidiano e por assim dizer do espaço que o mesmo mora, vive e se relaciona com os demais.
A realidade mostra que se cria toda uma geração de indivíduos, desprovidos da capacidade de

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questionar sua construção social, uma vez que os conteúdos específicos dos componentes
curriculares como Geografia, História, Sociologia e Filosofia, deixam de existir no novo ensino
médio, pois que perderam a obrigatoriedade, como já apontado.
Na contemporaneidade do Estado brasileiro, as ciências humanas são alcunhadas de ser
criadoras de ideologias que afrontam a segurança nacional, pois é, temos que conviver com esta
aberração de um pensar completamente desprovido de legitimidade científica ou filosófica.
Diante do quadro de deterioração do Estado brasileiro, de suas instituições, das representações
sociais e dos programas que dão um certo alento aos mais vulneráveis, assistimos um certo
esmaecimento de se fazer uma Geografia Crítica e de se construir uma crítica ao esmaecimento
acadêmico, escolar e do conhecimento geográfico com esta perspectiva crítica.
Hoje há evidências cada vez maiores, mais nítidas de uma produção acadêmica
geográfica utilitarista, pragmática. Esta modalidade é sedenta em dar respostas ao mercado e
ao modelo de Estado, a um tempo. É uma geografia de caráter produtivista, numa espécie de
fordismo acadêmico, menos científico, menos social, menos filosófico. Muito mais
mercadológico, estatal-privatista, submisso e de uma forte tendência a subalternidade aos
grupos corporativos internacionais. É uma Geografia de caráter simplista, amedrontada, por
fantasmas do passado, do presente e do que está por vir. Ávida por obedecer e cumprir com
eficácia os designíos de um modelo de mercado, que não se furta em atentar contra a vida das
pessoas, mas também atenta e destrói o patrimônio natural, histórico e cultural.
As demandas do mercado e do Estado, ao que parecem, seguem uma lógica de
negligência e desprezo as demandas sociais. Esta discussão tem se tornado, nas vozes de alguns
que estão na geografia, enfadonho. Pois que, se perguntam “para que trabalhar com este tema
de pobreza urbana”, por exemplo, se isto já se tornou “batido”, repetitivo? Estes não se
percebem que há uma grande contradição no momento em que compreendemos que não se
cansa e não se torna enfadonho ou repetitivo trabalhar numa perspectiva conformista e alienante
do espaço geográfico que se constrói a cada dia, legitimando uma paisagem que se mostra
moribunda em nossas cidades.
Este fazer geográfico, cooptado por forças do mercado, está fundamentado, legitimado
e enraizado na premissa da supremacia do fazer sobre o pensar. Além desta premissa
mercadológica, como dito, o Estado brasileiro mudou o sistema de ensino e estabeleceu como
praticamente desnecessário a presença das ciências humanas nos currículos escolares. Desde
2018 que componentes curriculares a exemplo da História, Geografia e Sociologia não são mais
obrigatórios. Em outras palavras, áreas que contribuem para a formação cidadã, não tem mais
sentido nesta forma de governo e de Estado de caráter ultra neoliberal.

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Este modelo de ensino desprovido do pensar, do questionar, que contribui para a


formação de um ator crítico e participativo, se tornou um entrave aos interesses do mercado.
Um modelo de ensino eficaz para o mercado é aquele em que a obediência é sinônimo de
eficiência, sempre seguindo a lógica da mercadoria e do lucro.
Como a escola e a geografia podem resistir a tudo isto? Como a geografia pode
contribuir para esta nova agenda destruidora dos direitos civis? E como a escola tem dado
respostas ou não a este novo momento? Qual estratégia tem sido criada para que os conteúdos
do livro didático não sejam direcionados por uma ideologia nazifacista?, como estamos a
observar. Esta e outras questões não são fáceis de responder, mas são mais que urgentes de ser
pensadas em suas diversas matizes.

As interações/conexões entre a moradia e a escola e suas


contribuições para a formação de atores sociais críticos

Esta secção objetiva entender as possíveis conexões entre os espaços de vivências do


aluno, neste caso a moradia e a escola, e como estas relações estabelecidas nesses ambientes
podem criar os fundamentos para a construção da cidadania no momento em que os atores
envolvidos passam a compreender melhor quais são as lógicas para a formação dos espaços que
eles moram e transitam.
Assim buscamos compreender como os atores sociais se relacionam com cada um
desses espaços e o que estes representam para suas vidas. Também procuramos compreender
como os atores sociais percebem as interações que unem a escola, a moradia e a cidade,
principalmente no que diz respeito ao bairro, em que estes atores moram e vivem. No caso em
tela, pensamos compreender estas relações a partir dos espaços de vivência e cotidiano do aluno
que se insere nos grupos sociais mais vulneráveis da cidade, procurando entender como eles
apreendem os espaços representados pela moradia e também pela escola.
A reflexão ao qual nos propomos realizar está inicialmente fundamentada na busca pela
compreensão do espaço de moradia do aluno, pois que a casa, regra geral, representa um
ambiente onde se forja os primeiros traços do caráter humano. É evidente que a base da
formação familiar, e entendendo a família como uma instituição, fundamenta a construção do
caráter humano. A moradia, entretanto, representa este espaço onde ocorre essa construção.
Como se trata de discutir uma categoria cara a Geografia – o espaço, far-se-á uma breve
discussão numa seara de sua relevância para a construção e reprodução da sociedade ao longo
do tempo. A fundamentação para este feito vem de Harvey (1998), Santos (1999), Soja (1993),
Lefebvre (1991) e Vasconcelos Filho (2003). Já as reflexões que trazem à tona a compreensão
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das interações e conexões entre o espaço da moradia e o indivíduo, bem como deste com a
escola e a cidade, estão sustentadas em Bachelar (1989), Cavalcanti (2008) e Kohara (2009).
Para Harvey (1998), as ideias diferenciadas de tempo e espaço que os indivíduos são
submetidos, relacionam-se fundamentalmente ao modo de produção vivido, bem como à
sociedade ou ao grupo social em que estão inseridos. Para este autor, o espaço e o tempo se
constituem como categorias fundamentais para a existência humana, posto que, a maneira como
tratamos o espaço e o tempo na teoria é tão relevante pois influência nas concepções,
interpretações e atitudes que construímos em relação ao mundo.
Soja (1993), mostra a importância do espaço para vida social no momento em que critica
o historicismo exacerbado que negligenciou o espaço e deu prioridade ao tempo, como se este
último bastasse para compreendermos com mais lucidez a sociedade contemporânea.
Entretanto, este autor esclarece que não se pretende substituir o tempo pelo espaço, e sim
compreender a sociedade numa perspectiva mais profícua e aglutinada de espaço-tempo para
isto ele entende que: “A desconstrução espacial, por conseguinte, também deve ser
suficientemente flexível para aparar os golpes reacionários do historicismo e evitar a defesa
simplista da anti-história, ou pior ainda, de um espacialismo novo e obscurecedor [...]” (SOJA,
1993, apud VASCONCELOS FILHO, 2003, p.20)
Em Santos (1999), encontramos uma ideia de espaço que lembra aos indivíduos que esta
categoria é construída num ambiente de coletividade e como tal deve trazer em sua essência
esta prática coletiva, no momento que associamos a cidade, como um bem de uso coletivo. A
percepção de Santos (1999), fala ainda de solidariedade, interconexão, contradições e fluidez.
Estes parâmetros se fossem concretizados para o bem comum, o espaço não seria pensado e
apropriado numa lógica de classe social, como foi e continua a ser na contemporaneidade. Daí
este autor pensa o espaço como “um conjunto indissociável, solidário e contraditório de
sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como um quadro
único no qual a história se dá (SANTOS, 1999, p.51)
Ao falar da cidade como uma construção humana Lefebvre (1991) chama a atenção para
a necessidade da formação de um novo homem, de um novo indivíduo que tem a capacidade
de participar ativamente da construção de sua própria história e de questionar o status quo ao
qual foi submetido. Este novo homem, considerado por Lefebvre (1991), é um sujeito ativo,
pensante e conhecedor de sua própria realidade. É este que compõe a classe operária, é este
também que não se cala e que percebe que o sujeito e o objeto da reflexão social devem estar
sempre presentes.

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Para este intento, Vasconcelos Filho (2013) lembra que nessa conjunção de reflexão sob
a ação, as ideologias e seus comandos, torna-se imperativo a evidência do sujeito. É este quem
vai atribuir vida a dinâmica dos grupos sociais e de suas lutas que transformam ou almejam
transformar o espaço e o tempo da vida social e, por conseguinte, da cidade como um todo. É
por este viés que surgem os direitos, ou seja, pelas lutas, pelas conquistas. Habituou-se o
indivíduo a assistir essas práticas sociais. Desde as reivindicações trabalhistas, por melhores
condições no espaço laboral, as questões salariais, ou outros reclames que almejam na cidade e
na vida cotidiana, a conquista sempre veio pela luta, pela insatisfação, pelo questionamento,
pelo inconformismo coletivo.
Em outra vertente, mas não menos importante, pois se trata de refletir sobre a
importância do ambiente da moradia para o ser social, Gaston Bachelard (1989) em “a poética
do espaço”, nos recorda que a casa é o ambiente onde se forja os primeiros degraus de nossas
memórias. De antemão, quero deixar claro que estou recorrendo a Bachelar (1989), não por
uma visão romântica ou mesmo recheada de devaneios, mas sim para fundamentar que a casa
é este espaço da gênese de nossas memórias, onde construímos também aquilo que seremos ou
o que almejamos ser. Tais memórias, regra geral, são preconizadas por relações e situações
harmônicas ou não. Dessa forma a casa pode ser sinônimo de abrigo, proteção e aconchego ou
apenas um espaço para moradia.
Bachelard (1989), preocupa-se em demonstrar a importância da casa para a vida do ser
social, ele mostra o sentido original da moradia, seu papel, suas funções, suas atribuições, suas
representatividades para o indivíduo. As mutações no sentido da existência e do uso, as
transformações que a corrompem são efetivadas pelo homem, pelo mercado, pelo Estado, mas
ela em si, não é mercadoria, e sim um espaço que dá possibilidade a uma existência humana
com mais dignidade, era e é para isto que ela existe. A casa é também o espaço de formação do
caráter do indivíduo, é a representatividade do abrigo, do ambiente que protege, ao menos no
sentido e na concepção original da moradia.

A casa, na vida do homem, afasta contingências, multiplica seus conselhos de


continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela mantém o homem
através das tempestades do céu e das tempestades da vida. Ela é corpo e alma.
[...] A vida começa bem; começa fechada, protegida, agasalhada no seio da
casa. (BACHELARD, 1989, p.18)

Mas na casa encontramos também presente as contradições da vida, conforme esclarece


o autor em reflexão. “É preciso dizer então como habitamos nosso espaço vital de acordo com
todas as dialéticas da vida, como nos enraizámos, dia a dia, num "canto do mundo". Pois a casa

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é nosso canto do mundo. Ela é, como se diz frequentemente, nosso primeiro universo”.
(BACHELARD, 1989, p.17)
A casa não é um espaço apenas relacionado a importância na participação da construção
do ser social, ela é acima de tudo necessário a esta construção, mas também necessário a
existência no sentido biológico do termo. O indivíduo em toda a sua trajetória através do espaço
e do tempo, sempre necessitou de um abrigo para se proteger, para se sentir mais seguro, para
de fato viver.
No momento contemporâneo esta condição dada à moradia, continua plena, embora seu
acesso, ou os meios para adquiri-la tenha se modificado e tornado mais difícil a realização deste
direito, o direito de morar e viver com dignidade para aqueles que se encontram em situação de
vulnerabilidade social. São os mais carentes, os mais pobres, os que se inserem a margem do
circuito produtivo, ou os que estão inseridos de forma debilitada neste circuito, que este direito
é negado.
Em uma outra vertente, trazemos a discussão sobre a relação entre o espaço da moradia
e a vida escolar dos alunos pobres que vivem em espaços socialmente e ambientalmente
vulneráveis. O espaço em que convivemos sempre exerceu influência no cotidiano das pessoas
e nas crianças, esta relação ganha uma outra dimensão. Na reflexão de Lima (1989, p.14) apud
Kohara (2009, p.102) “As casas, os caminhos, as cidades são espaços da criança que
transcendem as suas dimensões físicas e se transformam nos entes e locais de alegria, de medo,
de segurança, de curiosidade, de descoberta”
Esta afirmativa sobre a importância do espaço para a vida das crianças é encontrada em
Kohara (2009), quando este autor compara o nível de percepção das crianças de acordo com os
espaços de moradia. Esta pesquisa investigava a percepção que a criança tinha do seu próprio
corpo através do espelho, para isto fez-se uma marca de batom na face das crianças com intuito
de perceber se elas identificavam e reagiam a esta marca. A percepção desta mudança em seu
corpo apresentou variações de acordo com os três espaços distintos pesquisados: cortiços,
favelas e apartamentos. Das crianças moradoras de cortiços, apenas 18%, perceberam esta
marca e reagiram a ela, nas favelas este percentual aumentou para 55% e nos apartamentos, o
percentual de crianças que identificaram e regiram a esta marca chega 88%. A partir desta
informação, deduz-se que os espaços de moradia exercem influência sobre a possibilidade
cognitiva do indivíduo.
Fazendo uma reflexão sobre as condições da moradia, o espaço desta moradia e suas
repercussões para a vida escolar no sentido cognitivo de crianças e adolescentes, Kohara (2009),
em pesquisa realizada com crianças pobres da cidade de São Paulo, aponta que 48% das

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crianças entrevistadas sobre as condições de suas moradias, não apresentavam o endereço


compatível com o registro das matrículas. Este problema está relacionado com a alta
rotatividade nas moradias presentes no cotidiano destas crianças pobres. O estudo aponta que
os motivos que forçam as mudanças do bairro ou comunidade, ou mesmo da moradia em si,
dentro da mesma localidade, apresentam diferentes motivos, que vão desde a questão
econômica, pela incapacidade de pagar o aluguel, até pelo envolvimento de crianças e
adolescentes com o tráfico de drogas, somado ao medo que os pais têm dos filhos se envolver
com este tipo de crime.
A rotatividade muito frequente no ambiente da moradia incide diretamente e repercute
negativamente na capacidade cognitiva do aluno, ou seja, desarticula e desestabiliza seu
processo de ensino-aprendizagem. A falta de vínculo e de pertencimento com o lugar de
moradia, vem na esteira desse problema e acaba agravando a construção intelectual desses
atores sociais, como podemos ver nos vários relatos construídos pelos professores, diretores e
coordenadores pedagógicos de uma dada escola da área central da cidade de São Paulo, como
podemos ver a seguir um desses relatos proferido por uma professora e registrado por Kohara
(2009)
“ ... acho que as crianças aqui no centro são espertas; espertas que eu quero
dizer não é na aprendizagem, não são crianças bobinhas, são crianças que se
defendem. Se você fala uma coisa, elas falam duas, três; elas são assim, até
de certa forma atrevidas e respondonas. Teriam condições de serem melhores
alunas, caso fossem oferecidas a elas melhores condições de vida, mas no
contexto em que vivem, não apresentam bom rendimento. O William, por
exemplo, é aquele tipo de menino, que se colocar uma banquinha aqui para
vender, vai saber fazer troco e ninguém vai fazê-lo de bobo, ninguém vai
passar a perna nele. Só que ele tem dificuldade para aprender” 67 (Profª 2).
(KOHARA, 2009, p.131)

O comportamento e a situação vivida pelas crianças demonstram que as mesmas desde


cedo aprendem a lidar com as dificuldades da vida. Uma das professoras entrevistadas percebe
que, “elas são espertas”, mas a esperteza está ligada a experiências de vida dessas crianças na
rua, no gueto, nas comunidades. Muito precocemente aprendem com essas experiências a se
tornar adultas sem ter idade para isto. Entretanto, no espaço escolar esta experiência de vida
não se traduz em facilidade para seu crescimento e construção intelectual, pois sua capacidade
cognitiva é limitada exatamente pela exclusão a que a mesma é submetida.
Reforçando a tese de que o espaço da moradia e da cidade interferem diretamente na
construção do processo ensino-aprendizagem, Cavalcanti (2008) afirma que através do ensino,
a geografia tem o papel e até mesmo o dever de construir a partir de seus ensinamentos um
cidadão que aprenda a olhar e ler o espaço e a necessidade dele mesmo participar dessa

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construção espacial como uma condição para uma vida cotidiana mais ativa e participativa, em
outras palavras, seria construir a sua própria história. “A tarefa da escola é justamente propiciar
elementos, por meio do ensino de diferentes conteúdos, especialmente os de geografia, para que
os alunos possam fazer um elo” entre o cotidiano vivido em seu lugar e o cotidiano observado
no mundo.
A autora fala da importância e da necessidade de aprender a ler o espaço pelas lentes da
Geografia. A leitura do espaço e da cidade conduz para uma reflexão, segundo Cavalcanti
(2008), no sentido de perceber que esta cidade pode vir a ser educadora. O reconhecimento por
parte do aluno, de entender que ele é excluído e por que se encontra em estado de exclusão, faz
parte do arcabouço intelectual que a geografia pode oferecer. A percepção de como
historicamente o espaço vem sendo reproduzido segundo as contradições inerentes ao modo de
produção capitalista e compreender como se dará a luta pela transformação social, de fato faz
da cidade um grande laboratório de aprendizagem e experiências sociais. Para que isto se realize
é fundamental o conhecimento oferecido pela geografia, principalmente pelo olhar da geografia
crítica, pois esta no ensina de antemão, ser uma ciência que se traduz numa prática social
libertadora.
Não por acaso a autora escreve que “a geografia coloca para o habitante da cidade
conhecimentos indispensáveis aos que querem agir sobre ela, com consciência de seus direitos
e deveres.” (CAVALCANTI, 2008, p. 152) Seguindo nesta perspectiva, ela faz uma crítica aos
currículos escolares que não incluem o estudo da cidade e de cidade. É preciso que desde o
cedo a criança e o adolescente aprendam sobre os espaços que vivem, moram, estudam, se
relacionam, brincam, passeiam e transitam. Aqui se incluem diversos espaços que estão
presentes no cotidiano do ser social.

Considerações finais

Talvez ensinar geograficamente sobre cidade, torne futuramente, a possibilidade da


construção de um ser mais consciente, mais crítico, mais participativo, mais observador de
direitos e deveres fundamentais ao convívio humano. Talvez façam perceber o que é o Estado,
suas instituições, seus tentáculos, ramificações, agentes e qual o seu papel e dever perante a
sociedade. E assim um cidadão que entenda, questione, se revolte, se indigne com as injustiças
sociais perceptíveis, mas não explicáveis de forma simplória no espaço urbano.
Possivelmente se construa um ser que compreenda a noção de espaço público e privado,
vendo que a cidade não é uma mercadoria, ela não pertence a um ator, ou agente, ou mesmo

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um grupo político ou econômico. Ela é antes de tudo um espaço coletivo, pertencente a uma
coletividade. Um lugar que a solidariedade deve fazer morada e a individualidade,
competividade, nos moldes do capital monopolista deve ser banida, pois este criou a cidade
com um aspecto doentio, torpe, tacanho, perverso, violento e seletivo, onde a condição do
direito à terra e à moradia, está submetido a alma capitalista de poder pagar por elas.
Neste intento, a geografia e com ela a geografia crítica, vem cumprir relevante papel
formador do cidadão, no momento em que ela arranca as máscaras que ocultam e ensombrecem
a verdade, a realidade social de cada um e de todos, ao mesmo tempo. Não à toa, esta geografia
que conscientiza, muito mais que quantifica, vem para desmanchar consensos, desconstruir
verdades estabelecidas e que foram sedimentadas no consciente das pessoas mais pobres. Pois
a pobreza em tempos contemporâneos é tratada não como um problema social, gerado pela
sanha capitalista por lucros e pela própria estrutura fundante do modo de produção vigente, mas
como uma condição inerente a natureza humana.
A pobreza urbana, por sua vez, foi naturalizada pela Escola de Chicago. Esta
naturalização não acabou, ela é tratada agora com a nomenclatura de meritocracia. Há méritos,
para aqueles que moram em áreas nobres. Na verdade, o mérito só funciona com igualdade de
oportunidade, seja em qualquer situação ao qual o indivíduo é submetido. O status quo urbano,
de moradia e escolar aos quais as pessoas mais pobres são submetidas, desfaz e desmascara a
falácia do mérito. E nesta seara não podemos dissociar a qualidade do ensino, a construção
intelectual, a inserção cognitiva, o processo ensino aprendizagem que se constata nas escolas
públicas, deste país, essencialmente nas periferias urbanas, da situação de pobreza que o
mercado e o Estado brasileiro impõem a este segmento social.
Não é por acaso, que vimos a aprovação em ritmo galopante da Lei 13.415/2017, por
parte dos algozes da educação e do povo mais pobre no Brasil. A rapinagem a qual este país foi
e está sendo submetido é mais fácil ser executada quando o povo não consegue fazer uma leitura
crítica e consciente da sua realidade social e do seu próprio país. Suprimir, eliminar as áreas do
conhecimento que formam um cidadão, é um golpe que tem um alcance ainda mais profundo,
diria ainda mais perverso, ele corta na raiz a possibilidade da construção de indivíduos mais
conscientes e preconiza o surgimento de uma geração do “fazer”, sem pensar. Mas não apenas
isto, uma geração destituída de direitos, uma vez, que as reformas impostas pelo Estado
brasileiro, minou nas bases o que poderíamos chamar de o direito a ter direitos.
Portanto, fazer geografia, ou qualquer outra área das humanidades tornou-se uma
espécie de ameaça a segurança nacional, pois essas foram acusadas de formadoras de ideologias
que vão de encontro aos interesses da nação, daí se fez necessário tirá-las da obrigatoriedade

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dos currículos no chamado novo ensino médio. Ao final, não estamos produzindo apenas uma
geração de alienados de sua realidade social, mas uma legião de despossuídos, na mais ampla
acepção da palavra, que se soma a um outro fato bastante contemporâneo, que ao nosso ver,
está representada por uma espécie de auto destruição social, pela inversão de valores que
percebemos, onde os mais pobres se voltam e atentam contra eles mesmos.

Referências

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O ENSINO DE GEOGRAFIA NA PERSPECTIVA DA


CIDADE EDUCADORA

GEOGRAPHY TEACHING FROM THE EDUCATIONAL CITY PERSPECTIVE

LA ENSEÑANZA DE LA GEOGRAFÍA DESDE LA PERSPECTIVA DE CIUDAD


EDUCATIVA

João Manoel de Vasconcelos Filho (2)

Elany Cristina Barros da Silva (1)


Genylton Odilon Rêgo da Rocha (2)

(1)
Professora da Secretaria Estadual de Educação do Estado do Pará, Mestranda em Currículo e Gestão
da Escola Básica pelo Programa de Pós-Graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica da
Universidade Federal do Pará (UFPA), ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9140-2202.
E-mail: elanygeo@gmail.com
(2)
Professor Titular da Universidade Federal do Pará, exercendo atividades no Programa de Pós-
Graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica (Mestrado) e no Programa de Pós-Graduação em
Educação na Amazônia (Doutorado). Diretor Geral do Núcleo de Estudos Transdisciplinares em Educação
Básica da UFPA, ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6264-5387.
E-mail: genylton@gmail.com

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Resumo

O objetivo desse trabalho é apresentar uma discussão teórica sobre o ensino da disciplina geografia na educação
básica, trazendo para a centralidade do debate as proposições postas pelos defensores da cidade educadora
enquanto perspectiva de seleção, organização e construção do conhecimento a ser trabalhado nas aulas. Partimos
da contextualização do conceito de cidade educadora, destacando seus princípios e levantando reflexões sobre
as potencialidades da adoção desta perspectiva para o ensino da geografia escolar. A pesquisa bibliográfica que
resultou na escrita deste artigo selecionou os textos de Cabezudo (2004), Gadotti (2006), Gatotti e Padilha
(2004), Brada e Rios (2004) e Freire (2018) que foram analisados e cujos resultados são aqui discutidos.
Conclui-se que a perspectiva da cidade educadora apresenta grande potencialidade para promover a oxigenação
do ensino de geografia na educação básica, pois os princípios educativos contidos na concepção de cidade
educadora possibilitam o redescobrimento da cidade e a ampliação da noção de espaço de aprendizado ao tomar
a cidade em sua totalidade como um espaço educativo.

Palavras-chave
Geografia Escolar; Ensino de Geografia; Educação Básica; Cidade Educadora.

Abstract Resumen
The objective of this work is to present a theoretical El objetivo de este trabajo es presentar una discusión
discussion on the teaching of the geography discipline teórica sobre la enseñanza de la disciplina de la
in basic education, bringing to the center of the debate geografía en la educación básica, llevando al centro
the propositions put forward by the defenders of the del debate las propuestas planteadas por los defensores
educating city as a perspective of selection, de la ciudad educadora como una perspectiva de
organization and construction of the knowledge to be selección, organización y construcción del
worked on in the classes. We start from the conocimiento a trabajar en las clases. Partimos de la
contextualization of the concept of an educating city, contextualización del concepto de ciudad educadora,
highlighting its principles and raising reflections on destacando sus principios y planteando reflexiones
the potential of adopting this perspective for the sobre el potencial de adoptar esta perspectiva para la
teaching of school geography. The bibliographic enseñanza de la geografía escolar. La investigación
research that resulted in the writing of this article bibliográfica que resultó en la redacción de este
selected the texts by Cabezudo (2004), Gadotti (2006), artículo seleccionó los textos de Cabezudo (2004),
Gatotti and Padilha (2004), Brada and Rios (2004) and Gadotti (2006), Gatotti y Padilha (2004), Brada y Rios
Freire (2018) that were analyzed and whose results are (2004) y Freire (2018) que fueron analizados y cuyos
discussed here . It is concluded that the perspective of resultados se discuten aquí. Se concluye que la
the educating city has great potential to promote the perspectiva de ciudad educadora tiene un gran
oxygenation of the teaching of geography in basic potencial para promover la oxigenación de la
education, since the educational principles contained enseñanza de la geografía en la educación básica, ya
in the concept of an educating city enable the que los principios educativos contenidos en el
rediscovery of the city and the expansion of the notion concepto de ciudad educadora posibilitan el
of learning space when taking the city in its entirety as redescubrimiento de la ciudad y la expansión de la
an educational space. noción de espacio de aprendizaje al tomar la ciudad en
su totalidad como espacio educativo.

Keywords: Palabras clave:


School Geography; Geography Teaching; Basic Geografía Escolar; Enseñanza de la Geografía;
Education; Educating City. Educación Básica; Ciudad Educadora.

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Introdução

E
ste artigo tem como objetivo apresentar uma discussão teórica sobre o ensino da
disciplina geografia na educação básica sob a perspectiva dos princípios educativos
da cidade educadora, enfatizando as potencialidades desses princípios como
possibilidade de mudanças qualitativas no ensino da geografia escolar. Para tanto, partimos da
contextualização do conceito de cidade educadora, destacando seus princípios e levantando
reflexões sobre as potencialidades da adoção desta perspectiva para o ensino da geografia
escolar. A revisão de literatura realizada selecionou para a fundamentação teórica desse estudo
textos de Cabezudo (2004), Gadotti (2006), Gatotti e Padilha (2004), Brada e Rios (2004) e
Freire (2018) que foram analisados e cujos resultados são aqui discutidos.
É neste contexto, que o presente trabalho busca repensar o ensino da geografia na
educação básica na perspectiva da cidade educadora, por compreender que essa concepção
possibilita uma maior apreensão dos conteúdos geográficos ao identificá-los e analisá-los na
apreensão do espaço da cidade.

Abordagens em disputas no ensino de geografia na educação


básica

Segundo Moraes (1999), a geografia tradicional teve seus fundamentos alicerçados nas
ideias positivistas de Augusto Comte, que influenciaram efetivamente essa ciência e
contribuíram para legitimar o conhecimento científico nessa área. Para tanto, a geografia
tradicional adotou o método científico desenvolvido através da observação, da descrição e da
classificação dos fatos, restringindo-se aos aspectos visíveis e mensuráveis do estudo. Dentre
as abordagens tradicionais destacam-se: o determinismo geográfico, fundamentado no
pensamento de Friedrich Ratzel e o possibilíssimo, teorizado por Vidal de La Blache.
Ainda, conforme Moraes (1999) a teoria evolucionista de Darwin serviu de inspiração
para Ratzel desenvolver as ideias da corrente determinista, baseada na concepção de que a
natureza determina a ação do homem. Assim, Ratzel criou o conceito de espaço vital,
argumentando que o as condições ambientais influenciavam no desenvolvimento do homem,
sendo necessária uma proporção de equilíbrio entre a população de um determinado local e os
recursos naturais para suprir as necessidades. Em caso contrário, se o território não fosse

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suficiente para suprir às necessidades dessa sociedade a solução seria apropriar-se de novos
territórios. Tal concepção foi fundamental aos projetos imperialistas do Estado Alemão.
A corrente possibilista teve como principal expoente Paul Vidal de La Blache, defendia
que o homem é quem modifica o meio, por meio da adaptação e transformação de natureza,
criando hábitos que lhes permitem utilizar os recursos disponíveis. “A este, conjunto de técnicas
e costumes, construído e passado socialmente denominou ‘gênero de vida’” (MORAES, 1999,
p.68), enfatizando a existência de uma relação de equilíbrio entre a população e os recursos.
Verifica-se que o positivismo presente nessas correntes vai repercutir no ensino da
geografia, consolidando um estudo meramente descritivo das paisagens naturais e
humanizadas, sem estabelecer relações entre elas. Assim, a concepção positivista de
conhecimento baseado na neutralidade científica, com o predomínio do empirismo como
procedimento de descrição da realidade, era materializada na geografia, que não se preocupava
com a análise das relações sociais, mas, sim, com o estudo dos aspectos visíveis e dos
fenômenos mensuráveis.
De acordo com Moraes (1999), também os procedimentos didáticos baseavam-se na
memorização e na descrição dos elementos e conceitos que compõem a disciplina. No ensino
de geografia os alunos eram orientados a descrever, relacionar os fatos naturais e sociais, fazer
analogias entre eles e elaborar suas generalizações ou sínteses. A explicação era baseada apenas
na leitura superficial dos fenômenos, no intuito de promover o ensino de uma geografia neutra,
evitava-se qualquer forma de compreensão ou subjetividade que confundisse o observador com
o objeto de análise.
A descrição, a enumeração e classificação dos fatos referentes ao espaço são
momentos de sua apreensão, mas a Geografia Tradicional se limitou a eles;
como se eles cumprissem toda a tarefa de um trabalho científico. E, desta
forma, comprometeu estes próprios procedimentos, ora fazendo relações entre
elementos de qualidade distinta, ora ignorando mediações e grandezas entre
processos, ora formulando juízos genéricos apressados. E sempre concluindo
com a elaboração de tipos formais, a-históricos, e, enquanto tais, abstratos
(sem correspondência com os fatos concretos). Assim, a unidade do
pensamento geográfico tradicional adviria do fundamento comum tomado ao
Positivismo, manifesto numa postura geral, profundamente empirista e
naturalista (MORAES, 1999, p. 22)

Na concepção naturalista, a análise da paisagem, do meio, sua diversidade e


características formaram o mote da disciplina. A descrição compartimentada do quadro natural,
da população e da economia era imposto à geografia como um paradigma norteador do contexto
que a sociedade estava inserida, sem que fosse realizada uma reflexão sobre o contexto político-
epistemológico do fenômeno analisado, refletindo em uma abordagem dos elementos naturais
em si mesmos, como se a localização e a descrição da natureza não tivessem um significado
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específico para a sociedade moderna, qual seja o de algo que não era mais pura contemplação
do universo, mas algo que, em primeiro lugar, vinha sendo instrumentalizado pelos homens.
Fundamenta-se, assim, o caráter descritivo da geografia que vai impactar negativamente no
ensino dessa disciplina.
Esse ensino positivista, por vezes enciclopedista, acabava por impor aos educandos um
ensino baseado na descrição e na memorização de determinados elementos referentes a
geografia, tais como clima, relevo, vegetação, população etc. Assim, o homem era
compreendido como meramente um elemento natural, sem que fosse analisada o seu papel
histórico-social, daí a dificuldade de associar o que se era apreendida nas aulas de geografia a
realidade do educando. Neste contexto, segundo Vlach (1991)

A nosso ver, as principais limitações da Geografia Tradicional derivam dessa


ausência de reflexão a respeito do contexto político-epistemológico em que
aflorou, o que conduziu a uma abordagem dos elementos naturais em si
mesmos, como se a localização e a descrição da natureza não tivessem um
significado específico para a sociedade moderna, qual seja o de algo que não
era mais pura contemplação do universo, mas algo que, em primeiro lugar,
vinha sendo instrumentalizado pelos homens (VLACH, 1991, p.53)

Essa geografia escolar de caráter descritivo, coloca o professor como detentor do


conhecimento promovendo assim, um ensino mecânico baseado na memorização de conteúdos
que estão distantes da prática social do estudante, fato que acaba corroborando para a ideia da
geografia como
Uma disciplina maçante, mas antes de tudo, simplória, pois, como qualquer
um sabe “em geografia não há nada para entender, mas é preciso ter
memória...” De qualquer forma, após alguns anos os alunos não querem mais
ouvir falar dessas aulas que enumeram para cada região ou para cada país, o
relevo – clima – vegetação – população – agricultura – cidades – indústrias.
(LACOSTE, 2004, p. 21)

Neste contexto, o conhecimento é produzido de forma acrítica, partindo do princípio de


que o que é ensinado pelo professor é uma verdade incontestável, devendo ser reproduzida
exatamente igual, não sendo passível de questionamentos ou críticas por parte dos alunos. Estes,
por sua vez, são compreendidos concebido, nessa lógica, receptáculo vazio. Nessa concepção
de ensino, o aluno, segundo Sstraforini (2008)

É visto como um agente passivo, cabendo a ele decorar e memorizar o


conjunto de conhecimentos significativos da cultura da humanidade
previamente selecionados e transmitidos pelo professor em aulas expositivas.
O mundo é uma externalidade ao aluno, ou seja, não é dado a ele a
possibilidade de sua inserção no processo histórico. Assim, o conhecimento é
concebido como uma informação que é apreendida unicamente pela
memorização. (STRAFORINI, 2008, p. 57)
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O conceito de educação bancária que Paulo Freire trabalhou está fortemente presente
nessa forma de ensinar, onde as relações entre professor/aluno se dão de forma vertical,
consequentemente somente o professor detém o conhecimento e o aluno está apto para receber
as informações sem dialogar, mantendo-se neutro na construção de ideias. Esses procedimentos
utilizados no ensino, onde o professor é um ser ativo e o aluno passivo, onde as relações
comunicativas horizontais se encontram ausentes, está fortemente presente nessa Geografia
Tradicional.
Dessa maneira, a educação se torna um ato de depositar, em que os educandos
são os depositários e o educador o depositante. Em lugar de comunicar-se, o
educador faz comunicados e depósitos que os educandos, meras incidências,
recebem pacientemente, memorizam e repetem. Eis aí a concepção bancária
da educação, em que a única margem de ação que se oferece aos educandos é
a de receberem os depósitos, guardá-los e arquivá-los. (FREIRE, 2018, p. 80)

No contexto de redemocratização brasileira, a realidade do nosso país no campo da


educação era preocupante em razão dos problemas e da ineficiência presentes no sistema de
ensino em todos os níveis. Aliado a essas questões, e por pressão dos organismos internacionais,
do Banco Mundial, da Unicef e da Unesco, ganhou força um importante debate em torno da
reformulação do ensino e da reorganização do processo educativo tanto no âmbito acadêmico
quanto no escolar, mediante a realização de reformas para melhoria do desempenho
educacional. A implementação dessas reformas consolidou-se na década de 1990 em
decorrência dos acordos assumidos na Conferência Mundial sobre Educação para Todos:
Satisfação das Necessidades Básicas de Aprendizagem, realizada em Jomtien, Tailândia, em
1990. A qualidade da educação passou, então, a fazer parte de discussões em todos os setores
da sociedade e das ações e políticas do MEC.

Nesse momento, o ensino da Geografia está ancorado nos pressupostos a


Geografia Tradicional cujas teses se assentam num empirismo acirrado e
apresentam um conteúdo preso aos fatos empíricos isolados que impossibilita
a compreensão do movimento global da sociedade. Nestes pressupostos, não
há lugar para as discussões de questões sociais, pois restringem-se ao que é
descritível, palpável e mensurável (SOARES JÚNIOR,2002, p. 2).

A crise na corrente de pensamento tradicional positivista e as mudanças no mundo,


causadas pela Revolução Técnico Científica, fomentaram o desenvolvimento de um novo
paradigma que, para além da descrição dos fenômenos, fosse capaz de apreender de forma mais
qualitativa esse novo contexto histórico.

Pensamos que nos anos 70 ficavam cada vez mais nítidas, em todos os níveis
as mudanças tecnológicas iniciadas após a Segunda Guerra Mundial. O mundo
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se refazia com o domínio da técnica, ciência e da informação produzindo uma


ruptura profunda com o período anterior (STRAFORINI, 2008, p. 64)

Os avanços da tecnologia e um novo modelo de produção imposto pelo capitalismo


suscitavam a emergência de um novo perfil de profissional, que pudesse dar conta dessa nova
realidade. A educação, então, assumiu o papel de qualificar esse perfil para que atendesse aos
padrões de qualificação exigidos por esse mercado. Nesse contexto, os métodos e as teorias da
geografia tradicional, baseados em levantamentos empíricos e estudos descritivos, tornaram-se
insuficientes para dar conta de uma nova perspectiva de ensino. Esse movimento de
reformulação da ciência geográfica contribuiu para o surgimento de uma nova proposta de
ensino, baseada em fundamentos críticos, que se estruturaram a partir de um conjunto de
reflexões de ordem epistemológica, ideológica e política.
O que denominamos de Geografia Crítica é o resultado de propostas de mudanças que
ocorrem no contexto do movimento de renovação da geografia, consolidado no Brasil a partir
da década de 1980. Esse movimento promoveu um amplo espaço de discussões e debates em
sobre o papel do ensino da geografia. As principais discussões eram feitas sobre os fundamentos
da ciência geográfica e a busca de uma aproximação entre a universidade e os professores de
geografia do ensino fundamental e médio.
Sobre as características dessa corrente de pensamento Straforini (2008) argumenta que:
“o centro de preocupação da Geografia Crítica passa a ser as relações entre a sociedade, o
trabalho e a natureza na produção do espaço, exigindo dessa forma, a negação dos velhos
pressupostos da Geografia Tradicional”. (STRAFONINI, 2008, p.70).
Tornou-se necessário repensar os fundamentos teóricos e metodológicos da ciência
geográfica, que, até então, estavam embasados na geografia tradicional. Os paradigmas
tradicionais passaram a ser criticados, o que acarretou o surgimento de propostas e reflexões
calcadas no materialismo histórico e na dialética marxista. Neste contexto, “a incorporação da
dialética, como método de investigação, tem permitido que a geografia recupere a visão do todo
perdida pelo e no positivismo e não recuperada no neopositivismo, senão no plano abstrato e
idealista”. (OLIVEIRA, 2008, p. 140)
Esse movimento de renovação reuniu geógrafos que estavam empenhados em romper
com um saber fragmentado, baseado na descrição de fenômenos físicos, e refletisse sobre as
questões sociais. Neste contexto, tentativa de superação da dicotomia homem/natureza passou
a ser prioridade no interior da geografia, repercutindo também no ensino dessa disciplina, uma
vez que a descrição e enumeração dos fatos não explicava as transformações desse novo
contexto histórico.

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Trata-se de uma Geografia que concebe o espaço geográfico como espaço


social, construído, pleno de lutas e conflitos sociais. Ele critica a Geografia
Moderna no sentido dialético do termo crítica: superação com subsunção, e
compreensão do papel histórico daquilo que é criticado (VESENTINI, 2008,
p. 14).

As mudanças mais radicais no ensino da geografia foram resultado das discussões


teórico-metodológicas que se desenvolviam no meio acadêmico a partir da década de 1980.
Manuel Correa de Andrade, Antonia Carlos R. Moraes, Ariovaldo U. Oliveira, Milton Santos,
José W. Vesentini, são importantes nomes nesse processo de renovação da geografia.

Sobre a luz da Geografia Crítica é possível que realmente possa se desenvolver


um ensino que favoreça o entendimento real e concreto da ação humana
através da relação espaço-tempo – e de suas múltiplas relações e
determinações, procurando compreender o movimento da sociedade sobre o
espaço ao longo do tempo, o que poderá ocorrer através de uma visão de
totalidade e não fragmentada, descritiva e superficial da sociedade
(STRAFORINI, 2008, p. 68).

Enquanto disciplina escolar, a geografia assume uma nova perspectiva, estando muito
mais comprometida com a compreensão das diferentes dinâmicas de produção do espaço. Como
bem argumenta Santos

Nossa proposta atual de definição da geografia considera que a essa disciplina


cabe estudar o conjunto indissociável de sistemas de objetos e sistemas de
ação que forma o espaço. Não se trata de sistemas de objetos e sistemas de
ações tomados separadamente. [...] O espaço é formado por um conjunto
indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e
sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único
no qual a história se dá. No começo era a natureza selvagem, formada por
objetos naturais, que ao longo da história vão sendo substituídos por objetos
fabricados, objetos técnicos, mecanizados e, depois, cibernéticos, fazendo
com que a natureza artificial tenda a funcionar como uma máquina. Através
da presença desses objetos técnicos: hidroelétricas, fábricas, fazendas
modernas, portos, estradas de rodagem, estradas de ferro, cidades, o espaço é
marcado por esses acréscimos, que lhe dão um conteúdo extremamente
técnico (SANTOS, 2009, p. 62-63).

Aos poucos, a geografia crítica foi inserida no contexto escolar, porém os discursos de
renovação não conseguiram ultrapassar o caráter ideológico, contribuindo para a manutenção
dos princípios da geografia tradicional nas práticas docentes e nos conteúdos dos livros
didáticos. Assim, nas escolas a renovação trazida pela geografia crítica não promoveu
mudanças amplamente significativas.
Mesmo diante de todo esse movimento de renovação da geografia que ocorreu nas
últimas décadas, ainda é muito presente na prática de ensino dos professores de geografia bem

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como nos aspectos pedagógicos, didáticos e teóricos das propostas de ensino dessa disciplina,
elementos do ensino de geografia na abordagem tradicional, uma vez que, a relação de ensino
aprendizagem, continua adotando práticas que reproduzem a reprodução do conhecimento
considerado o correto, sem contribuir para o desenvolvimento crítico do aluno.
O ensino exclusivamente verbalista, a mera transmissão de informação, a
aprendizagem entendida como acumulação de conhecimentos não subsistem
mais. É preciso que o professor medeia a relação ativa do aluno com a matéria,
levando em conta as experiências e os significados que os alunos trazem para
sala de aula, o potencial cognitivo, capacidades, interesses, modo de pensar e
de trabalhar. (LIBÂNEO, 2008, p.30)

Tal realidade justificava-se pelo fato da geografia crítica ter sido inserida nas escolas de
forma verticalizada, isto é, sem ser aprofundada teoricamente pelos professores que estavam no
ambiente escolar, Straforini (2008) argumenta que:

Na verdade, a Geografia crítica foi aprofundada para a grande maioria dos


professores através dos livros didáticos, pulando a mais importante etapa: sua
construção intelectual. Da mesma forma que os conteúdos chegavam aos
professores de maneira pronta acabada na Geografia Tradicional, os
conteúdos sobre a luz da Geografia Crítica também assumiam o mesmo papel
junto aos professores, ou seja, de essencialmente dinâmicos, na prática
continuamente estáticos. (STRAFORINI, 2008, p.50)

Segundo Paulo Freire (2018), o ensino escolar apresenta, muitas vezes, conteúdos
“artificiais” que não despertam o interesse dos alunos, pois estão distantes da realidade dos
mesmos, assim, por não perceberem a aplicabilidade do que aprendem na escola com a
realidade vivida, acabam interiorizando a desnecessidade de fazê-los. Isto posto, somos levados
a defender que o conteúdo a ser ensinado nas aulas de geografia tem que se aproximar da
realidade do aluno, ser contextualizado com sua vivência, para que haja maior compreensão do
que é estudado.
O papel da Educação, e dentro dessa, o do ensino de Geografia é trazer à tona
as condições necessárias para a evidenciação das contradições da sociedade a
partir do espaço, para que no seu entendimento e esclarecimento possa surgir
um inconformismo e, a partir daí, uma outra possibilidade para a condição da
existência humana. (STRAFORINI, 2008, p.56)

Cabe ressaltar que ensino de geografia na perspectiva crítica, pressupõe a compreensão


da escola como um espaço que promove a construção de um conhecimento que tenha sentido
na vida do educando, que por sua vez, passa a apreender a geografia como uma disciplina que
possibilita desvelar a realidade, por meio da compreensão das relações contraditórias que se
desenvolvem no contexto social.

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DOSSIÊ: “Por uma Geografia Escolar Crítica”

Na abordagem crítica do ensino de geografia, busca-se possibilitar ao educando uma


aprendizagem significativa e contextualizada dos conteúdos dessa disciplina.

O ensino [de geografia] visa à aprendizagem ativa dos alunos, atribuindo-se


grande importância a saberes, experiências, significados que os alunos já
trazem para a sala de aula incluindo, obviamente, os conceitos cotidianos. Para
além dessa primeira consideração, o processo de ensino busca o
desenvolvimento, por parte dos alunos, de determinadas capacidades
cognitivas e operativa, através da formação de conceitos sobre a matéria
estudada. Para tanto, requer-se o domínio de conceitos específicos dessa
matéria e de sua linguagem própria. (CAVALCANTI, 2009, p.88)

O professor, ao valorizar o conhecimento que o aluno já tem, e ao contextualizar os


conteúdos de forma a aproximá-los da realidade vivida do educando, dá um novo sentido ao
processo de ensino aprendizagem. Ele deixa de ser um mero transmissor do conhecimento e
passa a ser um mediador no processo de aprendizagem ativa dos alunos. De acordo com
Cavalcanti (2009)
O docente precisa rever a sua prática, reavaliar as suas aulas, pois o professor
possui um papel na sociedade que para muitos passa por despercebido. O
professor precisa quebrar paradigmas, buscando o novo a partir da pesquisa e
de uma nova metodologia de ensino. O professor precisa em sua prática
desafiar o seu aluno, tirá-lo da zona de conforto para que ele repense o que
está ao seu redor buscando a capacidade crítica e a Geografia como ciência
tem muito a contribuir. (CAVALCANTI, 2009, p. 40)

Neste contexto, cabe ao professor desenvolver práticas inovadoras que estimulem o


interesse e o aprendizado crítico do educando, que promova um movimento consciente de
reflexão sobre sua realidade. Para tanto, é preciso que o professor esteja disposto a refletir
crítica e conscientemente sobre sua prática docente, buscando metodologias de ensino coerentes
com a produção do conhecimento na perspectiva crítica.

A concepção de Cidade Educadora e suas potencialidades no


ensino de geografia

Para além das reflexões sobre os limites e possibilidades das abordagens tradicionais e
das abordagens críticas no ensino de geografia, é necessário considerar as transformações que
ocorreram nos sistemas de ensino no contexto de ampliação das políticas neoliberais, para
pensarmos estratégias que promovam uma educação verdadeiramente emancipatória.
As políticas neoliberais e suas implicações no contexto escolar por meio de reformas no
sistema de ensino, têm sido analisadas criticamente por autores como Mészaros (2008), Sader

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(2008), Santomé (2013) e Freire (2018) buscam demostrar como a proposta neoliberal de
educação está intimamente atrelada aos interesses capitalistas.

No reino do capital, a educação é, ela mesma, uma mercadoria. Daí a crise do


sistema público de ensino, pressionado pelas demandas do capital e pelo
esmagamento dos cortes de recursos dos orçamentos públicos. Talvez nada
explique melhoro universo instaurado pelo neoliberalismo, em que “tudo se
vende”, “tudo se compra”, “tudo tem preço”, do que a mercantilização da
educação. Uma sociedade que impede a emancipação só pode transformar os
espaços educacionais em shopping centers, funcionais à sua lógica do
consumo e do lucro. (SADER, 2008, p. 16)

O caráter mercantil da proposta de educação neoliberal contribui para a criação e


reprodução de desigualdades ao conceber a educação como uma mercadoria, e ao propor um
sistema de ensino que incorpora os princípios da organização dos espaços das fábricas, como
qualidade e eficiência. Assim,

Os sistemas educativos a serviços de governos que apostam em modelos


econômicos neoliberais também são contemplados de modo simplista como o
conjunto de possibilidades oferecida a cada pessoa para que ela se capacite e
tenha melhor empregabilidade no mercado de trabalho; ou seja, uma educação
para poder participar do mercado de trabalho e dele obter os maiores
benefícios econômicos possíveis. As necessidades empresariais passam a ser
o referente que condiciona tanto a escolarização obrigatória como,
principalmente o currículo obrigatório a ser cursado, as especialidades que são
oferecidas e, por sua vez, o controle para decidir os níveis de qualidade e
excelência dos sistemas educativos. O conhecimento educativo passa a ser
contemplado de forma mercantilista, recorrendo a marcos conceituais
economicistas e a estratégias de planejamento e avaliação semelhantes as que
são empregadas no âmbito dos negócios e das fábricas. (SANTOMÉ, 2013, p.
95)

Segundo Gadotti e Padilha (2004) quando a educação vira mercadoria, a escola perde o
seu sentido de humanização. Assim, na lógica neoliberal, a escola deixa de ser um espaço para
“aprender a ser gente” e passa a ser um lugar de aprendizado para competir no mercado de
trabalho.
Na contramão da lógica neoliberal de educação, Barbosa (2016) destaca o papel da
geografia escolar como na formação de sujeitos críticos e transformadores da sua realidade.
Segundo a autora,
Feita matéria escolar, a Geografia contribui para o educando situar-se no
mundo, compreender a organização desse espaço e identificar os tipos de
intervenção que a sociedade executa na natureza, com vistas a buscar
explicações sobre a localização e a relação entre os fenômenos geográficos. O
ensino dessa matéria permite ao estudante acompanhar e compreender o modo
contínuo de transformação do mundo no tempo e no espaço. Dessa maneira, a
Geografia nas escolas busca desenvolver o senso crítico dos educandos a fim
de que estes possam atuar de maneira reativa e propositiva perante as
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injustiças sociais, ou seja, promove uma aprendizagem prática com intenção


emancipatória. Quando este ensino adquire uma abordagem transposta à
perspectiva tradicional, os educandos adquirem saberes para agir
conscientemente em seus contextos de vida social, política e cultural, são
capazes de desenvolver atitudes positivas em favor da justiça social e
adquirem autoconfiança e independência. (BARBOSA, 2016, p. 83)

É como possibilidade de promoção de uma educação verdadeiramente emancipatória,


pelo exercício da cidadania, que a concepção de Cidade Educadora ganha cada vez mais espaço
nas discussões sobre formas inovadoras de educação, concebendo a cidade como um espaço
educativo (CABEZUDO, 2004; GADOTTI, 2006; FREIRE, 2015; ZITKOSKI, 2005).
Cidade Educadora, segundo o que estabelece o documento Carta das Cidades
Educadoras (Declaração de Barcelona, 1990), é um programa de planejamento e administração
pública que tem por princípio a ideia de que a cidade pode ser um espaço educativo para a sua
população. Esse conceito ganhou espaço no cenário mundial na década de 1970, com o
documento “Aprender a ser, a educação do Futuro”, apresentado pela UNESCO. Durante o 1º
Congresso Internacional das Cidades Educadoras realizado em novembro de 1990 na cidade de
Barcelona, firmou-se o conceito de cidade educadora, dando origem a uma rede hoje com mais
de 300 cidades participantes no mundo. No Brasil, mais de 15 cidades integram a Rede de
Cidades Educadoras, entre elas estão as cidades de: Porto Alegre, Gravataí, Belo Horizonte,
Santo André, São Carlos, Piracicaba, Caxias do Sul, Sorocaba, entre outas, que assumiram o
compromisso de desenvolver os princípios essenciais ao impulso educador da cidade, pautado
no princípio de que “o desenvolvimento de seus habitantes não pode ser deixado ao acaso”.
Nesta perspectiva, segundo Cabezudo (2004) a cidade educadora

É aquela que converte o seu espaço urbano em uma escola. Imagine uma
escola sem paredes e sem teto. Neste espaço, todos os espaços são salas de
aula: rua, parque, praça, praia, rio, favela, Shopping, e também as escolas e as
universidades. Há espaços para a educação formal, em que aplicam
conhecimentos sistematizados, e a informal, em que cabe todo tipo de
conhecimento. Ela integra esses tipos de educação, ensinando todos cidadãos,
do bebê ao avô, por toda a vida. (CABEZUDO, 2004, p. 13)

Assim, a cidade educadora aparece como possibilidade de pensar uma educação para
além dos espaços escolares, uma educação que ultrapasse os muros da escola e adentre as
cidades, apropriando-se de todo o potencial educativo que a cidade oferece.

Essa nova dimensão do conceito de cidade implica considerar que a educação


das crianças, jovens e cidadãos em geral não é somente responsabilidade das
instituições tradicionais (estado, família, escola), mas também deve ser
assumida pelo município, por associações, instituições culturais, empresas
com vontade educadora e por todas as instâncias da sociedade. Por isso é
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necessário potencializar a formação dos agentes educativos não escolares e


fortalecer tecido associativo entre todos e todas. (CABEZUDO, 2004, p 13)

O conceito de Cidade Educadora consolidou-se na década de 1990, durante a realização


do I Congresso Internacional das Cidades Educadoras, realizado na cidade de Barcelona, na
Espanha, quando um grupo de cidades representadas por seus governos locais colocou como
objetivo comum trabalhar conjuntamente em projetos e atividades
para melhorar a qualidade de vida dos habitantes, a partir do envolvimento ativo no uso
e na evolução da própria cidade de acordo com a Carta das Cidades Educadoras, aprovada nesse
congresso, e que apresenta os princípios básicos que caracterizam uma cidade que educa. Esse
documento foi revisto e ratificado em 1994, durante a realização do III Congresso Internacional
em Bolonha. Este movimento foi formalizado como Associação Internacional, constituída
como uma estrutura permanente de colaboração entre os governos locais comprometidos com
a Carta de Cidades Educadoras, que funciona como roteiro das cidades que a compõem.
A Carta das Cidades Educadoras apresenta vinte princípios para que uma cidade
desenvolva o seu papel de educadora. Sobre esses princípios, Gadotti (2006) destaca

A satisfação das necessidades das crianças e dos jovens, no âmbito das


competências do município, pressupõe uma oferta de espaços, equipamentos
e serviços adequados ao desenvolvimento social, moral e cultural, a serem
partilhados com outras gerações. O município, no processo de tomada de
decisões, deverá levar em conta o impacto das mesmas. A cidade oferecerá
aos pais uma formação que lhes permita ajudar os seus filhos a crescer e
utilizar a cidade num espírito de respeito mútuo. Todos os habitantes da cidade
têm o direito de refletir e participar na criação de programas educativos e
culturais e a dispor dos instrumentos necessários que lhes permitam descobrir
um projeto educativo, na estrutura e na gestão da sua cidade, nos valores que
esta fomenta, na qualidade de vida que oferece, nas festas que organiza, nas
campanhas que prepara, no interesse que manifesta por eles e na forma de os
escutar”. (GADOTTI, 2006, p. 134).

Consideramos esses princípios fundamentais para o desenvolvimento de atividades


educativas que integrem o conhecimento e a vivência do meio urbano, suas características,
vantagens, problemas e soluções, aos saberes geográficos, tornando esse aprendizado mais
significativo e útil no processo de produção do conhecimento.

A cidade dispõe de inúmeras possibilidades educadoras. A vivência na cidade


se constitui num espaço cultural de aprendizagem permanente por si só. Mas
a cidade pode ser “intencionalmente” educadora. Uma cidade pode ser
considerada uma Cidade Educadora, quando, além de suas funções
tradicionais – econômica, social, política e de prestação de serviços – ela
exerce uma nova função cujo objetivo é a formação para e pela cidadania. Para
uma cidade ser considerada educadora ela precisa promover e desenvolver o
protagonismo de todos – crianças, jovens, adultos, idosos – na busca de um

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novo direito, o direito à cidade educadora. (GADOTTI; PADILHA, 2004,


p.128)

A concepção de educação presente no conceito de Cidade Educadora tem como objetivo


a formação de um cidadão emancipado, mediante a promoção de uma educação cidadã
comprometida com a cultura democrática e solidária da cidade, isto é, formar cidadãos
conhecedores de seus direitos e obrigações com respeito à sociedade e que, à medida que
conhecem e apreendem criticamente a cidade onde vivem, realizem uma ação participativa e
transformadora desta.
A cidade passa a ser compreendida como espaço da cidadania, espaço usado e
apropriado pelo cidadão e pela cidadã. De acordo com Santos (2014) ser cidadão é ter o
inalienável direito a uma vida decente, para todos, não importa o lugar onde se encontre, na
cidade ou no campo. Mais do que um direito a cidade o que está em jogo é o direito de obter na
sociedade aqueles bens e serviços múltiplos sem os quais a existência não é digna.

Ser cidadão, perdoe-me os que cultuam o direito, é ser como o Estado, é ser
um indivíduo dotado de direitos que lhe permitam não só se defrontar com o
Estado, mas afrontar o Estado. O cidadão seria tão forte como o estado. O
indivíduo completo é aquele que tem a capacidade de entender o mundo, a sua
situação no mundo, e que se ainda não é cidadão, sabe o que poderiam ser os
seus direitos. (SANTOS, 2014, p. 157)

Neste sentido, de acordo com Santos (2014) ser cidadão pressupõe o exercício da
cidadania, que segundo ele corresponde às ações dos cidadãos que garantem os instrumentos
para o exercício da sua liberdade e garantia dos seus direitos.

Pode-se dizer que cidadania é essencialmente consciência de direitos e deveres


e exercício da democracia: direitos civis, como segurança e locomoção;
direitos sociais, como trabalho, salário justo, saúde, educação, habitação etc.;
direitos políticos, como liberdade de expressão, de voto, de participação em
partidos políticos e sindicatos etc. Não há cidadania sem democracia.
(GADOTTI, 2006, p. 134).

A cidadania é um conceito primordial na concepção de educação da Cidade Educadora.


Ela é muito mais ampla do que a concepção liberal de cidadania, pautada no direito à liberdade
individual e no direito à propriedade, que hoje converte-se em uma “concepção consumista de
cidadania (direito do consumidor)”. A cidadania plena “se manifesta na mobilização da
sociedade para a conquista de novos direitos e na participação direta da população na vida
pública” (GADOTTI, 2006, p. 134).
Essa cidadania é exercida mediante um constante aprendizado. Tal compreensão, pauta-
se na perspectiva freiriana do inacabamento do ser humano, onde o seu desenvolvimento ocorre

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por toda a vida, sendo, portanto, “um ser finito, limitado, inconcluso, mas consciente de sua
inconclusão. Por isso, um ser ininterruptamente em busca, naturalmente em processo”
(FREIRE, 1991, p.3)
Assim, ampliando-se a discussão sobre elementos fundamentais na formação cidadã,
entendemos que a educação na cidade além se dar de forma coletiva e democrática, também
assume um caráter de constância.
Aplicando a premissa freiriana de que o “mundo não é, ele está sendo” ao contexto da
educação, é possível apreender o caráter emancipador presente na concepção de cidade
educadora. Assim, uma vez consciente da sua realidade compreende, o que na perspectiva
freiriana define-se como “inédito viável”, a materialização historicamente possível do sonho
almejado.
Brada e Ríos (2004) destacam que a concepção de cidade educadora nos traz um novo
olhar sobre os processos educativos a partir de três aspectos: aprender a cidade, aprender na
cidade e aprender da cidade. Aprender a cidade pressupõe considerar ela própria como
conteúdo educativo: em descobrir a cidade, identificar seus diferentes espaços educativos,
desvelar suas possibilidades de aprendizado. Aprender na cidade pressupõe o uso pedagógico
dos espaços educativos que a cidade oferece. Aprender da cidade pressupõe compreender que
a cidade é um agente de educação.
Essa leitura do mundo, que em Paulo Freire antecede a leitura da palavra, tem no ensino
de geografia, e no estudo da cidade, do lugar, do espaço vivido, o foco inicial para o sujeito se
vê no mundo, enquanto sujeito consciente e produtor, também, de parte de sua vida, de sua
história, como se houvesse um misto de objeto e sujeito.
Segundo Freire (2015) a cidade educadora é uma cidade dotada de qualidades. “É a
cidade para a educação e a educação para a cidade”. Por sua vez, Gadotti, (2006) argumenta
que
Precisamos de uma pedagogia da cidade para nos ensinar a olhar, a descobrir
a cidade, para poder aprender com ela, dela, aprender a conviver com ela. A
cidade é o espaço das diferenças. A diferença não é uma deficiência. É uma
riqueza. Existe uma prática da ocultação das diferenças, também decorrente
do medo de ser tocado por elas, sejam as diferenças sexuais, culturais etc.
(GADOTTI, 2006, p. 139)

Assim, a desenvolvimento de práticas pedagógicas a partir da concepção de cidade


educadora, vem sendo realizado por redes de cidades e até mesmo escolas que adotam os
princípios da Cidade Educadora como possibilidades de constituição de novas práticas
pedagógicas.

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Nesta perspectiva, a Associação Internacional das Cidades Educadoras (AICE) constitui


uma importante estrutura de colaboração e socialização entre as cidades que integram essa
associação, de experiências pedagógicas pautadas nos princípios educativos da Cidade
Educadora. A AICE tem como objetivos:
• Proclamar e reivindicar a importância da educação na cidade.

• Evidenciar as vertentes educativas dos projetos políticos das cidades associadas.

• Promover, inspirar, fomentar e acompanhar o cumprimento da Carta das Cidades


Educadoras (Declaração de Barcelona) nas cidades-membro, bem como assessorar e
informar os seus membros relativamente ao fomento e à implantação dos mesmos.

• Representar os associados na execução dos fins associativos, estabelecendo contatos e


colaborando com organizações internacionais, estados e entidades territoriais de todo
o tipo, sendo a AICE um interlocutor válido e significativo nos processos de influência,
negociação, decisão e redação.

• Criar laços e colaborar com outras associações, federações, agrupamentos ou Redes


Territoriais, especialmente de cidades, em esferas de ação similares, complementares
ou concorrentes.

• Cooperar em todos os âmbitos territoriais que se enquadrem nos fins da presente


Associação.

• Promover o aprofundamento do conceito de Cidade Educadora e as suas aplicações


práticas nas políticas das cidades, através de intercâmbios, encontros, projetos comuns,
congressos, atividades e iniciativas que reforcem os laços entre as cidades associadas,
no âmbito das delegações, Redes Territoriais, Redes Temáticas e outros agrupamentos.

Seguindo esses princípios a Delegação para a América Latina conta com três redes
territoriais: REMCE (Rede Mexicana de Cidades Educadoras), REBRACE (Rede Brasileira de
Cidades Educadoras) e RACE (Rede Argentina de Cidades Educadoras), e com três Redes
Temáticas: A Rede de Políticas Ambientais e de Sustentabilidade, a Rede de Políticas para a
Promoção da Convivência e da Participação Cidadã, e a Rede de Políticas para a Promoção de
Direitos das Infâncias e Juventudes.
De acordo com a AICE as Redes Territoriais são as agrupações de cidades de uma
mesma zona territorial, que se propõem trabalhar os temas de interesse comum de maneira
conjunta. Cada rede estabelece sua organização e funcionamento de acordo com os estatutos da
AICE e está coordenada por uma de suas cidades. Uma Rede Temática é uma equipe de trabalho

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integrada por representantes dos governos locais de diversas cidades que pertencem à
Delegação, com o interesse coletivo posto em uma temática concreta de gestão municipal e o
desejo de realizar trocas de experiências relacionadas, aprofundando em sua análise e chegando
às conclusões práticas que otimizem seu trabalho concreto e que sejam oferecidas ao restante
das cidades membro.
No intuito de compartilhar e promover experiências positivas de práticas pedagógicas
desenvolvidas à luz dos princípios da Cidade Educadora, essas redes disponibilizam em seus
sites textos que relatam o desenvolvimento dessas práticas. Tal material pode ser utilizado como
referência para o desenvolvimento de novas práticas pedagógicas que adotem os princípios da
Cidade Educadora.
No Brasil vários estudos científicos consideram o conceito de Cidade Educadora como
possibilidade de desenvolvimento de uma nova concepção de políticas públicas, bem como, do
desenvolvimento de práticas pedagógicas que contribuam para a formação cidadã e o pleno
exercício da cidadania. No âmbito da educação, destacamos as seguintes pesquisas: A educação
popular para todos de uma cidade educadora (Natal, Rio Grande do Norte, 1957-1964); O novo
paradigma do saber e os dispositivos urbanos para uma cidade educadora; Cidades e processos
educativos: CIEPS e PEU Bairro-Escola no caminho das Cidades Educadoras; Educação e
cidadania na perspectiva da Cidade Educadora: uma proposta para Frederico Westphalen;
Escola que inclui, cidade que educa: apropriação do Programa Mais Educação em uma escola
na periferia de São Paulo.
A referência a essas pesquisas visa demonstrar que o desenvolvimento de práticas
pedagógicas a partir dos princípios da Cidade Educadora, é uma realidade que apresenta
inúmeras possibilidades para uma transformação qualitativa e verdadeiramente significativa
dos processos de ensino-aprendizagem.
Nesta perspectiva, Gadottie Padilha (2004) argumentam que

Na cidade educadora, além dos professores e das escolas, outras pessoas e


instituições também se organizam intencionalmente para criar redes de
articulação, reconhecendo os micro e macro espaços da cidade. Nesse
contexto, realiza-se permanentemente o que freirianamente, chamamos de
“leitura de mundo”, que é a base de todo o planejamento educacional e,
portanto, do planejamento da cidade educadora. Passamos a conviver
igualmente com muitos sujeitos que, para além dos seus exercícios
profissionais, passam também a atuar como educadores. Trata-se então, de
reconhecer a “pedagogia urbana” (...) que, em síntese, significa que cada
pessoa pode se reconhecer educadora, ensinar e aprender, reconhecendo a
existência na cidade múltiplos espaços educativos – e, múltiplos espaços
educacionais. (GADOTTI; PADILHA, 2004, p.137)

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Na cidade educadora a escola, por meio da apreensão da cidade pelos alunos, possibilita
a formação de cidadãos críticos que exerçam plenamente a sua cidadania, promovendo uma
educação para e pela cidadania. Assim, é no âmbito do Movimento das Cidades Educadoras
que surge uma nova concepção de escola, em oposição a concepção de escola neoliberal, a
Escola Cidadã, que objetiva a promoção de uma educação para a compreensão e respeito às
diferenças e as diversidades inerentes a sociedade na qual está inserida.

A Escola Cidadã é aquela que se assume como um centro de direitos e de


deveres. O que a caracteriza é a formação para a cidadania. A Escola Cidadã
é aquela, então, é a escola que viabiliza a cidadania de quem está nela e de
quem vem a ela. Ela não pode ser uma escola cidadã em si e para si. Ela é
cidadã na medida mesma em que se exercita na construção da cidadania de
quem usa o seu espaço. A Escola Cidadã é uma escola coerente com a
liberdade. É coerente com seu discurso formador, libertador. É toda escola
que, brigando para ser ela mesma, luta para que os educandos-educadores
também sejam eles mesmos. E como ninguém pode ser só, a Escola Cidadã é
uma escola de comunidade, de companheirismo. É uma escola de produção
comum do saber e da liberdade. É uma escola que vive a experiência tensa da
democracia. (FREIRE, apud GADOTTI; PADILHA, 2004, p.123)

Paulo Freire ao longo de sua importante e extensa obra, defende que a educação deve
promover a consciência crítica do educando, por meio de uma relação dialética desse com o seu
espaço vivido, tornando-o cada vez mais consciente sobre a sua realidade de modo a poder
refletir sobre ela e transformá-la. Na concepção freiriana, a consciência crítica “é a
representação das coisas e dos fatos como se dão na existência empírica. Nas suas correlações
causais e circunstanciais. [...] é próprio da consciência crítica a sua interação com a realidade”.
(FREIRE, 2018, p. 138)
Brada e Ríos (2004), apresentam os princípios educativos inerentes a cidade educadora
da seguinte forma

[...] as cidades devem ser consideradas como verdadeiros espaços de


aprendizagem, organizando, sistematizando e aprofundando o conhecimento
informal que adquirimos dela espontaneamente na vida cotidiana [...] Trata-
se de aprender a ler a cidade, aprender que ela constitui um sistema dinâmico
em contínua evolução. Para isso é necessário ultrapassar a parcela da cidade
que constitui o habitat concreto de cada um. Também significa aprender a lê-
la criticamente, a utilizá-la e a participar de sua construção. [...] A educação
tem que assumir a difícil tarefa de compreender e aceitar a diversidade, já que
esta potencializa o enriquecimento entre indivíduos e os grupos humanos, e
evitar que esta se converta em fator de exclusão social. [...] Os cidadãos devem
aprender as habilidades mínimas para circular pela cidade, para utilizar
plenamente seus meios de transporte e comunicação, para encurtar os
caminhos e localizar-se na intricada complexidade de nossas urbes. (...) É
preciso reconhecer os direitos que todos, como cidadãos, possuímos, para
assim começar a decidir sobre o futuro da cidade. (BRADA e RÍOS, 2004,
p.31)
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Esses princípios ao contribuírem para a formação de cidadãos, possibilitam também o


estabelecimento de vínculos entre o conteúdo da disciplina geografia com a realidade vivida;
transformando o ensino dessa disciplina em algo vivo, pulsante. Assim, a partir da descoberta
da cidade, e possível valorizar os conceitos de lugar e a paisagem como ponto de partida para
o estudo da Geografia, de considerar os conceitos como paisagem, lugar, território, região,
espaço, sociedade, natureza, como referência para definir conteúdos de ensino que de fato fação
sentido e diferença na compreensão da realidade.
Nesse contexto, é no diálogo sobre a cidade, que os estudantes encontram suas
referências, ou constroem suas referências. Na cidade educadora o ensino busca explorar os
lugares da cidade, observando e entendendo as paisagens, territorializando-as.
A concepção de cidade educadora traz novas possibilidades de pensar o ensino, da
geografia escolar. Ela amplia a noção de espaço de aprendizado, antes restrito ao espaço escolar,
ao propor todo o espaço da cidade como um espaço educativo. Ela admite novas experiências
educativas. Neste sentido,

Se assumimos como princípio epistemológico que toda experiência social


produz conhecimento e que todo conhecimento é produto de experiências
sociais teremos de aceitar que a diversidade de experiências humanas é a fonte
mais rica da diversidade de conhecimentos. Temos de reconhecer que
desperdiçar experiências, inclusive de alunos e mestres, é desperdiçar
conhecimentos. Quando os currículos, o material didático ou nossas lições
desperdiçam ou ignoram as experiências sociais se tornam pobres em
experiências e pobres em conhecimentos e significados (ARROYO, 013,
p.120)

Ao considerar que a cidade educadora tem como princípio o entendimento de que todos
os espaços da cidade podem ser espaços educativos, podemos pensar o espaço da cidade,
considerado em sua totalidade como um espaço de aprendizagem, abrindo assim, inúmeras
possibilidades para repensar o ensino da geografia. Desta forma,

O ensino e a aprendizagem seriam mais relevantes e significativos e, como


consequência, os alunos veriam que as instituições escolares lhes ajudam
muito a conhecer e a entender seu próprio entorno, outros lugares mais
distantes, o mundo e a vida neste planeta cada vez mais globalizado e,
portanto, interdependente. (TORRES, 2013, p. 319)

Ainda hoje, apesar de todas as críticas sobre a forma tradicional de ensino de geografia,
fundamentada na repetição e memorização, e da maioria dos professores adotarem uma
abordagem crítica de ensino, visando uma maior interação do educando, as aulas de geografia,
em sua maioria continuam sendo maçantes e desinteressantes aos estudantes, que não veem nos
conteúdos dessa disciplina, associação com a sua realidade.
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Tal realidade exige que o que se ensina em geografia constitua um conhecimento


importante e necessário para a compreensão do mundo em que vivemos, principalmente, da
compreensão da diversidade das relações sociais e das suas contradições. Ao apreender a
realidade como resultado das relações sociais que se desenvolvem no espaço, materializando
nele suas contradições, chega-se ao entendimento de que essas relações podem ser
transformadas. Santos (2009) insere um sentido muito mais dialógico sobre o conhecimento do
mundo, ao retratá-lo como ele é, e como ele poderia ser. Assim, a apreensão da realidade, por
meio de uma reflexão dialética concebe novos olhares sobre a cultura e sobre o ambiente. Essa
forma dialética de apreender os fenômenos é fundamental ao ensino de geografia, tornando-o
de fato importante aos alunos para o conhecimento da diversidade social e do meio onde vivem.
Na concepção crítica, a educação pautada na estrutura do pensamento materialista-
dialético, a reflexão sobre os fenômenos em uma análise dialética, possibilita uma nova forma
de saber, novos olhares sobre o mundo. Nela

O estudante é o sujeito ativo de seu processo de formação e de


desenvolvimento intelectual, afetivo e social sobre a compreensão do espaço
geográfico; o professor tem o papel de mediador do processo de formação
desse conhecimento espacial; a mediação em si é a de favorecer/ propiciar a
inter-relação (encontro/confronto) entre sujeito (estudante) e o objeto de seu
conhecimento (espaço geográfico); nessa mediação, o saber do estudante é
uma dimensão importante do seu processo de conhecimento (processo de
ensino-aprendizagem). (FERRETTI, 2019, p. 10)

Desta forma o uso de conhecimentos que auxiliem a compreensão das modificações


sofridas neste espaço torna-se fundamental, assim como a superação de uma metodologia de
ensino centrada no discurso do professor sem que haja uma relação dialógica entre esse e o
educando, é ineficaz na produção de um conhecimento que apreenda tal realidade.
Neste contexto, o ensino de geografia na perspectiva da cidade educadora abre um vasto
campo de possibilidades para pensar o ensino de geografia com melhor criticidade teórico-
metodológica ao possibilitar aos alunos o entendimento acerca da sua cidade, fazendo com que
o indivíduo se reconheça enquanto ser social.
O ensino da geografia dispõe de muitos recursos e instrumentos disponibilizados para
auxiliar ou até mesmo enriquecer a metodologia do professor, mas é preciso um bom
planejamento e clareza no seu objetivo ao utilizar esses recursos metodológicos.

O educador precisa saber realizar a leitura analítica do espaço geográfico e


chegar à síntese, criando situações no interior do processo educativo para
favorecer as condições necessárias ao entendimento da Geografia como uma
ciência que pesquisa o espaço construído pelos homens, vivendo em diferentes
tempos, considerando o espaço como resultado do movimento de uma
sociedade em suas contradições e nas relações que estabelece com a natureza
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Revista GeoSertões (Unageo-CFP-UFCG). Vol. 5, nº 10, jun./dez. 2020
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DOSSIÊ: “Por uma Geografia Escolar Crítica”

nos diversos tempos históricos. (PONTUSCHKA apud FERRETTI, 2019, p.


10)

É na leitura das dinâmicas sócio espaciais, das suas contradições, da sua diversidade que
a compreensão da realidade ocorre de forma mais profunda e qualitativa. Assim,

O espaço deve ser considerado como um conjunto de relações realizadas


através de funções e de formas que se apresentam como testemunho de uma
história escrita por processos do passado e do presente e por uma estrutura
representada por relações sociais que estão acontecendo diante dos nossos
olhos e que se manifestam diante de processos e funções. (SANTOS, 2012, p.
153)

Essa espacialidade precisa ser decodificada para além da observação e descrição


empírica da realidade, e é nesta compreensão que a disciplina de ensino de geografia se insere,
na busca de sua apreensão e explicação. Daí a necessidade de trabalhar o local, o mundo dos
alunos, pois há em cada lugar uma peculiaridade e uma identidade. O desafio reside em superar
o repasse dos conhecimentos e ensinar a pensar, a buscar e a construir, dando condições aos
alunos de desenvolver sua capacidade crítica, a capacidade de raciocínio, compreendendo a
realidade social na qual está inserido e sabendo agir sobre ela no intuito de transformá-la.
O plano de ensino da disciplina de Geografia, aborda noções de espaço, lugar, paisagem
e território, o que direciona a uma abordagem diretamente da realidade. Assim, utilizar o espaço
da cidade como uma estratégia metodológica mais ampla, a fim de levar os estudantes a
pensarem as transformações do espaço, observando a paisagem, seus significados e diferenças,
bem como reconhecendo os lugares e suas relações, é uma possibilidade de tornar o ensino
dessa disciplina mais útil e interessante ao aluno.
Neste sentido, Arroyo (2013) destaca que “Trazer os sujeitos para os currículos, para o
conhecimento significa trabalhar o ensinar-aprender sobre as experiências de vida dos sujeitos
e não sobre matérias distantes, abstratas, significa aproximar mestres e alunos entre si e com os
conhecimentos”. (ARROYO, 2013, p. 153)
O ensino de geografia na perspectiva da cidade educadora, neste contexto, abre novas e
variadas possibilidades ao professor e ao educando, ao valorizar o espaço enquanto produção
social, que materializa e reproduz as características da sociedade que o produz.

O trato dado ao espaço nos currículos oficiais e no material didático está


distante das experiências históricas dos coletivos que chegam às escolas com
essas experiências de sem-lugar, sem-terra, sem-espaço, sem-território, sem-
escola, sem-universidade que chegam à escola, às universidades carregando
suas experiências de estrangeiria na própria pátria. Difícil aos docentes chegar
a essas experiências de estrangeira, de sem lugar, fora do lugar uma vez que
esses processos de desterritorialização e de lutas pelo espaço nem sempre têm
vez nos currículos oficiais nem no material didático e literário. A preocupação
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DOSSIÊ: “Por uma Geografia Escolar Crítica”

do currículo com o espaço destaca mais os impactos da ação humana sobre o


espaço, sobre o entorno natural do que o impacto das formas de produção,
apropriação-expropriação da terra e do espaço sobre os coletivos humanos.
(ARROYO, 2013, p. 331-332)

A valorização do espaço, conceito fundamental à Geografia, está evidente na concepção


de cidade educadora, o que permite ao professor, tendo a cidade como um espaço educativo,
apresentar mais claramente ao aluno as especificidades da sociedade em que vive e,
consequentemente, a sua realidade vivida. Assim,

O espaço vivido ou não vivido, negado, expropriado, precarizado nos deixa


indagações mais incômodas para entender sua produção. Quando nas salas de
aula estão crianças e adolescentes, jovens ou adultos que carregam essas
experiências tão tensas dos seus coletivos com o espaço, as perguntas são
recorrentes sobre suas vidas, sobre sua condição de desenraizados, sem-teto,
sem-terra. Sobre algo que nos toca como profissionais da educação, seus
processos de humanização. (ARROYO, 2013, p. 333)

Paulo Freire já nos demonstrou que é possível reconstruir um conhecimento a partir do


mundo vivido (FREIRE, 2015). Neste sentido, cabe destacar que os estudantes da disciplina de
geografia já possuem conhecimentos geográficos oriundos de sua relação direta e cotidiana com
o espaço vivido. Tais conhecimentos podem e devem ser valorizados no processo de ensino-
aprendizagem. Neste contexto, Arroyo (2013) destaca que

Quando trabalhamos com experiências tão negativas de vivências espaciais


temos de inventar novas pedagogias e novas didáticas. Que sentido terá falar
da produção épica do espaço, da abertura de fronteiras agrícolas, para filhos
de imigrantes ou de sem-terra, quilombolas e indígenas que carregam a dor
coletiva de expulsos da terra por causa desses processos brutais, nada épicos,
de apropriação-expulsão que vêm do agronegócio? Ou que sentido terá falar
de modernização urbana para filhos de coletivos vítimas de expansões e de
confinamentos em periferias distantes ou em morros e favelas precarizadas?
O estudo do espaço passou a ser um dos temas mais tensos dadas as tensas
vivências de sem-lugar que carregam os educandos populares às escolas.
(ARROYO, 2013, p. 334)

Ainda sobre a valorização dos estudos do espaço nos processos de ensino-


aprendizagem, o autor argumenta que

Os estudos do espaço, seja nas disciplinas ou em oficinas e projetos, têm sido


fecundos em novas didáticas e linguagens que exploram posturas estéticas,
linguagens visuais, simbólicas, que exploram a beleza de paisagens e o
contraste de sua devastação. Educa-se o olhar, a sensibilidade, a percepção,
abre-se e explora-se o debate ecológico, mas nem sempre se dá a centralidade
que tem o tenso debate político das lutas pela terra, pelo espaço e pelo
território, da luta por escola. Didáticas para melhor entender as marcas do
homem sobre o entorno natural, mas sem esquecer as relações sociais,
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DOSSIÊ: “Por uma Geografia Escolar Crítica”

políticas que esses processos carregam em nossa história. Ainda didáticas que
incorporam como as novas relações de resistência redefinem os espaços, os
reconfiguram; novas geografias. (ARROYO, 2013, p. 342)

As argumentações de Arroyo (2013) reforçam o quanto o ensino da geografia pode


renovar-se na perspectiva da cidade educadora, diante das muitas possibilidades de inovação
metodológica e práticas pedagógicas que surgem com a concepção do espaço da cidade como
um espaço educativo.
É a possibilidade de desenvolver novas formas de tornar esse aprendizado mais
dinâmico, interessante e significativo para o aluno, que buscamos ao propor uma pesquisa sobre
o ensino de geografia na pesquisa da cidade educadora, pois, acreditamos na potencialidade que
os princípios educativos da cidade educadora têm para a promoção de uma educação mais
cidadã, crítica e transformadora.

Considerações Finais

Consideramos que a disciplina Geografia vem sendo há algum tempo objeto de


profundas críticas, principalmente direcionadas a sua abordagem tradicional de ensino, isto é,
por meio de procedimentos didáticos pedagógicos igualmente tradicionais, pautada na
utilização frequente do método expositivo e da transmissão de conteúdos. Essa prática
tradicional da geografia escolar ocorre, tanto no ensino fundamental quanto no ensino médio
(SIMIELLI, 1999). Assim, não é de se estranhar que, para a maioria dos alunos, a aprendizagem
da geografia se reduz somente à memorização, sem que se faça referência às suas experiências
sócio espaciais. Uma série de metodologias tradicionais utilizadas pelos professores, como a
utilização excessiva do livro didático; aplicação de conteúdos de forma desvinculada dos
contextos locais, bem como, de suas relações a contextos mais amplos; utilização
descontextualizada e estereotipada de material cartográfico, entre outras, tornam o processo de
ensino-aprendizagem enfadonho e desinteressante para o aluno.
Esforços veem sendo feitos no sentido de mudar as características do ensino de
geografia, o que consiste em mudar, não apenas a concepção de geografia ensinada, mas
também mudar as práticas de ensino adotadas pelos professores dessa disciplina. No entanto, a
literatura tem demonstrado que o ensino de geografia não tem apresentado significativas
inovações.
Paulo Freire (1991) há muito apontava que as lições escolares apresentam, na sua
maioria, conteúdos “superficiais” que não estimulam o interesse dos alunos, uma vez que estão
distantes da realidade dos mesmos. Assim, sem perceber a aplicabilidade dos conteúdos em sua
realidade vivida, o aluno acaba por internalizar a ideia de que tal conhecimento é desnecessário,
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o que aumenta sua rejeição e resistência ao aprendizado da geografia. Daí a necessidade de


aproximar o conteúdo ensinado nas aulas de geografia da realidade do aluno de forma
contextualizada, para que haja maior compreensão do que é estudado. Assim, refletindo sobre
o ensino de geografia, neste texto apresentamos a possibilidade de pensá-lo na perspectiva da
cidade educadora, como uma potencialidade para ressignificar o processo de ensino-
aprendizagem dessa disciplina, tornando-o mais interessante e significativo aos alunos.
Nesse contexto, as discussões sobre o conceito de Cidade Educadora, que compreende
os diferentes espaços da cidade como espaços educativos, buscam repensar as práticas
pedagógicas à luz de uma concepção integrada de educação (escola-cidade, cidade-escola),
apresentando uma perspectiva concreta de educação a ser adotada pelas escolas, possibilitando,
assim, que a escola se insira em definitivo na vida da cidade, transformando-se em um território
de construção da cidadania.
A cidade, na perspectiva da cidade educadora, constitui-se em um espaço educativo, não
apenas para um grupo específico, para a totalidade de seus habitantes. É esse caráter educativo
das cidades que nos chama a atenção, as possibilidades de utilizar esse potencial educativo da
cidade para orientar novas práticas no ensino de geografia.
Defendemos que os princípios educacionais contidos no conceito de Cidade Educadora
podem contribuir significativamente, para a prática pedagógica dos professores de geografia,
oxigenando esta disciplina que centenariamente faz parte dos currículos prescritos para a
educação básica no Brasil.

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em 14 de abril de 2019.

Agradecimentos
Agradeço ao meu orientador o professor doutor Genylton Odilon Rêgo da Rocha pelas
orientações, indagações e esclarecimentos tão importantes na minha trajetória na pós-graduação.
Agradeço também ao corpo docente do Programa de Pós-Graduação em Currículo e Gestão da Escola
Básica que, por meio das discussões e reflexões no período de realização do mestrado, possibilitou a
ampliação do meu arcabouço teórico e a ressignificação sobre a minha prática docente.

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GEOGRAFIA AGRARIA NA SALA DE AULA: NOVOS


DESAFIOS PARA ENTENDER O “NOVO RURAL”

GEOGRAPHY AGRARIES IN THE CLASSROOM: NEW CHALLENGES TO


UNDERSTAND THE “NEW RURAL”

GEOGRAFÍA AGRARIAS EN EL AULA: NUEVOS DESAFÍOS PARA ENTENDER LA


“NUEVA RURAL”

João Manoel de Vasconcelos Filho (2)

Gleydson Pinheiro Albano (1)

(1)
Professor Adjunto do Departamento de Geografia/CERES/CAICÓ, Universidade Federal do Rio Grande
do Norte - UFRN
E-mail: gleydson_albano@hotmail.com

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Resumo

No contexo atual que se insere o Brasil e o campo brasileiro, diante de ataques contra as populações tradicionais,
do aumento da violência no campo, de narrativas televisivas mentirosas que pregam que o “agro é tudo”, tem-
se urgência na proposição de atividades e reflexões visando descortinar o Novo Rural brasileiro. Esse artigo é
uma proposta direcionada aos professores de Geografia, que visa a análise e reflexão de alguns tópicos
importantes e atuais da Geografia Agrária na sala de aula, buscando com isso, refletir sobre as novas dinâmicas
do espaço agrário, apresentando as mesmas de forma crítica. Metodologicamente, essa proposta está
encaminhada através de dois eixos: um eixo contendo textos relevantes sobre a Geografia Agrária (renda da
terra, Revolução Verde, agronegócio e campesinato), bem como atividades de interpretação desses textos; outro
eixo contendo atividades diversas sobre o Campo no Século XXI (agrotóxicos, agronegócio x agricultura
familiar no Censo Agropecuário 2017, novas atividades no campo, etc) visando o aprendizado através de
estratégias diversas, como a leitura de gráficos, tabelas e imagens de satélite.

Palavras-chave
Geografia Agrária. Novo Rural. Sala de Aula

Abstract Resumen
In the current context in which Brazil and the Brazilian En el contexto actual en el que se insertan Brasil y el
countryside are inserted, in the face of attacks against campo brasileño, frente a los ataques contra las
traditional populations, the increase in violence in the poblaciones tradicionales, el aumento de la violencia
countryside, lying television narratives that preach en el campo, narrativas televisivas mentirosas que
that “agro is everything”, there is urgency in proposing predican que “el agro lo es todo”, hay urgencia en
activities and reflections aiming to unveil the New proponer actividades. y reflexiones para dar a conocer
Rural Brazil. This article is a proposal aimed at el Nuevo Brasil Rural. Este artículo es una propuesta
Geography teachers, which aims to analyze and reflect dirigida a docentes de Geografía, que tiene como
on some important and current topics of Agrarian objetivo analizar y reflexionar sobre algunos temas
Geography in the classroom, seeking to reflect on the importantes y actuales de la Geografía Agraria en el
new dynamics of agrarian space, presenting them aula, buscando reflexionar sobre las nuevas dinámicas
critically. Methodologically, this proposal is guided by del espacio agrario, presentándolas críticamente.
two axes: an axis containing relevant texts on Agrarian Metodológicamente, esta propuesta se guía por dos
Geography (land income, Green Revolution, ejes: un eje que contiene textos relevantes sobre
agribusiness and peasantry), as well as activities of Geografía Agraria (renta de la tierra, Revolución
interpretation of these texts; another axis containing Verde, agroindustria y campesinado), así como
diverse activities on the Field in the 21st Century actividades de interpretación de estos textos; otro eje
(pesticides, agribusiness x family farming in the que contiene diversas actividades en el campo en el
Agricultural Census 2017, new activities in the field, siglo XXI (plaguicidas, agroindustria x agricultura
etc.) aiming at learning through different strategies, familiar en el Censo Agropecuario 2017, nuevas
such as reading graphs, tables and satellite images. actividades en el campo, etc.) orientadas al
aprendizaje a través de diferentes estrategias, como
lectura de gráficos, tablas e imágenes de satélite.

Keywords: Palabras clave:


Agrarian Geography. New Rural. Classroom Geografía agraria. Nuevo Rural. Aula

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Introdução

E
sse artigo é uma proposta direcionada aos professores de Geografia, que visa
a análise e reflexão de alguns tópicos importantes e atuais da Geografia
Agrária na sala de aula, buscando refletir sobre as novas dinâmicas do espaço
agrário, apresentando as mesmas de forma crítica.
Essa análise crítica se faz necessário pela insuficiência de estudos da geografia agrária
crítica voltados para ensino de Geografia. É patente a abordagem superficial dos referidos
conteúdos pelos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) (BRASIL, 1998), que não mostram
as contradições nem os conflitos que acontecem no espaço rural, levando o professor a realizar
apenas uma descrição da paisagem, sem observar o processo histórico (VIEIRA, 2004).
Nesse sentido, os PCN falham também quando abordam as relações de trabalho no
campo de forma muito ingênua, insinuando que existe uma relação harmoniosa entre o processo
de modernização capitalista e os setores tradicionais do campo, omitindo os conflitos fundiários
e a violência, características do campo brasileiro (VIEIRA, 2004). Além do contexto de
ausência e omissão dos PCN nas abordagens relativas a Geografia Agrária, recente pesquisa
com professores da rede básica da cidade de Natal (RN), constatou que 60% dos professores
consideraram insuficiente a presença das temáticas agrárias nos PCN (QUEIROZ, 2019).
Desse modo, em 2017 foi homologada uma nova base curricular, a Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) (BRASIL, 2017), que passa a ser a partir de então, o mais novo
documento orientador das propostas curriculares para a educação básica no Brasil. Esse
documento vem em conjunto com uma reforma do Ensino Médio que diluiu o componente
curricular de Geografia, que agora aparece dentro do percurso formativo de Ciências Humanas
e Sociais Aplicadas, juntamente com História, Filosofia e Sociologia (MESQUITA,
ROSETTO, CANTÓIA, 2020).
A BNCC foi incentivada e formulada basicamente pelo Movimento Pela Base, iniciativa
de um grupo não governamental, que tem como organizações parceiras, o Instituto Ayrton
Senna, Fundação Roberto Marinho, Instituto Natura, Instituto Unibanco, dentre outras. Além
desses institutos, na maioria, representando o capital financeiro-empresarial-midiático, pouco
espaço foi dado para a construção democrática da BNCC pela base de professores e associações
de classe, como a Associação de Geógrafos Brasileiros (MESQUITA, ROSETTO, CANTÓIA,
2020). Na referida BNCC, apesar do viés conservador e da pobreza conceitual em relação a
ciência geográfica, tem-se algumas temáticas vinculadas a Geografia Agraria que ganham
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destaque nas proposições para o Ensino Fundamental, nos anos finais, que podem ser
trabalhados pelos professores de Geografia (MESQUITA, ROSETTO, CANTÓIA, 2020).
Mesquista, Rosetto e Cantóia (2020), relatam que a BNCC faz menções importantes a alguns
assuntos relevantes da Geografia Agrária, como o reconhecimento das territorialidades dos
povos tradicionais, dos conflitos e ações dos movimentos sociais, das transformações
tecnológicas e de seus impactos sobre o trabalho e a produção agropecuária, assim como
também a produção agropecuária e o problema da desigualdade na distribuição dos recursos
alimentares (MESQUITA, ROSETTO, CANTÓIA, 2020).
Apesar da contribuição da BNCC, tem-se ainda lacunas importantes nas temáticas
relativas a Geografia Agrária que, muitas vezes, não são bem tratadas ou sequer tratadas nos
livros didáticos. Visando preencher um pouco essas lacunas no âmbito da Geografia Agrária na
sala de aula, se encaminha essa proposta tendo dois eixos: um eixo contendo textos e atividades
de interpretação dos referidos textos; e outro contendo atividades diversas visando o
aprendizado através de estratégias diversas, como a leitura de gráficos, tabelas e imagens de
satélite.
No primeiro eixo, são apresentados três breves textos como sugestão para uma
fundamentação teórica preliminar, por parte do professor e para os alunos, visando uma reflexão
sobre temas importantes da Geografia Agrária. São eles: “Algumas reflexões sobre o espaço
agrário: A renda da terra ontem e hoje”; “A Revolução Verde” e por fim “O agronegócio e o
campesinato”.
Dessa forma, o primeiro texto escolhido, “Algumas reflexões sobre o espaço agrário: A
renda da terra ontem e hoje”, tem como foco o aprendizado sobre a renda da terra, tema
importante para se entender melhor questões relacionadas ao valor e o preço atribuído ao solo
rural, e como essa renda explica ao longo do tempo as relações de poder envolvidas na posse
da terra e na concentração da mesma por uma pequena parcela, como ocorre no Brasil.
O segundo texto escolhido, “A Revolução Verde”, tem como foco o aprendizado sobre
o processo de industrialização do campo, mostrando como o campo foi invadido por
tecnologias, máquinas, agrotóxicos, fertilizantes, que visaram aumentar a produtividade, mas
trouxeram desemprego, destruição do meio ambiente, erosão genética, aumento da dependência
do agricultor com empresas multinacionais produtoras de máquinas, agrotóxicos, além do
aumento da dependência dos bancos, pois essa agricultura moderna trazida pela Revolução
Verde é cara e precisa do crédito bancário para se viabilizar na maioria das vezes.
O terceiro texto, “O agronegócio e o campesinato” mostra as relações conflituosas que
existem no campo brasileiro, dando destaque a dois atores que polarizam as atenções e as

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políticas públicas no decorrer dos anos: o agronegócio, que tem ao seu lado a grande mídia e
boa parte do investimento e assistência governamental. Esse ator é um dos grandes responsáveis
pelas exportações brasileiras de produtos primários; o campesinato, que tem atenção marginal
da mídia e pouco reconhecimento e investimento estatal, mas é responsável pela maior geração
de emprego e renda no campo, além de prover a segurança alimentar da nação, sendo o grande
responsável pela alimentação que chega a mesa dos brasileiros.
No segundo eixo são apresentadas quatro atividades para análise dos alunos de questões
ligadas: ao novo Censo Agropecuário 2017 e a agricultura familiar; as desigualdades espaciais
no Nordeste/Centro-Oeste, resultantes da presença e ausência do agronegócio; ao Novo Rural
e as novas atividades não-agrícolas no campo; e por fim, atividade ligada ao consumo de
agrotóxico no Brasil.

Fundamentação teórica: algumas reflexões sobre o espaço agrário

Nesse primeiro eixo são apresentados três breves textos como sugestão para uma
fundamentação teórica preliminar por parte do professor e para os alunos, visando uma reflexão
sobre temas importantes da Geografia Agrária: “Algumas reflexões sobre o espaço agrário: A
renda da terra ontem e hoje”; “A Revolução Verde” e por fim “O agronegócio e o campesinato”.

Texto 1 : “Algumas reflexões sobre o espaço agrário: A renda da Terra ontem e hoje” –(Texto
inspirado e adaptado de OLIVEIRA. Ariovaldo Umbelino de. Modo Capitalista de produção e
agricultura).
A renda da terra é uma categoria da Economia Política de fundamental relevância para
o estudo da agricultura. Ela é paga pelo direito de uso da terra aos proprietários de terra e ocorre
tanto no campo como na cidade. A renda da terra vem sendo paga aos proprietários de terra,
pelos que precisam e não tem a propriedade da terra, desde os tempos antigos. Abaixo,
mostram-se os dois tipos de renda que eram pagas aos proprietários antes do sistema capitalista
se tornar imperativo no campo:

a) Renda pré-capitalista em trabalho – Inicialmente, a renda da terra era paga pelos que
não tinham acesso a terra, na forma de trabalho. Na Idade Média, dava-se o nome de corveia a
esse tipo de trabalho. Geralmente, um servo trabalhava nas suas terras cedidas pelo senhor
feudal, parte da semana, e tinham que pagar o acesso a essa terra através do seu trabalho na
terra senhorial que, geralmente, acontecia em outra parte da semana;

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b) Renda pré-capitalista em produto - Outra forma de renda pré-capitalista que foi


inclusive, muito comum no Brasil, a renda por produto, originada no fato de que trabalhador
cede parte de sua produção ao proprietário da terra, porque este lhe concedeu a permissão para
cultivar a terra. O que é colhido é dividido entre o trabalhador e o proprietário da terra. A renda
em produto foi conhecida como “parceria”, que variava e varia entre a meação, a terça, a quarta,
etc. No caso da meação, 50% da produção tem que ficar com o dono das terras, na terça, ficam
um terço da produção, na quarta, um quarto. Hoje em dia, ainda existem acordos entre donos e
trabalhadores que envolvem essa renda pré-capitalista no mundo rural brasileiro.
Nos dias atuais, com o sistema capitalista, temos a renda da terra em dinheiro, resultado
da conversão, por parte do trabalhador, de uma parcela da sua produção em dinheiro, para
entregá-lo ao proprietário da terra. Com isso, o prejuízo do trabalhador aumenta, pois
diferentemente da renda em produto, o dono na terra não aceita mais dividir prejuízos da
produção (como a ocorrência de enchentes, pragas, secas....) com o trabalhador, passando a
exigir o pagamento de uma quantia fixa em dinheiro pela cessão da terra. Essa é a conversão
de parte ou todo o produto produzido em MERCADORIA, para poder ter o dinheiro necessário
para o pagamento da renda da terra. Com isso, o produtor-trabalhador vai ter que vender sua
produção, se sujeitando aos preços ditados pelos interesses do mercado. A relação com o
proprietário passa a ser determinada pelas regras do Direito, com o arrendamento sendo sujeito
a intermediação de cartório.
A renda da terra capitalista tem o caráter diferente da renda da terra pré-capitalista, com
a emergência do trabalho assalariado rural, pois ela vai ser o lucro extraordinário permanente,
além da mais-valia (diferença entre o valor produzido pelo trabalho e o salário pago ao
trabalhador), que é retirado do trabalhador que explora a terra através do trabalho assalariado.
Assim, tem-se a retirada da mais valia e do lucro extraordinário permanente do trabalhador, que
vai receber só uma pequena parcela em forma de dinheiro, daquilo que trabalhou, vendendo sua
força de trabalho.
A terra sob o capitalismo passa a ser uma mercadoria, que passa a ter sua renda associada
a sua capacidade de auferir lucros suplementares, através de fatores ligados a natureza, a
localização, ao uso de tecnologia e ao nível de concentração de terras daquela sociedade. Por
isso, ela pode ser classificada em: diferencial, absoluta e de monopólio.
a) Renda Diferencial. Existem três formas de extrair a renda diferencial da terra, duas
delas independem do capital. A primeira forma são as diferenças de fertilidade natural do solo
que fazem um determinado tipo de terra ter uma fertilidade maior e, por conseguinte, uma
produtividade maior; a segunda forma é a localização das terras, as mais bem localizadas, perto

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de estradas, perto de lagos, lagoas, praias, barragens, áreas de circulação maior de vento (nesse
caso, para gerar energia eólica), tem uma maior renda associada; já a terceira causa é
proveniente do uso de tecnologia para melhorar a produtividade e/ou localização. Como o uso
de fertilizantes químicos e maquinários agrícolas para melhorar a PRODUTIVIDADE da
produção;
b) Renda Absoluta. A renda absoluta diz respeito a auferida pelo monopólio da
propriedade fundiária por uma classe ou fração de classe. A terra, por ser limitada e por não
está livre, à disposição do capital, estando nas mãos de poucos proprietários, configura essa
renda, advinda da sua limitação pela apropriação de uma classe ou fração dela. Portanto, da
escassez fabricada socialmente;
c) Renda de Monopólio. A renda de monopólio é um lucro suplementar derivado de um
preço de monopólio de uma dada mercadoria produzida em uma porção do globo dotada de
qualidades especiais, únicas, como o espumante especial que leva o nome de sua região de
nascimento, champagne, produzido exclusivamente na região da Champagne na França, com
preços diferenciados.

Considerações sobre o preço da terra, terras improdutivas e Concentração Fundiária

A formação do preço da terra tem a ver com as rendas que podem ser auferidas por ela.
Se a terra fica perto de um lago, uma estrada, é fértil, tem maquinário, tudo isso influencia no
seu preço, pelas rendas que são esperadas. Mas, além disso, outros fatores influenciam no seu
preço, como os impostos pagos para a sua manutenção. No Brasil, os impostos pagos para a
manutenção de terras agrícolas em situação de especulação imobiliária, sem produção, são
irrelevantes (como o Imposto Territorial Rural (ITR), fazendo com que valha a pena manter as
mesmas sem produção.
Essa característica facilitou (e ainda facilita) fraudes perante o fisco, sobretudo, quando
considera-se o desordenamento que caracteriza o modelo de ocupação de terras no Brasil.
Somando-se a falta de fiscalização no meio rural, a ausência de um sistema cadastral,
consistente de registros escriturais, e a impunidade decorrente da grande distância entre
contribuinte e fisco, o resultado é a sonegação irrestrita e declarações fraudulentas, o que
garantiu, historicamente, a arrecadação efetivamente irrisória desse tributo. Do ponto de vista
social, essas fragilidades esvaziam a função idealizada para o ITR, desguarnecendo a sociedade
de instrumentos, capazes de conter o ímpeto especulativo que motiva a formação de grandes
propriedades rurais improdutivas (LENTI, SILVA, 2016).

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- Sugestão de Atividade: Para sistematizar o assunto, o professor poderá propor


exercícios que visem levar o aluno a analisar as rendas da terra presentes na região onde eles
vivem. Exercícios que façam os alunos perceberem a concentração de terras e o valor da renda
paga em função dessa concentração e do uso da terra por quem não tem a propriedade. Esses
exercícios podem ser feitos com perguntas para os trabalhadores que alugam as terras, pagam
parte da produção dessas terras para os proprietários seja em forma de dinheiro, seja em forma
de produto.

Texto 2: “A Revolução Verde” (texto inspirado e adaptado de SHIVA. Vandana. Monoculturas


da Mente).

A Revolução Verde é um produto da ciência que gerou (e gera) a produção de


fertilizantes químicos, agrotóxicos, colheitadeiras, tratores com a participação de grandes
empresas multinacionais. Sua promoção mundial teve o apoio dos EUA e organizações
internacionais como o Banco Mundial, tendo início nos anos 1940, no México, com as missões
de desenvolver a tecnologia para agricultura através da atuação da Embaixada Americana e
cooperação entre a Fundação Rockefeller e o Governo do México. A partir daí centros de
pesquisa e difusão de sementes híbridas são construídos para o melhoramento do milho e trigo
no México e para o melhoramento do arroz nas Filipinas (SHIVA, 1991).
Na Ásia, a Revolução Verde e os Grandes Projetos agrícolas visavam, além da
modernização do campo, uma tentativa de melhorar as condições do campo asiático para afastar
o apelo comunista que se espalhava dos movimentos camponeses da China para as Filipinas,
Indonésia, Malásia e Vietnã (SHIVA, 1991).
Segundo Guimarães (1979), essa revolução trabalha para cercar a produção rural, tanto
do lado da Indústria Produtora de Insumos, com a difusão de fertilizantes, defensivos e
corretivos químicos, como da Indústria de Bens de Capital, com a difusão de tratores,
colheitadeiras e equipamentos de irrigação, produzidos, geralmente, por multinacionais (Ver
Quadro 1).
Com tantos insumos e bens de capital de alto custo fazendo parte do campo da
Revolução Verde, paralelamente, tem-se a difusão da bancarização, com o fornecimento de
crédito, através, principalmente, de bancos públicos, para os proprietários agrícolas comprarem
os novos produtos oriundos dessa revolução. Muitos, a partir daí, iniciam um processo de
endividamento, que as vezes tem levado a penhora da terra.

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Quadro 1: Cadeia da produção rural

Indústria Indústria de Bens de


Produtora de Capital
Insumos PRODUÇÃO
- Tratores
- Fertilizantes RURAL - Colheitadeiras
- Defensivos - Equip. Irrigação
- Corretivos

Fonte: Guimarães (1979).

Essa Revolução Verde também substituiu a energia orgânica que deixou de ser a base
dos sistemas agrícolas pela energia fóssil, derivada do petróleo, que está contida nos
fertilizantes químicos, nos agrotóxicos, para fazer mover todo o maquinário agrícola, como
tratores, colheitadeiras, caminhões, fazendo assim com que os custos agrícolas sejam
dependentes da cotação do petróleo.
Em decorrência da instalação desse novo modelo, vai haver mudanças significativas
principalmente na agricultura dos Países Subdesenvolvidos. Shiva (2003) retrata bem essa
mudança ocasionada pela ´Revolução Verde’ no mundo subdesenvolvido, quando ressalta que
“os sistemas agrícolas tradicionais baseiam-se em sistemas de rotação de culturas de cerais,
legumes, sementes oleaginosas com diversas variedades em cada safra, enquanto o pacote da
Revolução Verde baseia-se em monoculturas geneticamente uniformes” (SHIVA, 2003, p.57).
Além da substituição da tradicional rotação de culturas pelas monoculturas de base
genética uniforme, ocorreram também outras mudanças que alteraram o equilíbrio que antes
existia entre a Agricultura e a Natureza. Conforme destaca Shiva (2003, p. 56):
Na agricultura nativa, por exemplo, os sistemas de cultivo incluem uma
relação simbiótica entre solo, água, plantas e animais domésticos. A
agricultura da Revolução Verde substitui essa integração no nível da
propriedade rural pela integração de insumos como as sementes e produtos
químicos.

Essa Revolução, com a adição de produtos químicos, insumos e variedades de sementes


estrangeiras, que vão ser utilizadas em monoculturas em larga escala, não só vai gerar
vulnerabilidade ecológica, com a redução da diversidade genética e a desestabilização dos
sistemas do solo e da água, como também dependência das Empresas Multinacionais produtoras
de veículos, máquinas e implementos agrícolas, química e petroquímica, de defensivos e de
sementes, dentre outros.

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- Sugestão de Atividade: Pode-se pensar numa atividade visando identificar no espaço local, as
paisagens vinculadas a Revolução Verde, como lojas de insumos, agrotóxicos, maquinário
agrícola, dentre outras, capturando as mesmas com a lente do celular ou cartografando as
mesmas no espaço geográfico com o uso do Google Maps. Também pode-se pensar numa
atividade visando a identificação das paisagens vinculadas a Revolução Verde na internet, com
a captura de fotos que estão associadas aos produtos desta revolução, como embalagem de
agrotóxicos, maquinário, fertilizantes, etc.

Texto 3: “O agronegócio e o campesinato” (texto inspirado e adaptado de FERNANDES,


WELCH e GONÇALVES. Os usos da terra no Brasil).

Os conceitos de agronegócio e campesinato (ou agricultura familiar) e sua utilização,


destacam o caráter de classe social no desenvolvimento rural. Por isso, muitos agentes do
agronegócio tentam sempre negar essa dualidade de conceitos, englobando tudo como se fosse
agronegócio, “o agro é tudo”. Essa dualidade existe e se perpetua historicamente, tanto no
campo, como nas políticas públicas que são duais (quando não estão voltadas exclusivamente
para o agronegócio).
O agronegócio representa as corporações capitalistas que constituíram um conjunto de
sistemas para a produção de commodities, por meio do monocultivo em grande escala,
principalmente, para a exportação, enquanto os camponeses organizam sistemas baseados na
diversidade, pequena escala e mercado local, formando, portanto, outra lógica. A lógica voltada
prioritariamente para a segurança alimentar da nação.
A agricultura familiar está definida hoje pela Lei n.11.326, de, 24 de julho de 2006, que
considera como agricultor familiar as pessoas que administram e trabalham predominantemente
com mão de obra familiar nas atividades econômicas do seu estabelecimento e que não pode
ser maior que quatro módulos fiscais1.
Um exemplo da existência de diferenças entre o agronegócio e agricultura familiar, são
as políticas públicas e estruturas burocráticas diferenciadas que existem para cada grupo. Existe
o Ministério da Agricultura para atender o agronegócio e a Secretaria Especial de Agricultura
Familiar e do Desenvolvimento Agrário (antigo Ministério do Desenvolvimento Agrário que

1
Unidade de medida expressa em hectares, fixada para cada município, que varia segundo a região do país. Na
região Norte, um módulo fiscal varia de 50 a 100 hectares; na região Nordeste, de 15 a 90 hectares; na região
Centro-Oeste, de 5 a 110 hectares; na região Sul, de 5 a 40 hectares; e na região Sudeste, de 5 a 70 hectares. Essas
variações levam em conta a qualidade do solo, o relevo, o acesso e a capacidade produtiva. (CÂMARA, 2020).
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foi extinto no Governo Temer) para atender a agricultura familiar. O Ministério da Agricultura
é o mais antigo, criado na época do Brasil Império, é o ministério do agronegócio e sempre
defendeu os interesses dos grandes proprietários. O Ministério do Desenvolvimento Agrário foi
criado após o massacre de Eldorado dos Carajás e tornou-se importante para o desenvolvimento
da agricultura camponesa. A pedido do antigo Ministério do Desenvolvimento Agrário, o IBGE
elaborou uma versão do Censo Agropecuário de 2006, com destaque para a produção da
agricultura familiar. Pela primeira vez na história do Brasil, o Censo Agropecuário separou os
resultados em duas partes: uma denominada agricultura familiar e outra de agricultura não
familiar, procurando evitar o termo agronegócio.
O Brasil dual entre a agricultura familiar e o agronegócio é extremamente desigual,
refletindo as desigualdades da sociedade brasileira. Os resultados do Censo Agropecuário 2006,
apontaram que a agricultura familiar ocupava 74% das pessoas no meio rural, que recebiam
apenas 15% do crédito agrícola, possuindo apenas 24% da área agricultável, mas produzindo
38% do valor bruto agrícola. É pouca terra e muita gente que recebe pouco crédito e divide o
resto da riqueza produzida. Do outro lado, o agronegócio ficava com 85% do crédito agrícola,
controlava 76% da área agricultável e produzia 62% do valor bruto agrícola, empregando cerca
de 26% das pessoas. É muita terra e pouca gente que fica com a maior parte dos recursos
empregados na agropecuária. O agronegócio fica com a maior parte da riqueza produzida,
inclusive, a parte da riqueza produzida pelo campesinato, através da renda capitalizada da terra,
pois é o agronegócio que comercializa a maior parte da produção camponesa.
Os contrastes do Brasil são ainda mais fortes quando observamos que esses agricultores
familiares que ficam com a menor parte da riqueza produzida na agropecuária eram
responsáveis, segundo o Censo 2006, por 70% da produção de feijão, 87% da mandioca, 38%
do café, 46% do milho e 34% do arroz. Na pecuária, garantiram 59% dos suínos, 50% das aves,
30% da carne bovina e 58% do leite, sendo muitas vezes os garantidores da soberania alimentar
nacional.

- Sugestão de Atividade: é possível pensar numa atividade para identificar o campesinato e o


agronegócio no espaço local e/ou regional, podendo cartografar a localização de fatores que
identificam cada um (o tamanho das propriedades, grandes lojas de implementos agrícolas,
como tratores, dentre outras) e estabelecer as características de cada um em uma lista. Pode-se
fazer uma aula de campo em feiras livres visando entrevistar os feirantes, para descobrir se os
seus fornecedores são da agricultura familiar ou do agronegócio com base nas caracteristicas já
expostas.

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Espaço agrário nos dias atuais: novos desafios para trabalhar em


sala de aula

Nesse segundo eixo, temos algumas atividades visando a interpretação de gráficos,


figuras, fotos e cartogramas sobre o Censo Agropecuário 2017 e a Agricultura familiar; sobre
as contradições do espaço rural do Nordeste/Centro-Oeste; O Novo Rural Brasileiro e as novas
atividades não-agrícolas; e por fim, o uso de agrotóxicos no Brasil.

Atividade 1 – Interpretação de gráficos, figuras e cartogramas do Censo Agropecuário 2017 e


a Agricultura Familiar

Abaixo, temos alguns gráficos, figuras e cartogramas de resultados do Censo


Agropecuário (2017). O objetivo básico dessa atividade é levar a interpretação e a reflexão
sobre a dinâmica da agricultura e pecuária atual no Brasil e o papel da agricultura familiar nesse
contexto.
No Gráfico 01, temos a utilização das terras agricultáveis brasileiras. É importante levar
o aluno a interpretação do gráfico com o uso das terras e a reflexão sobre a grande ocupação
vinculada a pecuária, com as pastagens chegando a quase 50% da ocupação. Que interesses
estão aí representados? Cultural? Gastronômico? Exportações? Qual o preço a se pagar?
Refletir também sobre o impacto da atividade pecuária para o aquecimento global com a
emissão de metano. Levar o aluno a fazer uma pesquisa sobre o uso do gás metano resultante
da atividade pecuária e o aquecimento global na internet.
No Gráfico 02, pode-se refletir sobre o espaço que ocupa a agricultura de exportação na
produção nacional, fazendo uma análise do gráfico, nota-se que as monoculturas de exportação
soja e cana-de-açúcar ocupam mais de 50% do valor de produção de todos os produtos agrícolas
do país. É interessante trabalhar com os alunos que as cotações desses produtos são definidas
fora do país e que ficamos reféns de preços e da conjuntura internacional, além disso, existe a
reflexão sobre a soberania alimentar e a segurança alimentar que podem ser exploradas, até com
pesquisas em sites na internet.

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Gráfico 1: Utilização das terras agricultáveis brasileiras em hectares

Fonte: Brasil, 2019b.

Gráfico 2: Valor de Produção da Agricultura no Brasil

Fonte: Brasil, 2019b.

Na figura 01 vê-se alguns dados sobre o pessoal ocupado na agricultura familiar em


2017. É importante refletir sobre a grande ocupação gerada pela agricultura familiar no meio
rural contra a propaganda que é passada pela mídia hegemônica de promoção do agronegócio
como grande empregador. Nesse contexto, é importante colocar para os alunos, o alto nível de
mecanização do agronegócio, inclusive, o próprio Censo Agropecuário 2017 trabalha com o
aumento da mecanização, com dados que mostram aumento de 50% no número de tratores com
relação ao censo passado. Esse alto nível de mecanização é diretamente proporcional ao
aumento do desemprego no setor rural. A própria agência de notícias do IBGE noticiou em fins
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de 2019: “Com aumento da mecanização, agropecuária perde 1,5 milhão de trabalhadores”


(IBGE, 2019a).

Figura 1: Pessoal ocupado na Agricultura Familiar no Censo Agropecuário 2017

Fonte: Brasil, 2019b

Além dessa discurssão, pode-se também explorar na Figura 01, a participação regional
na agricultura familiar, com o predominio do Nordeste e com a pouca ocupação do Centro-
Oeste, tradicional celeiro do agronegócio e que tem expulsado muitos trabalhadores do campo
com a produção de commodities agricolas mecanizadas voltadas para a exportação.
Em relação ao cartograma 01, é importante fazer com que o aluno interprete a legenda
e o mapa, observando e analisando onde existe mais e menos agricultura familiar e esperar que
o mesmo trace outro tipo de dinâmica regional, com manchas de agricultura familiar tendo
destaque não somente no Norte e no Nordeste, mas também no Sul e Sudeste, com áreas
significativas no interior do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Minas Gerais.
O território nordestino tem o espaço agrário divido em dois recortes espaciais que
podem ser observados do espaço. Um deles, com os impactos das atividades do agronegócio,
voltadas para exportação, feitas por grandes empresas, com grande aporte técnico e
informacional, são chamados de espaços luminosos; e espaços de economias tradicionais
agrícolas, com cultivos de sequeiro, para o mercado local, muitas vezes para as feiras livres,
são os chamados espaços opacos, tão falados pelo geógrafo Milton Santos (SANTOS,
SILVEIRA, 2001).

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Cartograma 1: Percentual de estabelecimentos caracterizados como de agricultura familiar


em relação ao total de estabelecimentos, por municípios -2017

Fonte: Brasil, 2019b

Atividade 2 - Análise imagética das contradições do espaço rural do Nordeste/Centro-Oeste,


com o propósito de despertar o aluno sobre as contradições espaciais vigentes nesse território.

Na foto 01, tem-se o canal principal do maior perímetro irrigado público do Rio Grande
do Norte. Todos os dias, milhões de litros de água são retirados do rio Açu-Piranhas para irrigar
lotes familiares e lotes empresariais desse distrito de irrigação, imbuídos de tecnologias de
irrigação, assistência técnica e acesso a água (pontos luminosos). O referido lote fica a competir
pelo acesso a água a jusante com o abastecimento de água das cidades e com as atividades de
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carcinicultura. É importante fazer o aluno ler essa imagem e refletir sobre a abundancia e a
escassez das águas no semiárido nordestino.

Foto 1: Canal Principal de Irrigação do Distrito de Irrigação do Baixo Açu - DIBA

Fonte: Acevo do autor, 2019

A foto 02 retrata o mesmo lugar da foto 01, só que em outra perspectiva, por se tratar
de uma foto de satélite. Pode-se observar os lotes, a desigualdade entre eles, com lotes pequenos
e lotes grandes, o canal de irrigação principal, as áreas que recebem as águas e as áreas que não
recebem, as áreas que fazem parte do perímetro e as áreas que não fazem parte do perímetro de
irrigação. Todos esses contrastes podem ser observados na foto de satélite. Cabe refletir com
os alunos sobre os incluídos e os excluídos desse perímetro através da leitura da foto de satélite.
Com relação a foto 03, tem-se na leitura imagética da foto de satélite, o contraste entre
os espaços luminosos e espaços opacos de forma bem nítida. No lado direito da foto, tem-se a
área relacionada aos cerrados baianos com a produção de grãos voltada para a exportação, no
município de Luís Eduardo Magalhães. Ao se observar bem a foto, nota-se os formatos
geométricos das terras agrícolas, o cultivo pelas tonalidades e ainda aparece o nome de uma
empresa multinacional que tem suas operações na região, a Bunge, com produção voltada para
vendas nacionais e internacionais de commodities agrícolas e produtos processados. Uma
atividade decorrente dessa análise, pode ser uma investigação sobre a Bunge, a partir da sua
página da internet. Pode-se também inferir os alunos sobre os impactos ambientais desse tipo
de atividade, uso de agrotóxico e o desmatamento.

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Foto 2: Foto de Satélite do Distrito de Irrigação do Baixo Assú (DIBA)

Fonte: Google Maps (2020)

Foto 3: Foto de satélite da divisa dos estados de Tocantins e Bahia

Fonte: Google Maps (2020)

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Do lado esquerdo da foto, tem-se a área do município de Ponte Alta do Bom Jesus, em
Tocantins, já fora da área dos cerrados e sem os impactos decorrentes do agronegócio de grãos.
Apesar de rarefeita, a vegetação ainda é nítida nessa área, ocorre com mais frequência do que
a área baiana, onde é praticamente inexistente. A vegetação característica é a de cerrados e
existe a ocorrência de campos limpos. A pastagem natural tem destaque, a pecuária é uma
atividade importante na área, além disso, existem vários produtos agrícolas cultivados, como o
arroz, milho, feijão, cana-de-açúcar e mandioca. Os alunos podem ser despertados sobre os
impactos ambientais nessa área, o nível de desmatamento e fazer uma análise comparativa
desses dois modelos postos.

Atividade 3 – Analise imagética do Novo Rural brasileiro, com a análise e reflexão sobre as
novas atividades não agrícolas e suas marcas na paisagem rural brasileira.

José Graziano da Silva vem observando já há alguns anos que o espaço rural vem
passando por profundas transformações, algumas ligadas a modernização da agricultura com a
difusão da Revolução Verde, outras com o avanço de novas atividades não agrícolas no seu
interior (SILVA, DEL GROSSI, 2001). Um setor que está a se embrenhar cada vez mais no
espaço rural é o setor industrial. Tanto as indústrias novas como as tradicionais tem procurado
transferir suas plantas para as áreas rurais, como forma de minimizar custos (com a proximidade
da matéria prima, mão-de-obra menos onerosa e não sindicalizada, redução de impostos, ajuda
dos municípios do interior, etc.) ou externalidades negativas (poluição, fuga dos
congestionamentos etc.) (SILVA, DEL GROSSI, 2001).
Além das indústrias, há também uma nova onda de valorização do espaço rural,
capitaneados por questões ecológicas, energias alternativas (como energia solar e energia
eólica), lazer, turismo ou moradia. Observa-se em todo o mundo uma preocupação crescente
com a preservação ambiental que tem estimulado novas atividades, como a expansão de parques
eólicos, parques solares, o turismo ecológico, expansão de resorts emulando a paisagem idílica,
dentre outras.
Em relação a foto 04, que trata de uma área de resorts no litoral da Bahia, podemos
fazer uma análise imagética desses novos elementos da paisagem e explorar questões como o
acesso ao mar da população ribeirinha de pescadores, acesso ao mar da população local para
atividades de lazer, preservação x destruição ambiental.

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Foto 4: Área de Resorts a beira mar na Bahia

Fonte: Google Maps, 2020

Em relação a foto 05, pode-se fazer uma análise imagética do contraste entre uma
atividade econômica que gera energia alternativa e a ausência do uso do solo para as atividades
agropecuárias. Pensar sobre as rendas da terra auferidas com os pagamentos das empresas
eólicas, gerando com isso, mais renda diferencial e, consequentemente, mais valorização da
terra, aumento do preço da terra e valorização imobiliária. Além disso, pode-se pensar nos
impactos ambientais que tal atividade “ecológica” gera, como no choque das aves e no barulho
das turbinas para a população que reside perto.

Atividade 4 – Atividade de interpretação de gráficos e de pesquisa na internet sobre O consumo


de Agrotóxicos no Brasil e a Revolução Verde
Em publicação recente, intitulada “Atlas: Geografia do Uso de Agrotóxicos no Brasil e
conexões com a União Europeia”, Bombardi traça um panorama e espacializa o consumo de
agrotóxicos no Brasil. A autora observa que o Brasil é hoje o maior consumidor de agrotóxicos
do mundo, consumindo 20% de todo agrotóxico comercializado mundialmente. Nos últimos
anos, esse consumo tem aumentado de forma muito significativa, como se observa no Gráfico
03, disponibilizado pelo IBAMA.

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Foto 5: Parque eólico na zona rural de Lagoa Nova, Rio Grande do Norte

Fonte: Acevo do autor, 2019

Gráfico 3: Consumo de agrotóxicos e afins (2000-2018)

Fonte: Brasil, 2019c

A autora também traz dados estatísticos importantes que vinculam a produção para exportação
(a produção mais envolvida com as tecnologias da Revolução Verde e mais associada ao
agronegócio), com a grande venda de agrotóxicos no país, como se nota no Gráfico 4.

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Gráfico 4: Brasil – Venda de Agrotóxico por Cultura (2015)

Fonte: BOMBARDI, 2017.

A partir desse gráfico, é possível trabalhar a interpretação dele com os alunos, para
buscar uma associação entre Revolução Verde – Agronegócio – Agrotóxicos. Paralelo a isso,
deve-se incentivar pesquisas na internet sobre a liberação dos agrotóxicos pelo governo, a
proibição dos mesmos agrotóxicos em outras partes do mundo, como na União Europeia e os
efeitos dos mesmos na saúde das pessoas. Pode-se também incentivar pesquisas na internet
sobre a isenção de ICMS sobre os agrotóxicos no Brasil, buscando entender o lobby envolvido
na defesa dos agrotóxicos.

Considerações Finais

Com os textos e atividades propostas nos dois eixos, se espera que os discentes tenham
uma reflexão sobre o “Novo Rural” que tem-se apresentado no século XXI no Brasil,
estabelecendo uma ligação entre o velho problema do acesso e da posse da terra com as novas
economias, as novas produções, e as novas tecnologias, que tem modernizado o campo, mas,
não tem resolvido os velhos problemas.

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O ESTUDO DO MEIO E O (RE) PENSAR A PRÁTICA


DE ENSINO NA PERSPECTIVA CRÍTICA DA
GEOGRAFIA

THE STUDY OF THE ENVIRONMENT AND THE (RE)THINKING OF THE


TEACHING PRACTICE IN THE CRITICAL PERSPECTIVE OF GEOGRAPHY

EL ESTUDIO DEL MEDIO AMBIENTE Y EL (RE) PENSAR LA PRÁCTICA DEL


ENSEÑANZA EN LA PERSPECTIVA CRÍTICA DE LA GEOGRAFÍA

João Manoel de Vasconcelos Filho (2)

Marlene Macario Oliveira (1)

(1) Doutora em Geografia pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora da Rede Municipal e
Estadual de Campina Grande, PB.
E-mail: marlene_macario@yahoo.com.br

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Resumo

Quando restrita ao uso dos dispositivos midiáticos, recursos e livros didáticos, a geografia escolar se afasta de
uma compreensão crítico-reflexiva dos conteúdos da cidade, praticando um ensino funcional, mecânico,
excludente, arquétipo de aulas de tipo reprodutivistas, e segregacionistas da vida contemporânea dos habitantes
da urbe. Nessa perspectiva, este trabalho discute a contribuição do estudo meio a partir do lócus da geografia
crítica contribuindo a complexidade que envolve o tema no processo de ensino-aprendizagem em geografia.
Construir um olhar crítico e investigativo sobre a cidade e o processo de urbanização contemporânea, incluindo
a crítica a exclusão, a pobreza, a violência e aos diferenciados tipos de segregação no currículo escolar, é urgente
e favorável ao reconhecimento das identidades socioespaciais, traz contribuições à emancipação dos sujeitos e
ao exercício da cidadania.

Palavras-chave
Prática de Ensino. Estudo do Meio. Geografia Crítica

Abstract Resumen
When restricted to the use of mediatic devices, Cuando se limita al uso de dispositivos multimedia,
resources and textbooks, geography in school is kept recursos y libros de texto, la geografía escolar se
away from a critical-reflexive comprehension of the aparta de una comprensión crítica-reflexiva de los
city contents, thus evincing a functional, mechanical contenidos de la ciudad, practicando una enseñanza
and exclusive teaching, which is an archetype of funcional, mecánica, excluyente, arquetípica de clases
reproductive classes and segregationist of reproductivas, y segregacionistas de la vida
contemporary life of the inhabitants of the city. In this contemporánea de los habitantes de la ciudad. Desde
perspective, this work discusses the contribution of the esta perspectiva, este artículo analiza la contribución
study of the environment from the locus of critical de la mitad del estudio desde el lugar de la geografía
geography, contributing to the complexity that crítica contribuyendo a la complejidad que involucra
surrounds the theme in the teaching-learning process el tema en el proceso de enseñanza-aprendizaje en la
in geography. It is urgent and favorable to the geografía. Construir una visión crítica e investigadora
recognition of socio-spatial identities to build an de la ciudad y el proceso de urbanización
investigative and critical view of the city and the contemporánea, incluyendo la crítica de la exclusión,
contemporary process of urbanization that takes into la pobreza, la violencia y los diferentes tipos de
account exclusion, poverty, violence, and the different segregación en el currículo escolar, es urgente y
types of segregation in the school curriculum. favorable al reconocimiento de identidades
Therefore, bringing in contributions to the socioespaciales, aporta contribuciones a la
emancipation of individuals and to the citizenship emancipación de temas y al ejercicio de la ciudadanía.
exercises.

Keywords: Palabras clave:


Teaching Practice. Study of the Environment. Critical Práctica Docente. Estudio del Medio Ambiente.
Geography. Geografía Crítica.

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Introdução

O
presente artigo reflete sobre a cidade e o urbano a partir da metodologia do
estudo do meio na perspectiva crítica da geografia. Este propõe alternativas
didático-pedagógicas para o ensino-aprendizagem na geografia escolar, a
partir da pesquisa sobre o lugar, para contribuir a superação das distâncias, persistentemente,
presentes entre os conteúdos curriculares e o fenômeno da complexificação nos territórios,
resultantes dos processos de globalização e fragmentação, recentemente, envolvendo o período
de Pandemia e Pós-Pandemia de Coronavírus.
De fato, o currículo na Educação Básica pelo seu caráter normativo, insiste numa
perspectiva de conteúdos mecanicistas, tecnicistas, funcionalistas, arquétipo de modelos
engessados e excludentes quanto à produção do conhecimento, saberes e práticas no mundo e,
raras vezes favorece a compreensão das especificidades locais e regionais, experimentadas
pelos alunos, que lhes deveriam ser simultâneo. Assim, se busca uma relação mais aproximada
com o contexto da escola, enquanto instituição responsável pela formação da cidadania, e do
ensino de geografia, enquanto condição basilar para a compreensão da dinâmica contemporânea
presente no cotidiano dos sujeitos em aprendizagem nas cidades.
Subsidiar propostas de intervenção politizadas no âmbito da Geografia, considerando o
atual limite imposto pela emergência sanitária da Pandemia do Covid-19, nos diversos níveis
do ensino na Educação Básica, supõe romper outro ancestral, o de modelos predominantes que
priorizam os conteúdos curriculares: livros didáticos, dispositivos midiáticos e um conjunto de
leis, normas e programas em detrimento das experiências concretas dos habitantes na cidade.
Esses são desafios urgentes à formação de cidadãos críticos e atuantes nos contextos citadinos
de exclusão, pobreza, degradação ambiental, violência...
Pretende-se com as reflexões aqui apresentadas estimular a prática da pesquisa
considerando a complexificação dos desafios emergentes que envolve a escola e os seus
professores no âmbito da sociedade contemporânea para contribuir à construção do
conhecimento crítico e criativo pelo aluno, e futuros exercícios profissionais na cidade.
Considerar o espaço da escola como lugar de pesquisa, de formação de saberes e práticas
e não somente de aplicação de técnicas representa um caminho para a participação ativa, como
cidadão, na vida da cidade, não se deixando tutelar e infantilizar por políticos e técnicos a
serviço do aparelho do Estado e do mercado.

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A cidade e o urbano na Geografia escolar

A cidade, diante das novas e mais flexíveis formas de produção, marketing, distribuição
de bens e serviços interliga comunicações e trocas que movimenta pessoas, objetos e capitais
sobre os territórios. Esta dimensão vem suscitando mudanças na forma de apreensão das
relações que se estabelecem entre tempo-espaço, natureza-sociedade, natureza-cultura, lugar-
mundo, cidade-campo, homem-cidade e traz novas exigências à educação no esforço à
compreensão das identidades socioespaciais que se constituem nos lugares pela relação teoria-
prática, ensino-pesquisa, conhecimento-ação.
A cidade, um amalgama das redes simultâneas mais fluidas, mais espessa e densa,
concentra pertencimentos distintos e ressignificados num movimento em constante mudança.
Assim, vem entrelaçando a dominação objetiva e a apropriação simbólica, mais subjetiva
fomentando não somente o controle físico, mas laços de identidade social. A forma e os
conteúdos que se concretizam neste ecúmeno precisam ser apropriados na dinâmica escolar e
no trabalho do professor não somente na sua dimensão funcional, mas também simbólica e
afetiva, entrelaçando natureza, economia, cultura e política. (HAESBAERT, 2006; SANTOS,
2009).
Isso para que as práticas pedagógicas atuais, mesmo aquelas agregadas às políticas de
caráter assistencialista, clientelista e patrimonialista, não corroborem para a reprodução de
práticas espaciais, desfavoráveis às mudanças significativas no contexto da vida dos estudantes.
Ao legitimar práticas de tipo reprodutivistas se amplia a imensa fratura entre os direitos
educacionais e a cidadania efetiva, acenando para a ausência de parâmetros públicos de
reconhecimento dos direitos sociais, des (re)construindo identidades e jogando os seres
humanos numa aleatória, desigual e violenta luta pela sobrevivência. De acordo com Carlos
(1999)

Como o ritmo da cidade determina o ritmo da vida, contaminando as relações


pessoais [...] Feita a obra, o sujeito não se reconhece nela nem é reconhecido,
pois trata-se de um esforço produzido em função de finalidades estranhas às
suas necessidades, distante de seus sonhos e utopias [...] a produção do espaço
urbano fundamenta-se num processo desigual e o espaço deverá,
necessariamente, refletir contradições. (CARLOS, p. 79-82).

Destaca-se que o fenômeno da urbanização manifesta estas contradições nos lugares por
está associada à rapidez do aumento da densidade que se impõe as cidades e da escala da sua
circulação, definindo as suas paisagens, constantemente, caracterizada pelos problemas
estruturais de ordem econômico-social e ambiental. “O espaço urbano, condição, meio e
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produto da ação humana pelo uso ao longo do tempo” (CARLOS, 2007, p. 11) se configura
pelos graves problemas de habitação consolidado pelo crescimento horizontal e vertical,
saneamento e infraestrutura de serviços: transportes, segurança, aeroportos, internet, rede de
televisão, saúde, lazer, educação, políticas sociais e urbanas, participação de setores
intelectuais, universidades e empresas (SOUZA, 2008). Entretanto, no processo didático-
pedagógico do ensino em geografia quando se deseja refletir sobre essa condição humana do
ecúmeno verifica-se que

Apesar da gravidade dos problemas constatados no dia-a-dia da vida de


qualquer morador de cidade grande, o leitor leigo que se dirigir a uma livraria
buscando uma obra para informa-se sobre a natureza das questões envolvidas,
a gênese e as causas das dificuldades e as possibilidades de promoção de
cidades mais justas e agradáveis irá, provavelmente, se desapontar.
Discussões sobre esses assuntos não têm faltado, mas têm ficado
excessivamente confinadas em um ambiente acadêmico ou de profissionais de
planejamento. (SOUZA, 2008, p. 21).

Nesse contexto, a cidade e os seus respectivos problemas urbanos vão sendo tratados
com preconceitos, precarização e equívocos. E muitas vezes a mídia amplia essas visões
distorcidas resultando num quadro geral de reprodução, geração após geração, num quadro
geral de exclusão, pobreza e estigmatização, segregação e autossegregação. (SOUZA, 2008).
A fragmentação do tecido sociopolítico-espacial, inventado pelo modelo “central-
desenvolvimentista de gestão de cidades” (SOUZA, 2008), reforça esse status quo,
predominando uma gestão clientelista dominada pelos interesses privados e lucrativos por um
lado, e por outro, pela ignorância de maior parte da população. Situação que não favorece a
criação de melhores condições para os diversos problemas que ocorrem nas cidades e que vem
se acumulando nas últimas décadas.
A cidade é, antes de qualquer coisa, trabalho objetivado, materializado, fruto do
processo de produção realizado ao longo de uma série de gerações, que, com a acumulação dos
tempos, aparece por meio da relação entre o “construído” (casas, ruas, avenidas, estradas,
edificações, praças) e o “não construído” (o natural) articulando o novo e o velho de um lado;
e de outro, o movimento, a realização das marcas da vida que se realiza no lugar (CARLOS,
1999; 2007).
Souza (2008) diz que a cidade é um espaço de concentração de oportunidades de
satisfação de necessidades básicas materiais (moradia, saúde...) e imateriais (cultura,
educação...) mas, também, um local crescentemente poluído, onde se perde tempo e se gastam
nervos com engarrafamentos, onde as pessoas vivem estressadas e amedrontadas com a
violência e a criminalidade “presentes” nos subcentros estigmatizados pela segregação racial e
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residencial, precisando de “solucionática” referente às diversas dimensões e atributos que


decorrem desses e a esses aderem: da geografia à literatura; da sociologia à filosofia, das artes
ao planejamento; da arquitetura à política, da medicina à educação, à física, à biologia, à
ecologia, a história, à economia.
Milton Santos (2009; 2001) afirma que se faz necessário à compreensão das formas-
conteúdo da cidade a partir do movimento conjunto do todo e das partes na idade científica da
técnica que a concebeu, envolvendo homens, firmas, instituições, meio ecológico e
infraestruturas e, partindo dessa, propor/adotar uma nova receita de experiência humana nos
centros urbanos para que o confeito ruim possa ser substituído ou melhorado. Nesse sentido,
pensar o desenvolvimento urbano a partir de um olhar crítico e investigativo sobre a cidade e o
processo de urbanização contemporânea, incluindo a crítica a exclusão, pobreza, violência na
relação com os diferenciados tipos de segregação no currículo escolar, poderá favorecer ao
exercício da cidadania.
A cidade é espaço do conflito e da conciliação, da alienação e da luta de classes. Nessa
perspectiva, quais as condições de cidadania pretendida para o século XXI no âmbito da escola?
Como vem sendo construída a nossa relação com a natureza, com a cultura, com a saúde
pública, com nós mesmos, com o absoluto, com a história, com o político, o artístico, o técnico
e o cientifico? Entrelaçar todas essas dimensões no composto que lhe dá forma: “a cidade”
enquanto “polis, local do encontro não só entre as pessoas, mas entre vários tempos, espaços,
saberes, tecnologias, produtos, tradições e culturas” (BRANDÃO, 2006, p. 10) exigem de nós
a pesquisa no trato com a complexa trama de relações vivenciadas no espaço escolar, e por
extensão na cidade. Sobre essa perspectiva Cavalcanti (2008) afirma que

A formação da cidadania para a vida urbana é o objeto básico do projeto de


cidade educadora; uma formação que garanta que todos possam se manifestar
e buscar maneiras de viabilizar a realização de seus desejos e necessidades e
de compreender e resolver os problemas cotidianos desses nesses espaços. As
cidades são diferentes, assim como o são as pessoas que nela vivem. Porém, é
preciso pensar em desejos, em problemas compartilhados social e
historicamente; é preciso pensar em cidades educadoras como a expressão de
um plano estratégico para a vida social no mundo atual (p. 152).

Como pensar, assim, em cidade educadora na escola nos moldes de uma cidadania
efetiva sem partir para uma pesquisa cuidadosa das interações tempo/espaço entre a sociedade
e a natureza, tomando o lugar de vivência e as experiências intersubjetivas como ponto de
partida? Como proceder para uma transformação pedagógica na geografia escolar (TERRIEN;
MAMEDE; LOYOLA, 2007), aprendida pelos contornos bem desenhados do currículo

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normativo, e que, por extensão se materializa nas ações da cidade? Certamente é partindo das
experiências significativas e significantes dos sujeitos na sua relação com o lugar que se leva o
conhecimento cientifico para os alunos do Ensino Fundamental ao Ensino Médio. Estes ainda
necessitam de experiências concretas para a construção de ideias abstratas (PASSINI, 2007, p.
173). De acordo com Callai (2000)

A cidade, como lugar de concentração da população é o espaço, via de regra,


onde as relações humanas acontecem de maneira mais acentuada, mais
extensa, mais complexa. Pode-se dizer que tudo está mais aproximado. Sendo
resultado do processo de urbanização, a cidade representa, antes de mais nada,
os laços que ligam as várias pessoas que compartilham um mesmo território
para morar, para trabalhar, para satisfazer suas necessidades de sobrevivência
[...]. Um modo interessante de estudar a cidade é fazer a leitura que cada um
tem desse espaço que nos acolhe, nos abriga, mas que nos impõe regras.
(CALLAI, 2000, p.127).

Nessa perspectiva estudar a cidade significa compreender como o mundo se organiza,


como se transforma, como age o capital, como se organizam as grandes firmas, como acontece
à produção, o destino do produto, a circulação, a informação e o papel que o Estado assume
numa economia de mercado cada vez mais mundializada gerando concentração de riqueza e
acentuando o caráter desigual do desenvolvimento do território.
De acordo com Cavalcanti (2008) os conteúdos referentes à cidade propiciam
instrumentos relevantes ao aluno para que esse possa compreendê-la em sua complexidade,
com base em suas próprias experiências com esse espaço e, essa responsabilidade cabe à escola
que educa para a formação da cidadania e, particularmente, a geografia escolar, que lida com
temas da cidade e dos espaços urbanos. A autora propõe um trabalho pedagógico na escola
voltado para a formação de conceitos geográficos para contribuir a gestão democrática na
cidade. Assim, propõe perceber a sua forma, função, processo, estrutura pela interrelação entre
a política, economia, instituições, sociedade, sujeitos conforme demonstra a figura 01.
Com base nesses pressupostos urge que se estabeleça uma aproximação entre os
conhecimentos científicos e os cotidianos advindos das experiências concretas dos alunos na
cidade numa mediação pedagógica em contínuo processo de ação-reflexão-ação para que o
prazer, a felicidade e a sabedoria se instaurem nas práticas escolares (CASTROGIOVANNI,
2011).

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Figura 01

No ensino de geografia tal perspectiva se torna ainda mais significante se possibilitado


a aula de campo para os sujeitos aprendentes. Oliveira (2009) alerta que essa metodologia não
acontece sem que um trabalho em campo seja efetivado. Diz que a primeira, consensuada e
assumida entre professores e alunos, é a concretização do segundo e que não se refere a um
simples passeio, um dia de ócio fora da escola, o momento de alívio e brincadeiras, um
caminhar para relaxar as mentes ‘bagunçadas’ das crianças e jovens do mundo moderno,
embora a atividade não exclua essa sensação de lazer, ansiedade, angústia e novidades. Um
bom trabalho de pesquisa preliminar contribui a formação humana dos alunos e dos professores
em sua trajetória profissional e futuros exercícios na cidade.
Nesse trabalho, cabe ao professor relacionar os conteúdos pretendidos referente ao
espaço geográfico. Estes, resultam de um processo histórico e social onde o homem não se
relaciona simplesmente com a natureza, mas a partir dela, pelo processo de trabalho, apropria-
se da natureza transformando-a em produto seu, como condição do processo de reprodução da
sociedade (CARLOS, 1999). Nessa óptica, os recortes de análise do ensino e da pesquisa sobre
os conteúdos na escola, não é tido como algo pronto e acabado, mas aberto a outros saberes e
novas práticas.
Assim, o profissional do ensino poderá identificar que o espaço não se constrói apenas
em função do processo de produção, distribuição e troca de bens e mercadorias, mas produz-
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se, também, na luta por rede de água, luz, esgotos, transporte coletivo, internet, por
regularização de loteamentos, pela criação de infraestrutura de lazer e de escolas, pela luta por
creches, espaços de cultura, por leis de zoneamento etc. A luta emerge da consciência do
cidadão como manifestação pelo direito à cidade e à cidadania. Caminho favorável às rupturas
necessárias à visão dicotômica entre o processo de ensino-aprendizagem e o desenvolvimento
local. (ÀVILA, 2003; CARLOS, 1999; CAVALANTI, 2002).
Considerando esses pressupostos o estudo sobre o meio urbano-ambiental da cidade
poderá propiciar a abordagem interdisciplinar de vários conteúdos no ensino de geografia
proporcionando a articulação entre teoria e prática, motivando também o professor a buscar
novos conteúdos e a participar com seus alunos dos passos metodológicos para a efetivação de
uma prática de ensino em geografia criativa dotada de sentidos e significados para a cidade
(PASSINI, 2007).
Criar novas possibilidades do ensinar-aprender na geografia escolar por meio do estudo-
pesquisa sobre os fenômenos espaciais da cidade e do urbano se fazem necessários para a
compreensão da lógica contraditória, desigual e combinada do mundo capitalista. Essa, da
complementaridade urbano e rural, em seus “conjuntos segregacionistas”, se analisado do
particular a totalidade envolvendo combinações – econômicas, políticas, culturais, religiosas,
artísticas e científicas – fomentará práticas espaciais com mais justiça social. (OLIVEIRA,
2009).

O estudo do meio para a análise do espaço de experiências


concretas

Desenvolver o estudo do meio no ensino de geografia envolvendo os alunos da


Educação Básica, nas instituições públicas e privadas contribui, significativamente, para a
superação dos meios tradicionais de ensino guiados por manuais didáticos (ALMEIDA, 2007),
dispositivos midiáticos e pelas ‘verdades’ preestabelecidas, decorrentes das explicações
geradas pelo mau uso e pelos muitos ‘mitos’ da religião, da mídia, do senso comum, absorvidas
como verdades no cotidiano da cidade e da escola.
Nesse conjunto, há uma disposição de conteúdos específicos a serem apreendidos. No
entanto, motivar contínuas e processuais ações que transformem realidades, articulando e
fazendo diagnósticos precisos e claros da(s) situações de conteúdos envolvidas no processo de
ensino-aprendizagem desvela-se contundente na luta contra às contradições socioespaciais do
desenvolvimento desigual e combinado sob a lógica do capitalismo, constituindo-se
contribuição fecunda para o entendimento da dinâmica do espaço geográfico.
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Pontuschka; Paganelli e Cacete (2007) afirmam que a didática do estudo do meio pode
aguçar a reflexão do aluno para produzir conhecimentos que não estão nos livros didáticos,
posto o status quo que no ensino de geografia “deve” se seguir página por página ou assuntos
contidos no livro didático ou que esses manuais ensinam sozinhos a partir da sequência: a) ler
o texto; b) realizar as atividades e c) acompanhar as estratégias didáticas indicadas utilizando-
o com um fim, e não como um meio. Essa sequência limita a apropriação de outras
metodologias do ensino pelo professor na perspectiva da elaboração de um fazer-pensar
dinâmico, que constrói autonomia na geografia escolar (KIMURA, 2008; CASTELLAR;
VILHENA, 2010).
O uso frequente dos manuais na sala de aula reduz as possibilidades de relacioná-lo com
a vida cotidiana dos alunos e de sua compreensão como um material auxiliar de apoio ao
trabalho didático-pedagógico do professor, posto os dizeres de sua ineficácia, na medida em
que apenas memoriza o que está escrito e não se analisam os dados e as informações presentes
nos textos didáticos, não criando outras possibilidades de ampliar o conhecimento escolar,
especialmente, no caso das populações mais desfavorecidas que muitas vezes manifestam a
incapacidade em utilizar os saberes escolares numa situação apenas um pouco diferente das que
encontram na escola (CASTELLAR; VILHENA, 2010, p. 139).
Cavalcanti (2008) destaca a necessidade da reflexão sobre o conhecimento e saberes
docentes na relação teoria e prática para superação de tal perspectiva no ensino de geografia. A
autora ao abordar a realidade espacial a partir dos conceitos geográficos contribui para a
compreensão dos diferentes espaços, para a localização e a análise dos distintos significados
para a vida cotidiana dos alunos. Diz que

O desenvolvimento do pensamento conceitual permite uma mudança na


relação do sujeito com o mundo, proporciona ao sujeito generalizar suas
experiências, e isso é papel da escola e das aulas de geografia. No entanto,
sabe-se que os conceitos não se formam na mente do indivíduo por
transferência direta ou por reprodução de conteúdos. Nesse processo é preciso
considerar os conceitos cotidianos dos sujeitos envolvidos. Os conceitos
geográficos mais abrangentes com que tenho trabalhado são: paisagem, lugar,
região, natureza, sociedade e território (CAVALCANTI, 2008, p. 36)

Importante destacar que o desenvolvimento conceitual consiste num trabalho de base


teórica da geografia e, essa base na contemporaneidade, intui a revisão dos diversos contextos
técnico-científico-informacionais de produção social do espaço. Nestes, os diversos
acontecimentos concretos que vêm marcando a vida cotidiana evidencia a complexidade que
envolve a construção de um processo de ensino voltado para a cidadania, inclui a reflexão sobre

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as opções por técnicas e instrumentos de pesquisa, quer seja no âmbito da formação


profissional, quer seja na escola.
Acrescenta-se o desafio que se impõe ao trabalho docente no ensino de geografia quanto
aos objetivos, métodos, conteúdos, metodologias e avaliação em face da necessária construção
da analise espacial por parte dos alunos ao observar, pensar, refletir ou ler diferentes espaços
(RICHTER, 2011). Essa dimensão longe de se pautar numa unívoca ação na sala de aula,
caracterizada em muitas situações pela dicotomização, segmentarização e /ou engessamento
que seguem, requer uma conexão entre as diversas possibilidades didático-pedagógicas
incluindo a reflexão sobre os seus sentidos e suas intencionalidades, assim como das interações
dialéticas e dialógicas que estas possibilitam na práxis da escola.
Uma contribuição didático-pedagógica colaborativa e bastante significativa para a
expressão do raciocínio geográfico na perspectiva do urbano-ambiental das cidades é
apresentada por Richter (2011). O autor sugere o uso do mapa mental a partir das interpretações
do cotidiano dos alunos para desenvolver os saberes geográficos nas práticas escolares
articulando os conteúdos geográficos na compreensão dos inúmeros processos que ocorrem no
percurso distinto destes indivíduos na cidade. Para o autor, o raciocínio geográfico está presente
na articulação das ideias apresentadas pelos alunos na construção de seus esboços cartográficos
e no trabalho do professor ao interpretar essas representações. O autor, propõe uma dinâmica
de aproximação dos conceitos científicos aos espontâneos advindos do campo das experiências
dos alunos. Assim sugere o seguinte esquema perceptivo que poderá ser agregado quando da
análise do espaço pelo estudo do meio (Figura 02).
Oliveira (2014; 2010) acrescenta a discussão à importância que exerce o planejamento
no ensino de Geografia, quando consoante às experiências de vida dos alunos, dado às imagens
de cidade difundidas e dos seus conceitos, como, também, os fomentados nos livros didáticos
e na mídia que influenciam a vida destes. Considera que a sua articulação com as políticas
educacionais, concepções teórico-metodológicas da Geografia, metodologia(s) de ensino
optadas na sala de aula, e do papel que exercem na formação do aluno, favorece,
indubitavelmente, à compreensão das contradições que se manifesta na (re) produção do espaço.

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Figura 02: Desenvolvimento dos conceitos científicos

1º Passo – a escola (seus ----------------------------- 2º Passo – os conceitos


conteúdos e seus métodos) como científicos como colaboradores
espaço de ensino e aprendizagem para a ampliação dos conceitos
dos conceitos científicos espontâneos

Formação de conceitos
--------------------------

--------------------------
científicos

Redefinem/alteram os conceitos
espontâneos

4º Passo – As atividades práticas ----------------------------- 3º Passo – O método de


contribuem significativamente construção de conceitos
para as habilidades intelectuais científicos se dá por meio de uma
investigação aprofundada dos
conceitos reais

Relações diretas

--------- Relações indiretas

Fonte: Richter, 2011,dos


Desenvolvimento p. 88 (adaptado)
conceitos científicos. Fonte: RICHTER, 2011, p.88 adaptado.

Nessa perspectiva, mister se faz repensar a didática de sala de aula, pois como afirma
Candau (2010) nessa consiste à busca de alternativas para os problemas da prática pedagógica,
pois o seu objeto de estudo é o processo de ensino-aprendizagem numa articulação entre as
dimensões humana, técnica e político-social (CANDAU, 2010).
De acordo com Rays (in CANDAU, 2010, p. 45)

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A prática educativa não deve se limitar à transmissão e à apreensão de


conhecimentos, mas se processar na relação com a sociedade frente à realidade
social, econômica, política e cultural. Nessa perspectiva, a definição de
concepções de ensino-aprendizagem comprometidas com os destinos da
prática educativa e da sociedade brasileira em que a organização do ensino
ocorra por meio da pesquisa, métodos e técnicas de ensino, utilizando novas
tecnologias educacionais na seleção e organização de conteúdos contribuirá a
construção do conhecimento criativo e propositivo da realidade (RAYS, 2010,
p. 45, grifo nosso).

O estudo do meio, “diferentemente do estudo estático baseado em livro didático provoca


um maior interesse por parte dos alunos em aprender, observando e fazendo leituras do espaço
geográfico com sua dinâmica, diversidades e conflitos” (PASSINI, 2007, p. 173). Para
Cavalcanti (2002), o objetivo do estudo do meio é o de mobilizar em primeiro lugar as
sensações e percepções dos alunos no processo de conhecimento para em seguida proceder-se
á elaboração conceitual.
Importante frisar que os alunos, em sua maioria, futuros profissionais no mercado de
trabalho, são de escolas públicas e, apresentam conflitos de ordem social, política, econômica
e cultural no processo de ensino-aprendizagem em Geografia decorrentes da segregação
socioespacial a que foram submetidos durante longo tempo. Esses conflitos relacionados aos
fatores externos: condições socioeconômicas das famílias, ao grau de instruções dos pais, os
escassos recursos públicos, a política educacional, dentre outros, de certo modo, orientam a
conduta mantida pelos alunos no processo educativo.
Não é necessário listar os inúmeros problemas para perceber que essas questões atuam
em conjunto e se articulam num eterno conflito aberto, configurando a educação formal como
um todo. Assim, se reforça que sociabilidades diversas serão sempre manifestadas, por um lado,
a de alunos que se encontram numa dada realidade virtual, de novíssimos celulares, da internet
turbo, de mega computadores, canais de TV a cabo, videogames, e por outro, aqueles que vivem
na rua, porque sempre trabalharam desde muito cedo e que necessitam do Estado ou das
organizações não-governamentais e de políticas de compensação para sua sobrevivência
(OLIVEIRA, 2010). Assim, se faz necessário um contundente planejamento do ensino de
geografia articulado com as experiências de mundo desses sujeitos para uma participação mais
efetiva na compreensão e criação de fenômenos urbanos na cidade e, nesta, o estudo do meio
poderá ser eficaz se comprometido com a qualidade de vida urbanas.
No entanto, constata-se que nos dias atuais, a realidade do “ensino remoto” e virtual
centrado nos potenciais usos de ambiente tecnológico simula a dinâmica da sala de aula, é ainda
pouco acessível e favorável ao ensinar e aprender com tecnologias de informação e
comunicação. Neste ambiente virtual, a consideração das experiências concretas de um ensinar
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e aprender situado e aberto ao que acontece e se materializa no solo, fomentará no sujeito que
participa da escola e habita a cidade, capacidade crítica, criadora e transformadora, capaz de
exercer seu papel político enquanto agente da produção do espaço e da cidadania, começando
a partir do lar. É urgente que o sujeito, habitante da cidade, não seja mais confundido apenas
com o perfil de consumidor de bens e serviços, desse modo, apenas reforçará a produção de
simulacros da geografia na escola e o “caráter de celas” da geografia da cidade (SOJA, 1993).
Ao contrário da pretensão homogeneizadora da escola, a cidade se manifesta como
experiência do heterogêneo e do múltiplo. A cidade se impõe à escola: como uma pluralidade
de sujeitos, de culturas, de instituições, de estímulos, de sensibilidades, ou seja, como
experiência de aprendizagem muito diversificada e, descontrolada para os padrões escolares,
exigindo sempre a atualização dos mecanismos e das estratégias de inclusão e exclusão, e
controle, os quais, por outro lado, dão lugar a astúcias, a práticas, a táticas de subversão, a
apropriação e novos empregos das experiências, culturas e saberes compartilhados.
Nessa dimensão, o processo de descoberta dos conteúdos que se pretende abordar, sobre
a cidade e o urbano, se torna mais efetivo se envolver, concomitantemente, conteúdos escolares,
científicos (ou não), políticos, e sociais na direção de sua aproximação com a mobilidade
espacial; realidade social e seu complexo amalgamado material e imaterial de
tradições/novidades (OLIVEIRA, 2009). Sugere-se, para tanto, que a construção do
conhecimento em tela possa partir de um processo didático-pedagógico conforme o seguinte
esquema didático da figura 03.

Figura 03: Esquema do processo de solução de problemas

Fonte: BERTOLUCCI OITT, Margot. In: CANDAU, Vera Maria (org.). A didática
em questão. 30 ed. Petrópolis, RJ, Vozes, 2010. p. 69.

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Aprender a pensar o espaço urbano supõe partir dos conteúdos objetivos e subjetivos
da cidade, de suas relações econômicas, políticas, sociais, jurídicas com o ecúmeno, incluindo
o domínio das técnicas e dos instrumentos historicamente herdados para analisa-lo. Ao
considerar tal perspectiva se encontra possibilidades interdisciplinares de se construir junto aos
alunos uma análise espacial favorável à construção da cidadania, ou seja, caminhos para a
pesquisa empírica, cientifico-reflexiva e de atuação a partir da escola quando da abordagem de
temas como:

1 – o sítio urbano (assentamento, estrutura).


2 – as bases físicas (as edificações, arruamento, áreas especializadas, etc.)
3 – as características naturais: relevo, vales, depressões, córregos, nascentes,
áreas verdes, tipos de vegetação, microclimas.
4 – Áreas com risco de movimentação.
5 – áreas sujeitas a inundações.
6 – áreas de reserva ambiental, ou estratégicas.
7 – organização e distribuição espacial: comércio, indústria, áreas
residenciais, praças, áreas de lazer.
8 – distribuição da população.
9 – tipos de construção para atividades específicas e para habitação.
10 – meios de locomoção
(CALLAI, 2000, p.127-128)

Afirma a autora que, para um trabalho nesse sentido se faz pertinente à elaboração de
um roteiro: 1. Fazer o percurso do que pretende se estudar; 2. Anotar o que interessa; 3. Discutir
o que se observou; 4. Sistematizar o que se aprendeu, através da escrita de textos, da construção
de mapas e maquetes, do desenho de trajetos (CALLAI, 2000, p. 126).
Passini (2007), Pontuschka; Paganelli; Cacete (2007), Castellar; Vilhena (2010)
concordam que essa metodologia deverá compreender 1. O encontro com os alunos e a
definição da metodologia; 2. Visita preliminar e a opção pelo percurso; 3. Planejamento da
atividade atentando para a possibilidade de trabalho integrado com outras disciplinas numa
perspectiva interdisciplinar para amplitude do conhecimento a ser construído, de agendar a
visita e verificar os meios necessários de transporte e dividir as tarefas entre relatores,
fotógrafos, desenhistas, entrevistadores e outros; 4. Elaboração do caderno de campo com
seleção bibliográfica a ser consultada, antes da ida a campo, para melhor assimilação dos
conhecimentos; 5. Observações e entrevistas para a coleta de dados. 6. Transcrição e
categorização. 7. Retorno à sala de aula e avaliação.
O estudo do meio, além de ser interdisciplinar, permite que aluno e professor se
embrenhem num processo de pesquisa (PONTUSCHKA, PAGANELLI e CACETE, 2007)
utilizando um método que pressupõe o diálogo, a formação de um trabalho coletivo e incentivo

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à formação de professores e alunos - sujeitos pesquisadores de suas práticas, de seu espaço, de


sua história, da vida de sua gente. No ambiente da sala de aula tem como meta criar o próprio
currículo da escola, estabelecendo vínculos com a vida de seus alunos e com a sua própria,
como cidadão e como profissional. (PONTUSCHKA; PAGANELLI; CACETE, 2007). Ou
como afirmou Vesentini em 1995

Enfim, só a prática docente nas salas de aulas – e também fora delas, com
estudos dos meios participativos, por exemplo – é que irá engendrar uma
geografia crítica, voltada a contribuir para a formação de cidadãos plenos. E
tal tarefa é ininterrupta, o que vale dizer que não se deve encontrar uma receita,
um modelo acabado para ser constantemente reproduzido, mas sim que o
buscar deve ser uma meta sem fim, que o renovar e sempre experimentar
novas atividades e conteúdos é condição sine qua non para um ensino que não
sirva às relações de dominação. (VESENTINI, 1995, p. 179).

O autor nos remete que no ensino voltado para a liberdade e a construção da autonomia
não se ensina, mas ajuda o aluno a aprender, orienta-o no crescimento intelectual-cognitivo-
político. Diz que essa didática forma pessoas críticas e capazes de fazer coisas novas. Desejável
para quem lida com os problemas da habitação “crescimento horizontal e vertical”, saneamento
e infraestrutura de serviços, transportes, segurança, aeroportos, serviços de saúde, internet, rede
de televisão, lazer, educação, políticas sociais e “urbanas”, participação de setores intelectuais,
universidades e empresas. Espera-se contribuir para o estabelecimento de um diálogo
inteligente e criativo na sala de aula, para favorecer a sustentabilidade urbana, gestão
democrática e participação popular.

Considerações finais

Superar práticas de ensino reducionistas que se valem de uma utilização estereotipada


do livro didático, dos recursos técnico-pedagógicos e midiáticos e de sua vinculação a modelos
específicos de conhecimento no ensino de geografia supõe, inicialmente, considerar as
experiências socioespaciais dos alunos, quando do planejamento do ensino. Feito isso, urge que
se promova práticas didático-pedagógicas que favoreçam o contato com os conteúdos da cidade
e do urbano que lhes dão forma, tarefa possível se valorizado a importância do trabalho de
campo, sobretudo, para aqueles que desejam a concretização teoria-prática, saber-fazer, pensar-
agir, e consequentemente, exercícios da cidadania.
Reconhece-se que no processo educativo existe uma enorme carência de práticas desse
tipo, prevalecendo os estereótipos, os clichês, preconceitos lamentáveis e perigosos, na esteira

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de equívocos e simplificações inerentes ao processo educativo brasileiro. Associa-se tal fato ao


percurso da história da educação, da escola, da pedagogia, do pensamento educacional, e
mesmo das políticas educativas que nutriram o medo da cidade e da rua, pois, vistos e/ou
produzidos como focos de violência, medo, doença, distúrbios político-sociais, seduções as
mais diversas dificultavam, ameaçavam ou mesmo impediam a “boa educação” dos cidadãos
da urbe.
A nova realidade espacial instaurada pela emergência sanitária de Covid-19 nos obriga
a mudança, a construir novas práticas e atitudes frente aos nossos trabalhos. Didaticamente, isto
aponta, que é possível problematizar as experiências da realidade sociocultural dos sujeitos,
habitantes da cidade, no currículo escolar, assim como, da clareza do professor, quanto às novas
possibilidades de ensinar e aprender utilizando novas tecnologias de informação e
comunicação.
Na estrutura do trabalho escolar, caberá ao professor definir escolhas exigentes e
criteriosas de ensino e de pesquisa, assim, o uso diversificado dos recursos didático-
pedagógicos: livro didático, mapas, vídeos, internet, lives, se constituirão meios para esse
desejado diálogo com os saberes dos alunos, e respectivas mudanças na prática de ensino.
A distância entre os conteúdos do ensino e a vida dos alunos limita a formação de
saberes geográficos locais e de sua inclusão nos currículos escolares, pouco contribuindo para
os (re) conhecimentos dos exercícios formais e/ou jurídicos, de professores e alunos, cidadãos
nos seus contextos escolares e citadinos, que pela luta buscam o reconhecimento de suas
práticas sociais e culturais na vida coletiva e pública. Nosso objetivo consistiu em estimular o
estudo do meio, como uma possibilidade para se fomentar a cidadania a partir da pesquisa sobre
a cidade e o urbano.

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SP: Papirus, 1995. p. 161-1259.

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Revista GeoSertões (Unageo-CFP-UFCG). Vol. 5, nº 10, jun./dez. 2020
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A CARTOGRAFIA ESCOLAR NO MOVIMENTO DA


GEOGRAFIA CRÍTICA: ELEMENTOS PARA DEBATES

SCHOOL CARTOGRAPHY IN THE MOVEMENT OF CRITICAL GEOGRAPHY:


ELEMENTS FOR DEBATES

LA CARTOGRAFÍA ESCOLAR EN EL MOVIMIENTO DE LA GEOGRAFÍA CRÍTICA:


ELEMENTOS PARA LOS DEBATES

João Manoel de Vasconcelos Filho (2)

Ângela Massumi Katuta (1)

(1)
Professora associada do curso de licenciatura em geografia da Universidade Federal do Paraná/Setor
Litoral
E-mail: angela.katuta@gmail.com

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DOSSIÊ: “Por uma Geografia Escolar Crítica”

Resumo

O presente texto resultou dos trabalhos de extensão, pesquisas e reflexões que vim realizando com os
professores e professoras da educação básica, povos originários, do campo e comunidades tradicionais. Nele
evidencio os desafios inerentes à cartografia e geografia ensinadas em um movimento mais amplo de
democratização das relações sócio territoriais em âmbito planetário. Problematizei a produção da cartografia
escolar evidenciando seus limites e desafios, sobretudo no que se refere ao trabalho em sala de aula. Defendo
que geografia e cartografia são como duas faces da mesma moeda, a primeira não se constitui como recurso
analítico sem a linguagem que lhe é inerente, isso porque a segunda espacializa dados e informações que serão
correlacionados, lidos e compreendidos pelo conjunto de categorias e conceitos da área e ensinados aos
educandos e educandas. Demonstro que produzir e ter acesso às figurações imagéticas que atualmente
denominamos de mapas, historicamente foi prerrogativa dos grupos hegemônicos: das lideranças tribais, dos
reis, senhores feudais, da aristocracia, dos mercadores, de alguns segmentos conservadores do Estado Nação,
da burguesia, da classe rentista, latifundiária, entre outros, cuja principal função era defender e/ou ampliar
territórios e, na modernidade, fazer avançar as relações capitalistas e ampliar a reprodução do espaço do e para
o capital. Na sequência, evidenciei que no Brasil, com o fortalecimento do Estado democrático de direito, das
instituições e grupos que atuaram junto aos movimentos populares para pôr fim à ditadura, temos a ampliação
dos produtores e usuários de mapas que passam então a diversificar, ampliar e interrogar o repertório
cartográfico existente para a defesa de suas geografias (modos de estar e ser no mundo), voltadas à redistribuição
dos direitos histórica e geograficamente negados, sobretudo aqueles ligados ao reconhecimento dos seus
territórios e territorialidades. Finalizo a reflexão abordando a constituição do campo de conhecimento
denominado cartografia escolar no contexto da geografia crítica, apontando seus desafios, sobretudo no que se
refere ao âmbito do ensino de geografia voltado ao entendimento dos diferentes modos de estar no mundo,
fundados na solidariedade e na defesa de vida digna para todos os seres vivos.

Palavras-chave
Cartografia escolar; Geografia Crítica; Desafios..

Abstract Resumen
This text resulted from the extension work, research and reflections Este texto es el resultado del trabajo de extensión, investigación y
that I have been doing with teachers of basic education, native reflexiones que he venido haciendo con profesores de educación
peoples, from the countryside and traditional communities. It básica, pueblos originarios, del campo y comunidades tradicionales.
highlights the challenges inherent in cartography and geography Destaca los desafíos inherentes a la cartografía y la geografía
taught in a broader movement to democratize socio-territorial enseñadas en un movimiento más amplio para democratizar las
relations at the planetary level. I problematized the production of relaciones socio-territoriales a nivel planetario. Problematicé la
school cartography, showing its limits and challenges, especially producción de la cartografía escolar, mostrando sus límites y
with regard to work in the classroom. I argue that geography and desafíos, especialmente en lo que respecta al trabajo en el aula.
cartography are like two sides of the same coin, the first is not an Sostengo que la geografía y la cartografía son como dos caras de
analytical resource without the language that is inherent to it, una misma moneda, la primera no se puede hacer sin un recurso
because the second spatializes data and information that will be analítico, sin el lenguaje que le es inherente, porque la segunda
correlated, read and understood by the set of categories and concepts espacializa datos e información que serán correlacionados, leídos y
of the area and taught to students. I demonstrate that producing and entendidos por el conjunto de categorías y conceptos del área y
having access to the imagery figurations that we currently call maps enseñado a estudiantes y estudiantes. Demuestro que producir y
has historically been the prerogative of hegemonic groups: tribal tener acceso a las figuraciones imaginarias que actualmente
leaders, kings, feudal lords, aristocracy, merchants, some llamamos mapas ha sido históricamente prerrogativa de grupos
conservative segments of the Nation State, the bourgeoisie, the hegemónicos: líderes tribales, reyes, señores feudales, aristocracia,
rentier, landowning class, among others, whose main function was comerciantes, algunos segmentos conservadores del Estado Nación,
to defend and/or expand territories and, in modern times, to advance la burguesía, la classe rentista, terrateniente, entre otros, cuya
capitalist relations and expand the reproduction of space to and from función principal era defender y/o ampliar territorios y, en la
capital. Then, I showed that in Brazil, with the strengthening of the actualidad, impulsar las relaciones capitalistas y ampliar la
democratic rule of law, of the institutions and groups that worked reproducción del espacio hacia y desde el capital. Luego, mostré que
with popular movements to end the dictatorship, we have the en Brasil, con el fortalecimiento del estado de derecho democrático,
expansion of producers and users of maps, who then start to de las instituciones y grupos que trabajaron con los movimientos
diversify, expand and interrogate the existing cartographic populares para acabar con la dictadura, tenemos la expansión de
repertoire for the defense of its geographies (ways of being and productores y usuarios de mapas, que luego comienzan a
being in the world), aimed at the redistribution of rights historically diversificarse, expandirse y cuestionar el repertorio cartográfico
and geographically denied, especially those linked to the existente para la defensa de sus geografías (formas de ser y estar en
recognition of their territories and territorialities. I conclude the el mundo), encaminadas a la redistribución de derechos histórica y
reflection addressing the constitution of the field of knowledge geográficamente negados, especialmente aquellos vinculados al
called school cartography in the context of critical geography, reconocimiento de sus territorios y territorialidades. Concluyo la
pointing out its challenges, especially with regard to the scope of reflexión abordando la constitución del campo del conocimiento
teaching geography aimed at understanding the different ways of llamado cartografía escolar en el contexto de la geografía crítica,
being in the world, founded on solidarity and defense of dignified señalando sus desafíos, especialmente en lo que respecta al alcance
life for all living beings. de la enseñanza de la geografía orientada a comprender las
diferentes formas de ser en el mundo, fundamentadas en la
solidaridad y la defensa de la vida digna para todos los seres vivos.

Keywords: Palabras clave:


School cartography; Critical Geography; Challenges. Cartografía escolar; Geografía crítica; Desafios.

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“Às educadoras e educadores que seguem resistindo nas


lutas por geografias e cartografias pluriversas, voltadas
à manutenção, resistência e ampliação de um mundo
onde caibam muitos mundos”

A produção e o acesso aos mapas no contexto do desenvolvimento


do modo de produção capitalista: monopólio, expropriações e
mercantilização da vida

“O que podemos fazer para que os mapas “falem”


dos mundos sociais do passado?” (HARLEY, 2009,
p. 2)

N
este artigo, abordei o mapa como expressão dos diversos modos de produção,
dado que cada um deles produzem geografias específicas - aqui entendidas
como modos de estar e ser no mundo, pois os espaços nos quais vivemos
determinam nosso ser -, portanto, também cartografias que expressam as geograficidades
produzidas que, segundo Moreira (2004, p. 33-35) significa:

O ponto ôntico-ontológico da tradução do metabolismo homem-meio no


metabolismo homem-espaço. [...] A geograficidade é o modo de expressão
dessa essência metabólica – a hominização do homem pelo homem através do
trabalho – em formas espaciais concretas de existência, algo que difere nos
diferentes recortes do território da superfície terrestre. É o ser em sua
totalidade geográfica concreta. [...] A geograficidade é, assim, o ser-estar
espacial do ente – pode ser o homem, um objeto natural ou o próprio espaço
(quando este é posto diante da indagação: o espaço, o que é, qual a sua
natureza) – seja qual for o caráter de sua qualidade. No caso do homem, a
geograficidade é a forma como a hominização enquanto essência do
metabolismo exprime sua existência na forma do espaço. A geograficidade do
homem é então a forma como a liberdade da necessidade emerge e se realiza
através da forma concreta de existência espacial na sociedade. (MOREIRA,
2004, p. 33-35).

A relação dos grupos humanos nos ecossistemas com os outros elementos da natureza,
através do trabalho, produziu e produz formas espaciais concretas de existência. É nesta relação
dos grupos humanos com e nos diferentes ecossistemas que as geograficidades - formas
espaciais concretas de existência -, são produzidas e que a sobrevivência dos humanos no
planeta demandou e ainda demanda habilidades de atribuir significado às existências espaciais
de qualquer ente. Para tanto, diferentes grupos humanos criaram modos distintos de cartografar
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porque diversas eram suas geografias e, consequentemente, suas relações com a Terra, elemento
fundamental no processo de apresentar em um suporte imagético as geograficidades dos entes
e fenômenos.

Produzir mapas é uma das mais antigas práticas da humanidade, antecede a escrita em
praticamente 3 mil anos. Uma das imagens indicadas na bibliografia da história da cartografia
como a mais antiga, o mapa de Çatalhöyük - um grande sítio arqueológico localizado na
Anatólia, atualmente Ankara, capital da Turquia -, possui aproximadamente 8 mil e duzentos
anos, enquanto que a escrita foi materializada pelos Sumérios há 5 mil anos atrás. Assim,
podemos afirmar que os primeiros mapas, abordados na história da cartografia como área de
pesquisa, surgem no Neolítico ou Período da Pedra Polida (10 a 4000 anos a.C), onde, no
mesmo período e região, surgiu a agricultura1. Estas evidências históricas e geográficas indicam
que a produção de excedentes, decorrente da domesticação de plantas e animais, foi
fundamental para a sedentarização dos grupos humanos e reuniu condições materiais e
demandou a produção de artefatos que localizassem fenômenos em um suporte imagético que,
atualmente, denominamos de mapas. Obviamente que desde esta época até hoje, em função das
transformações tecnológicas e políticas, os mapas passaram por grandes transformações,
contudo, a permanência e utilização dos mesmos em várias sociedades em diferentes espaços e
tempos, indicam que a necessidade humana de localizar fenômenos nos lugares em um suporte
imagético é bastante antiga.
O que se pode observar na maioria dos mapas ancestrais2, inclusive em um encontrado
em 1993 na caverna de Abauntz Lamizulo, região espanhola de Navarra, cuja datação indicou
que o mesmo tem 13660 anos3, foi a necessidade de localizar fenômenos em imagens
espacialmente estruturadas para os mais diferentes usos. Este mapa foi desenhado em um
pedaço de pedra de 17cm X 12cm e:

Os sinais gravados na pedra indicam montanhas, curvas dos rios e boas áreas
para a caça. “A paisagem descrita corresponde exatamente à região
geográfica”, disse a pesquisadora Pilar Utrilla. [...] Os arqueólogos ainda
tentam decifrar por que os habitantes daquela região fizeram o mapa. “Não
temos certeza qual foi a intenção da produção desse mapa, mas ficou claro que

1
Mazoyer e Roudart (2010) defendem a teoria da existência de centros de origem da revolução agrícola neolítica,
ou seja, afirmam que a agricultura teve origem concomitante em vários lugares, tese com a qual concordamos dado
que se trata de atividade fundamental à sobrevivência de qualquer ser humano.
2
Pré-históricos, segundo a classificação da história clássica com a qual não concordo por se fundamentar em uma
perspectiva linear e eurocêntrica de história.
3
Apesar de ser o mapa mais antigo que temos notícia, a literatura clássica da história da cartografia aponta como
os mais antigos o mapa de Çatalhöyük (6000 a.C.), de Ga-Sur (300 km ao norte da Babilônia, 3800 a 2500 a.C.) e
de Bedolina (norte da Itália, 2400 a.C.), por isso, no texto indicamos o mapa do sítio arqueológico de Anatólia
como o mais antigo na história da cartografia como área de pesquisa.
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ele foi muito importante para as pessoas que habitaram aquela gruta, há 13.660
anos. Talvez eles quiseram registrar as áreas ricas em cogumelos, ovos ou
pedras para a confecção de ferramentas”, disse Pilar. Há ainda a hipótese de o
mapa ter sido usado para o planejamento de uma expedição de caça.4

A despeito de não sabermos exatamente quais foram os objetivos efetivos da elaboração


dos mapas por nossos ancestrais, fica evidente ao menos a presença de quatro capacidades
mentais consideradas importantes na aquisição de habilidades de mapeamento, demonstradas
pelos produtores de mapas antigos. São elas: 1ª: a de adiar uma resposta instintiva a fim de fazer
uma pausa na exploração; 2ª: a facilidade de armazenar informações adquiridas; 3º: a de fazer
abstrações e generalizações; 4ª: a de elaborar e executar respostas necessárias às informações
processadas (LEWIS, 1987, p. 51). Estas capacidades se revelaram importantes na filogênese e
também na ontogênese, por isso, são trabalhadas na educação infantil e nos anos iniciais do
ensino fundamental no processo de alfabetização geográfica e cartográfica5. Para o mesmo
autor, a caça pressupunha um esforço colaborativo coletivo, envolvendo a capacidade de gerar
informações, codifica-las e transmiti-las rápida e eficazmente entre os membros do grupo.
Possivelmente, a linguagem gestual e a gráfica foram dispositivos criados para viabilizar este
processo. Ao contrário do pensar o “aqui e agora” como os outros primatas superiores, a
linguagem humana passou a estabelecer vínculos entre eventos no espaço e no tempo em uma
rede de relações lógicas organizadas por meio de gramáticas e metáforas (LEWIS, 1987, p. 51).
As capacidades mentais dos humanos, em uma perspectiva vigotskiana (1991a, 1991b),
são formadas a partir de suas ações no mundo (trabalho) em sua relação com o meio. Em outras
palavras, na interação com os mais diversos ecossistemas, os grupos humanos aprenderam e
ensinaram a caçar, pescar, coletar e, posteriormente, a plantar e criar animais. Tais ações no
mundo (trabalho) pressupunham processos educativos e comunicativos, o desenvolvimento de
objetos técnicos, expressos nos mais diversos apetrechos de uso cotidiano, portanto, o uso de
linguagens as mais variadas: a gestual, a oral, a gráfica, a cartográfica, dentre muitas outras.
O fato dos mapas terem sobrevivido, ao que se sabe, por pelo menos 14 mil anos revela
a importância dessas imagens espacialmente estruturadas, indica terem sido importantes na
sobrevivência humana e também para o exercício do poder político, religioso e social sobre
determinados territórios, espécies e povos. As pesquisas de John Brian Harley, David

4
Disponível em: <https://veja.abril.com.br/tecnologia/pesquisadores-decifram-o-mapa-mais-antigo-do-mundo/>.
5
Compreendo a alfabetização de forma ampla, como processo de aprendizagem da leitura e da escrita para ler o
mundo como defendia Paulo Freire (1989) em sua obra A importância do ato de ler: em três artigos que se
completam. A criança, ao entrar em contato com palavras e representações comumente utilizadas no ensino da
geografia, também se alfabetiza geográfica e cartograficamente pois aprende o significado de palavras que não
conhece, amplia o significado daquelas que já compõem seu repertório, aprende a produzir e a ler mapas para, a
partir da apropriação destes códigos, ler e compreender o mundo em que vive para nele possa atuar. Neste
entendimento, o processo de alfabetização encerra-se com a cessação da vida.
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Woodward e colaboradores que resultaram nos 6 volumes de History of Cartography6,


produzidos entre 1987 a 2015, certamente uma das obras mais importantes na história da
cartografia mundial, revelam a dimensão do poder inerente aos mapas em diversos momentos
históricos:
Um estudo detalhado da cartografia na Europa pré-histórica, antiga e medieval
e no Mediterrâneo demonstrou isso claramente. Ao longo deste período, a
confecção de mapas foi uma das armas de inteligência especializadas para
adquirir um poder, administrá-lo, codificá-lo e legitimá-lo. Além disso, este
conhecimento estava concentrado nas mãos de relativamente poucas pessoas:
os mapas eram assim associados à elite religiosa do Egito dinástico e da
Europa cristã medieval, à elite intelectual na Grécia e em Roma, e à elite
mercantil das cidades Estado no fim da Idade Média. [...] As funções
específicas dos mapas no exercício do poder confirmam também a
onipresença desses contextos políticos por meio das escalas geográficas. Essas
funções vão da construção de um Império mundial à manutenção do Estado-
nação e à afirmação local dos direitos de propriedade individuais. Em cada
um desses contextos, as dimensões do regime político e do território são
compiladas em imagens que, assim como o ordenamento jurídico, fazem parte
do arsenal intelectual do poder. (HARLEY, 2009, p. 5).

Com o tempo e os modos de produção, as funções e características dos mapas foram


transformadas e ampliadas, bem como o seu uso, auxiliando no domínio das informações acerca
dos territórios, sobretudo daqueles a serem expropriados de outros grupos, cujos modos de
existência se contrapõem ao processo de mercantilização da vida, elemento até hoje
fundamental na reprodução do espaço para o capital. É neste contexto que os mapas passam a
ser monopolizados estrategicamente pelas elites, pois foi uma das armas centrais no processo
de expropriação e domínio dos territórios, auxiliando no avanço do modo capitalista de
produção e da inerente mercantilização dos outros elementos da natureza e das vidas:
[...] as ‘linhas do mapa revelavam este poder e o processo imperialista porque
foram impostas no continente sem referências às populações indígenas e até
mesmo, frequentemente, sem referências ao próprio território. Os invasores
dividiam entre eles o continente segundo os esquemas que refletiam suas
próprias rivalidades complexas e seu poder relativo’. (Meinig, 1986 apud
HARLEY, 2009, p. 6)

A partilha da África feita pelos países europeus, de acordo com os projetos geopolíticos
dos blocos de poder é um exemplo didático deste processo, no qual as imposições e
ocultamentos das territorialidades tribais e/ou comunais compunham algumas das estratégias
de dominação dos países imperialistas.

6
Para download grátis dos volumes acessar: <https://press.uchicago.edu/books/HOC/index.html>.
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Assim, na modernidade e na contemporaneidade com a constituição e recrudescimento


do modo capitalista de produção, os mapas ganham novas funções, alterando significativamente
os temas mapeados e as escalas representadas. Se antes espaços e temas da vida cotidiana
estavam presentes nos mapas antigos de povos coletores, caçadores e agricultores, como
informações topológicas importantes à sobrevivência da coletividade, no contexto do
capitalismo, a escalaridade do território cartografado é ampliada na mesma proporção da
voracidade do capital: os temas que povoam tais cartografias passam a ser as fronteiras, ou seja,
as áreas e os limites até onde se pode explorar, as localizações de recursos, trajetos, caminhos
e rios para acesso e escoamento das mercadorias e pessoas escravizadas, a área em que
habitavam os povos considerados e divulgados pelos invasores como “ameaçadores” ou
“selvagens” e que representavam e representam obstáculos ao desenvolvimento do capital,
entre outros:
Nestes contextos imperiais, os mapas apoiaram sistematicamente o exercício
direto do poder territorial. [...] A redescoberta do sistema de coordenadas
geográficas de Ptolomeu no século XV foi também um evento cartográfico
crucial, que privilegiou uma “sintaxe euclidiana” como estruturadora do
controle territorial europeu. [...] a natureza gráfica dos mapas permitia a seus
usuários imperiais um poder arbitrário, facilmente dissociado das
responsabilidades sociais e suas consequências. O espaço podia ser dividido
sobre o papel. Assim, o Papa Alexandre VI delimitou as possessões
portuguesas e espanholas no Novo Mundo. [...] E, no século XX, com a
divisão da Índia, efetuada pela Grã-Bretanha em 1947, pôde-se ver como um
traço de lápis sobre um mapa podia determinar a vida e a morte de milhões de
indivíduos. Existem inúmeros contextos nos quais os mapas tornaram-se a
moeda de “negociações” políticas, de divisões, vendas e tratados feitos sobre
os territórios coloniais, e nos quais, uma vez tornados permanentes pela
imagem, estes mapas adquiriam frequentemente força de lei. A história dos
mapas está intimamente ligada à ascensão do Estado-nação no mundo
moderno. Muitos mapas impressos na Europa ressaltavam as nações, os cursos
d´água e as fronteiras políticas que constituíam as dimensões político-
econômicas da geografia européia. [...] O Estado tornou-se e permaneceu um
dos principais mandatários da atividade cartográfica em vários países.
(HARLEY, 2009, p. 5-7, grifo nosso)

O mapa político do mundo é um bom exemplo dentre tantas outras representações que
adquiriram força de lei, pois poucos são os que questionam as fronteiras entre os países pois
trata-se de uma imagem lenta e progressivamente imposta e cultivada em quase todas as pessoas
que frequentaram as aulas de geografia nas escolas. Em outras palavras, esta imposição ainda
compõe o processo de escolarização na geografia ensinada. Via de regra, no Brasil, raramente
se aborda as configurações territoriais dos povos originários anteriores à invasão europeia e,
mesmo na atualidade, as unidades federadas e as regiões brasileiras são os recortes geográficos

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por excelência dos estudos da geografia do Brasil que se ensina. A dimensão local fica, quando
acontece, secundarizada, dificilmente se constituindo no ponto de partida do processo de ensino
e aprendizagem. Na geografia mundial ensinada, ainda permanece a abordagem descritiva dos
países por continentes na qual se apresentam mapas e descrições de suas fronteiras, clima,
vegetação, economia, características populacionais, blocos geopolíticos e econômicos,
conhecimentos estes fundamentais à exploração e expropriação dos territórios e à
mercantilização das vidas, estrategicamente pautados nas escolas pelas classes burguesas que
criaram a escola moderna, sua forma de funcionamento e conteúdos adequados aos seu projeto
civilizador: dominar o planeta e ampliar/adensar as relações capitalistas no planeta.
Dessa forma, verifica-se que a produção e acesso aos mapas no contexto do
desenvolvimento do modo de produção capitalista se caracteriza por posturas monopolizadoras
de produção e acesso a este constructo que impõe e, ao mesmo tempo, expressa uma forma de
ver e se relacionar com o mundo e com os elementos nele existentes. Neste processo, ocultam-
se fenômenos, grupos humanos a fim de facilitar e abrir caminho para as expropriações e
explorações de territórios tradicionalmente ocupados, apresentados como desabitados e/ou
inexistentes. Tais estratégias mercantilistas sobre os territórios, são fortalecidas ainda hoje, em
grande parte, pela cartografia e geografia ensinadas na educação básica. Isso não significa que
perspectivas críticas outras não estejam sendo pautadas na abordagem da geografia ensinada.
Com os processos de avaliação, pesquisas, críticas e debates das geografias e cartografias
trabalhadas no ensino, verificamos uma sensível mudança nas pautas dos livros didáticos e nas
aulas do componente curricular em questão. Verificamos também que, com os processos de
abertura política ocorridos mundialmente, há a emergência de cartografias e geografias outras
historicamente ocultadas, é o que abordei no item que segue.

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Ativismos cartográficos como expressão das lutas populares nos


conflitos por terras, territórios, direitos e vidas dignas: a
emergência das geografias e cartografias populares

“O que temos é um conjunto de tensionamentos no


campo cartográfico, multilocalizados e voltados
para diferentes (e, muitas vezes divergentes)
direções, sentidos políticos e significados de ação.”
(SANTOS, 2012, p. 14)

O avanço e recrudescimento das relações capitalistas em diversas áreas do planeta e no


território brasileiro, nas cidades e nos campos7, inclusive nas terras tradicionalmente ocupadas
por indígenas, quilombolas e outros povos e comunidades tradicionais (PCTs) - muitos
categorizados como posseiros, deu origem, ampliou e/ou intensificou inúmeros conflitos por
terras e territórios, muitos dos quais ligados a disputas em torno do uso do solo (Terra como
Valor de Uso X Terra como Valor de Troca) e/ou por direitos a existir na diferencialidade de
seus modos ancestrais de existência, entre outras questões ligadas às suas territorialidades.
No Brasil, este processo ocorreu sobretudo a partir dos projetos desenvolvimentistas
para a região amazônica durante o regime militar entre os anos 1970 e 1980, que trataram “[...]
essa região como um celeiro de recursos e vazio demográfico.” (ALMEIDA M., 2001, p. 1). Se
verifica, portanto, como em outros países e nas relações imperialistas, o ocultamento, a
desconsideração e o apagamento da presença de muitos grupos humanos (indígenas,
quilombolas e outros PCTs) e de seus modos de estar e ser no mundo (geografias), condição
para negar-lhes o direito à vida e de suas relações com a terra, de acordo com seus modos
ancestrais e/ou tradicionais de existência. Tais apagamentos ocorreram e ocorrem por meio de
inúmeras estratégias: inexistência de indicadores acerca dos mesmos, ausência de diálogos
voltados ao entendimento dos seus modos de existência por parte das instituições do Estado
Brasileiro, que passam a impor políticas e programas que forçam a expulsão, o etnocídio e/ou
genocídio destes sujeitos, vasta produção e divulgação de mapas que mostram ou evidenciam
o “vazio demográfico” das terras tradicionalmente ocupadas, propagandas desenvolvimentistas
que defendem uma economia de mão única direcionada à intensificação das relações
capitalistas, entre outras.
As estratégias elencadas constituíram falsas narrativas que os visibilizaram e, ainda em
grande parte, visibilizam em uma perspectiva marcadamente exótica, folclorizada, pitoresca e
estereotipada, apontando-os, via de regra, como atrasados e resquícios de um passado que deve
ser superado, forjando processos de ideologização na construção da opinião pública em relação

7
Colocamos no plural pois entendemos que, a despeito da formação sócio territorial ser a mesma, cidades e campos
são diversos porque as suas geograficidades (modos de estar e ser dos entes no mundo) os constituem em sua
pluralidade.
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aos mesmos como entraves ao desenvolvimento capitalista, quando não os criminalizava e


criminaliza, incentivando etnocídios, genocídios, atentados, invasões de terras, expropriações
entre outros processos que põem em risco suas existências, territórios e territorialialidades. Este
é o discurso que se verifica sob o governo Bolsonaro que se materializa no descaso de seus
ministérios em relação a estes povos, em favor do agronegócio e outros empreendimentos, que
se desdobram na diminuição da biodiversidade, produzida, cultivada e mantida por estes povos,
muitos dos quais se dizem floresta e não “da floresta” evidenciando sua relação de
pertencimento ecossistêmico que há muitos mil anos vêm produzindo vidas e biodiversidade.
Dessa forma, se oculta a histórica, imensa e inestimável contribuição dos povos
originários, cujos conhecimentos sobre as espécies biológicas foram fundamentais nos estudos
de determinação do potencial econômico das mesmas, realizados desde o século XVI e que deu
origem à Etnobiologia: “[...] com esta abordagem se produziam listagens de nomes e usos de
plantas e animais por parte das populações estudadas.” (PRADO e MURRIETA, 2015, p. 140-
141). O conhecimento dos lugares, das estratégias de sobrevivência, das jazidas minerais e de
“outras riquezas” também, em boa parte, foi obtido a partir dos conhecimentos dos povos
originários, quilombolas e dos outros Povos e Comunidades tradicionais (PCTs).
Em síntese, desde os anos 1970 ocorriam e ainda hoje ocorrem ações combinadas de
expulsão dos indígenas, quilombolas e outros PCTs em: terras que foram privatizadas e
destinadas ao desenvolvimento, naquela época por meio da “revolução verde”, atualmente, pelo
agro, hidro, minero e econegócio; e também em áreas destinadas à conservação dos recursos,
mantidas por indígenas, quilombolas e PCTs, antes de serem expulsos com a estatização dos
espaços comunais, transformados em Unidades de Conservação (UCs) (ALMEIDA M., 2001,
p. 4-5).
Com a intensificação dos conflitos por terras e territórios, os povos originários,
quilombolas e outros PCTs passam a constituir agendas próprias, por meio das quais
reivindicam a defesa dos seus territórios, estabelecendo metas sociais e econômicas. Tais
conflitos ocorreram e ocorrem em função do avanço da fronteira agrícola; do adensamento dos
processos organizativos e fortalecimento dos movimentos sociais que passam a realizar
denúncias em nível local, nacional e, também internacional; do estabelecimento de coalizões
políticas entre indígenas e seringueiros e outros sujeitos das floresta; da produção das “vítimas
do milagre econômico” entre populações indígenas, somados aos desastres e degradação
ambientais gerados pelas políticas de desenvolvimento, apoiadas na colonização dirigida e
agropecuária induzida; do questionamento dos Parques criados em áreas remotas e dependentes

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de fiscalização para sua proteção, entre outros elementos que acabaram por demandar a
constituição de um repertório e de estratégias de lutas.
A necessidade de estudos para o planejamento, proposição e execução das ações e
estratégias é o contexto que produziu uma série de demandas por mapeamentos elaborados na
perspectiva das geografias daqueles que habitam as terras tradicionalmente ocupadas. Estas
cartografias são conhecidas pelos mais diferentes termos: levantamentos etnoecológicos,
mapeamentos etno-ambientais dos povos indígenas, mapeamento dos usos tradicionais dos
recursos naturais e formas de ocupação do território, mapeamento comunitário participativo,
mapeamento cultural, macrozoneamento participativo, etnozoneamento, etnomapeamento,
diagnóstico etnoambiental, cartografia social, entre outros (ACSELRAD e COLI, 2008, p. 24).
O que há de comum nessa diversidade de nomenclaturas e cartografias é o fato de as
metodologias utilizadas na produção dos mapas serem participativas, ou seja, quem define a
necessidade, o objetivo do mapeamento, os limites territoriais que serão mapeados, os símbolos
da legenda, os conflitos e/ou situações a serem plotadas na carta, as compreensões que embasam
o material, as imagens que nele irão constar, as legendas das mesmas, entre outros, são os
próprios grupos e/ou comunidades. Somado a isso, os encontros e/ou oficinas se dão em torno
das questões ligadas aos territórios usados8, amplamente debatidas e problematizadas pelos
mapeadores e equipe que dá suporte técnico ao processo que pode levar meses e até anos para
ser concluído. Tais ações, proporcionaram o conhecimento, questionamento, interrogação e
criação de formas coletivas e populares de produzir mapas e mapeamentos. Produziram também
oportunidades de encontros colaborativos que, via de regra, implicam em processos educativos
em que, equipes técnicas e comunidades, mutuamente, ensinam e aprendem umas com as
outras, podendo gerar convivências, diálogo de saberes, expertises, ações as mais
diversificadas, necessárias às resistências.
É importante destacar também que o desenvolvimento, a disseminação e a
popularização de ferramentas e tecnologias como as dos Sistemas de Informação Geográfica
(SIG), dos Global Positioning Systems (GPS) e do sensoriamento remoto foram indispensáveis
neste processo pois geraram “[...] um novo horizonte de produção e uso de tais instrumentos de
representação espacial [...].” (HERLIHY e KNAPP, 2003 apud ACSELRAD e Coli, 2008, p.
15). Tais acessos produziram também disputas políticas em torno do acesso às tecnologias
digitais, em função disso, muitos grupos que trabalham nas cartografias utilizam software livres
e tecnologias abertas.

8
Para Silveira (2011, p. 5), utilizando a perspectiva de Milton Santos: “O território usado é assim uma arena onde
fatores de todas as ordens, independentemente da sua força, apesar de sua força desigual, contribuem à geração de
situações.”
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É neste contexto de produção coletiva e popular que ficam evidentes as disputas entre
distintos modos de estar e ser no mundo (geografias) e as cartografias deles decorrentes que
tenho denominado de geografias e cartografias populares que deveriam estar presentes nas
escolas cujos trabalhos estão voltados à emancipação e autonomia dos sujeitos. Assim, como
afirmam vários autores que abordam a produção coletiva de mapas, estabelecem-se disputas
cartográficas emanadas dos tensionamentos e disputas territoriais, evidência didática do
imbricamento entre geografias e cartografias. Renato Emerson dos Santos (2012, p. 2, grifo
nosso) denomina estes processos de ativismos cartográficos:
Operamos com a ideia de que estes processos constituem um campo dialógico
complexo e múltiplo, que propomos chamar “ativismos cartográficos”,
formado pelo imbricamento de diferentes formas de intervenção. Estas
formas, mesmo que antagônicas, social e politicamente multilocalizadas (seja
em esferas do Estado, em movimentos sociais, organizações de base
comunitária, instituições de pesquisa, ONGs, empresas, etc.), devotadas a
intenções convergentes ou opostas, se influenciam, compartilham saberes,
acúmulos, experiências, e retroalimentam a crítica à cartografia. É neste
sentido que propomos a ideia de “ativismos cartográficos” para compreender
este campo de tensões produzido na relação entre novas formas de cartografar
e disputas sociais.

Essas novas formas de cartografar produzidas pelos grupos e/ou movimentos sociais
organizados evidenciam outros modos de leituras do território que “[...] são confrontadas às
leituras oficiais e/ou de atores hegemônicos, mas também como instrumentos de
(fortalecimento de) identidade social e de articulações políticas.” (SANTOS, 2012, p. 3). Este
fato fica evidente quando estes sujeitos expõem os objetivos de suas cartografias, pois indicam
que as mesmas constituem instrumento fundamental nas estratégias decisórias sobre o território,
efetivadas a partir do embasamento proporcionado pelos mapas produzidos. Assim, segundo os
mesmos produz-se cartografias para:

(i) dar visibilidade aos conflitos socioambientais na região; (ii) ser


instrumento de pressão e denúncia; (iii) auxiliar no diagnóstico local,
desmistificando o que tem sido chamado por “desenvolvimento e progresso”
para a Amazônia; (iv) caráter educativo no sentido de possibilitar a
organização e mobilização; (v) viabilizar o diálogo com dados oficiais; (vi)
contribuir no planejamento das ações das organizações populares, indicando
caminhos estratégicos e alianças/parcerias. (SANTOS, 2012, p. 4)

Entendemos este processo de construção cartográfica coletiva como encontros


importantes em que se debatem as tensões, disputas e questões sócio territoriais inerentes às
disputas em que os grupos e/ou movimentos sociais estão envolvidos. Elabora-se um conjunto
de problematizações, reflexões, debates e estratégias territoriais coletivas que instrumentalizam
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o pensar, as lutas, os acolhimentos e disputas nos e pelos territórios. Eis uma dimensão popular
da mais alta importância de se aprender a cartografar para saber pensar o espaço:

Isto constitui-se, cabalmente, num aprendizado da operação de referências


espaciais no pensar e no fazer da sua experiência de luta: ao indicarem sobre
um mapa os conflitos vivenciados, sua localização, quais são as “agressões” e
os sujeitos coletivos envolvidos, os participantes estão aprendendo e
reapreendendo novas formas de pensar para agir, o pensar no espaço, e o
pensar com o espaço. (SANTOS, 2012, p. 4, grifo nosso)

Nesta produção coletiva fica evidente a importância de se aprender a pensar o espaço a


contrapelo da perspectiva hegemônica do capital, tendo como base a geografia vivida e
cartografada pelos grupos e/ou movimentos sociais. No livro Carajás: a guerra dos mapas:
repertório de fontes documentais e comentários para apoiar a leitura do mapa temático do
Seminário-Consulta "Carajás: Desenvolvimento ou Destruição?”, Alfredo Wagner Berno de
Almeida (1993) chama a atenção para a fala de um jovem que estava presente em uma das
reuniões de base com as comunidades impactadas pelo Projeto Grande Carajás (PGC) e que
sintetiza o que defendemos em relação à geografia e cartografia ensinadas: “Este é o mapa que
devia ter na escola!” (ALMEIDA A., 1993, p. XXV). Esta afirmativa, evidencia as cartografias
e geografias que se quer em sala de aula: aquelas que dizem respeito às condições materiais de
existência dos sujeitos que, ao serem trabalhadas em sala de aula, auxiliam a pensar no e com
o espaço, possibilitando a criação de estratégias espaciais nos territórios de vida que podem
auxiliar na democratização sócio territorial.
Nesta direção, Lacoste (1988, p. 26) critica a exclusividade do uso e reprodução de
mapas em pequena escala nas aulas de geografia:

Nenhuma esperança de que o mapa possa aparecer como uma ferramenta,


como um instrumento abstrato do qual é preciso conhecer o código para poder
compreender pessoalmente o espaço e nele se orientar ou admiti-lo em função
de uma prática. Nem se pensar que a carta possa aparecer como um
instrumento de poder que cada qual pode utilizar se sabe interpretá-la. A carta
deve permanecer como prerrogativa do oficial, e a autoridade que ele exerce
em operação sobre ‘seus homens’ não se deve somente ao sistema hierárquico,
mas ao fato de que ele só é quem sabe ler a carta e pode decidir os movimentos,
enquanto aqueles que ele mantém sob suas ordens não o sabem. Contudo o
instrutor, o professor, sobretudo outrora, mandava "fazer" cartas. Mas não
cartas em grande escala nas quais cada um pudesse ver como elas dão ideia de
uma realidade espacial que se conhece bem, mas sim cartas em pequeníssimas
escalas, sem utilidade no quadro das práticas usuais de cada um; são, na
realidade, imagens simbólicas que o aluno deve redesenhar [...].
Provavelmente esse corte radical que o discurso geográfico escolar e
universitário estabelece em face de toda prática, essa ocultação de todas as
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análises do espaço, na grande escala, que é o primeiro passo para apreender


cartograficamente a "realidade", resulta, em boa parte, da preocupação,
inconsciente, de não se renunciar a uma espécie de encantamento patriótico,
de não arriscar o confronto da ideologia nacional com as contradições das
realidades. (Grifo nosso).

Entendemos que a ênfase do ensino da geografia apenas na pequena escala, explicitada


sobretudo pelos mapas presentes nos livros didáticos, dificulta a construção de leituras e ações
voltadas ao bem viver nos territórios, pois constituem em recurso intelectivo pouco efetivo para
a compreensão das espacialidades vividas. Ao restringir-se apenas à pequena escala espacial
utilizada pelas grandes corporações e grupos hegemônicos de atuação nacional e internacional,
que pensam o espaço em uma perspectiva mercantil, auxiliam na produção de uma espécie de
analfabetismo geográfico funcional, pois os códigos, conceitos, informações e mapas
fornecidos nas aulas de geografia não são utilizados como elementos-chave para leitura de
mundo, para a compreensão do território produzido e usado. Este analfabetismo geográfico e
cartográfico funcional torna-se estratégico para a dominação sócio territorial em nível mundial.
A defesa da grande escala no ensino da geografia não interdita o uso de mapas em
pequena escala, devemos usá-los para que os sujeitos compreendam suas realidades que, neste
sentido, também exige mapas em grandes escalas que podem ser produzidos pela turma na sala
de aula. Os ativistas cartográficos já possuem amplo repertório que pode inspirar nossos
trabalhos em sala de aula. O conhecimento dos mapas e estratégias de mapeamento produzidos
por eles certamente constituem ensinamentos preciosos que podemos utilizar para criar
estratégias metodológicas para cartografar e compreender as geografias produzidas
cotidianamente.
É dessa maneira que os ativismos cartográficos - expressão das lutas populares nos
conflitos por terras e territórios, por reconhecimento e redistribuição de direitos sócio
territoriais -, revelam geografias, tensionamentos e conflitos territoriais que raramente são
pautados nos livros didáticos e nas aulas de geografia. As geografias vividas neste contexto de
mapeamento ganham inteligibilidade, pois são amplamente debatidas pelo coletivo de sujeitos
que, neste sentido, forjam a emergência de suas cartografias e geografias, fundamentais para a
constituição de estratégias sobre os territórios voltadas para a ampliação de direitos, para a
conquista da dignidade e para o bem viver. O fato de os sujeitos viverem as contradições sócio
espaciais nos territórios de vida não os transforma em conhecedores de suas realidades, à esta
empiria faz-se necessário a concretude do trabalho com conceitos, informações, indicadores,
entre outros, a fim de trabalhar em compreensões que dão concretude às leituras do mundo. Eis
a importância do trabalho com tais escalas em sala de aula, bem como com os conteúdos e

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conceitos ligados à compreensão dos inúmeros arranjos espaciais. O ponto de partida para a
compreensão dos mesmos deve ser a realidade concreta, a abstração, proporcionada pela
aprendizagem das teorias sobre o espaço é o ponto de chegada nos processos de ensino e
aprendizagem.
Finalizamos este item indicando que os ativismos cartográficos fizeram emergir
geografias e cartografias populares que têm auxiliado a interrogar a geografia e cartografia
historicamente produzidas e ensinadas, potencializando reflexões e debates de ordem
epistemológica e metodológica e subsidiando algumas transformações nas práticas educativas.
No item que segue abordamos os avanços e desafios da cartografia escolar com a emergência
do que se tem denominado de Geografia crítica nos anos 1980, aqui entendido como um
movimento diverso que, desde o referencial teórico metodológico marxista, produziu críticas,
debates e encaminhamentos teórico metodológicos passíveis de serem utilizados nos debates,
reflexões e estudos sobre a cartografia e geografia escolares.

Desafios da cartografia escolar no contexto da crítica à Geografia

“Por trás do criador dos mapas se esconde um


conjunto de relações de poder, que cria suas
próprias especificações.” (HARLEY, 2009, p. 9)

Desde 19309, o número e horizonte de pesquisas e debates da cartografia voltada ao


ensino da geografia tem se ampliado a cada década, sobretudo em função do aumento do
número de cursos de pós graduação em geografia e do consequente processo de criação e
fortalecimento de grupos e linhas de pesquisas sobre a temática no Brasil e também do
acolhimento dos temas em outras áreas, como na Educação. Com a criação dos Cursos de Pós
Graduação em Geografia Física e Humana da Universidade de São Paulo em 1971 e, em 1972,
do Programa de Pós Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ) ocorrem processos de fortalecimento e ampliação de pesquisas em várias temáticas,
inclusive daquelas ligadas ao ensino de geografia e cartografia. Assim, podemos afirmar que,
apesar de já termos produção sobre o tema há mais ou menos 90 anos, como levantou Archela
(2000), ela será efetivamente fortalecida e ampliada a partir dos anos 1970, com a criação dos
cursos de pós graduação em geografia no Brasil.

9
Levantamento realizado pela profa. Rosely S. Archela (2000) em sua tese de doutoramento intitulada Análise da
cartografia brasileira: bibliografia da Cartografia na Geografia no período de 1935-1997.
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Até o final da década de 1980 havia apenas oito programas de Pós graduação em
geografia implantados: cinco na região sudeste, dois na nordeste e um na sul. De acordo com
Duarte (2016), uma significativa produção nacional no campo da pós graduação relacionada a
temáticas ligadas ao ensino da geografia e da cartografia , iniciada na década de 1970, será
ampliada de forma mais intensa na década de 1990, com o aumento do número de cursos de
Pós Graduação em Geografia no Brasil e também pelo fato de que muitos “[...] mestres e
doutores tornaram-se professores-pesquisadores em universidades brasileiras e passaram a
pesquisar e orientar pós-graduandos nessa área do conhecimento.” (DUARTE, 2016, p. 6).
Somado a esta conjuntura acadêmica da pós graduação, compunham o ambiente político
que marcou sobremaneira esta produção a partir do final dos anos 1970 em diante:
questionamentos, enfrentamentos e esboroamento da ditadura militar no Brasil; ampliação e
fortalecimento dos grupos e movimentos sociais organizados; amplos e intensos debates sobre
os papéis das escolas e dos professores no contexto das transformações sociais fundadas na
cidadania e democratização do país; escolanovismo piagetiano10 se colocando como resposta
possível à “escola nova” e se fortalecendo por meio das pesquisas realizadas nos programas de
pós graduação; a crítica à geografia acadêmica e escolar que se fazia e se faz, fundada nas mais
diversas compreensões e interpretações do marxismo; organização de vários segmentos da
sociedade civil na defesa e luta de direitos no contexto da elaboração da Carta Constitucional
de 1988 – sobretudo no tocante à reforma agrária, aos direitos dos povos indígenas e à
universalização da educação básica, entre outros.
Algumas produções acadêmico científicas e dos movimentos e grupos sociais
organizados vão dialogar, interrogar e constituir neste ambiente de tensionamentos e de criação,
debates, enfrentamentos e lutas sociais e políticas. O desdobramento destas práticas pode ser
visto na produção de mapas utilizados como instrumentos de explicitação dos modos de
existências, das diversas formas de organização sócio territorial, dos conflitos por terras e
territórios. Assim, grupos de mapeadores são constituídos para produzir mapas coletivos e
comunitários, cujo objetivo pode ser sintetizado na luta por dignidade das existências.
Muitos elementos passam a compor o repertório-ambiente de crítica à geografia e
cartografia ensinadas a partir dos anos 1980, sobretudo aqueles fundados na matriz teórico-
metodológica marxiana, ainda que com diferentes interpretações e desdobramentos didático
pedagógicos. O movimento de crítica à geografia, conhecido genericamente como geografia

10
Ghiraldelli (2006) indica em seu livro que Lauro de Oliveira Lima foi um dos primeiros educadores a “[...]
contribuir de forma mais decisiva para que o “escolanovismo piagetiano” fosse divulgado entre nós” tendo como
um dos seus livros mais importantes “A escola secundária moderna”, que teve sua primeira edição em 1962
chegando até a décima em 1976.”
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crítica11 foi um, dentre muitos outros elementos, que influenciou na produção dos trabalhos e
pesquisas voltados para o ensino da geografia e da cartografia, por meio dos quais se passa a
interrogar os mapas, sua produção e a forma como os mesmos são utilizados em sala de aula,
apresentados em livros didáticos e outros materiais. A cartografia para o ensino se vê, portanto,
neste contexto, questionada nas suas reflexões e fazeres.
Os debates acerca da compreensão da materialidade de vida dos educandos e educandas,
como ponto de partida no processo de ensino e aprendizagem; da dialética entre a realidade -
espaço vivido, percebido e concebido, em uma perspectiva lefebvriana (2006, 1991) e os
conhecimentos historicamente produzidos; dos conceitos cotidianos e científicos da geografia;
da vivência dos educandos fundados na compreensão da formação social da mente (Vygotsky,
1991a, 1991b); das relações interdeterminantes entre pensamento e linguagem, entre outros,
certamente influenciaram na produção de respostas aos referidos questionamentos.
É importante destacar também o impacto das obras que fizeram críticas ao ensino da
geografia e da cartografia, - a exemplo de Yves Lacoste (1988) – em seu livro intitulado A
geografia: isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra e de Ruy Moreira em obra
intitulada O discurso do avesso – Para a crítica da Geografia que se ensina (1987) e outras, no
adensamento do debate em foco. Fonseca (2004) vai apontar em seu trabalho a crise e
incongruências entre as matrizes teórico metodológicas da geografia crítica, as representações
cartográficas utilizadas no ensino da geografia, bem como dos encaminhamentos
metodológicos sugeridos na sua abordagem:

De nossa parte, como fica nítido nas análises até aqui empreendidas, nos
parece certo que essa crise na relação Cartografia e Geografia tem, antes de
tudo uma fundamentação teórica que resiste a vir à luz do dia. Em termos
gerais, ela se localiza na rigidez da Cartografia em vista de uma Geografia que
se transforma. Para se ir além dessa afirmação, todo um esforço teórico de
grande fôlego precisa ser desenvolvido. [...] (FONSECA, 2004, p. 221, grifo
nosso)

Eis um dos desafios a serem encarados pelos pesquisadores e estudiosos da geografia e


cartografia ensinadas, objetivamente explicitado pela mesma autora:

11
Esta questão é bastante complexa pois o movimento de crítica à geografia que se produziu no Brasil não era
homogêneo, tampouco composto pelos mesmos entendimentos e encaminhamentos teórico-metodológicos. Este
tema merece tratamento aprofundado, impossível de ser feito neste texto, contudo, é importante deixar registrado
que, a despeito de ser denominado no singular como geografia crítica, este movimento era bastante heterogêneo,
tanto no tocante às compreensões, interpretações e usos da teoria marxiana, quanto no que se refere ao
entendimento das relações entre os pesquisadores e os movimentos populares, sobre o ensino de geografia e
cartografia, entre ciência e política, entre outros temas.
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Entendemos que essa vinculação entre a Cartografia e à questão do


desenvolvimento cognitivo da criança não impede que as discussões sobre a
Cartografia escolar deixem de se nutrir também pelos conhecimentos em
transformação no interior da Geografia. Se a Geografia clássica pode ser
comunicada, com suas abstrações, tal como o espaço euclidiano, por meio da
Cartografia na fase pré-abstração, que razão lógica haveria para que uma
Geografia renovada, articulada com uma Cartografia renovada, também não
fosse ensinada? Se os responsáveis pela elaboração de uma Cartografia escolar
(que são acadêmicos) são tão suscetíveis aos novos paradigmas pedagógicos,
não o poderiam ser igualmente em relação à renovação epistemológica da
Geografia, sem ferir a autonomia da Geografia escolar? (FONSECA, 2004, p.
143, grifo nosso)

A autora chama a atenção para um hiato existente entre as transformações


epistemológicas da geografia, no contexto do movimento de crítica à mesma, que produziu uma
geografia renovada e a produção acadêmico científica sobre a cartografia voltada ao ensino.
Verifica a presença de novos paradigmas pedagógicos nesta produção que, em grande parte se
fundamenta na perspectiva piagetiana. Contudo, focada em grande parte em questões de ordem
metodológica ligadas ao como ensinar, acabou por passar ao largo das reflexões, debates e
encaminhamentos teórico metodológicos, epistemológicos e ontológicos realizados no contexto
da renovação epistemológica da Geografia. O título de sua tese é emblemático e sintetiza a
análise desta produção: A inflexibilidade do espaço cartográfico. Assim, chama a atenção para
uma certa tradição na abordagem da cartografia ensinada e, ao mesmo tempo, aponta para um
dos desafios da produção acadêmica da área: pensa-la a partir dos debates e referências da
renovação epistemológica da geografia:

Os trabalhos acadêmicos que examinamos sobre Cartografia escolar têm como


eixo o domínio de representações espaciais e o domínio de estruturas
cognitivas. Não é incomum, como vimos, atribuir-se a esse gênero de trabalho
a condição de tributário da Geografia crítica. Talvez, uma caracterização
interessante dessa abordagem seja apreendida por uma metáfora. A de que eles
pertenceriam a uma espécie de “paradigma pedagógico”, na medida em que:
1. investem claramente nas relações entre Cartografia e Pedagogia e não nas
conexões entre Cartografia e Geografia e; 2. porque se constituíram numa
forma de cultura dentro da produção acadêmica da Geografia. Sob a vigência
desse paradigma, o como se ensina predomina sobre o que se ensina. O que se
sugere com esse paradigma é que a pertinência da Cartografia no ensino de
Geografia ficaria mais visivelmente ratificada, o que por si só, se constituiria
numa revalorização da Cartografia geográfica, já que se afirma que por esse
caminho se desenvolveriam habilidades, competências e espírito crítico junto
aos alunos. [...]
O “paradigma pedagógico” substituiu os geógrafos, inclusive os da renovação,
pelos pedagogos e suas fontes, com sua linguagem e repertório. Substitui-se a
exploração científica da dimensão espacial da sociedade pela busca de
formulações como inteligência espacial e o pensamento espacial, como

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naturalmente ligados à Geografia. Neste sentido, essa literatura acadêmica de


Cartografia escolar não pode ser caracterizada como teórica, se o alvo for a
construção, a valorização ou a ressignificação de uma Cartografia Geográfica.
[...] (FONSECA, 2004, p. 133-143, grifo nosso)

A produção acadêmico científica da cartografia escolar vinculada ao que a autora


denomina de “paradigma pedagógico” está vinculada ao escolanovismo piagetiano (anos 1960),
assumido ao longo de mais de meio século como referencial educacional por um amplo espectro
de instâncias, instituições, unidades da federação, municípios e sujeitos que atuaram e atuam
especificamente na produção curricular e didática (currículos, propostas pedagógicas, livros
didáticos e paradidáticos, entre outros). É inegável a forte e duradoura influência do
escolanovismopiagetiano no trabalho em sala de aula nas escolas de educação básica, em função
sobretudo da constituição de muitos grupos de pesquisas nas Universidades, da assunção de
referências pedagógicas e epistemológicas neste campo pelo Ministério da Educação brasileiro
e por redes estaduais e municipais de ensino, entre outros motivos que se retroalimentam.
Muitos pesquisadores que assessoraram e assessoram as políticas públicas curriculares em
âmbito nacional, estadual e municipal, que orientam e sustentam grupos de pesquisas sobre a
temática e trabalham em cursos de formação inicial e continuada de educadores e educadoras
tem como referencial o escolanovismo piagetiano.
Podemos afirmar que todos os componentes curriculares, uns mais que outros, sofreram
forte influência do escolanovismo piagetiano e, com a cartografia escolar, criada como área de
pesquisa e valorizada desde os anos 1970, não poderia ser diferente. Desse modo, uma parte
significativa da produção da cartografia escolar foi balizada por esta referência. É inegável que
a mesma auxiliou na produção de inúmeros trabalhos que enfatizavam e enfatizam aspectos
didático pedagógicos que propõem atividades sobre como ensinar e trabalhar com
representações gráficas e cartográficas, ou sobre como os educandos e educandas respondem a
determinados exercícios propostos, aproximando-se de inúmeras pedagogias, dentre elas do
tecnicismo. Estas abordagens centraram-se nas metodologias de ensino porque estas eram e são
passíveis de controle, aspecto importante no regime militar e, atualmente, no contexto do
projeto educacional neoliberal.
Entendemos que um dos grandes desafios colocados para a geografia e cartografia
ensinadas, considerando os acúmulos de estudos e discussões da crítica às geografias e
cartografias que se fazem e ensinam, reside no debate de ambas em uma perspectiva política
que evidenciam: uma escola criada pela e para as elites e imposta, sem mudança de forma e
conteúdo para as diversas frações da classe que vive do trabalho e de grupos cujos modos de
vida estão vinculados às suas ancestralidades e aos territórios tradicionalmente ocupados.

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Afinal, tradicionalmente, o ensino de geografia tem colaborado para formar estrangeiros nos
territórios em que vivem, na medida em que não produz chaves de entendimento dos mesmos
(Autor, 2004). Poucos educandos e educandas se identificam com os conteúdos abordados nas
aulas e com as espacialidades apresentadas nos mapas... Por mais que se tenha produzido uma
série de estudos e pesquisas sobre o ensino de geografia e cartografia muitos desafios ligados
aos mesmos ainda permanecem.
Como afirmei em minha tese de doutoramento (Autor, 2004), uma parte significativa
dos desafios do processo de ensino e aprendizagem ligados à geografia e cartografia ensinadas
tem fundamento ontológico e epistemológico e não APENAS metodológico, como defendem e
fazem crer perspectivas fundadas no escolanovismo piagetiano, no tecnicismo e outras.
Acreditar que as aprendizagens dependem apenas de metodologias ativas implica em uma
postura de negação da dimensão política da instituição escolar e, sobretudo, dos conteúdos de
estudos, fundamentais à leitura crítica e emancipadora do mundo, como dizia o mestre Paulo
Freire (1989) e os pesquisadores do campo da pedagogia e psicologia histórico crítica.
A realidade vivenciada pelos sujeitos é a mesma, contudo, não é a mesma do ponto de
vista dos lugares e territorialidades que ocupam. Por exemplo, a industrialização no Brasil é um
fenômeno vivenciado e apreendido na diferencialidade da produção espacial promovida pelos
donos das indústrias, pelos sujeitos que nelas trabalham para sobreviver, pelos circuitos de
distribuição, comercialização e consumo. A questão agrária é a mesma, mas vivenciada,
percebida e representada de modo diferenciado pelos que defendem as cercas do latifúndio e/ou
da produção monocultora e, pelos do lado de cá, cujas interdições sobre seus territórios de vida,
aliados às débeis políticas públicas voltadas à dignidade das existências os obrigam a migrar
dos campos para as cidades ou mesmo para outras regiões. Como nos lembra Lefebvre em seu
livro Lógica Formal e Lógica dialética, o espaço é o mesmo, mas, ao mesmo tempo, não é o
mesmo dependendo das relações sócio territoriais que os sujeitos produzem e nas quais estão
imiscuídos. A terra tem valor de uso para indígenas, quilombolas e outros PCTs e tem valor de
troca no circuito mercantil do capital. Apreender unilateralmente a realidade (metafísica para
Lefebvre, 1991), implica em restringir o ato do conhecimento, o que significa “Propor um saber
absoluto, ou uma substância inicial (do sujeito ou objeto erigidos em verdades metafísicas), é o
que define uma ideologia [...]”. (LEFEBVRE, 1991, p. 28). Os efeitos da unilateralidade de um
discurso geográfico único e de uma cartografia única sobre os territórios, ocupados por
diferentes povos, evidencia o caráter de classe dos mesmos pois: “[...] Ela nega o resto do mundo,
esquece-o ou finge esquecê-lo. Fixando-se no pouco que atinge, o pensamento nega o movimento
e nega seu próprio movimento. Assim, elimina (aparentemente) a contradição dialética.”

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(LEFEBVRE, 1991, p. 266). Eis a questão ontológica e epistemológica cujo debate e adensamento
de reflexões se faz necessário nos estudos da cartografia e geografia ensinadas. É neste contexto
que a produção do que se conhece como “geografia crítica” e os estudos das cartografias produzidas
pelos e com os movimentos e grupos sociais organizados podem auxiliar a adensar os debates que
não foram realizados pelo “paradigma pedagógico” no qual se funda uma parte significativa dos
trabalhos da cartografia escolar. Este, ao meu ver, é o maior desafio da cartografia escolar pensada
na perspectiva da crítica à geografia.
A caminhada com os movimentos sociais, sobretudo os do campo (indígenas,
quilombolas e Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra/MST) nos ensinou que as
escolas devem ser pensadas e materializadas a partir das demandas do campo popular... Este
processo de convivência e de trabalho conjunto nos ensinou também a compreender que tais
movimentos pensam escolas e processos educativos para a compreensão das espaço
temporalidades do tempo presente, a fim de que possam agir na defesa de seus territórios e
modos de existir e resistir. Não por acaso, pensam a escola e os processos educativos como
totalidades, por isso disputam: políticas e programas públicos; leis em âmbito federal, estadual
e municipal; prédio de escolas; conteúdos relevantes para compreender sua materialidade de
vida; editais de contratação docente, entre tantos outros elementos que, juntos, têm auxiliado a
materializar, fortalecer e defender escolas que atendam às suas demandas e lutas e que auxiliem
a elaborar instrumento de leitura crítica da realidade excludente que vivenciam.
Afinal, que escolas, pais, mães, familiares e/ou responsáveis, lideranças políticas dos
referidos grupos querem para seus filhos e filhas? Não há uma única resposta, pois plurais são
os povos e suas demandas por escolas e educação – fenômeno mais amplo que a escolarização.
Assim, compilei algumas manifestações destes povos quanto às escolas que querem e que estão
construindo, que nos auxiliam a construir debates, reflexões e trabalhos em torno da geografia
e cartografia ensinadas. A letra da canção de Gilvan Santos, intitulada Construtores do futuro
constitui uma boa síntese das demandas populares:

Construtores do futuro – Gilvan Santos


Eu quero uma escola do campo Eu quero uma escola do campo
Que tenha a ver com a vida com a gente Onde o saber não seja limitado
Querida e organizada Que a gente possa ver o todo
E conduzida coletivamente. E possa compreender os lados.
Eu quero uma escola do campo Eu quero uma escola do campo
Que não enxerga apenas equações Onde esteja o símbolo da nossa semeia
Que tenha como chave mestra Que seja como a nossa casa
O trabalho e os mutirões. Que não seja como a casa alheia.
Eu quero uma escola do campo Eu quero uma escola do campo
Que não tenha cercas que não tenha muros Que não tenha cercas que não tenha muros
Onde iremos aprender Onde iremos aprender
A sermos construtores do futuro. A sermos construtores do futuro.

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O sábio professor Gersen Baniwa12 em entrevista concedida ao Canal Futura em 2017,


também se manifesta em relação à educação demandada pelo seu povo: “A educação não pode
deixar de trabalhar a importância do território, ela não pode ser apagadora de conhecimentos,
deve trabalhar os conhecimentos escolares a partir das práticas e vivências indígenas”. No
mesmo programa, professores indígenas do nordeste brasileiro se pronunciam: “Nós queremos
a educação, nós queremos a escola, mas não é qualquer escola, não é qualquer educação. Nós
queremos uma escola e uma educação do nosso jeito”.
Estas referências transcritas, evidenciam a importância da educação popular como
campo profícuo na construção de respostas e encaminhamentos possíveis à geografia e
cartografias ensinadas. Lembremo-nos do entendimento emblemático explicitado pelo jovem
amazônida que participou das reuniões de base, organizadas por Alfredo Wagner Berno de
Almeidade junto às comunidades impactadas pelo Projeto Grande Carajás: “Este é o mapa que
devia ter na escola!” (ALMEIDA A., 1993, p. XXV). Esta frase expressa a unidade escalar, a
geografia e cartografia que muitos querem em sala de aula pois auxiliam a dar sentido e
significado à realidade que vivem, constituindo preciosa chave de leitura da mesma.
Por fim, gostaria de evidenciar que os debates e estudos acerca da cartografia e
geografias ensinadas não podem ser reduzidos às metodologias de ensino, sob pena de fortalecer
processos de controle das práticas educacionais na sala de aula. É preciso trazer para o debate
questões de ordem ontológica, epistemológica e teórico metodológica se quisermos produzir
efetivamente um ensino que faça sentido nas vidas dos educandos e educandas, eis o grande
desafio da cartografia escolar no ensino de geografias que se querem críticas.

À guisa de conclusão

Nesta reflexão, mostrei que a produção e o acesso aos mapas, principalmente aqueles
de pequena escala, desde há muito tempo, foram marcados por disputas políticas e econômicas,
sobretudo no contexto do modo capitalista de produção pois constituam e ainda constituem
instrumentos fundamentais para o avanço e adensamentos das relações capitalistas nos
territórios. Evidenciei também que os mapas antigos nos mostram a necessidade ancestral dos
grupos humanos de saberem a localização de fenômenos no espaço para nele sobreviver,
indicando a relevância de se usar nas aulas de geografia mapas em grande escala, juntamente

12
Gersem José dos Santos Luciano é indígena do povo Baniwa, mora em São Gabriel da Cachoeira (AM),
município no qual foi Secretário Municipal de Educação, é mestre em antropologia social e uma grande liderança
militante no campo da educação escolar indígena.
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com aqueles produzidos em pequena escala, via de regra, utilizados com exclusividade no
ensino deste componente curricular, o que, em grande parte, ocultava e oculta os processos e
fenômenos vivenciados por muitos povos, dificultando o entendimento dos mesmos, bem como
suas ações nos territórios de vida.
Evidenciei também que os ativismos cartográficos constituem expressões sócio
territoriais das lutas populares nos conflitos por terras, territórios, reconhecimento e
redistribuição de direitos nas lutas por dignidade de existência. É neste contexto de produção
de mapas em grande escala que emerge, o que tenho denominado de geografias e cartografias
populares. Estas, constituem ações profícuas que auxiliam a interrogar a cartografia e geografia
ensinadas, seus objetivos pedagógicos e papéis em uma sociedade marcadamente excludente.
Tendo como base o exposto, problematizei os desafios da cartografia escolar no
contexto da crítica à geografia, defendendo que um deles é o necessário adensamento de
debates, reflexões e estudos de ordem ontológica e epistemológica que podem e devem ser
subsidiados pelos estudos vinculados ao movimento de crítica à geografia produzida e ensinada,
pelos ativismos cartográficos que interrogam as pesquisas da cartografia e geografia ensinadas
e as práticas pedagógicas delas desdobradas, pelas teorias da comunicação cartográfica entre
outros elementos que auxiliem a adensar este campo de reflexão e produção. Entendemos que
enfrentar este desafio é fundamental para que a cartografia e geografia ensinadas constituam
elementos chave de leitura para a compreensão do mundo em que vivem nossos educandos e
educandas a fim de que possam co-criar e fortalecer espacialidades em um mundo onde caibam
vários mundos.

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Discutindo a Geografia Crítica na Prática de Ensino

DISCUSSING CRITICAL GEOGRAPHY IN TEACHING PRACTICE

João Manoel de Vasconcelos Filho (2)

Maria Francineila Pinheiro dos Santos (1)


Mariana Guedes Raggi (2)

(1)
Doutora em Ensino de Geografia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS e Pós
Doutora pela Universidade de Valência/Espanha. Professora do Programa de Pós Graduação em
Geografia - PPGG/UFAL e Professora Colaboradora do Programa de Pós Graduação em Geografia -
PPGGEO/UFPI. Professora Adjunta do Curso de Geografia Licenciatura da UFAL. Líder do Grupo de
Pesquisa em Educação Geográfica - GPEG/UFAL. Coordenadora do Laboratório de Educação
Geográfica do Estado de Alagoas - LEGAL/UFAL.
E-mail: francineilalap@gmail.com
(2)
Doutora em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo e Professora de Metodologia de Ensino
da Geografia no Centro de Educação da UFAL. Membro do Grupo de Pesquisa em Educação Geográfica –
GPEG. Coordenadora do Núcleo de Educação Ambiental/UFAL.
E-mail: mariana.raggi@cedu.ufal.br

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Resumo

Estabelecer reflexões acerca da Geografia Crítica no estágio supervisionado é o objetivo central desse texto.
Diante disso, o caminho a percorrer neste estudo vai na seguinte direção: investigar como os discentes do curso
de Geografia Licenciatura da Universidade Federal de Alagoas discutem-na e/ou percebem-na ao longo do
estágio no ambiente escolar. Sabe-se que o estágio supervisionado objetiva possibilitar um aprendizado
imperativo para que os licenciandos possam refletir acerca da docência, teorizando sobre o seu objeto de estudo
e experenciando o ensino na perspectiva da realidade que vivenciará na condição de docente. Mas, efetivamente,
isto não vem ocorrendo de modo satisfatório, tendo em vista os inúmeros problemas e/ou desafios vivenciados,
nos cursos de licenciatura em todo o país, os quais, por vezes, tem inviabilizado a concretização de ações que
coadunam com a formação docente de qualidade. Sendo assim, reflexionar sobre como vem sendo discutida
e/ou não a Geografia Crítica no âmbito do estágio supervisionado, oportuniza o entendimento de demais
questões, que podem estar, diretamente e/ou indiretamente, associadas aos percalços encontrados no ambiente
escolar.

Palavras-chave
Estágio Supervisionado; Geografia Crítica; Licenciatura.

Abstract
Establishing reflections on Critical Geography in the supervised internship is the central goal of this paper.
Therefore, the followed path in this study goes in the following direction: to investigate how the students of
Degree in Geography course at the Federal University of Alagoas perceive and/or discuss it during the internship
in the school environment. It is known that the supervised internship aims to enable an imperative learning so
that the undergraduate students can reflect on teaching, theorizing about their object of study and experiencing
teaching in the perspective of the reality they will experience as a teacher. But, indeed, this has not been
happening satisfactorily, in view of the numerous problems and/or challenges experienced in the course of it,
in degree courses all over the country, which at times has prevented the implementation of consistent actions
of qualified teacher training. Therefore, reflecting on how Critical Geography has been discussed or not within
the scope of supervised internship provides an opportunity to understand other issues, which may be directly
and/or indirectly associated with problems found in the school environment.

Keywords:
Supervised internship; Critical Geography; Degree Course.

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Iniciando o Diálogo

A
importância de se pensar a centralidade do estágio supervisionado dentre outras
questões, perpassa pela premissa de que este representa uma parte essencial e
substancial do currículo na formação inicial docente, tendo em vista a carga
horária total de 400 horas conforme a Resolução CNE/CP 001/2002.
Este estudo problematiza a presença da concepção teórica metodológica da Geografia
Crítica ao longo da experiência vivenciada no estágio supervisionado, analisando as
potencialidades de uma formação cidadã entre os futuros docentes do curso de Geografia
Licenciatura da UFAL.
Para isso, é preciso compreender o papel do estágio supervisionado nos cursos de
licenciatura, o modo como os licenciandos atuam nele, e qual o entendimento destes sujeitos
quanto a importância e/ou não da Geografia Crítica na prática docente?
Este texto está consubstanciado na pesquisa qualitativa exploratória, o qual conta com
aportes teóricos de estudiosos no assunto, a saber: Cavalcanti (2008), Lacoste (2006), Martins
(2014), Pimenta (2010), e Santos (2012, 2018). Como procedimentos metodológicos foram
realizados leituras bibliográficas, aplicação de questionários com questões abertas com um total
de 23 estagiários do curso de Geografia Licenciatura da Universidade Federal de Alagoas -
UFAL, elaboração de quadros e análises dos achados da pesquisa.
A pesquisa empírica foi realizada com dois grupos de discentes: o primeiro com 13
licenciandos do estágio 1 e 2, que dentre outras atividades, observam as aulas de Geografia
ministradas pelos professores da escola no Ensino Fundamental 2, e no Ensino Médio,
respectivamente. O segundo contendo 10 licenciandos do estágio 3 e 4, os quais ministram as
aulas de Geografia (regência) em turmas do Ensino Fundamental 2 e do Ensino Médio,
respectivamente.
Assim, foram apontadas várias indagações direcionadas aos licenciandos do estágio 1 e
2, que compreendem: nas aulas observadas durante o estágio supervisionado 1 e 2, com qual
frequência a abordagem da Geografia Crítica encontra-se presente? No decorrer das aulas
ministradas pelos professores das escolas, vocês consideram que as atividades desenvolvidas
promovem a reflexão crítica dos estudantes? Os professores das escolas utilizam referências do
cotidiano para exemplificar os conteúdos de Geografia trabalhadas em sala de aula? Vocês
consideram que isso promove a criticidade dos estudantes? Em sua opinião, as aulas observadas
nas escolas durante o estágio supervisionado 1 e 2, tem contribuído para a compreensão crítica
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da sociedade? Na sua opinião, existem dificuldades que impossibilitam os professores da escola


de desenvolver a Geografia Crítica no ambiente escolar?
Quanto aos licenciandos do estágio 3 e 4, questionamos: as estratégias de ensino e os
recursos didáticos utilizados por vocês em sala de aula favorecem o pensamento crítico-
reflexivo dos alunos? Vocês utilizam referências do cotidiano para exemplificar os conteúdos
de Geografia trabalhados em sala de aula? Vocês consideram que isso promove a criticidade
dos alunos? Em sua opinião, as aulas desenvolvidas no estágio supervisionado têm contribuído
para a compreensão crítica da sociedade? Na sua opinião, existem dificuldades que
impossibilitam vocês de desenvolver a Geografia Crítica nas aulas ao longo do estágio
supervisionado?
E por fim, indagamos os licenciandos dos estágios supervisionados 1, 2, 3 e 4, se na
opinião deles, a Geografia Crítica contribui na construção do estudante enquanto cidadão.
Assim, este texto, intenciona, além da discussão teórica, a investigação sobre as
concepções dos licenciandos dos estágios supervisionados 1, 2, 3 e 4 acerca da Geografia
Crítica na escola voltada para a construção de professores e estudantes críticos, criativos e
sujeitos conscientes dos seus direitos e deveres perante a sociedade.

O Estágio Supervisionado em Geografia

A formação inicial docente no Brasil passou por uma reestruturação decorrente de


algumas diretrizes e/ou resoluções, dentre elas, destacam-se o Parecer CNE/CP 009/2001 e a
Resolução CNE/CP 001/2002, que dispõem dos princípios que orientam a organização e
estruturação dos cursos de licenciatura de graduação plena, apontando as competências e
conhecimentos necessários para o desenvolvimento profissional, a organização institucional da
formação de professores e as diretrizes para a estruturação da matriz curricular.
Estes dois documentos foram fundamentais para um processo autônomo e de identidade
própria para a formação de professores, pois possibilitou que os cursos de licenciatura
ganhassem projeto especifico e currículo próprio.
A formação inicial docente deve “incorporar referenciais no campo das dimensões
econômicas, sociais e culturais, com uma visão de mundo que incorpore o lugar onde vivem os
alunos e docentes, as singularidades e os conflitos de valores” (CASTELLAR, 2010, p. 40).
Desse modo, devemos estar atentos à realidade dos nossos estudantes e aos valores culturais e
sociais no qual estes se encontram imersos, na tentativa de que, a partir do seu cotidiano, possam
realizar suas leituras de mundo.

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Nesta perspectiva, a formação inicial docente em Geografia deve estar pautada no


intuito de “articular teoria e prática, formando o professor-pesquisador e possibilitando o
estágio como lócus da práxis docente” (SANTOS, 2012, p. 55). Pois, apesar da teoria e da
prática serem de naturezas distintas, ambas se interpenetram. E neste contexto, se faz necessário
que o professor tenha o domínio dos aportes teóricos, os quais são essenciais para subsidiar sua
prática docente.
Pimenta e Lima (2010, p. 34) apontam que “o conceito de práxis leva a intervenção na
vida da escola, dos professores, dos alunos e da sociedade”. Partindo desta concepção o
desenvolvimento do estágio supervisionado como uma atividade investigativa, envolve
reflexão e viabiliza a práxis docente consubstanciada numa formação articulada com diferentes
posturas educacionais, porém com uma mesma finalidade: a formação docente qualitativa que
objetiva aos diversos saberes contemporâneos.
Nesta discussão, Santos (2018, p. 84) salienta que o “Estágio Supervisionado representa
momento essencial da formação inicial docente, na medida em que possibilita a articulação
teoria-prática, o fortalecimento da identidade docente e a reflexão acerca da docência”.
Continuando a discussão sobre o que consiste o estágio, Cavalcanti (2008, p.93) destaca o
mesmo como um “[...] momento teórico-prático de realizar intervenções criativas, ou pesquisas,
a partir de situações-problema, num trabalho mais colaborativo entre equipes formadas por
professores formadores de licenciaturas, professores de educação básica e estagiários”. Sendo
assim, o estágio supervisionado configura-se enquanto momento propício para a articulação
entre as teorias desenvolvidas na universidade e as práticas educativas realizadas no ambiente
escolar, fazendo com que os futuros professores de Geografia percebam a importância destas
na profissão e, futuramente na sua práxis docente.
Vale salientar que o estágio supervisionado é uma atividade obrigatória, o qual deve ser
realizado em escolas de Educação Básica, preferencialmente em escola pública. Segundo o
Parecer CNE/CP 009/2001, o estágio é visto como um momento de formação docente, seja pelo
exercício direto in loco, seja pela presença participativa em ambientes próprios de atividades
daquela área profissional, sob a responsabilidade de um docente já habilitado.
A obrigatoriedade do estágio, e sua regulamentação, aponta avanços não somente no
aumento da carga horária, atualmente de 400 horas, mas também no fato dos estágios
supervisionados ocorrerem a partir do início da segunda metade do curso, possibilitando ao
estudante vivenciar a prática, não a deixando somente para o final do curso, como era
anteriormente no modelo conhecido como 3+1.

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Para a realização dos estágios supervisionados nas escolas, conforme o Parecer CNE/CP
009/2001: “é preciso que exista um projeto de estágio planejado e avaliado pela universidade e
escolas, com objetivos e tarefas claras, na qual as duas instituições assumam responsabilidades
e se auxiliem mutuamente” (BRASIL, 2001, p.58). Neste âmbito, o estágio deve se constituir
em um momento de preparação para o estudante, no qual é imprescindível a integração entre
professores orientadores e tutores no intuito de promover a qualificação profissional dos futuros
docentes.
No caso específico do curso de Geografia Licenciatura da UFAL, o estágio
supervisionado é dividido em quatro etapas, a saber: estágio 1, 2, 3 e 4, cada um com duração de
100 horas, sendo de responsabilidade do professor orientador o encaminhamento e
acompanhamento efetivo das atividades desenvolvidas pelos estagiários.
No que se refere ao encaminhamento, este deve fazer o levantamento das escolas e
horários referentes as aulas de Geografia existentes nas instituições de ensino selecionadas,
manter contato com a escola que irá receber o estagiário, e encaminhá-lo através de documentação
padrão elaborada pela Coordenação de Estágio. Em relação ao acompanhamento, o professor
orientador deverá realizar visitas periódicas ao ambiente escolar; organizar as fichas de frequência
preenchidas pelo professor supervisor da escola; receber os relatos de vivência dos licenciandos
(estágio 1 e 2); receber os planejamentos de aula dos estagiários (estágio 3 e 4), os quais devem
ser entregues uma semana antes de cada aula ministrada; e, por fim, receber os relatórios de
conclusão de estágio a serem entregues ao final de cada semestre letivo.
No que diz respeito ao professor supervisor da escola, este deve acompanhar os estagiários
na escola, tanto nas observações das aulas (estágios 1 e 2) quanto no período de regência (estágios
3 e 4) assistindo as aulas dos estagiários, auxiliando-os na melhoria delas, e na busca de soluções
para eventuais dificuldades. Devem também, preencher as frequências e as fichas de avaliação a
serem entregues no final do período do estágio.
A avaliação final dos estagiários consiste na parceria entre os professores das duas
instituições envolvidas, nela deve ser considerada a ficha de avaliação preenchida pelo professor
supervisor da escola, na nota final do licenciando computada pelo professor orientador da
universidade.
Diante desta breve discussão acerca da formação inicial docente, do estágio
supervisionado, e especificamente da estrutura do mesmo no curso de Geografia Licenciatura da
UFAL, partiremos a seguir para os achados da pesquisa, por meio dos diálogos com os
licenciandos dos estágios 1, 2, 3 e 4 do supracitado curso.

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As Concepções dos estagiários sobre a Geografia Crítica

Dialogar com os licenciandos do Curso de Geografia sobre a presença da concepção


teórica metodológica da Geografia Crítica ao longo da experiência dos estágios supervisionados
é de extrema relevância, pois propicia um “despertar” nos licenciandos para questões que
permeiam a profissão docente.
A concepção teórica metodológica da Geografia Crítica inaugura, nos Estados Unidos
e na França, ao longo da década de 1960, um novo discurso na trajetória de se pensar e de se
ensinar Geografia na Escola Básica. Esse discurso surge no Brasil no final da década de 1970
e revela grande repercussão nas práticas dos docentes de Geografia.
A Escola Básica, até esse momento, apresentava uma disciplina de Geografia inspirada
na influência de uma Geografia Tradicional promovida na Alemanha e na França. Apesar da
sua origem está relacionada diretamente a um contexto político vivenciado pela Alemanha no
processo de consolidação de seu Estado, pode-se afirmar que historicamente a disciplina se
consolida como descritiva, mnemônica, omitindo seu forte viés ideológico. “Uma disciplina
maçante, mas antes de tudo simplória, pois, como qualquer um sabe, em geografia nada há para
entender, mas é preciso ter memória” (LACOSTE, 2006, p. 21).
O compromisso da Geografia era, sem dúvida, desvendar aos representantes do poder
conhecimento espacial a fim de facilitar as conquistas e o controle territorial. Porém, a escola
desenvolve em seus espaços uma disciplina atrelada a práticas pedagógicas desconectadas da
política e das estratégias territoriais de poder, legitimando apenas um campo do saber
comprometido com as feições e características naturais dos espaços. Nesse sentido, o alcance
da disciplina se revela limitado a práticas despolitizadas e descomprometidas com as
problemáticas socioespaciais presentes nos espaços cotidianos e por esse motivo
desinteressantes, e muitas vezes inexpressivas ao corpo discente que não a percebe como parte
da sua vida citadina.
O resultado desse distanciamento do viés político presente no saber geográfico promove
entre estudantes da escola básica uma aversão ao conhecimento geográfico, pois não o
reconhece como saber estratégico fundamental as suas práticas cotidianas.
Assim, pode-se afirmar que a influência francesa e alemã que adentra os espaços
escolares pauta uma das dicotomias mais graves no campo do saber geográfico que é a
fragmentação entre sociedade e natureza. Essa herança promove discussões superficiais sobre
as problemáticas espaciais presentes na realidade contemporânea, comprometendo a formação
de estudantes cidadãos, conscientes de seu papel político na produção de um espaço de direitos.

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Entretanto, uma nova conjuntura inaugurada após a 2ª Guerra Mundial produziu


realidades e transformações socioespaciais que demandaram outras análises e reflexões. Os
métodos e as teorias da Geografia tradicional se tornaram insuficientes para interpretar e
compreender o cenário contemporâneo que se descortinava. Era preciso ampliar e ressignificar
as análises espaciais e problematizar as relações estabelecidas entre sociedade e natureza.

Os métodos e as teorias da geografia tradicional, baseados em levantamento


empíricos e estudos descritivos, tornaram-se insuficientes para dar conta de
uma nova perspectiva de ensino. Essa nova conjuntura conduziu a uma
reformulação dos pressupostos teórico-metodológicos do ensino da geografia
com o objetivo de levar os professores a superar metodologias que se centram
na transmissão mecânica dos conteúdos, com a memorização de inúmeras
informações, o que não contribui para levar os alunos a uma compreensão das
relações estabelecidas num contexto histórico, social e espacial dos
fenômenos geográficos (MARTINS, 2014, p. 65).

Nesse cenário, a Geografia assume novos olhares em relação a realidade, promovendo


análises e interpretações mais críticas do contexto socioespacial, superando as tradicionais
descrições da superfície terrestre, bem como a despolitização presente na sua retórica
acadêmica. Essas modificações promoveram uma forma de se pensar e de se praticar a
Geografia, a partir de uma metodologia inovadora de pensar os espaços, ou seja, um novo
raciocínio espacial.
Sim, um raciocínio espacial, geográfico, que conecte as escalas do local, do regional e
do global. Um pensar geográfico que relacione as escalas dos fenômenos a partir da realidade
cotidiana de nossos estudantes, privilegiando os acontecimentos de seus lugares na tentativa de
construir leituras interpretativas de uma totalidade mundo em movimento.

Estágio Supervisionado, aproximações e distanciamentos de um


fazer geográfico crítico

Investigar o papel da abordagem da Geografia Crítica nas aulas vivenciadas pelos


discentes do curso de Licenciatura Geografia da UFAL, nos estágios supervisionados 1, 2, 3 e
4 é, sem dúvida, o objetivo desse artigo. A presença do fazer geográfico, revelado pelos
estagiários, pautado numa interpretação crítica do espaço conduzirá a análise.
A partir dos questionários respondidos pelos 13 (treze) licenciandos do estágio
supervisionado 1 e 2, pode-se perceber que apenas 1 (um) estagiário afirmou que sempre o
professor(a) discute a Geografia Crítica nas aulas observadas, e 4 (quatro) ressaltaram que
ocorre na maioria das aulas. Entretanto, 5 (cinco) mencionaram que às vezes percebem essa
discussão crítica nas aulas observadas e 3 (três) destacaram que essa abordagem nunca foi
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discutida em sala de aula. As justificativas trazidas pelos estagiários podem ser destacadas no
quadro 01.

Quadro 01: Nas aulas observadas durante o estágio supervisionado 1 e 2, com qual frequência
a abordagem da Geografia Crítica encontra-se presente?

No Estágio 2 o professor trabalhou fortemente a Geografia crítica.


Foram frequentes a discussão da Geografia crítica no ensino médio por conta de conceitos
trabalhados.
No estágio 2, o professor da escola é bem conscientizado e domina os assuntos trazendo a Geografia
crítica para sala de aula.
Os professores do estágio 1 realizavam aulas com reflexões críticas sobre o assunto abordado.
A abordagem da Geografia crítica esteve presente no estágio 2, principalmente nas aulas sobre
capitalismo, socialismo e guerra fria.
A abordagem da Geografia crítica ocorreu algumas vezes no Estágio 2.
Fonte: Pesquisa Direta, 2019
Elaboração: SANTOS, 2020

A presença de uma abordagem crítica nas aulas de Geografia no Ensino Médio é


relevante entre os estagiários questionados. Essa constatação pode ser interpretada a partir de
algumas hipóteses. As temáticas geográficas no Ensino Médio aproximam muito de uma
discussão socioeconômica enfatizando problemáticas globais. Entretanto, os conteúdos do
Ensino Fundamental 2 ainda estão muitas vezes atrelados a uma interpretação fragmentada
entre sociedade e natureza, priorizando relatos descritivos da superfície terrestre.
Esse procedimento ainda presente nas aulas de Geografia no Ensino Fundamental 2,
deve ser repensado e problematizado, pois é nesta etapa de ensino que os professores de
Geografia deveriam buscar promover e potencializar, entre os estudantes da Escola Básica, um
raciocínio geográfico, espacial, capaz de pensar e interpretar os fenômenos espaciais a partir de
eventos e acontecimentos cotidianos. Essa possibilidade de abordagem deve ser trazida desde
os primeiros anos da criança na escola, a partir de representações de suas experiências diárias.
A construção das representações espaciais ampliam as possibilidades de leitura de uma
totalidade mundo em permanente transformação.
No que diz respeito as aulas ministradas pelos professores das escolas, os estagiários
salientam sua opinião acerca das implicações das atividades desenvolvidas na promoção da
reflexão crítica dos alunos (quadro 02).

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Quadro 02: No decorrer das aulas ministradas pelos professores das escolas, você considera
que as atividades desenvolvidas promovem a reflexão crítica dos alunos?

Os alunos no estágio 1 sempre eram estimulados com exemplos do cotidiano, e atividades que
despertava o interesse dos mesmos a participar efetivamente das aulas.
Os professores sempre abordavam exemplos do cotidiano, o que despertava o interesse e o poder de
criticidade dos alunos.
No Estágio 2, o professor trabalhou o conteúdo globalização, e incentivou os alunos a discutirem
problemas da atualidade.
Os professores realizam muitos questionamentos em suas aulas e atividades com questões que
instigam os alunos a refletir sobre o tema/assunto estudado.
Fonte: Pesquisa Direta, 2019
Elaboração: SANTOS, 2020

A partir dos relatos das implicações que as atividades fundamentadas criticamente em


sala de aula promovem entre os estudantes da Escola Básica, revela que os estagiários
pesquisados compreendem a importância que a escala do cotidiano apresenta ao longo do
desenvolvimento de uma análise crítica dos espaços na contemporaneidade.
Essa leitura é reiterada ao depararmos com os exemplos trazidos por esses licenciandos
de Geografia quando solicitados a comentar sobre a relação entre os conteúdos geográficos
observados durante o estágio e o cotidiano dos alunos. A presença da realidade da cidade de
Maceió, espacialidade onde localiza-se a escola, assim como dos bairros dos estudantes revela
uma preocupação dos docentes em contextualizar e conectar os conteúdos abordados na aula
de Geografia com as experiências cotidianas. Esse procedimento revela uma concepção teórica
metodológica responsável por potencializar estudantes atuantes e críticos da realidade que vive.
Essas contribuições estão no quadro 03.

Quadro 03: Os professores da escola utilizam exemplos do cotidiano para exemplificar os


conteúdos de Geografia trabalhados em sala de aula? Você considera que isso promove a
criticidade dos alunos?

No estágio 2 havia exemplos do cotidiano ao abordar conteúdos geográficos, no qual os alunos


participavam, e interagiam em sala. A partir daí, eu acredito que como conhecedores, principalmente
dos problemas sociais, eles têm a possiblidade de serem sujeitos críticos e agentes transformadores
da sociedade.
No estágio 2, o professor sempre dá exemplos, principalmente sobre Maceió. Acho que promove a
criticidade sim. Trazendo os conteúdos e intercalando-os com a realidade do aluno, eles podem
compreender melhor e daí a Geografia faz sentido para eles.
No estágio 1, o professor utilizava exemplos do cotidiano, dando exemplos dos bairros que eles
moravam, auxiliando o aluno no entendimento do conteúdo, possibilitando relacionar o conteúdo com
a sua realidade. E daí tornando os alunos um pouco críticos.
Em ambos os estágios os professores trabalharam bastante com exemplos do cotidiano do aluno para
que eles entendam a realidade do mundo.
Fonte: Pesquisa Direta, 2019
Elaboração: SANTOS, 2020

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A Geografia Crítica iluminou, como já foi revelado, entre várias questões, a importância
de se trabalhar a partir das experiências vivenciadas a fim de promover o desenvolvimento de
um novo raciocínio espacial capaz de conectar as escalas do local, do regional e do global. O
lugar como dimensão espacial do vivido deve ser conectado com outras escalas espaciais a fim
de desenvolver a interpretação de que o que vivemos no local muitas vezes é produzido em
outras espacialidades, outros lugares.
Quanto as aulas observadas durante o estágio supervisionado 1 e 2, e a contribuição
destas para a compreensão crítica da sociedade pelos alunos, os estagiários explicitaram suas
opiniões no quadro 04.

Quadro 04: Em sua opinião, as aulas observadas nas escolas durante o Estágio Supervisionado
1 e 2, tem contribuído para a compreensão crítica da sociedade?

Apenas no Estágio 2, as aulas sobre globalização, o professor abordou situações econômicas e sociais
que levam a criticidade.
Devido ao professor não diversificar a aula trazendo reportagens ou questões problemas para os
alunos eles não tem tido uma compreensão crítica.
Sim, principalmente através dos problemas políticos, visando uma compreensão critica por parte dos
alunos.
Os alunos a partir de suas aulas reflexivas a que presenciei, realizaram questionamentos de problemas
socioeconômicos. As perguntas dos alunos revelam o despertar do senso crítico que inegavelmente
auxilia a compreensão crítica da sociedade.
Os professores abordaram situações sociais e ambientais com os alunos pedindo as opiniões deles e a
partir das suas vivências.
Fonte: Pesquisa Direta, 2019
Elaboração: SANTOS, 2020

A ocorrência de professores com uma visão crítica revela que a trajetória ainda não está
concluída. Ou seja, relacionar questões naturais com problemáticas socioespaciais é, como
vimos nas respostas dos estagiários, uma das dificuldades a ser enfrentada. Neste contexto, faz-
se necessário o entendimento e a discussão em sala de aula sobre as raízes da realidade desigual
da sociedade brasileira, e dos problemas vivenciados na atualidade.
Em relação as dificuldades que impossibilitam os professores da escola de desenvolver
a Geografia Crítica nas aulas, os estagiários destacaram algumas no quadro 05.
As práticas tradicionais ainda fazem parte da realidade das escolas, e essa é uma
dificuldade relevante que os professores devem assumir como desafio pedagógico a ser
realizado. Ademais, a Geografia que se ensina, muitas vezes reproduz concepções de mundo e
de sociedade nas quais estão imersas as escolas e alguns destes profissionais, os quais, por
diversas razões, estão atrelados as lacunas da formação inicial ocorrida há bastante tempo e/ou
a falta de formação continuada conectada com os aportes teóricos metodológicos voltados para
a produção de conhecimento geográfico a serviço de práticas transformadoras.
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No que se refere ao estágio supervisionado 3 e 4, destaca-se a participação de 10


licenciandos, que salientaram as estratégias de ensino e os recursos didáticos utilizados por eles
em sala de aula (quadro 06).

Quadro 05: Na sua opinião, existem dificuldades que impossibilitam os professores da escola
de desenvolver a Geografia Crítica nas aulas no ambiente escolar?

Dificuldade em trabalhar a Geografia Crítica está na falta de formação do professor para elaborar uma
boa aula para desenvolver a Geografia Crítica na escola.
Ao que parece, muitos professores por desmotivação, por baixos salários ou até mesmo por falta de
interesse, não desenvolvem a Geografia Crítica. Buscam apenas construir um ensino de maneira
pragmática, mecânica que tem como objetivo seguir um cronograma escolar.
As vezes os recursos que as escolas possuem, e o tempo do professor não são suficientes para a
realização de aulas baseadas na Geografia Crítica.
Alguns professores não sabem trabalhar a Geografia Crítica.
Muitos professores estão ligados a Geografia Tradicional, o que impõe barreiras para mudar sua
metodologia rumo a Geografia Crítica, que envolve a participação do aluno, estando, portanto,
resistentes a essa mudança.
Fonte: Pesquisa Direta, 2019
Elaboração: SANTOS, 2020

Quadro 06: As estratégias de ensino e os recursos didáticos utilizados por vocês em


sala de aula favorecem o pensamento crítico-reflexivo dos alunos?

Utilizo mapa, músicas e filmes que possibilitam aproximar os conteúdos a realidade dos alunos, e
desenvolver o senso crítico deles.
Levo imagens e vídeos nas aulas para despertar a curiosidade dos alunos, assim como abordo os
problemas atuais e levanto questionamentos para eles.
Procuro fazer uma relação do conteúdo com a vivência do aluno, usando recursos como imagens e
notícias da mídia para os alunos entenderem que eles são agentes ativos no espaço geográfico.
No estudo da paisagem, exemplifiquei sobre as ações do homem, sobre a natureza através de diversas
imagens, levando-os a refletir sobre seu papel na construção de mundo, tanto no aspecto individual e
coletivo, como sobre os seus direitos e deveres.
Fonte: Pesquisa Direta, 2019
Elaboração: SANTOS, 2020

A utilização de distintos recursos didáticos, a saber: mapa, músicas, filmes, imagens,


vídeos, e reportagens nas aulas de Geografia, auxiliam no diálogo com os alunos, notadamente
em face do mundo tecnológico, digital e midiático no qual estamos inseridos. Ademais,
possibilita a mediação entre os conhecimentos prévios dos alunos e os conteúdos geográficos,
viabilizando o processo de ensino aprendizagem.
Os licenciandos do estágio 3 e 4 destacam a utilização de exemplos do cotidiano em
suas aulas para contextualizar os conteúdos de Geografia trabalhados, que alguns consideram
promover a criticidade dos alunos (quadro 07).

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Quadro 07: Você utiliza referências do cotidiano para exemplificar os conteúdos de Geografia
trabalhadas em sala de aula? Você considera que isso promove a criticidade dos alunos?

Eu correlaciono o conteúdo com o cotidiano do aluno. Acredito ser indispensável para torná-los
críticos, pois faz com que eles sejam capazes de refletir e opinar sobre a realidade em que vivem.
É fundamental aproximar os conteúdos discutidos em sala de aula com a realidade social dos alunos.
Isso faz os alunos entenderem sobre o mundo em que vivem.
As relações com o cotidiano facilitam a aprendizagem, e possibilita que a partir desses exemplos, os
alunos comecem a fazer questionamentos, formando a autonomia crítica. Assim, eles percebem que
todos estão envolvidos e são responsáveis pela preservação do Planeta.
Trabalhar com exemplos próximos, faz os alunos se reconhecerem enquanto agentes transformadores
do espaço geográfico, e faz com que pensem e reflitam suas práticas, formando alunos críticos.
Procuro contextualizar o assunto com a realidade dos alunos. Assim, eles perceberam que a
responsabilidade não se restringe as pessoas de outras cidades, estados ou países.
Fonte: Pesquisa Direta, 2019
Elaboração: SANTOS, 2020

Considerar o cotidiano dos alunos é uma opção adotada pelos estagiários em suas aulas,
os quais salientam a importância desta relação teoria (conteúdo geográfico) e prática (a
realidade do aluno) no processo de ensino aprendizagem no intuito de estabelecer o diálogo
com os alunos, tornar o aprendizado dos conceitos e conteúdos de Geografia mais atraentes, e
por fim, dá início a construção de uma consciência crítica cidadã com os seus alunos.
Os licenciandos do estágio 3 e 4 salientam no quadro 08, se acreditam e/ou não que suas
aulas têm contribuído para a compreensão crítica da sociedade.

Quadro 08: Em sua opinião, as aulas desenvolvidas no Estágio Supervisionado 3 e 4 têm


contribuído para a compreensão crítica da sociedade?

As aulas sempre são trazidas para a realidade dos alunos, o que permite fazer compreensões sobre os
problemas sociais existentes, e se posicionarem criticamente.
A relação do conteúdo com a realidade do aluno da escola favorece esta crítica, principalmente sobre
os problemas sociais e ambientais.
Os alunos demonstram interesse quando se trabalha o cotidiano deles, daí discutimos muitas questões
políticas e sociais, que os levam a refletir, e isso facilita o processo de ensino-aprendizagem.
A questão política e econômica já tive a chance de tratar, e despertou o interesse dos alunos,
desenvolvendo o senso crítico deles.
Fonte: Pesquisa Direta, 2019
Elaboração: SANTOS, 2019

Os estagiários demonstraram que suas aulas tem possibilitado diálogos com os alunos
baseados na criticidade, notadamente quando discutem os problemas sociais, políticos,
econômicos e ambientais, relacionando-os com a realidade dos estudantes. Esta alternativa
utilizada, denota um saber fazer docente partindo dos problemas espaciais, enquanto proposta
metodológica para a construção da criticidade dos alunos nas aulas de Geografia.

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Os licenciandos apresentaram no quadro 09 algumas dificuldades que lhes


impossibilitaram de desenvolver a Geografia Crítica nas aulas no decorrer do estágio
supervisionado 3 e 4.
Quadro 09: Na sua opinião, existiram dificuldades que impossibilitaram vocês de desenvolver
a Geografia Crítica nas aulas no decorrer do estágio supervisionado?

Algumas vezes tem-se a recusa da própria turma em participar das discussões, não havendo abertura
para um posicionamento mais crítico sobre o assunto.
As vezes o próprio sistema direciona uma forma ou modelo sequencial que impede a autonomia do
professor, de trabalhar de modo mais fortemente a Geografia Crítica.
Existem situações que dificultam por conta de algumas limitações do próprio conteúdo, porém não
chega a impossibilitar.
As vezes, estamos em uma escola, na qual a linha ideológica da mesma, impede de nós
desenvolvermos um pensamento crítico a respeito de tal assunto com os alunos, notadamente quando
envolve responsabilidade governamental (ocorre muito isso na rede estadual).
Há casos em que nos encontramos em uma situação, na qual não podemos instigar os alunos a lutarem
por seus direitos intrínsecos à escola na qual estão inseridos.
Fonte: Pesquisa Direta, 2019
Elaboração: SANTOS, 2020

A precarização do trabalho docente, e a falta de autonomia dos professores, são


percebidas de várias maneiras no contexto escolar, desde aqueles que devem “seguir e/ou
corroborar” com a linha ideológica da escola, até aqueles que encontram-se engessados com a
proposta teórica metodológica presente nas apostilas adotadas pela instituição. Este contexto se
caracteriza cruel e conflituoso, o primeiro por inibir e/ou impossibilitar o professor de dialogar,
construir conhecimentos e instigar os alunos a realizarem a leitura de mundo; e o segundo pelas
angústias vivenciadas pelos professores de serem impedidos de fazer o seu papel de professar
o conhecimento crítico e criativo na prática docente.
E por fim, destacam-se as opiniões dos licenciandos dos estágios supervisionados 1, 2,
3 e 4, sobre a contribuição da Geografia Crítica na construção dos alunos enquanto cidadãos
(quadro 10).
Quadro 10: Na sua opinião, a Geografia Crítica contribui na construção do aluno enquanto
cidadão?

Opinião dos licenciandos dos Estágios 1 e 2 Opinião dos licenciandos dos Estágios 3 e 4
O ensino da Geografia Crítica possibilita formar Contribui, pois possibilita o aluno opinar
pessoas conscientes para que possam refletir e sobre os problemas e a conjuntura social, e a
analisar o mundo ao seu redor. política da sociedade.
A Geografia Crítica permite a construção do A Geografia Critica instiga o aluno a ser um
conhecimento que torna possível ao aluno entender agente ativo. Faz com que o aluno perceba o
a sociedade em que vive, perceber os problemas seu papel na sociedade, conscientizando-o
sociais e se posicionar como um cidadão crítico, sobre as questões social, política e econômica.
produzindo uma ação e intervenção que possa
culminar em mudanças reais deste mundo
globalizado e capitalista.

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Revista GeoSertões – ISSN 2525-5703

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Possibilita a construção do aluno questionador, o que A Geografia Crítica faz com que o aluno
busca entender e compreender a realidade que ele se reflita no que ele está fazendo para contribuir
encontra e buscar soluções para mudá-la. ou modificar a sociedade em que vive e/ou o
espaço geográfico como um todo.
A Geografia Crítica auxilia o sujeito a exercer seu A Geografia Crítica mostra uma nova
papel social a partir do momento que reflete sobre perspectiva de visão de mundo, de análise da
sua vivencia e suas ações sobre o meio, e no realidade, levando o aluno a pensar, e com isso
desenvolvimento do senso crítico do aluno enquanto constrói um cidadão mais participativo.
cidadão do mundo.
Fonte: Pesquisa Direta, 2019
Elaboração: SANTOS, 2020

Ao afirmar a relevância da Geografia Crítica na construção do cidadão, os estagiários


salientaram distintas opiniões justificando que esta deve se fazer presente nas aulas, de modo a
ser considerada na organização da prática pedagógica das escolas. Há que se disputar, que as
aulas de Geografia no ambiente escolar possam dialogar com os seus alunos as relações
socioespaciais, preparando-os para atuarem na transformação da realidade da sociedade
burguesa, a qual durante séculos vem coadunando com a situação de miséria e pobreza em que
vivem a maioria dos brasileiros, que não se referem somente a economia, mas a política e a
cultural, dentre outras.

Considerações Finais

Os posicionamentos dos licenciandos demonstraram que o estágio supervisionado é


visto como uma oportunidade para que eles possam interagir com o conhecimento através de
experiências concretas, buscando responder as demandas vivenciadas no ambiente escolar. Ao
trilhar caminhos apropriados e em conformidade com as exigências postas ao docente na
atualidade, o estágio contribui para que a universidade produza novos espaços de diálogo e
convivência com a escola.
Sendo assim, acredita-se que através do estágio, os licenciandos conseguem experenciar
práticas que levem à reflexão, a fim de promover os saberes geográficos relacionados com a
vivência e o cotidiano dos alunos, com os problemas sociais, econômicos, políticos e
ambientais; e que lhes possibilitem, enquanto futuros docentes, vislumbrar a prática pautada na
criatividade e criticidade, buscando incentivar e auxiliar os estudantes na construção de
conhecimentos pautados na cidadania.
Por isso, é imprescindível que os cursos de Geografia licenciatura promovam uma
formação inicial docente pautada na articulação dos conhecimentos relacionados a vida,
inseridos no contexto institucional e social vislumbrando a leitura de mundo e o seu papel frente
a transformação da sociedade.
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O compromisso de promover uma disciplina geográfica vinculada a compreensão crítica


da sociedade é, sem dúvida, uma das tarefas mais importantes da Geografia Escolar na
contemporaneidade.

Referências

BRASIL. Conselho Nacional de Educação. MEC. Parecer CNE/CP nº 2, de 19 de fevereiro


de 2002. Institui a duração da carga horária dos cursos de licenciatura, de graduação plena, de
formação de professores da Educação Básica em nível superior.

CASTELLAR, Sonia M. V. Educação geográfica: formação e didática. In: MORAIS, E. M.


B. de; MORAES, L. B (Org) Formação de professores: conteúdos e metodologias no
ensino de Geografia. Goiânia: NEPEG, 2010.

CAVALCANTI, Lana de S. Formação inicial e continuada em geografia: trabalho


pedagógico, metodologias e (re)construção do conhecimento. In: ZANATTA, Beatriz A;
SOUZA, Vanilton C. de (Orgs.). Formação de professores: reflexões do atual cenário sobre
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A GEOGRAFIA CRÍTICA NAS EXPERIÊNCIAS DO


PIBID

LA GEOGRAFÍA CRÍTICA EN LAS EXPERIENCIAS DEL PROGRAMA


INSTITUCIONAL DE BECAS PARA LA INICIACIÓN A LA ENSEÑANZA (PIBID -
INICIALES EN PORTUGUÉS)

João Manoel de Vasconcelos Filho (2)

Sérgio Luiz Malta de Azevedo (1)


Josandra Araújo Barreto de Melo (2)

(1)
Professor da Unidade Acadêmica de Geografia, Universidade Federal de Campina Grande
E-mail: maltaslma@gmail.com
(2)
Professora do Departamento de Geografia, Universidade Estadual da Paraíba, Campus I
E-mail: ajosandra@yahoo.com.br

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Resumo

Esta pesquisa teve como objetivo principal apresentar algumas práticas desenvolvidas no período considerado
para esse estudo, (2012 a 2020) com o Programa de iniciação à docência PIBID na Universidade Estadual da
Paraíba – UEPB e Universidade Federal de Campina Grande - UFCG no que concerne a formação inicial
embasada nas tendências críticas de ensino de Geografia, com destaque para método dialético que, pelo menos
no nível das intenções, a nosso ver, deveria se materializar e difundir-se no currículo da escola básica, através
da dimensão crítica na Geografia escolar. Foram desenvolvidos diversos projetos de intervenção e/ou
colaboração, a partir da articulação entre as temáticas do currículo escolar e o lugar social dos discentes e
docente, objetivando articular as diversas escalas geográficas à escala local, possibilitando a construção de
conhecimentos significativos e uma maior compreensão da realidade, visando estimular a transformação social
e a participação cidadã. Para elaboração deste artigo foram analisados os relatórios dos subprojetos Geografia
para o período já assinalado e os relatos de experiência dos autores na coordenação das atividades dos referidos
subprojetos. As bases teóricas da pesquisa se ligam a espacialidade geográfica, esta concebido numa visão
crítica, a exemplo da totalidade e do lugar social, debatidos por vários geógrafos representantes da Geografia
Crítica, como Milton Santos, Armando Correia da Silva e Lana de Souza Cavalcanti por exemplo, cujas obras
fundamentaram as pesquisas em ensino de Geografia. A pesar disso, nota-se que o programa vem sofrendo,
nos últimos anos, um desmonte em suas concepções e ações o que tem acarretado em enorme retrocesso
político-educacional e operacional.

Palavras-chave
PIBID, Tendências críticas de ensino Geografia, Currículo, Lugar social do estudante.

Resumen
La investigación tuvo como su principal objetivo presentar algunas prácticas desarrolladas para el período de
tiempo llevado a cabo para este estudio, (2012 a 2020), a través del Programa de iniciação à docência PIBID de
la Universidade Estadual da Paraíba – UEPB y la Universidade Federal de Campina Grande – UFCG, con
respecto a la formación inicial basada en las tendencias críticas de la enseñanza de la Geografía, con énfasis en
el método dialéctico que, por lo menos al nivel de las intenciones, en nuestra opinión, debería materializarse y
propagarse en el programa de estudios de la educación primaria y secundaria, a través del aparato crítico en el
sector de la Geografía escolar. Han sido desarrollados diversos proyectos de intervención y/o colaboración, a
partir de la articulación entre las temáticas del plan de estudios escolar y la posición social de los estudiantes y
profesores, cuya finalidad es articular las diversas escalas geográficas a la escala local, pirmitiendo la
construcción de conocimientos significativos y un entendimiento aún más amplio de la realidad, y cuyo fin es
estimular la transformación social y la participación del ciudadano. Para la elaboración de este artículo han sido
analizados los informes de los subproyectos de Geografía para el período de tiempo que ya hemos señalado y
los relatos de las experiencias de los autores en la coordinación de las actividades de los subproyectos de los
que anteriormente hemos hablado. Los fundamentos teóricos de la investigación están relacionados a los
espacios geográficos, éstos concebidos bajo un presupuesto crítico, por ejemplo, la totalidad y el lugar social,
que ya han sido debatidos por muchos geógrafos que representan la Geografía Crítica, como Milton Santos,
Armando Correia da Silva y Lana de Souza Cavalcanti, cuyas obras han fudamentado las investigaciones de la
enseñanza de la Geografía. Sin embargo, observamos que el programa ha sufrido, en los últimos años, un
desmantelamiento en sus concepciones y acciones, lo que ha provocado un inmenso retraso político y
educacional, además de operacional.

Palabras clave:
PIBID, Tendencias críticas de la enseñanza de Geografía, Plan de estudios, Lugar social del estudiante.

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Introdução

E
ssa reflexão é fruto de um convite efetuado pela organização da presente obra
para que, conjuntamente e enquanto coordenações da área de Geografia,
efetuemos uma análise acerca das ações do Programa Institucional de Bolsas
de Iniciação à Docência – PIBID, através do desenvolvimento dos Subprojetos Geografia nas
instituições Universidade Estadual da Paraíba e Universidade Federal de Campina Grande -
UFCG, no período de agosto de 2012 a Fevereiro de 2020.
Como recorte temático, nos foi solicitado refletir sobre as estratégias do
desenvolvimento capitalista desenvolvidas tomando como referência o método dialético,
materializado na Geografia pela concepção crítica, que concebe o espaço enquanto lócus da
relação natureza-sociedade, mediada pelas contradições das relações de trabalho humano.
Assim, o desenvolvimento capitalista, pela qual o espaço é recriado reproduz um processo
contraditório e desigual, fruto das relações sociais, que se estabelecem no âmbito do modo de
produção capitalista.
No caso da UFCG, nos detemos no edital nº 007/2018 e na portaria nº 158/2017, ambos
publicado pela CAPES, além de outros instrumentos regimentais emanados da própria UFCG.
Assim, o aludido programa teve início em 09/2018 e término em 01/2020. Assim, o PIBID foi
estruturado partir de um projeto que foi submetido e aprovado pela CAPES, contando com uma
estrutura organizacional, a saber: Condenação geral do programa, Coordenadores de área,
Supervisores de instituições escolares e estudantes (bolsistas (ID) e voluntários). Note-se que,
o número de estudantes envolvidos no aludido programa foi de 13, sendo doze bolsistas e um
voluntário, além de quatro docentes, sendo dois coordenadores de área, (UFCG) e dois
supervisores escolares da rede de ensino pública estadual de Campina Grande-PB. Nesse
contexto, é interessante notar a drástica redução do número de bolsas disponibilizadas para os
estudantes, ficando mais evidente, tal redução, se compararmos a versão do mesmo programa
em contexto pretérito (2014), quando o número de bolsistas, aptos a ingressar no programa foi
de 32 alunos, o que representa uma redução de 19 bolsas a menos em número absoluto ou 146
% em relação ao número ofertado, em comparação com o período de 2018 a 2020. Essa redução
é emblemática e se insere num processo maior de precarização das IES públicas do país, em
particular, para a formação docentes.
Quanto ao Subprojeto Geografia UEPB/Campus I a sua formatação, durante todo o
período das atividades, contou com coordenação de área, três professores supervisores e quinze
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discentes da graduação, que atuaram como bolsistas. Estes sempre eram substituídos quando da
conclusão do curso ou por motivos de força maior, a exemplo da entrada antecipada no mercado
de trabalho. No período de 2012 até 2014, as escolas parceiras, todas da rede Estadual de Ensino
do Estado da Paraíba, foram: a Escola Normal Estadual Padre Emídio Viana Correia, a Escola
Estadual Senador Argemiro de Figueiredo (POLIVALENTE) e a Escola Estadual Hortênsio de
Souza Ribeiro (PREMEN). Do período de 2014 a 2018, o Subprojeto foi desenvolvido nas
Escolas Estaduais São Sebastião, Severino Cabral e Assis Chateaubriand.
Todo esse tempo dedicado ao planejamento e execução da prática pedagógica na área
de Geografia, lançam bases para serem discutidas determinadas questões relativas à educação
básica, sobretudo no que concerne ao papel da Geografia crítica no ensino. Durante esse
período, foram desenvolvidos diversos projetos de intervenção e/ou colaboração, a partir da
articulação entre as temáticas do currículo escolar e o lugar social dos discentes, objetivando
articular as diversas escalas geográficas à escala local, possibilitando a construção de
conhecimentos significativos e uma maior compreensão da realidade, visando estimular a
transformação social e a participação cidadã.
Mediante o exposto, o presente artigo objetivo apresentar algumas práticas
desenvolvidas durante o período de vigência do PIBID nas duas instituições, já que foi, em
parte, substituído em 2018 pelo Programa Institucional Residência Pedagógica, no que
concerne a formação inicial embasada nas tendências progressistas do ensino, com destaque
para método dialético, que pelo menos no nível das intenções, ao nosso ver, deveria se
materializa no currículo da escola básica, através da dimensão crítica na Geografia escolar.

O PIBID, seus fundamentos e considerações sobre os desafios da


educação nacional e o ensino de geografia

O Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID foi instituído pelo


Decreto 7.219/2010, com o objetivo de inserir os graduandos das diversas licenciaturas
brasileiras no ambiente escolar, logo cedo, o que implica no aprimoramento da formação inicial
dos futuros professores, bem como na contribuição para a construção de uma educação pública
de melhor qualidade e no incentivo dos professores das escolas campo de atuação do referido
programa a investirem na formação continuada. De acordo com o art. 1o do mencionado
Decreto:

Art. 1o O Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência - PIBID,


executado no âmbito da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior - CAPES, tem por finalidade fomentar a iniciação à docência,
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contribuindo para o aperfeiçoamento da formação de docentes em nível


superior e para a melhoria de qualidade da educação básica pública brasileira.

Pode-se afirmar que a essência do PIBID é o fortalecimento da docência, fundamentado


na relação teoria-prática, de forma a que os conhecimentos mediados na universidade possam
subsidiar a prática docente na escola básica e essa, por sua vez, gere compartilhamento de
saberes e práticas na comunidade acadêmica voltada ao ensino das licenciaturas, aprimorando-
as e tornando-as efetivas em termos de aprendizagens proporcionadas. A figura 01 representa
as metas do PIBID, fundadas na valorização do magistério.

Figura 01: Metas do Programa Institucional de Iniciação à Docência.

Fonte:https://capes.gov.br/images/stories/download/bolsas/1892014-relatorio-PIBID.pdf

Pelo menos, no nível da intenção, trata-se da valorização do magistério pela qualidade da


formação inicial dos professores, a partir de uma aproximação maior entre universidade e escola
básica, quase sempre, pouco oportunizada durante a graduação em licenciatura, já que a carga
horária destinada aos Estágios Supervisionados, nem sempre, é suficiente para fomentar uma
boa formação, que tenha na pesquisa realizada na escola e no ensino das disciplinas específicas,
o seu necessário embasamento. Além disso, essa componente curricular, em termos operativos,
não tem se estruturada adequadamente para promoção da prática docente dos estudantes em
processo de formação.
Em todas as dimensões, desde cedo, essa maior vivência do licenciando nas interações
com seu futuro campo de atuação lhe permitirá melhor conhecer o espaço em que atuará

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profissionalmente, Isso lhe possibilitará maior habilidade para compreender a complexidade do


cotidiano escolar, a diversidade de estratégias necessárias para ministrar os conteúdos e para a
resolução de conflitos, a maior compreensão das relações entre e com os discentes e toda a
comunidade escolar, bem como lhe oportunizará efetuar a reflexão a partir das suas práticas e,
portanto, a formação de um professor reflexivo. Dessa forma, poderá refletir se, de fato, as
metodologias que estão sendo utilizadas são adequadas, em termos do que se espera para
efetivação da aprendizagem, sobretudo, quanto as expectativas discentes para uma formação
crítica, articulada e cidadã.
Quando se pesquisa sobre práticas desenvolvidas na educação a partir do PIBID, diversos
estudos demonstram que é possível desenvolver um ensino mais dinâmico e significativo,
mesmo diante de algumas políticas que foram se intensificando após o ano de 2016, que
comprometeram os investimentos em pesquisa, na formação inicial e continuada de professores,
além de imporem uma base de conteúdos curriculares em escala nacional, sem considerar a
diversidade e as condições que permeiam as práticas docentes e discentes.
Lamentavelmente, após as reformas neoliberais implementadas a partir do ano de 2016
no Estado brasileiro, a educação vem sendo ainda mais desvalorizada. Foram implementadas
várias contrarreformas que atingem os direitos sociais conquistados com muita dificuldade no
século XX. Uma dessas foi a Reforma do Ensino Médio, a PEC dos Gastos e a Implementação
da Base Nacional Comum Curricular -BNCC. Esta última ensejou a substituição paulatina do
PIBID pelo Programa Institucional de Bolsas de Residência Pedagógica, que visa apoiar a sua
implementação na escola, além de pretender formar professores aptos a operacionalização da
perspectiva pragmática e neoliberal da BNCC.
Girotto (2017; 2019) faz uma análise dos objetivos da BNCC e sintetiza analisando que
trata-se, pois, de um documento de cunho neoliberal, cujo objetivo centrado no
desenvolvimento de competências e habilidades, nada mais é que a preparação dos discentes
para o mercado de trabalho mal remunerado e que exige grande flexibilidade, tanto do ponto de
vista da formação profissional, já que o indivíduo poderá se deparar com necessidades de
adaptação a múltiplas situações, quanto do ponto de vista da desvalorização profissional e
instabilidade no emprego, já que as leis que implementaram a terceirização e a reforma
trabalhista deram o aval final para a regressão da condição dos profissionais pouco qualificados
no mercado de trabalho.
Dessa forma, no ano em que completaria 10 anos de sua criação, o PIBID não pode
aniversariar com fôlego, ao contrário padece de desmobilização. Mesmo o programa Residência
Pedagógica vem sendo desmontado. Assim, o PIBID perde a essência para a qual foi criado, ou

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seja, aprimorar a formação inicial e continuada dos professores brasileiros, além de contribuir
com a melhoria dos processos de ensino-aprendizagem na educação básica, uma das metas do
Plano Nacional da Educação.

Rumo a um viés crítico no ensino de geografia nas experiências do


PIBID UEPB/UFCG

No que concerne ao ensino de Geografia no âmbito das duas instituições em apreço,


vislumbram-se as possibilidades de integração entre a realidade da cidade de Campina Grande,
numa perspectiva de lugar social, conforme a acepção trazida por Silva (1991) para quem os
conteúdos que regem uma parcela da estruturação curricular deveriam ser efetivos para
promover mudanças sociais. Aposta-se que essa articulação pode conferir significado aos
saberes construídos em sala de aula, de modo que os alunos possam perceber a importância
para a sua realidade, podendo caracterizar a aprendizagem como uma prática cotidiana, em que
se sintam sujeitos de um processo de produção e reprodução espacial, mediada pelo trabalho.
No âmbito dos dois subprojetos PIBID de Geografia, as coordenações foram desafiadas
a aprimorar os seus processos formativos, inserindo os licenciados em sala de aula, estimulando
o planejamento, a pesquisa no ensino e o uso das mais diversas concepções, linguagens e
metodologias, num momento em que a formação de professores ainda não vinham
contemplando a contento, tais concepções e práticas, já que é sabido que a escola, foi e ainda
não é uma instituição que atende aos interesses de uma minoria dominante desse país.
Essa constatação encontra fundamento na análise efetuada por Lacoste (1998), quando
ele questiona a formação de professores e afirma que “se eles mistificam é porque também
foram mistificados” (p.32).
Dessa forma, objetivou-se motivar os futuros e atuais docentes em sua prática cotidiana
e instigar nos discentes da educação básica o desejo por conhecer melhor a realidade
circundante e em escalas mais abrangentes. Estas são necessidades de maior envergadura na
formação e na prática docente e que denotam possibilidades de vencer as dificuldades no
ensino.
Compreende-se que as estratégias de ensino baseadas apenas no livro didático, fazendo-
se uso dos métodos atrelados às tendências liberais de ensino, sem a necessária articulação com
a escala local, geram a disseminação de informações abstratas, muitas vezes difusas e
desarticuladas para o processo ensino-aprendizagem. Tais circunstâncias geram uma distância
entre o ensino dos componentes do currículo e o lugar social dos discentes construindo, assim,
uma dicotomia entre a teoria e a realidade, fazendo com que muitos discentes não se sintam
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incluídos no universo escolar e, sem a devida orientação familiar, compreendam a escolarização


como desnecessária ou desinteressante.
Para modificar tal concepção que permeia o ambiente escolar, se faz necessário integrar
as diversas estratégias disponíveis para o ensino, bem como os artefatos do lugar social dos
alunos aos conteúdos propostos pelos documentos oficiais, o que pode ser feito através do
conhecimento das discussões que permeiam as tendências progressistas de ensino, baseadas no
trabalho com temas geradores ensejadores de debates e discussões, também da aprendizagem
baseada em projetos (ABP), conforme os preceitos colocados por Bender (2014), dentre outros
direcionamentos de pesquisa que agreguem a realidade local.
A justificativa para a escolha metodológica dos dois subprojetos parte de uma reflexão
de como vem sendo desenvolvido o ensino da disciplina Geografia, desde a sua
institucionalização enquanto disciplina do currículo, já que toda a literatura que trata do ensino
dessa disciplina se reporta a ele como mnemônico, descritivo e desarticulado da realidade
discente, o que o torna um saber inútil, em consonância com as ideias de Yves Lacoste, na obra
– A Geografia: isso serve, em primeiro lugar para fazer a guerra.

Fundamentos e estratégias do Subprojeto Geografia PIBID/ UEPB E UFCG

Como fio condutor das suas ações, o Subprojeto Geografia PIBID UFCG e UEPB
guardam convergências, visto que ambos foram estruturados a partir de alguns conceitos que
se relacionam com o espaço geográfico, este concebido numa visão crítica, a exemplo da
totalidade e do lugar social, debatidos por vários geógrafos representantes da Geografia Crítica,
como Milton Santos, (2005; 2006; 2014) Armando Correia da Silva1, (1991) Lana de Souza
Cavalcanti (1998; 2008) por exemplo, cujas obras fundamentaram dezenas de trabalhos de
Geografia.
No que concerne à totalidade, este conceito vem se aprimorando a partir da década de
1970 e, na Geografia, Milton Santos considera que o espaço precisa ser assim considerado:
conjunto de relações realizadas através de funções e formas apresentadas historicamente por
processos, tanto do passado como do presente. Tal conceito, portanto, permite a articulação
entre os diversos componentes do espaço geográfico (homens, grupos, Estado, capital,
instituições, etc.), ganham concretude, relacionam-se e espacializam-se. Permite também
entender interações/conexões entre espaços e tempos diferentes, desiguais, em suas

1
O Professor Armando Correia da Silva, influenciou, em termos de suas concepções o subprojeto de Geografia da
UFPB, tendo tido pouca influência no subprojeto do PIBID de Geografia da UFCG.
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coexistências enquanto realidades de técnicas, fluxos, interesses, tradições, esperanças, que


perfazem as diferentes territorialidades (SANTOS, 2005).
Quanto ao conceito de lugar social, estivemos em comunhão com a análise da teoria da
Geografia e lugar social, desenvolvida pelo geógrafo Armando Correa da Silva, já que a busca
por uma unicidade do objeto de estudo da ciência geográfica levou o autor ao entendimento do
espaço enquanto lócus que ganha concretude através do lugar social, pois nele estarão o trabalho
natural e social e a relação entre estes dois. Teve como base filosófica a influência do
pensamento marxista, uma vez que considera o trabalho como base para sua discussão.
A partir desses conceitos, buscou-se no Subprojeto de Geografia da UEPB e UFCG
romper com os dicotomismos comumente arraigados na disciplina, do tipo Geografia física
versus Geografia humana e, principalmente, articular as diferentes escalas geográficas à escala
local, de forma a que os discentes pudessem compreender o seu lugar numa perspectiva de
inserção no capitalismo mundial.
Concordamos plenamente com Callai (2001), quando ela chama atenção para o fato de
que o discente “é um ser histórico que traz consigo e em si uma história, e um conhecimento
adquirido na sua própria vivência” (p. 136). A partir dessa compreensão, o professor é desafiado
a buscar a promoção, a ampliação e o aprofundamento do conhecimento acerca do espaço, do
lugar em que vive, relacionando-o com outros espaços mais distantes e até diferentes
(articulação entre as diferentes escalas geográficas).
Para que isso aconteça, é necessário que o professor tenha uma boa formação
pedagógica, que sejam oportunizadas melhores condições à educação, que se crie uma cultura
de aprimoramento do ensino nas escolas e, sobretudo nos órgãos responsáveis pelas políticas
públicas de fomento à educação nacional, pois não se pode aceitar e naturalizar que os
professores sejam os únicos responsáveis pela condução do ensino-aprendizagem, já que se
tratam de condições de trabalho e de vida que, integradas ao contexto de sala de aula, são
definidoras de histórias de sucesso e de fracasso.
De qualquer forma, no âmbito do Subprojetos em análise, sempre buscamos chamar
atenção dos participantes quanto a responsabilidade do professor, do seu papel, do método e
das metodologias adotadas. A escolha do método constitui para o professor um ato político da
prática educativa. Assim, o método acaba pela via da formação dos nossos estudantes
influenciando a manutenção do status quo da sociedade ou da busca pela transformação. Se o
professor apenas reproduz os conteúdos do livro didático, de forma descontextualizada do lugar
social do discente, se não considera os elementos do espaço geográfico em sua totalidade, estará

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contribuindo para a continuidade de uma Geografia descritiva e que pouco ou em nada contribui
para as transformações sociais.
Por outro lado, se o professor adotar como orientação basilar para suas aulas o ensino a
partir das contradições inerentes ao espaço geográfico, buscando propiciar aos alunos uma
melhor compreensão desse espaço em que estão inseridos, influenciará, num contexto de
mudança social a formação para a cidadania, já que propicia a compreensão da realidade e a
consequente atuação sobre ela. Essa educação para a cidadania só acontece quando o discente
é, de fato, integrado ao ensino, ou seja, o estudante não pode ser um ser deslocado do mundo
em que vive, como se fosse um ser neutro e abstrato (CALLAI, 2001).
Ao confrontar várias situações entre si e com as condições concretas do seu próprio
mundo próximo, o discente vai construindo um conhecimento próprio e, mais do que isto, a
compreensão de regras e leis que regem este mundo atual; pode inclusive buscar o que as funda
e fazê-las compreensíveis como processo historicamente construídos.
A partir desses pressupostos, a atuação da equipe integrante do Subprojeto
Geografia/PIBID/UEPB e UFCG buscou trabalhar o espaço geográfico como uns lócus da
relação sociedade-natureza, mediada pelo trabalho, num processo de mudanças constantes,
determinadas por uma lógica maior, a do capital. Para atingir esse objetivo, lançou mão de
diversas estratégias, de forma a buscar promoção e a integração da realidade discente na
construção de um ensino de Geografia significativo, a partir da utilização de diversas linguagens
e estratégias metodológicas que proporcionasse protagonismo aos discentes, de forma a
promover a flexibilização do currículo oficial, promover mudanças favoráveis ao processo de
ensino-aprendizagem de Geografia, na educação básica e renovar o ensino, adequando-o ao
contexto dos discentes e em consonância com as mudanças em curso no espaço.

Relato de experiência com projeto de colaboração desenvolvida no âmbito do


Subprograma Geografia/PIBID/UEPB e UFCG

Nas pesquisas desenvolvidas no Subprojeto Geografia/PIBID/UEPB e UFCG tomamos


como referência o conceito de escala proposto por Castro (1995). Este, classifica a escala como
sendo um instrumento teórico-metodológico que permite a apreensão da realidade. Igualmente,
também se utiliza nas pesquisas dos referidos Subprojetos a recomendação para o trabalho com
a escala sugerido por Callai (2001), que alerta para a necessidade de articulação entre as
diversas escalas geográficas e a escala local, rompendo com os círculos concêntricos,
possibilitando ao aluno compreender como o seu espaço está relacionado a outros mais
abrangentes e, com isso, promovendo significado ao ensino de Geografia.

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Do ponto de vista das concepções teórico-metodológicos, as pesquisas subjacentes aos


Subprojetos utilizaram vários métodos da ciência, a exemplo do fenomenológico e do método
dialético, este último subsidiou a pesquisa da presente reflexão, escolhida em função da
temática trabalhada, que rompe, por exemplo com as costumeiras formas de se abordar o relevo
em sala de aula, ou seja, numa perspectiva descritiva-regional, privilegiando as macroformas
e o distanciamento de abordagens que contemplem o relevo local. Ao contrário dessa
perspectiva, procurou-se a integração conceitual e a práxis integrada dos conteúdos.
Para fins de sistematização do presente artigo, como foram muitos os trabalhos
desenvolvidos, no caso da UEPB relata-se os resultados de um projeto desenvolvido em sala de
aula por Brito (2017), a partir da geomorfologia, procurando trabalhar as formas de relevo e
seus processos além da perspectiva naturalista, ou seja, procurando articulá-la a ação antrópica,
de forma a expressar como tais formas e seus processos geomorfológicos influenciam na
construção do espaço geográfico. Trabalhando numa perspectiva da relação sociedade-natureza
no trato com as mesoformas de relevo, é possível ao aluno compreender porque ocorrem
problemáticas no seu lugar, a exemplo de enchentes, alagamentos, deslizamentos de terras e
encostas, dentre outros fenômenos físicos decorrentes da ação humana, realizada sem
preocupação conservacionista.
A bolsista desenvolveu o trabalho na Escola Estadual São Sebastião, localizada no Alto
Branco, cidade de Campina Grande, PB. O bairro é cortado pelo riacho das Piabas e apresenta
relevo ondulado, com declives acentuados e com consequente apropriação desigual dessas
formas, já que as residências localizadas nas áreas mais planas ou suavemente onduladas tem
um valor imobiliário mais alto, sendo ocupada por famílias de classe A, B ou no máximo C, o
que faz com que a população de menor poder aquisitivo só possa habitar as áreas de encostas
mais íngremes e de fundos de vale. Trata-se, pois, de que as formas de relevo são apropriadas
na cidade em função do poder aquisitivo sendo, portanto, uma relação ditada pelo capital.
O projeto foi desenvolvido em cinco etapas, seguindo a programação curricular
elaborada pelo professor para o 1o ano do Ensino Médio. Os conteúdos curriculares trabalhados
no projeto foram: Linguagem cartográfica e leitura de mapas. A litosfera: evolução geológica
da terra; Constituição da crosta terrestre: tipos de rochas; Estruturas geológicas e as
macroformas do relevo terrestre e, por fim, Unidades morfoestruturais brasileiras.
Durante o projeto, foram realizadas aulas expositivas e dialogadas, aproximando os
conteúdos do livro didático ao espaço da cidade de Campina Grande-PB, sobretudo nos bairros
Alto Branco e Lauritzen, inclusive com a confecção de uma maquete, a partir do recorte da

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carta topográfica de Campina Grande. Assim, a partir da construção maquete, foram urdidos
conceitos como o de divisores de águas, vertentes, vales fluviais e planícies de inundação.
Posteriormente, com a maquete, slides e vídeos, discutiu-se como as formas de relevo
presentes naquele espaço foram apropriadas no processo de urbanização, bem como as
problemáticas socioambientais decorrentes de todo esse processo desigual de apropriação do
referido espaço urbano.
Na sequência, foram formadas equipes para a realização de estudo de campo, para que
os alunos pudessem estudar as paisagens do Alto Branco, Lauritzen e Rosa Mística, inclusive
indo até o fundo do vale, representado pelo leito do Riacho das Piabas. Nesse trajeto, foram
trabalhados vários aspectos da paisagem, sem se descuidar da compreensão da atuação do
capital sobre a desigual apropriação dos espaços dos trechos percorridos.
Como culminância desse projeto, a equipe convidou o representante da Defesa Civil da
Cidade de Campina Grande para proferir palestra na escola, visando analisar como as classes
menos favorecidas, habitantes das encostas e fundos de vale são afetadas nos períodos de
chuvas mais críticas na cidade de Campina Grande-PB, inclusive sendo motivo de matéria na
mídia local.
Tratou-se de um projeto que teve a adesão e participação intensa da turma participante
e que foi desenvolvido tomando como referência o fato de que o relevo não é algo estanque,
desvinculado das relações entre sociedade e natureza e da realidade dos alunos. Para dar
consistência a abordagem, tomou-se como referência os trabalhos de Ascensão (2009),
Bertolini e Carvalho (2010) e Morais (2013).
Tais autores partem do questionamento da escala em que o relevo é trabalhado no ensino
básico, procurando chamar atenção para a necessidade de uma aproximação com o espaço em
que o aluno está inserido, propiciando relações acerca do seu papel na produção do espaço
geográfico, fornecendo subsídios para a compreensão de problemáticas advindas das
apropriações inadequadas do relevo vivenciadas pelos alunos (BRITO, 2017).
Assim como o trabalho de Brito (op. cit.), todos os bolsistas que integraram o Subprojeto
nos seus cinco anos de existência desenvolveram os seus planos de trabalho tomando como
referência a aprendizagem a partir de projetos, fazendo uso dos diferentes métodos que
embasam o desenvolvimento das pesquisas geográficas, com destaque para a análise das
contradições oriundas da apropriação do espaço movida pelo capital, articulando o
conhecimento do livro didático com a realidade do seu entorno.
No caso da UFCG, exemplificamos com uma atividade desenvolvida no ano de 2019
na escola EEEF Monte Santo, situado no bairro de mesmo nome na cidade de Campina Grande-

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PB. A ideia partiu da docente colaboradora do PIBID, Profa. Sonia Maria de Lira. Anote-se que
a referida propositura, logo recebeu adesão do Supervisor da escola e dos estudantes envolvidos
com a proposta.
Observe-se também, que a atividade proposta foi desenvolvida concomitantemente a
oferta da disciplina prática de ensino de Geografia no segundo semestre de 2019. Assim, a
atividade teve como mote o tema: Geografando no Entorno da Escola. O referido tema teve
como objetivo principal realizar um estudo do meio, (ARCHELA; CALVENTE, 2008) que a
priori pode ser desenvolvido em qualquer nível de ensino. Dado esse contexto, optamos pelas
séries finais do ensino fundamental. No caso em apreço, partiu-se da compreensão dos
conceitos geográficos de Paisagem (SANTOS, 2014), espaço (Santos, 2006) e Lugar (TUAN,
1983). O desafio que enfrentamos conjuntamente foi o de demonstrar a possibilidade de um
estudo do meio a partir da dimensão crítica do ensino, articulada a perspectiva acessória do
conceito de lugar e espaço de vivido em Tuan.
No caso em apreço, os estudantes foram organizados em grupos que se
intercomplementavam, atuando, consoante as seguintes etapas: Estudo bibliográfico,
planejamento das atividades de campo, saída de campo para coleta de dados, sistematização
dos dados de campo, apresentação e integração dos dados coletados, debate, avaliação e
compartilhamento dos dados sistematizados e culminância da atividade.
Como a área do entorno da escola EEEF de Monte Santo, (figura 02), se encontra
próximo a Universidade Federal de Campina Grande, os estudantes percorreram o trajeto a pé,
saindo da UFCG até a referida escola (figura 03). No percurso os grupos foram fotografando as
paisagens, entrevistando moradores das cercanias da aludida escola. Com essa ação os grupos
objetivarão compreende o funcionamento dos sistemas de objetos e ações, as contradições socio
espaciais, desveladas no entorno da mencionada instituição (figura 04).

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Buscou--se, também compreender a metamorfose das paisagens, o processo de mudança


do lugar visitado. Para tal intento foram utilizadas fotografias, em contexto pretérito e atual.
Assim, comparando as fotografias os estudantes iam percebendo as transformações,
verticalidades e horizontalidades como diria Milton Santos, iam sendo percebidas na paisagem,
implicando em simetrias e assimetrias, ensejadas pelas relações contraditórias dos processos de
mudança das relações entre o global e o local. Igualmente, foi motivo de inquietação entender
a percepção do lugar a partir dos moradores daquele entorno e também os espaços de vida
humana nas suas relações com a escola Monte Santo, na cidade de Campina Grande-PB.

Considerações finais

A Escola brasileira, a partir da vigência da Lei de Diretrizes e Bases da Educação


Nacional, promulgada em 1996, de fato, se constitui em um documento para além do seu tempo,
isso se formos cotejá-la com a realidade da educação nacional na contemporaneidade, em geral,
marcada pelas características assinaladas nesse trabalho; os dicotimismos, a fragmentação
disciplinar, o caráter mnemônico da abordagem curricular, a ausência de dimensões
educacionais emancipatórias. Como se não bastasse, o achincalhe a educação, a
institucionalização do Banco Nacional Comum Curricular – BNCC parece alinhavar as aludidas
características do lugar da educação no processo de formação dos nossos estudantes, pelo
menos da estruturação curricular que invisibiliza o lugar social como campo de tencionamentos,
de desigualdades e contradições sociais, serve a instrumentação para padronização e
formalização curricular, só para citar alguns de seus paradoxos.
É nesse sentido, que surge, a partir de 2009 o Programa de Bolsa de Iniciação à Docência
- PIBID que de fato, pretendia ser o preludio de mudanças educacionais no país, pois como

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programa, pensado para promoção de mudanças na nossa trajetória educacional, intencionava,


ainda que em escala bastante reduzida, promover mudanças na formação de nossos docentes e
discentes, do ensino fundamental ao “superior”. De fato, durante um curto período de tempo,
diríamos de 2009 a 2014 logrou-se relativo progressos na implantação do referido programa
que logo foi azougado pelas contrarreformas do capitalismo brasileiro, como diria Cury; Reis
e Zanardi (2018, p. 77) são “soluços de um sistema desigual que não conseguem se prolongar
por muito tempo”. Assim a insensatez, as agressões aos direitos a educação não tardaram a
negar e ampliar o processo de deformação educacional, em um flagrante desrespeito a formação
crítica para e pela cidadania.
Na UEPB e UFCG respectivamente, os programas foram implantados em 2012 e 2014
e como foi demonstrado, nessa pesquisa tem conseguido granjear êxito, sobretudo no
mencionado período. De 2015 em diante iniciou-se um processo de desmonte do aludido
programa. Uma das estratégias para “asfixiar” o programa foi a redução no número de bolsas.
Como já foi relatado, no caso da UFCG e na UEPB não é muito diferente, na comparação de
2014 para 2020 foram cortadas 19 bolsas, em número absoluto ou 146 % em números relativos
ao ofertado em 2014. Fica claro, portanto, assim como em outros programas acadêmicos e
profissionais das universidades públicas do país que a universidade pública do país sofre uma
violenta interrupção em suas atividades e como alertado na introdução dessa pesquisa, tal
contexto é emblemática e se insere num processo maior de precarização das IES públicas, em
particular, para a formação docente na área das humanidades.

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A GEOGRAFIA CRÍTICA: UM OLHAR SOBRE A


DIVERSIDADE NA EDUCAÇÃO GEOGRÁFICA

CRITICAL GEOGRAPHY: A GLANCE AT THE DIVERSITY IN GEOGRAPHIC


EDUCATION

João Manoel de Vasconcelos Filho (2)

Sonia Maria de Lira (1)

(1)
Professora da Unidade Acadêmica de Geografia (UAG), da Universidade Federal de Campina Grande
- UFCG
E-mail: sonia.lira@professor.ufcg.edu.br

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Resumo

A Geografia tem contribuído com análises que vão do local ao global, investigando as inter-relações nos micro
e macroespaços perpassando por reflexões mais objetivas ou subjetivas, conforme suas diversas concepções
geográficas. Nessa perspectiva, a Geografia Crítica traz contribuições importantes aos referidos estudos, mas
ainda precisa avançar nas discussões sobre as relações de poder nos microespaços. Como também, a Geografia
Escolar continua usando processos pedagógicos mnemônicos, desvinculados da realidade dos estudantes, a
partir de análises de espaços distantes. Dessa forma, o presente trabalho, tem o objetivo de verificar como
algumas normatizações e documentos curriculares ressaltam sobre as diversidades, através das relações nos
microespaços, envolvendo especificamente indígenas, negros e mulheres, e como a Geografia Crítica pode
contribuir com essas reflexões através da disciplina escolar. Utilizamos no percurso metodológico a análise de
conteúdo a partir de estudos sobre algumas legislações que enfocam fatos educacionais e tratam de aspectos da
diversidade, além de duas propostas curriculares: os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Base
Nacional Comum Curricular (BNCC) de Geografia. As normatizações e documentos curriculares que tratam
sobre estes temas trouxeram avanços e retrocessos conforme as políticas educacionais implementadas no Brasil
nas últimas décadas. Assim a Geografia Crítica, como fortalecedora da geografia militante, precisa ampliar suas
análises sobre tais temáticas, influenciando os espaços educacionais e contribuindo para a formação cidadã
comprometida com as mudanças socioespaciais.

Palavras-chave
Ensino Geográfico; Geografia Crítica; Diversidade.

Abstract
Geography has contributed with analysis ranging from local to global scale, assessing the interrelationships in
micro and macro spaces, running through subjective and objective reflections, due to its myriad Geographic
conceptions. In this perspective, Critical Geography has greatly enriched the debate, but still there is some
advance to be made on power relationships matters in micro spaces. In the other hand, School Geography still
uses mnemonic pedagogical processes, disconnected from the students’ reality, and through analysis of distant
spaces. Thus, this work goals to assess how some standardizations and curriculum documents approach
diversities, through micro spaces relationships, involving specifically indigenous, black and women, and how
Critical Geography may contribute to this matter in the school. The content analysis was used to research some
laws that focus educational issues and treat diversity aspects, and beyond that, two others curriculum proposals:
the National Curriculum Parameters (PCN) and the Common National Curriculum Base (BNCC) of Geography.
The standardizations and curriculum documents that regulate this subject have brought advances and setbacks
over the last few decades, according to the various educational policies implemented in Brazil. Thereby, the
Critical Geography, since it strengthens the militant Geography, needs to expand its analysis about this theme,
influencing the educational spaces and contributing to form citizens committed to social-spatial changes.

Keywords
Geographic teaching; Critical geography; Diversity.

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Introdução

O
s aspectos culturais e socioespaciais do mundo contemporâneo têm se
modificado de forma ampliada, principalmente através do avanço do sistema
capitalista, trazendo inter-relações híbridas entre os mais diversos
segmentos, nas diferentes escalas. Ademais, as desigualdades e a exclusão aumentaram,
persistindo posturas autoritárias e de violências com injustiças a muitos setores minoritários,
entre eles: indígenas, mulheres, negros, etc.
A Geografia tem contribuído com análises que vão do local ao global, perpassando
reflexões mais objetivas ou subjetivas, conforme suas diversas abordagens geográficas para
analisar as inter-relações nos micro e macroespaços. Nesse contexto, a Geografia Crítica traz
contribuições importantes às referidas análises, mas ainda precisa avançar nas reflexões sobre
as relações de poder nos microespaços. Como também, a Geografia Escolar usa procedimentos
pedagógicos que se utilizam de processos mnemônicos, desvinculados da realidade vivenciada
pelos estudantes, refletindo muito mais espaços distantes do que os cotidianos.
As inter-relações que ocorrem no espaço escolar, nos territórios domiciliares, nos
bairros ou aldeias em que os estudantes residem são pouco trabalhadas na disciplina geográfica.
Nos espaços mencionados, continuam a existir ações discriminatórias que levam às violências
domésticas, escolares e comunitárias, necessitando de reflexões e proposições de mudanças, e
verificando como tais práticas se construíram através do patriarcado e do patrimonialismo, e de
que forma devem ser combatidas.
Dessa forma, os grupos minoritários começaram a ser focados nas análises geográficas,
envolvendo discussões sobre suas territorialidades, identidades, ações do Estado, normatização,
entre outros aspectos. No entanto, a Geografia Escolar precisa se debruçar sobre essas questões,
inclusive questionando os currículos da área de forma crítica.
Sendo assim, o objetivo deste trabalho é verificar como algumas normatizações e
documentos curriculares ressaltam questões sobre as diversidades, a partir das relações nos
microespaços, especificamente envolvendo indígenas, negros e mulheres, e como a Geografia
Crítica pode contribuir com essas reflexões a partir da disciplina escolar.
Neste caminho metodológico, utilizamos a análise de conteúdo através de estudos sobre
algumas legislações que enfocam fatos educacionais e tratam de aspectos da diversidade, além
de duas propostas curriculares: os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e a Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) de Geografia.
A análise de conteúdo é “uma técnica de investigação que, através de uma descrição
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objetiva, sistemática e quantitativa do conteúdo manifesto das comunicações, tem por


finalidade a interpretação destas mesmas comunicações” (BERELSON apud GIL, 2008, p. 13).
Por isso, ocupa-se dos sistemas de relações na discussão sobre a diversidade e dos aspectos
referentes ao poder nos microespaços, a partir das associações e exclusões nos textos
selecionados.
Desse modo, o artigo traz a discussão no primeiro tópico sobre a geografia crítica e a
disciplina escolar, destacando as relações de poder no espaço; na continuidade, analisam-se
algumas normatizações educacionais e documentos curriculares que tratam sobre a diversidade,
a partir do olhar sobre negros, indígenas e mulheres; e, por fim, fazem-se reflexões sobre o
espaço escolar, o ensino de Geografia e a diversidade, na perspectiva da geografia crítica.

A geografia crítica e a disciplina escolar: um olhar sobre as


relações de poder no espaço

A Geografia Tradicional, durante longo tempo, se negou a analisar as relações de poder


presentes no espaço, conforme Lacoste (1988), chegando esta área do conhecimento a ser
considerada como “viúva do espaço” (SANTOS, 1976). Isso porque suas pesquisas e práticas
pedagógicas trabalhavam muito mais com a:

História dos historiadores, a natureza “natural” e a economia neoclássica,


todas as três tendo substituído o espaço real, o das sociedades em seu devir,
por qualquer coisa de estático ou simplesmente de não existente, de
ideológico.
É por isso que tantos geógrafos discutem tanto sobre a Geografia – uma
palavra cada vez mais vazia de conteúdo – e quase nunca do espaço como
sendo o objeto, o conteúdo da disciplina geográfica [...] (SANTOS, 2004, p.
118-/119).

A reflexão de Milton Santos e de muitos outros geógrafos colocava em xeque a


Geografia Tradicional, a qual durante muito tempo esteve atrelada aos interesses políticos das
classes dominantes. Por isso, Lacoste (1988) enfatizava que havia uma Geografia dos Estados
maiores e uma Geografia dos professores: a primeira se apropriava, de fato, dos conhecimentos
espaciais, mas os cidadãos não construíam tais saberes, pois a geografia escolar não favorecia
isso.
Entre as propostas de renovação da área geográfica, colocou-se a Geografia Pragmática
ou Quantitativa como alternativa. Contudo, esta segunda concepção geográfica também foi
duramente criticada e repudiada por muitos geógrafos, pois, segundo Moraes:

A Geografia Pragmática é uma tentativa de contemporaneizar [...] este campo


específico do conhecimento, sem romper seu conteúdo de classe. Suas
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propostas visam apenas uma redefinição das formas de veicular os interesses


do capital, daí sua crítica superficial à Geografia Tradicional. [...] Passa-se de
um conhecimento que levanta informações e legitima a expansão das relações
capitalistas, para um saber que orienta esta expansão, fornecendo-lhe opções
e orientando as estratégias de alocação do capital no espaço. Assim, duas
tarefas diferentes, em dois momentos históricos distintos, servindo a um
mesmo fim [...]. (MORAES, 2005, p. 37).

Tanto a Geografia Tradicional quanto a Quantitativa atendiam aos interesses


capitalistas. Neste sentido, geógrafos que se negavam a compactuar com tais interesses e se
posicionavam pela transformação da realidade socioespacial passaram a propor novos e
diferentes caminhos na investigação espacial, através da chamada Geografia Crítica.
No entanto, grande parte dos geógrafos críticos possuía posições antagônicas, podendo-
se “dizer que a Geografia Crítica é uma frente, onde [sic] obedecendo a objetivos e princípios
comuns, convive com propostas díspares” (MORAES, 2005, p. 47). Reiteramos o referido autor
quando argumenta que:

A unidade da Geografia Crítica manifesta-se na postura de oposição a uma


realidade social e espacial contraditória e injusta, fazendo-se do conhecimento
geográfico uma arma de combate à situação existente. É uma unidade de
propósitos dada pelo posicionamento social, pela concepção de ciência como
momento da práxis, por uma aceitação plena e explícita do conteúdo político
do discurso geográfico [...]. (MORAES, 2005, p. 47).

Ou seja, são as visões de mundo e de sociedade que configuram as unidades de


propósitos dos geógrafos críticos, vislumbrando um saber que contribua para a transformação
do status quo. Por isso, a maioria desses pesquisadores aplica as teorias marxistas nas análises
espaciais, nas quais a economia e a política são fortemente usadas nas referidas investigações.
Mas a Geografia Crítica também passou a sofrer julgamentos por concepções mais
recentes da chamada corrente humanista, a qual se utiliza principalmente das pesquisas
fenomenológicas, investigando questões voltadas para as percepções, os comportamentos, as
subjetividades, entre outros aspectos nas inter-relações socioespaciais. Contudo, Milton Santos
(2004, p. 95) ressalta que:
Na Geografia do comportamento, há a “tentativa” de considerar a liberdade
humana como absoluta e não como condicionada [...] sem levar em conta
condições reais de renda, de posição social, de oportunidades permanentes ou
ocasionais, e mesmo de lugar. Em uma palavra, o fato de que a situação do
indivíduo na produção é determinante não é reconhecido. (SANTOS, 2004, p.
95).

Para os geógrafos críticos, os aspectos econômicos e políticos não podem ser


negligenciados nos estudos espaciais. Mas isso não quer dizer que os microespaços não possam
ser analisados. Isso porque:

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[...] Nenhum dos objetos sociais tem domínio sobre o homem, nem está
presente de tal forma no cotidiano dos indivíduos [quanto o espaço]. A casa,
o lugar de trabalho, os pontos de encontro, os caminhos que unem entre si
esses pontos são elementos passivos que condicionam a atividade dos homens
e comandam sua prática social [...]. (SANTOS, 2004, p. 172).

Esses espaços precisam ser analisados através das práticas sociais que neles ocorrem,
verificando-se as contradições que ali acontecem e as relações de poder existentes. Dessa forma,
indivíduos e grupos que convivem nos espaços cotidianos também precisam ser investigados
pela Geografia Crítica, e a disciplina escolar necessita trabalhar esses aspectos com os cidadãos.
A seguir, serão feitas breves considerações sobre o conceito de espaço a partir de dois geógrafos
críticos: Milton Santos e David Harvey.

O conceito de espaço a partir de Santos e Harvey

Segundo Santos (1999, p. 51), o espaço “é formado por um conjunto indissociável,


solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados
isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá”. Além disso, ele também
ressalta que “o espaço reúne a materialidade e a vida que a anima” (SANTOS, 1999, p. 51).
Por isso, a existência real do espaço ocorre por causa das relações sociais.
Ademais, Pagés (1979), citado por Santos (1999, p. 64), relata que “o conjunto do campo
de atividades de cada indivíduo é codificado pelo sistema de regras, do mesmo modo que o seu
campo relacional”. Acrescenta-se que as regras e as relações são influenciadas por aspectos
culturais, políticos, econômicos, etc.
Resgatando as ideias de I. Braun & B. Joerges (1992), Santos também ressalta que
existem três tipos de agir: técnico, formal e simbólico.

O agir técnico leva a interações formalmente requeridas pela técnica. O agir


formal supõe obediência aos formalismos jurídicos, econômicos e científicos.
E existe um agir simbólico, que não é regulado por cálculo e compreende
formas afetivas, emotivas, rituais, determinadas pelos modelos gerais de
significação e de representação. (SANTOS, 1999, p. 66).

Desse modo, o cotidiano acontece através dessas três ordens de ação, sendo necessárias
análises espaciais que deem conta das questões simbólicas construídas pelo patriarcado e pelo
patrimonialismo; dos formalismos jurídicos, que tentam manter ou transformar a ordem
existente; e das ações técnicas no campo educacional, as quais também contribuem com
transformações nas relações espaciais.

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Através dos lugares, as formas de agir podem ter a predominância de uma ou outra
condição de atuação, através das ações racionais. Por isso, “a importância do lugar na formação
da consciência vem do fato que essas formas do agir são inseparáveis, ainda que, em cada
circunstância, sua importância relativa não seja a mesma” (SANTOS, 1999, p. 67).
Harvey (2008) também trabalha com o conceito de espaço relacionando-o ao de tempo,
que é muito importante em nossas análises, porque elementos pertencentes às relações do
espaço vivido foram produzidos ao longo do tempo. O autor, reiterando Bourdieu, coloca que
as práticas comuns são determinadas pela relação dialética entre o corpo e a organização
estruturada do espaço e do tempo. “E é exatamente a partir dessas experiências (na casa em
particular) que se impõem esquemas duradouros de percepção, de pensamento e de ação”
(HARVEY, 2008, p. 198).
Além disso ele analisa as práticas socioespaciais através de aspectos objetivos e
subjetivos, caracterizando grupos que constroem diferentemente o tempo e o espaço social. Por
exemplo, o autor citado anteriormente, destaca que:

Os índios das planícies, ou os nueres africanos, objetificam qualidades de


tempo e de espaço tão distintas entre si quanto distantes das arraigadas num
modo capitalista de produção. A objetividade do tempo e do espaço advém,
em ambos os casos, de práticas materiais de reprodução social; e, na medida
em que elas podem variar geográfica e historicamente, verifica-se que o tempo
social e o espaço social são construídos diferencialmente. (HARVEY, 2008,
p. 189).

Harvey aponta as diferenças na construção do tempo e espaço sociais a partir das


distinções daquelas vivenciadas no modo civilizatório capitalista, pois neste último a
compressão espaço-tempo tem sua predominância.
No trabalho, aqui apresentado, serão discutidas formas de agir e práticas espaciais
através de ações formais (normatização) e ações impregnadas por elementos simbólicos, que
foram construídas historicamente e que se materializam nos microespaços. A partir desses
aspectos, serão feitas reflexões sobre como indivíduos que compõem a diversidade mais
significativa da população brasileira, como negros, indígenas e mulheres, permanecem na
contemporaneidade sendo vítimas de práticas discriminatórias e violentas em diversos espaços,
inclusive nos domiciliares e escolares.
E, embora nas últimas décadas os documentos curriculares apontem que o lugar e a
vivência cotidiana devem ser trabalhados nos estudos geográficos nas escolas, percebe-se que
as práticas espaciais explicitadas naqueles escritos não analisam as contradições nelas
existentes. Acredita-se, assim, que a Geografia Crítica possua aportes teóricos para contribuir
com essas análises e ampliar a formação cidadã espacial.
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Por isso, a seguir, serão enfocados aspectos históricos e geográficos envolvendo o


patriarcado e o patrimonialismo, bem como sua contribuição para a manutenção de práticas
espaciais que, ainda hoje, continuam subjugando negros, índios e mulheres.

O patriarcado de baixa intensidade e o patriarcalismo colonialista moderno

O papel da ciência geográfica e de outras áreas do conhecimento nas análises dos


fenômenos vinculados aos impactos da violência doméstica, racial, entre outras, traz em seu
bojo a crítica aos esquemas patriarcais e coloniais de pensamento, que em suas elaborações
jogam em favor da justificação das desigualdades ou da ocultação dos reais determinantes que
estruturam tais práticas espaciais.
Essa análise é necessária partindo do que Milton Santos chama de psicoesfera, relatada
como sendo “o reino das ideias, crenças, paixões e lugar da produção de um sentido [que]
também faz parte desse meio ambiente, desse entorno da vida, fornecendo regras à
racionalidade ou estimulando o imaginário” (SANTOS, 1999, p. 204). Dessa forma, essas
regras à racionalidade incluem os sujeitos, as coisas e os outros homens, envolvendo aspectos
simbólicos.
Os aspectos simbólicos, construídos historicamente, devem ser apreendidos também
através das atividades cotidianas, pois “uma dada situação não pode ser plenamente apreendida
se, a pretexto de contemplarmos sua objetividade, deixarmos de considerar as relações
intersubjetivas que a caracterizam [...]” (SANTOS, 1999, p. 253).
Desse modo, entende-se que os movimentos feminista e negro trouxeram importantes
contribuições nas discussões das relações de gênero pela perspectiva das mulheres,
principalmente através dos estudos descoloniais, como também das relações de opressão em
termos raciais, através das análises do patriarcado. Por causa disso, serão feitas reflexões a partir
do pensamento da antropóloga feminista Rita Laura Segato, a qual discute questões de gênero
por meio dos referidos estudos, mas enfatizando essas relações através de povos indígenas sul-
americanos.
Segato (2012) analisa que havia estrutura de organização patriarcal, que ela adjetiva de
baixa intensidade, anterior ao processo de colonialidade/modernidade. Isso porque a autora
atesta haver:

Evidências históricas e relatos etnográficos [...] [que] confirmam, de forma


incontestável, a existência de nomenclaturas de gênero nas sociedades tribais
e afro-americanas. Esta [...] vertente identifica nas sociedades indígenas e
afro-americanas uma organização patriarcal, ainda que diferente da do gênero

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ocidental e que poderia ser descrita como um patriarcado de baixa intensidade


[...]. (SEGATO, 2012, p. 116).

A antropóloga também ressalta que ainda persistem, na atualidade, atividades coletivas


de deliberação em aldeias amazonenses e de chaqueños, pertencentes à região do grande Chaco
da América do Sul, abrangendo regiões da Argentina, da Bolívia, do Brasil e do Paraguai, nas
quais, mesmo havendo a prerrogativa masculina nas deliberações públicas, os homens devem
interromper, ao entardecer:

O parlamento na ágora tribal, em muitos casos bastante ritualizado, sem


chegar a conclusão alguma, para realizar uma consulta pela noite no espaço
doméstico. As discussões só serão retomadas no parlamento no dia seguinte,
com o aporte do mundo das mulheres, que só estão autorizadas a falar em casa.
Caso esta consulta não ocorra, a penalidade será pesada para os homens. Isto
é habitual e ocorre em um mundo claramente compartimentalizado no qual,
ainda que exista um espaço público e um espaço doméstico, a política, como
o conjunto de deliberações que leva às decisões que afetam a vida coletiva,
atravessa os dois espaços. (SEGATO, 2012, p. 122).

Destarte, o espaço doméstico também é utilizado para as discussões políticas e a mulher


participa, mesmo que indiretamente, das decisões coletivas. Contudo, na nossa sociedade,
impregnada pela cultura ocidental, a mulher ainda não tem participação decisiva na esfera
pública, espaço predominante da figura masculina. Além disso,

O confinamento compulsivo do espaço doméstico e das suas habitantes, as


mulheres, como resguardo do privado tem consequências terríveis no que
respeita à violência que as vitimiza. É indispensável compreender que essas
consequências são plenamente modernas e produto da modernidade,
recordando que o processo de modernização em permanente expansão é
também um processo de colonização em permanente curso. (SEGATO, 2012,
p. 121).

Outrossim, é necessário destacar que a situação da mulher no espaço privado,


envolvendo o patriarcado em vários contextos históricos, passa a se diferenciar no sistema
capitalista. Nesse sentido, Faoro, citado por Aguiar (2000, p. 11), relaciona tal situação com o
patrimonialismo e o setor estatal.

Para Faoro, parece que o contraste entre a família como instituição privada e
o poder estatal exercido pelo soberano apenas se coloca a partir da
transformação do feudalismo em capitalismo. Porém, se o patriarcado é o
princípio sob o qual o patrimonialismo se forma, é necessário incluir na
análise a relação do patrimonialismo com a família, a não ser que a
centralização governamental seja de tal forma idealizada que nada existe fora
do domínio público [...].

O colonialismo português favoreceu a estruturação do Estado patrimonial, distribuindo


sesmarias, ampliando a concentração da propriedade ou da posse da terra, além de colocar a
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escravidão como propulsora da acumulação capitalista. Em vista disso, é necessário destacar


“como o patriarcado agrário e escravista se transforma, resultando em novas formas de
dominação patriarcal ante a presença de um capitalismo privado, em sua forma econômica
clássica, sob a dominância estatal” (AGUIAR, 2000, p. 14). Nessa perspectiva, os corpos das
pessoas negras faziam parte da propriedade privada, enquanto que os corpos das mulheres
também esboçavam o aspecto privado, através da sexualidade.

Observamos como o sistema de dominação é concebido de forma ampla e que


este incorpora as dimensões da sexualidade, da reprodução e da relação entre
homens e mulheres no contexto de um sistema escravista. Observamos que
uma atenção orientada exclusivamente para o âmbito da economia ou do
sistema político perde de vista as relações hierárquicas no contexto doméstico.
Se, mesmo nas sociedades onde o público se destaca do privado as relações
de gênero continuam patriarcais, no âmbito das sociedades patrimoniais a
intimidade entre público e privado não resultou em uma maior participação
política ou econômica das mulheres nessa esfera pela própria origem patriarcal
do estamento burocrático no contexto de um patrimonialismo patriarcal.
(AGUIAR, 2000, p. 19).

Do ponto de vista econômico, a utilização do trabalho feminino como “dona de casa” é


tão viável para a exploração capitalista quanto o trabalho escravo. Destarte, há uma relação
peculiar entre o racismo e o sexismo dentro do contexto de exploração do trabalho. Isso porque,
de acordo com Balibar e Wallerstein (1991, p. 58):

O sexismo não se relaciona apenas ao trabalho diferente ou menos apreciado


pelas mulheres, como o racismo não é somente xenofobia. O racismo mantém
as pessoas no interior do sistema de trabalho e não expulsa dele, o sexismo
persegue o mesmo objetivo. [...]
A maneira como induzimos as mulheres [...] a trabalhar para criar ganhos de
capital para os proprietários do capital [...] consiste em dizer que na realidade
seu trabalho não tem importância. Inventamos o conceito de “dona de casa” e
afirmamos que não trabalha, que se contenta em “cuidar da casa” [...].

Consequentemente, a opressão que atua sobre os corpos das pessoas negras e das
mulheres faz parte da lógica capitalista de exploração, a qual se amplia para outras esferas de
domínio: sexual, da violência, da subordinação dos interesses e desejos do seu senhor. Neste
caso, as escravas negras, além de vítimas sexuais de seus donos, também deveriam procriar
para produzir novos escravos, aumentando os lucros deles.
É necessário destacar que a repressão existente sobre os corpos das pessoas negras e
das mulheres persiste até os dias atuais, através dos estupros, dos feminicídios, das mortes dos
jovens negros nas favelas, do desrespeito policial e dos assassinatos dos negros nos Estados
Unidos e em outras partes do mundo, etc.

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Por isso, os movimentos feminista e negro são referências de resistência na atualidade,


pois se colocam na vanguarda das lutas contra discriminações, preconceitos e violências,
utilizando slogans como: “Vidas negras importam”; “Somos mulheres: exigimos respeito!”;
“Basta de violência: respeite-nos!”; etc.
Tais análises precisam ser ampliadas nos espaços escolares, pois o cotidiano d(a)os
estudantes também é(são) impregnado(s) por estas relações de poder assimétricas que envolvem
o machismo, a misoginia, o racismo, etc., e os estudos espaciais necessitam tratar dessas inter-
relações, que proporcionam tantas violências.
Contudo, na Geografia, os estudos são recentes, como podemos constatar em pesquisa
intitulada Geografia e diversidade: gênero, sexualidades, etnicidades e racialidades,
encaminhada por Ratts et al. (2016), a qual relata que estas investigações passaram a ocorrer
no campo geográfico, principalmente a partir do século XXI. Ou seja, são pesquisas bem
recentes. Além disso, nesses estudos:

Coexistem as abordagens culturais e econômicas na medida em que as


relações econômicas são entendidas como culturalmente construídas,
produzindo a visibilidade da falsa ideia de separação de áreas. Há nesse grupo
uma ideia geral de associação de aspectos culturais como racismo, sexismo e
homofobia que estruturam e sustentam as hierarquias econômicas e a forma
como o sistema de capital elabora estratégias de exploração e concentração de
riquezas. (RATTS et al., 2016, p. 11).

Nesse sentido, ainda persistem dicotomias quanto às áreas de enfoque desses estudos,
como também a Geografia Cultural tem predominâncias nas referidas pesquisas. Dessa forma,
a Geografia Crítica ainda precisa fortalecer esse campo de investigação espacial.
A educação também vem ampliando os debates sobre o combate a tais discriminações e
violências. Isso é necessário porque as referidas posturas autoritárias e violentas continuam
ocorrendo nos territórios domiciliares, escolares, nas empresas e nos demais espaços de
vivências coletivas.
Entretanto, vivemos num momento histórico em que setores conservadores da sociedade
tentam manter as relações de dominação através de práticas antidemocráticas, ampliando a
submissão de segmentos socialmente marginalizados. Percebemos isso por meio dos embates
nas casas legislativas que colocam propostas de normatizações em âmbito federal, estadual ou
municipal, refletindo o patriarcado e o patrimonialismo existentes. Além de tudo, documentos
educacionais que implementam propostas curriculares também esboçam essas posturas. Mas
existem resistências e reações que se contrapõem, demonstrando as contradições presentes
nessas normatizações e nas práticas sociais. Por isso, a seguir, serão feitas reflexões sobre
algumas dessas legislações e dois documentos curriculares.
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Algumas normatizações e documentos curriculares que tratam


sobre a diversidade

Na contemporaneidade, a organização de regras, utilizadas principalmente através da


normatização, passa a ser fundamental para regulamentar prescrições para as ações dos vários
segmentos, principalmente nas suas inter-relações socioespaciais.
Para Santos (1999, p. 182), “no período atual, a ‘organização’ das ‘coisas’ passa a ser
um dado fundamental. Daí a necessidade de adoção, de um lado, de objetos suscetíveis de
participar dessa ordem e, de outro, de regras de ação e de comportamento a que se subordinem
todos os domínios da ação instrumental”.
Entre os domínios da ação instrumental, colocamos as ações educacionais, as quais
passam a ser normadas principalmente a partir dos interesses dos grupos dominantes e da lógica
neoliberal, mas que também comportam as resistências da sociedade civil, tendo avanços e
recuos conforme as relações de poder predominantes em cada contexto histórico.
Nesse sentido, o Movimento Negro e o de Mulheres Negras brasileiros tiveram uma
importante vitória ao conseguirem mudanças no artigo 26 da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (LDB 9.394/96). Nilma Lino Gomes entende o Movimento Negro como
educador, valorizando “a trajetória persistente e tensa construída por tantos militantes do
Movimento Negro e de Mulheres Negras que lutaram e lutam pela superação do racismo e pela
construção da emancipação social no Brasil e na diáspora africana” (GOMES, 2017, p. 13).
Desse modo, a mudança na normatização não ocorreu ao acaso, mas a partir da luta e da
resistência contra o racismo.

Lei nº 10.639/2003

A população de origem afrodescendente, historicamente, possui dificuldades para o


acesso e permanência na educação brasileira, demonstrando o racismo e a ausência de políticas
específicas para esta população.

O Brasil, Colônia, Império e República, teve historicamente, no aspecto legal,


uma postura ativa e permissiva diante da discriminação e do racismo que
atinge a população afrodescendente brasileira até hoje. O Decreto nº 1.331, de
17 de fevereiro de1854, estabelecia que nas escolas públicas do país, não
seriam admitidos escravos, e a previsão de instrução para adultos negros
dependia da disponibilidade de professores. O Decreto nº 7.031-A, de 6 de
setembro de 1878, estabelecia que os negros só podiam estudar no período

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noturno e diversas estratégias foram montadas no sentido de impedir o acesso


pleno dessa população aos bancos escolares. (BRASIL, 2004, p. 07).

A Constituição de 1988, ampliando o processo democrático, buscou enfatizar a


construção da cidadania para setores marginalizados da sociedade brasileira. Mas a LDB,
promulgada em 1996, ainda foi tímida no tocante ao currículo escolar, quanto ao trabalho
pedagógico envolvendo a diversidade do povo brasileiro, retratando em seu artigo 26 que “os
currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser
complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte
diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da
economia e da clientela”.
A referida lei colocava como componentes curriculares obrigatórios: Língua
Portuguesa, Artes, Educação Física, Língua estrangeira e História do Brasil, alegando que esta
última área do conhecimento deveria levar em conta “as contribuições das diferentes culturas e
etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e
europeia” (BRASIL, 1996).
Nesse sentido, em 2003, através de política afirmativa no Brasil, foi sancionada a Lei
10.639, que modificou o referido artigo da LDB e acrescentou o Art. 26- A, o qual destaca que:
Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares,
torna-se obrigatório o ensino sobre história e cultura afro-brasileira.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o
estudo da história da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a
cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional,
resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política
pertinentes à história do Brasil.
§ 2º Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira serão
ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de
educação artística e de literatura e história brasileiras.

Destarte, todo o currículo escolar deveria incorporar o estudo da História da África e


dos africanos, dando fundamental importância à grande maioria da população brasileira oriunda
destes povos. Contudo, mesmo após mais de uma década da implementação da lei, ainda existe
resistência de secretarias de educação, escolas e educadores à discussão apresentada pela lei,
como ressalta Gomes (2008). Isso dificulta a superação do racismo, que persiste na sociedade
brasileira e que se apresenta, principalmente, através de preconceitos, discriminações e
violências.

Os mesmos preconceitos permeiam também o cotidiano das relações sociais


de alunos entre si e de alunos com professores no espaço escolar. No entanto,
alguns professores, por falta de preparo ou por preconceitos neles introjetados,
não sabem lançar mão das situações flagrantes de discriminação no espaço
escolar e na sala como momento pedagógico privilegiado para discutir a

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diversidade e conscientizar seus alunos sobre a importância e a riqueza que


ela traz à nossa cultura e à nossa identidade nacional. (MUNANGA, 1999, p.
15).

Esse tipo de debate é necessário ocorrer também por parte dos profissionais de
Geografia, pois tais inter-relações são verificadas através das ações espaciais, mas como bem
ressalta Munanga, muitos dos docentes ainda necessitam de formação e superação de seus
preconceitos introjetados pela cultura racista.
Contudo, isso acontece não somente com as pessoas negras, mas também com os povos
autóctones, por isso houve, na época da promulgação da referida lei, mobilizações para que
fossem acrescidas as discussões sobre os indígenas. Em 2008, foi sancionada a Lei 11.645,
alterando novamente a LDB 9.394/1996 e a Lei 10.639/2003, passando assim a ter nova redação
o Art. 26-A, como destacamos a seguir:

Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio,


públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-
brasileira e indígena.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos
aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população
brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história
da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a
cultura negra e indígena brasileira, e o negro e o índio na formação da
sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social,
econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos
indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar,
em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.

Dessa maneira, foram acrescidos ao currículo escolar também os estudos sobre a história
e a cultura indígena. No entanto, da mesma forma que esta implementação teve dificuldades no
tocante à história e à cultura afro-brasileira, quanto à formação docente, isso se repete com a
história dos povos indígenas, inclusive na disciplina geográfica.
Em oposição, setores conservadores brasileiros que se colocam contra políticas
afirmativas e emancipação de segmentos historicamente marginalizados também se
mobilizaram e apresentaram outro projeto de lei, que propõe mudanças às diretrizes da
educação nacional. O PL 867/2015 propõe o “Programa Escola sem Partido”, que tramita na
Câmara Federal há cinco anos.

PL 867/2015: Escola “sem” Partido

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O Projeto de Lei nº 867, de 2015, proposto pelo então deputado federal Izalci Lucas, do
PSDB/DF, defende a inclusão entre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional do “Programa
Escola sem Partido”, o qual, no seu artigo 4º, enfatiza que o professor no exercício das suas
funções:
I - Não se aproveitará da audiência cativa dos alunos, com o objetivo de
cooptá-los para esta ou aquela corrente política, ideológica ou partidária;
II - Não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas convicções
políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta delas;
III - Não fará propaganda político-partidária em sala de aula nem incitará seus
alunos a participar de manifestações, atos públicos e passeatas;
IV - Ao tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, apresentará
aos alunos, de forma justa, as principais versões, teorias, opiniões e
perspectivas concorrentes a respeito;
V - Respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral
que esteja de acordo com suas próprias convicções;
VI - Não permitirá que os direitos assegurados nos itens anteriores sejam
violados pela ação de terceiros, dentro da sala de aula.

Tal projeto coloca a “neutralidade” para o processo educativo e delega aos pais a
“educação moral”, de acordo com suas “convicções”; além disso ressalta que o docente, ao
tratar de questões políticas, socioculturais e econômicas, deverá apresentar aos alunos, de forma
“justa”, estes dados, etc. Questiona-se se é possível haver neutralidade na prática educativa, se
a convicção a ser respeitada for a liberal e se a justiça no trato das questões políticas,
socioculturais e econômicas seja a “justiça” do capital. Além disso, o projeto, em seu artigo 7º,
incentiva pais e estudantes a delatarem os professores à Secretaria de Educação e ao Ministério
Público.
Nas suas justificativas, o projeto de lei afirma que:

É fato notório que professores e autores de livros didáticos vêm-se utilizando


de suas aulas e de suas obras para tentar obter a adesão dos estudantes a
determinadas correntes políticas e ideológicas; e para fazer com que eles
adotem padrões de julgamento e de conduta moral – especialmente moral
sexual – incompatíveis com os que lhes são ensinados por seus pais ou
responsáveis.

Quais seriam os padrões de conduta moral incompatíveis com o que os pais ensinam?
Seriam os questionamentos voltados para as ações patriarcais, as violências e os preconceitos
existentes, que minam o status quo existente? Tais proibições desejam o esvaziamento da
prática educativa, impedindo a autonomia de questionamentos à realidade existente e,
consequentemente, a possibilidade de sua transformação.
Frigotto (2017, p. 31), discutindo as consequências da implementação do referido
projeto de lei, reitera que:
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O que propugna o Escola sem Partido não liquida somente a função docente,
no que a define substantivamente e que não se reduz a ensinar o que está em
manuais ou apostilas, cujo propósito é de formar consumidores. A função
docente, no ato de ensinar tem implícito o ato de educar. [...] A pedagogia da
confiança e do diálogo crítico é substituída pelo estabelecimento de uma nova
função: estimular os alunos e seus pais a se tornarem delatores.

Isso ocorre em consonância com a lógica liberal de desvalorização do trabalho docente


na escola pública, de culpabilização dos servidores públicos pela questão fiscal e de desmonte
das políticas públicas em favor da iniciativa privada, com a defesa do Estado mínimo. Por isso,
passa-se a anular o Estado de Direito e a defender o Estado policial.
Além disso, o programa escola “sem” partido deseja uma escola de partido absoluto e
único em que reine:

A intolerância com as diferentes ou antagônicas visões de mundo, de


conhecimento, de educação, de justiça, de liberdade; partido, portanto, da
xenofobia nas suas diferentes facetas de gênero, de etnia, da pobreza e dos
pobres, etc. Um partido que ameaça os fundamentos da liberdade e da
democracia. (FRIGOTTO, 2017, p. 31).

Os princípios da escola “sem” partido passaram também a ser disseminados pelas redes
sociais e têm ampliado as posturas racistas, machistas, homofóbicas, entre outras. E, mesmo
que o referido projeto seja inconstitucional e ainda tramite em nível federal, tem conseguido
adeptos em outras esferas federativas e passou a ser aprovado em instâncias municipais e
estaduais pelo Brasil.
No Estado da Paraíba, ele conseguiu aprovação no município de Campina Grande,
através do PL nº 582/ 2017, proposto pelo vereador Antônio Alves Pimentel Filho, trazendo a
discussão da “ideologia de gênero”, referendada pelos seguidores do Movimento Escola sem
Partido (MESP). Este grupo contribuiu significativamente para o apoio de parlamentares do
campo conservador, divulgando fake news durante os últimos processos eleitorais, além de
fazer propagandas de seus candidatos. Dessa forma, fica clara a sua proposição de ser “braço
parlamentar” de setores conservadores da política brasileira.
Contudo, também houve reação no nível da esfera estadual da Paraíba, que promulgou
a Lei nº 11230, de 10/12/2018, a qual “dispõe sobre a liberdade de expressar pensamentos e
opiniões no ambiente escolar das redes pública e privada de ensino da Paraíba”, também
chamada Lei da “Escola sem censura”, em contraposição ao Projeto de Lei “Ideologia de
gênero”, aprovado em Campina Grande.
Desse modo, também existe resistência a essa lógica de dominação, que propaga o ódio,
ampliando as violências e os desrespeitos diversos. Por isso, mais do que nunca, a educação

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torna-se fundamental para contribuir com as mudanças necessárias. Sendo assim, a seguir, serão
analisados dois documentos curriculares de Geografia, propostos em momentos históricos
diferentes, mas com predominância das políticas voltadas para a lógica neoliberal no Brasil, a
partir da década de 1990 e no contexto atual, principalmente após as eleições de 2018.

Parâmetros Curriculares Nacionais de Geografia: Ensino Fundamental

Os PCNs foram aprovados em 1998 e receberam críticas por não terem sido debatidos
com os profissionais em educação na sua elaboração. Além disso, os Parâmetros Curriculares
de Geografia foram fundamentados principalmente na corrente de pensamento geográfico
humanista. Neste documento, a diversidade cultural é tratada através da:

Abordagem humanista [que] prevê por si mesma um tratamento metodológico


na linha proposta pelo documento de Pluralidade Cultural. Isto pode ser visto
a partir mesmo de alguns objetivos mais gerais, que são comuns à Geografia,
desde a caracterização dos espaços dos diferentes segmentos culturais que
marcam a população brasileira, até os estudos de como as paisagens, lugares
e regiões brasileiras expressam essas diferenças. (BRASIL, 1998, p. 43).

Entretanto, essa discussão ocorre de forma ampla, não aprofundando as contradições


existentes nos espaços a partir dos segmentos culturais, como também não foca os diversos
grupos minoritários e suas inter-relações nos espaços cotidianos. E quando há necessidade dessa
análise, enfatiza-se muito mais a questão subjetiva na reflexão espacial.

No seu cotidiano, os alunos convivem de forma imediata com [...]


representações e significados que são construídos no imaginário social.
Quando um aluno muda de rua, de escola, de bairro ou de cidade, ele não sente
apenas as diferenças das condições materiais nos novos lugares, mas também
as mudanças de símbolos, códigos e significados com os lugares. (BRASIL,
1998, p. 23).

Dessa forma, a ênfase dos símbolos e códigos é colocada a partir do imaginário social
construído, desmerecendo as condições históricas e os fenômenos de exploração e subordinação
cultural. Como dizia Milton Santos, considera-se a ação humana como absoluta e não como
condicionada. Nesse sentido, os PCNs destacam que o ensino de Geografia:

Permite que os alunos desenvolvam hábitos e construam valores significativos


para a vida em sociedade. Os conteúdos selecionados devem permitir o pleno
desenvolvimento do papel de cada um na construção de uma identidade com
o lugar onde vive e, em sentido mais abrangente, com a nação brasileira e
mesmo com o mundo, valorizando os aspectos socioambientais que
caracterizam seu patrimônio cultural e ambiental. Devem permitir, também, o
desenvolvimento da consciência de que o território nacional é constituído por
múltiplas e variadas culturas, povos e etnias, distintos em suas percepções e

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relações com o espaço, desenvolvendo atitudes de respeito às diferenças


socioculturais que marcam a sociedade brasileira.

Esta enunciação demonstra novamente o caráter subjetivo na relação com o lugar e


demais escalas geográficas, além de não refletir que a mudança dos valores e o respeito às
diferenças devem ocorrer em todas as escalas, inclusive nos microespaços onde ocorrem as
relações cotidianas.
Os PCNs também enfatizam sobre as relações de poder, como é citado no trecho abaixo,
referindo-se ao quarto ciclo do Ensino Fundamental:

O aluno [...] pode começar a compreender o significado da política e dos


conflitos étnicos e sociais que ocorrem no interior das sociedades. O professor
deverá ajudá-lo na compreensão de que, em grande parte, esses conflitos
nascem da disputa pelo poder, seja de uma classe, etnia ou de um território
sobre outro.

Mas, como no restante do texto, a temática é colocada de forma ampla, sem aprofundar
sobre tais aspectos na esfera local, a partir do lugar vivido. Da mesma forma que os PCNs, a
BNCC também coloca a relação com o lugar sem apontar os seus condicionantes históricos.

Base Nacional Comum Curricular de Geografia: Ensino Fundamental

A BNCC passou por alterações desde o documento inicial proposto pelo Ministério da
Educação (MEC), através de consulta popular. Contudo, em sua versão final, ainda houve a
supressão da palavra “gênero” em várias partes do documento, demonstrando o caráter
conservador do Ministério no contexto atual.
Segundo Tokarnia (2017):

O Ministério da Educação (MEC) retirou do documento da Base Nacional


Comum Curricular (BNCC) [...] trechos que diziam que os estudantes teriam
de respeitar a orientação sexual dos demais. O MEC suprimiu também a
palavra gênero em alguns trechos do documento. A versão divulgada aos
jornalistas [anteriormente] continha esses termos. Segundo a pasta, a última
versão passou por “ajustes finais de editoração/redação”. (p. 01).

Esta supressão pode ser percebida também na parte específica de Geografia, inclusive
nas unidades temáticas que tratam sobre o sujeito e seu lugar no mundo. Milton Santos dizia
que, para ser cidadão do mundo, antes teria que ser cidadão de algum lugar. Entretanto, como
refletir sobre o lugar e sobre a cidadania se tantos cidadãos e cidadãs continuam sendo
desrespeitados nos seus lugares cotidianos?

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Tal ausência pode ser exemplificada quando, nas partes introdutórias da área geográfica,
é feita a seguinte afirmação: “[...] a aprendizagem da Geografia favorece o reconhecimento da
diversidade étnico-racial e das diferenças dos grupos sociais, com base em princípios éticos
(respeito à diversidade e combate ao preconceito e à violência de qualquer natureza)” (BRASIL,
2017, p. 359). Nesse contexto, cita-se a violência de forma ampla, mas não se especifica,
ignorando-se as violências que ocorrem envolvendo o gênero e a racialidade, as quais também
fazem parte da realidade brasileira. Por isso, Gomes (2003, p. 70-71) reitera que:

O reconhecimento dos diversos recortes dentro da ampla temática da


diversidade cultural (negros, índios, mulheres, portadores de necessidades
especiais,1 homossexuais, entre outros) coloca-nos frente a frente com a luta
desses e outros grupos em prol do respeito à diferença. Coloca-nos, também,
diante do desafio de implementar políticas públicas em que a história e a
diferença de cada grupo social e cultural sejam respeitadas dentro das suas
especificidades sem perder o rumo do diálogo, da troca de experiências e da
garantia dos direitos sociais [..].

Destarte, a BNCC atual desrespeita segmentos significativos da população brasileira,


entre eles as mulheres e os homossexuais, pois esconde suas especificidades quando poderia
contribuir para ampliar o debate que envolve a luta contra o preconceito e a violência contra
essas pessoas.
Tal exclusão da temática pode ser evidenciada em trechos do documento, no tocante aos
objetos de conhecimento a serem trabalhados no 5º ano, na medida em que se coloca a
necessidade de discutir as “diferenças étnico-raciais e étnico-culturais e desigualdades sociais”.
No entanto, entre as habilidades a serem desenvolvidas, destaca-se: “Identificar diferenças
étnico-raciais e étnico-culturais e desigualdades sociais entre grupos em diferentes territórios”
(BRASIL, 2017, p. 378). Ou seja, apresenta-se apenas a identificação das desigualdades étnico-
raciais e étnico-culturais, como se fossem condições dadas a esses segmentos, como também
não se ressalta o mesmo aspecto em relação ao gênero.
Além disso, é enfatizado que, nos anos finais do Ensino Fundamental:

É preciso que os alunos ampliem seus conhecimentos sobre o uso do espaço


em diferentes situações geográficas regidas por normas e leis historicamente
instituídas, compreendendo a transformação do espaço em território usado –
espaço da ação concreta e das relações desiguais de poder [...]. (BRASIL,
2017, p. 382).

1
Portador de necessidades especiais é uma nomenclatura contestada pela Declaração de Salamanca e por outros
órgãos internacionais. Atualmente, o termo oficial que foi definido pela Convenção das Nações Unidas sobre o
Direito das Pessoas com Deficiência é pessoa com deficiência.
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No entanto, as relações de poder não são destacadas ao se analisar a diversidade étnico-


cultural da população brasileira. Isso porque, no 7º ano, é colocado o objeto do conhecimento
que trata das características da população brasileira; contudo, na habilidade, cita-se: “Analisar
a distribuição territorial da população brasileira, considerando a diversidade étnico-cultural
(indígena, africana, europeia e asiática), assim como aspectos de renda, sexo e idade nas regiões
brasileiras”. E, embora se ressalte, a diversidade sexual é verificada a partir da distribuição nas
regiões brasileiras, sem frisar como isso ocorre em nível local, inclusive com os indivíduos de
origem africana e indígena. Posto isto, as relações de poder são visualizadas a partir de escalas
mais distantes, sem discuti-las a partir das vivências dessas pessoas.
Além dos aspectos já colocados anteriormente, têm sido feitas críticas contundentes aos
procedimentos metodológicos que baseiam as competências e habilidades, bem sintonizadas
com o projeto neoliberal que influencia as propostas educacionais. Nesta perspectiva, Frigotto
(2015, p. 16) destaca a fundamentação tecnicista desta concepção frisando que:

O empregável forma-se por competências e estas são aquelas requeridas pelo


mercado. O trabalhador, individualmente, que busque estar atento ao que o
mercado espera dele. Por consequência, quem deve, de forma gradativa,
orientar, inclusive as escolas estatais públicas, os currículos, os conteúdos e
os métodos de ensino e de avaliação são institutos vinculados aos setores
produtivos privados [...].

Dessa forma, fica claro que o currículo está impregnado pelos interesses de mercado, os
quais, a partir da lógica liberal definem o tipo de qualificação profissional que lhes interessa.
Ademais, setores do fundamentalismo religioso também estão influenciando o que deve e o que
não deve estar presente nas propostas curriculares.

O espaço escolar, o ensino de Geografia e a diversidade: um olhar


sobre a Geografia Crítica

As discussões educacionais realizadas nas últimas décadas transitam entre projetos


tecnicistas e voltados para os interesses do capital e de setores conservadores da sociedade, mas
também recebem reações de segmentos que encontram, na escola, espaço de luta pela
democratização e mobilização contra as injustiças. Segundo Giroux (1987, p. 83):

O sistema escolar (...) é um terreno político e ideológico, a partir do qual a


cultura dominante produz, em parte, suas certezas ideológicas; mas também é
um espaço onde as vozes dominantes e subordinadas, por meio de constante
batalha e intercâmbio, definem-se e limitam-se mutuamente, em resposta às
condições sócio-históricas “carregadas” pelas práticas institucionais, textuais
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e vividas, que determinam a cultura escolar e a experiência professor/aluno


em uma especificidade de tempo e espaço.

Sendo assim, as especificidades no tempo e espaço escolar vão conter inter-relações que
se diferenciam nas diversas áreas do conhecimento, entre elas na Geografia Escolar. Desse
modo, as normatizações e as propostas curriculares terão influências distintas conforme os
agentes locais que atuam nas escolas.
Os PCNs, produzidos na década de 1990 com seu caráter mais subjetivista, com ampla
influência da Geografia Humanista, recebeu críticas e não conseguiu se colocar como um
documento padrão. Além disso, a diversidade nos espaços locais foi tratada sem se averiguar
as contradições e as relações de poder ali presentes.
Do mesmo modo, a BNCC, que traz em seu bojo discussões sobre o raciocínio
geográfico consoante a Geografia Tradicional e uma postura tecnicista, baseada em habilidades
e competências, também tem sofrido severas críticas. Porém, o contexto autoritário da política
brasileira atual tem imposto aos estados e municípios e às Diretrizes de Formação Docente a
utilização da BNCC como documento base em cada área, inclusive negando questões relativas
à diversidade regional e às desigualdades sociais presentes na população brasileira.
Nesse contexto, a Geografia Crítica pode contribuir de forma significativa para ampliar
discussões necessárias no espaço escolar que proporcionem mudanças nas posturas das pessoas
e numa convivência mais respeitosa, invertendo as relações de poder ali existentes.
Os educadores geográficos críticos precisam ampliar seus horizontes neste caminho
necessário da disciplina escolar, pois o próprio Milton Santos foi criticado em seus últimos
trabalhos, por ter agregado questões subjetivas às análises espaciais. Mas ele conseguiu
entender que o capital, mais do que nunca, tem influenciado a subjetividade humana e, por isso,
nós enquanto geógrafos críticos também temos de analisar de que forma esta influência tem
possibilitado maior exclusão e violência às diversidades nos diferentes espaços.

Considerações finais

As normatizações e documentos curriculares que trataram sobre as diversidades,


principalmente a partir das inter-relações nos microespaços, especificamente envolvendo
indígenas, negros e mulheres, trouxeram avanços e retrocessos conforme as políticas
educacionais implementadas no Brasil nas últimas décadas.

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Isso se deu, principalmente, através da mobilização de setores progressistas ou


conservadores que influenciaram esses documentos. Desse modo, é necessário que os
movimentos que lutam pelas transformações necessárias estejam alertas e atuantes.
Assim a Geografia Crítica, como fortalecedora da geografia militante, precisa ampliar
suas análises, influenciando também os espaços educacionais e contribuindo para a formação
cidadã comprometida com as mudanças socioespaciais.

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A QUESTÃO RACIAL E A GEOGRAFIA ESCOLAR


CRÍTICA: CAMINHOS PARA UMA EDUCAÇÃO
ANTIRRACISTA

EL TEMA RACIAL Y LA GEOGRAFÍA ESCOLAR CRÍTICA: CAMINOSHACIA LA


EDUCACIÓN ANTIRRACISTA

João Manoel de Vasconcelos Filho (2)

Aiala Colares Oliveira Couto (1)

(1)
Doutor em Ciências do Desenvolvimento Socioambiental (NAEA-UFPA) e professor Assistente IV da
Universidade do Estado do Pará.
E-mail: aialacouto@uepa.br

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DOSSIÊ: “Por uma Geografia Escolar Crítica”

Resumo

O presente ensaio tem como objetivo apresentar reflexões provocativas acerca das práticas pedagógicas do
ensino de Geografia crítica nas escolas. Durante o movimento da chamada Geografia crítica, as questões
étnicorraciais foram negligenciadas ou invisibilizadas nos vários debates que trouxeram temas pertinentes que
tratavam das contradições históricas da relação capital e trabalho. Todavia, destaca-se que o racismo se
constituiu como uma ferramenta importante na estruturação do capitalismo e, por isso, vários problemas de
ordem política, econômica, social e cultural têm suas bases na ideia de raça. Portanto, o ensino de Geografia
escolar deve partir de pedagogias antirracistas na sala de aula e nas escolas, contribuindo para o enfretamento
ao racismo.

Palavras-chave
Geografia. Ensino. Antirracista

Resumen
Este ensayo tiene como objetivo presentar reflexiones provocativas sobre las prácticaspedagógicas de la
enseñanza de la geografía crítica en las escuelas. Durante el llamadomovimiento de Geografía Crítica, las
cuestiones étnico-raciales fueron descuidadas oinvisibilizadas en los diversos debates que plantearon temas
pertinentes que abordaronlas contradicciones históricas de la relación entre capital y trabajo. Sin embargo, es
dedestacar que el racismo se ha constituido como una herramienta importante en laestructuración
del capitalismo y, por tanto, varios problemas políticos, económicos,sociales y culturales se basan en la
idea de raza. Por tanto, la enseñanza de la geografíaescolar debe partir de pedagogías antirracistas en
el aula y en las escuelas,contribuyendo a la lucha contra el racismo.

Palabras clave:
Geografía. Enseñanza. Antirracista.

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DOSSIÊ: “Por uma Geografia Escolar Crítica”

A geografia crítica e a invisibilidade da questão racial

D
e início, destaca-se que a Geografia crítica se apresenta como uma nova
corrente do pensamento que surge na segunda metade do século XX em
países como: EUA, Inglaterra, Suécia, Itália, França e Brasil. Na escola
americana a chamada Geografia radical teve grande destaque nas publicações da revista
Antipode durante os anos de 1960 e 1970. Mas, a celebre obra de Yves Lacoste intitulada “A
geografia antes de mais nada serve para fazer a guerra” (1976) cria o termo Geografia crítica
com grande repercussão na Europa, principalmente na Escola francesa, que tinha geógrafos
fortemente influenciados pela escola americana de Geografia. Somado a isso, cabe aqui destacar
a importância das publicações de textos e artigos da revista francesa Herodote.
Diante disso, a Geografia crítica é uma corrente contrária à geografia quantitativa, pois
considera as contradições sociais resultantes do modo de produção capitalista e da divisão
internacional de trabalho, os quais afetam negativamente principalmente os países
subdesenvolvidos. Portanto, ela se soma aos vários movimentos que buscam romper com esse
modelo contraditório que invisibiliza questões centrais que fazem entender a lógica de
organização e expansão do capital.
Para Corrêa (2001, p. 23), a Geografia crítica coloca-se como “uma revolução que
procura romper, de um lado, com a geografia tradicional e, de outro, com a geografia teorético-
quantitativa”. Moreira (2008) faz uma importante observação acerca da ciência geográfica, isso
porque, para este autor, somente é possível entender a Geografia se a analisarmos como uma
ciência social que tem o espaço como seu objeto de estudo, mas não um espaço que é
receptáculo das ações, apenas a base física, mas um espaço que é produzido socialmente, a
partir do trabalho. Em sua necessidade de sobrevivência, o homem intervém na natureza
transformando-a, via processo de produção de bens necessários à sua existência; ao mesmo
tempo em que nessa relação produz o espaço geográfico transforma a si mesmo de um ser
animal em um ser social.
Para Moraes (1999), no nível acadêmico, os geógrafos críticos opõem-se ao empirismo
exacerbado da Geografia tradicional, além de refutarem sua análise pautada no mundo das
“aparências”, decorrente da fundamentação positivista, a qual visa a busca de um objeto
automatizado, a ideia absoluta de lei, não se preocupando com a diferenciação das qualidades
distintas dos fenômenos humanos, entre outros. A geografia pragmática, também com
fundamentação neopositivista, é fortemente criticada pelo conteúdo acrítico, “alienante”,
vinculado à legitimação do poder do Estado burguês. A seguir, destaca-se a tabela 01
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simplificada que tenta apresentar de forma didática a evolução das correntes do pensamento
geográfico.
Tabela 01: Correntes do pensamento geográfico
ESCOLA CORRENTE CONTEXTO CONCEITOS
- Tradicional alemã Determinismo Final do séc. Espaço vital e território
XIX
- Tradicional francesa Possibilismo Primeira Região e paisagem
metade do
séc. XX
- Lógico-positivista Teorética- Década de Espaço relativo
quantitativa 1950
- Materialista dialética; Geografia Década de Espaço, região, território, lugar,
- Fenomenológica; crítica 1970 natureza, redes, paisagem,
- Existencialista sociedade etc.
Fonte: adaptado de Moraes (1999).

Embora as correntes do pensamento geográfico tenham passado por um processo de


evolução – que sai de uma Geografia clássica tradicional e passa para uma Geografia crítica
mais aberta à análise das questões sociais e contraditórias impostas pelo modo de produção
capitalista – em grande medida, ainda foram muito tímidas ou incipientes as abordagens que
consideravam as relações entre classe, raça e gênero como elementos importantes para a
compreensão dos conflitos sociais. É preciso chamar a atenção para a necessidade de se
compreender que raça e racismo são elementos estruturais do capitalismo (MBEMBE, 2019),
logo, não estão desvinculados da estrutura de classe, da relação sociedade-natureza, da
exploração do trabalho, da dominação de gênero e da dominação religiosa.
Nesse contexto, a geografia acaba por reproduzir a ciência colonial que transforma o
corpo-negro-sujeito em corpo-negro-objeto, tendo na raça uma tecnologia de poder, como nos
alertou Foucault (1976), e no racismo um dispositivo de violência, como destaca Mbembe
(2018). Desse modo, a geografia política que nasce na França e na Alemanha teve na
necropolítica1 (MBEMBE, 2006) sua ferramenta de sujeição e docilização dos corpos – fato
este que deve ser considerado pela Geografia crítica.
No Brasil, nos anos de 1970 vivia-se um contexto político marcado pelo autoritarismo
dos governos militares pós-golpe de 1964. Tratava-se de um projeto de modernização
conservador que potencializava problemas sociais e mascarava a perversidade sistêmica da
ditadura; tais fatos passam a ser questionados por artistas, intelectuais, políticos, dentre outros.
É nesta década que a geografia crítica chega ao Brasil através do primeiro encontro da

1
Necropolítica significa a gestão da morte como bem ressalta Mbembe (2006), é deixar morrer e fazer viver, é a
expressão máxima da soberania em decidir quem morre e quem vive.
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DOSSIÊ: “Por uma Geografia Escolar Crítica”

Associação dos Geógrafos Brasileiros (AGB) na cidade de Fortaleza, em 1978, todavia, de


acordo com Vesentini (2001) professores da educação básica (ensino fundamental e médio) já
vinham atuando a partir de uma Geografia crítica, desenvolvendo práticas pedagógicas em sala
de aula por intermédio de um diálogo realizado junto aos professores das universidades.
Vale destacar que a Geografia crítica vai ser uma defensora assídua de uma radical
transformação no ensino de Geografia nas escolas. Ela deveria se apresentar como uma
disciplina que contribuísse para desenvolver habilidades críticas e reflexivas dos alunos. Seria
também uma forma de negar o antigo método tradicional de ensino, o qual se baseava por
técnicas de memorização de conceitos e conteúdos. Desse modo, temas como Globalização e
Revolução Tecnológica, desenvolvimento econômico e relação centro-periferia, dentre outros,
passaram a fazer parte de incansáveis debates dentro das salas de aula.
Apesar de todo esse esforço, ainda é possível se deparar com algumas reflexões acerca
da epistemologia da Geografia que mantêm certa invisibilidade em relação à questão racial.
Isso corresponde a um silenciamento da história dos povos negros, cuja população foi
subalternizada e transformada em objeto de troca pelos processos de conquistas e narrativas
coloniais, fator que ajudou a construir a imagem da bárbara e animalesca do negro e da África,
pois assim se construiu o sujeito racial sob o imaginário ocidental. Assim, fica evidente que a
Geografia tradicional teve destaque na criação desse imaginário e no processo de conquista.
De forma inconsequente encontram-se narrativas que ainda reproduzem uma “geografia
imaginária” (ESCOBAR, 2006) que negligencia a existência de cartografias contra
hegemônicas de outros mundos e outras geografias, os quais o processo civilizatório não
conseguiu apagar totalmente. Não obstante, a resistência desses povos ao mesmo tempo
permitiu manifestações das condições de existências e de vivências que reproduziram
identidades e diferenças tão presentes no espaço geográfico. Por isso, é fundamental que o
trabalho em sala de aula traga estas reflexões e questionamentos, pois a Geografia deve ser
libertadora nesse sentido.
Desse modo, para Cavalcanti (1993, p. 77):

O trabalho do professor deve ser o de partir da realidade do aluno, de suas


observações e sensações – plano sensório – para propiciar a ampliação de
conceitos já existentes e formação de novos conceitos que serão instrumentos
para uma análise crítica – planto abstrato/racional da realidade. Nesse
entendimento, o conhecimento do espaço geográfico parte do plano sensório,
do observável – a paisagem geográfica -, para ir apreendendo suas relações
internas, atingindo, com isso, sua estrutura interna, seu conteúdo – o espaço
geográfico.

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Nestes termos, as transformações que o mundo contemporâneo vem passando,


sobretudo, nos âmbitos econômico, político, social e cultural, exigem um esforço intelectual
em avaliar as formas significativas de aprendizagem e o método de ensino utilizado como
transmissor do conhecimento. Por isso, a Geografia destaca-se em sala de aula por ser uma
disciplina capaz de integrar os diversos conhecimentos para explicar o mundo. Portanto, a
Geografia crítica escolar nos ensinos fundamental e médio deve buscar a sistematização do
conhecimento, trazendo para si questões de classe, raça e gênero. Ela deve, também, se
encarregar de propor quebras de paradigmas que contribuam nas desconstruções de narrativas
que reforçam o racismo, a exclusão e as desigualdades.

O ensino de Geografia crítica e os desafios da luta antirracista no


Brasil

O debate anterior – apresentado de forma breve acerca da evolução do pensamento


geográfico, mesmo sintetizado – teve como proposta trazer algumas reflexões, mesmo que
iniciais, em relação ao lugar das questões raciais nas geografias acadêmicas e escolares. Ele se
estende para além de uma provocação carregada de posicionamento político sob influência da
militância do movimento negro, que denuncia cotidianamente o racismo estrutural e
institucional que violenta, subalterna e invisibiliza a contribuição histórica e geográfica dos
afrodescentes para a construção da América Latina. Esse debate contribui para a compreensão
do território brasileiro e de suas diversidades.
Com efeito, questões importantes devem ser levantadas pelo ensino de Geografia crítica
no contexto escolar. Elas devem servir como formas pedagógica de inclusão de pautas
socioafirmativas em seus currículos, pois, seja nas cidades, seja no campo, os sujeitos a partir
da construção dos sentidos de lugar, território, região, paisagem e espaço têm suas bases de
reprodução da vida em sociedade. E essas relações passam por formas de organização que
trazem como marcas as lutas históricas por afirmação de suas existências.
Certa vez Ana Fani A. Carlos (2007) destacou que o lugar se dá pela tríada habitante-
identidade-lugar. Para a autora, isso se revela no plano da vida do indivíduo, em que este plano
é aquele do local. As relações que os indivíduos mantêm com os espaços habitados se exprimem
todos os dias nos modos do uso, nas condições mais banais, no secundário, no acidental. É o
espaço passível de ser sentido, pensado, apropriado e vivido por meio do corpo. Mas, é também
no plano do vivido que se dão as grandes contradições que elegem o racismo como uma
tecnologia de poder que cria as condições estruturais que colocam a população negra em

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condição de vulnerabilidade e sujeita ao extermínio e a todos os tipos de violência e exclusão.


Então, como fazer esse debate a partir do ensino de geografia?
Para Holzer (1992, p. 4440), “O espaço vivido é uma experiência contínua, egocêntrica
e social, um espaço de movimento e um espaço-tempo vivido... (que) ... Se refere ao afetivo,
ao mágico, ao imaginário”. Entende-se aqui que se deve partir do princípio de que na geografia
a efetivação de sua práxis pedagógica ocorre por meio de um processo ensino-aprendizagem
fundamentado no princípio da flexibilidade curricular e na transposição do ambiente de sala de
aula; num processo constante de integração com a sociedade e suas lutas e resistências.
Se o professor deve partir da realidade dos alunos para levar para sala de aula temas
importantes da sociedade, que os fazem compreender as contradições socioespaciais, ele deve,
antes de tudo, fazer o esforço de obter conhecimento sobre o tema da diversidade étnica e
cultural no Brasil, assim como, deve também ter a noção da importância de tratar de temas que
ajudam na desconstrução de estereótipos e preconceitos criados pelas heranças da
colonialidade. É uma aprendizagem necessária para o educando ter um conhecimento amplo
sobre a construção da geografia no mundo.
Para Kimura (2008.p. 47),

A aprendizagem realizada facilita uma obtenção subsequente de informações,


uma vez que os dados a serem incorporados adquirem contornos em um
mundo que se vai construindo no ser humano, servindo como referência para
essa incorporação. Não é uma incorporação nos mesmos termos anteriormente
realizados pelo ser humano; ela integra o processo de aprendizagem que se dá
na interação, na relação ativa do ser humano e o fazer, com mundo que é o seu
ambiente.

Para ser de fato crítica essa aprendizagem deve demostrar que no Brasil o racismo
estrutural é uma prática cotidiana que vitimiza mulheres e homens, negras e negros, crianças,
jovens e idosos e que a população afrodescendente convive com situações constrangedoras
difundidas por narrativas e iniciativas de pessoas que promovem o racismo. Portanto, o racismo
é um tipo de violência simbólica, psicológica e até mesmo física, a qual está presente nas
relações sociais e na construção do espaço geográfico.
O professor pode, inclusive, utilizar dados estatísticos que tratam da distribuição
espacial da população negra no Brasil, dados sobre violência, ocupação, subemprego, dentre
outros. É necessário compreender que o racismo estrutural reproduz as formas mais perversas
de desigualdades sociorraciais presentes na sociedade brasileira. Diante disso, há uma dívida
histórica do Estado em relação aos afrodescendentes, logo, são necessárias medidas de inclusão
– como as políticas socioafirmativas, a exemplo do sistema de cotas raciais e reservas de vagas

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para o ingresso ao ensino superior público. Apesar de importantes, essas medidas tornaram-se
polêmicas e sofrem severas críticas daqueles que negam e naturalizam tal prática por
acreditarem na existência de uma “democracia racial”.
Não se pode negar as transformações que o mundo vem sofrendo nas últimas décadas
em relação ao conteúdo social. Hoje, pautas importantes são levantadas por militantes que
tentam desconstruir um padrão hegemônico de sociedade, o qual se fundamenta em um modelo
Ocidental-hétero-normativo-branco-cristão. Nesse cenário, surgem pautas como o respeito às
diversidades de gênero; pautas feministas das mulheres que lutam por igualdade de direitos e
pelo fim do patriarcado que reproduz o machismo e a violência contra a mulher; pautas como
o direito dos povos originários das Américas e o direito à vida da população negra que luta
contra o racismo que mata, daí o slogan “vidas negras importam”. É em meio a esse debate que
a Geografia crítica deve ganhar destaque em sala de aula como a disciplina capaz de integrar
os diversos conhecimentos para explicar o mundo e sua complexidade.
O desafio da Geografia escolar nos ensinos fundamentais e médios é contribuir para a
sistematização do conhecimento, passando por um processo de descolonização do saber2. Os
movimentos de resistências das populações exigem um esforço intelectual e um posicionamento
da Geografia em avaliar as formas mais significativas de aprendizagem e o método de ensino
utilizado como intermediador de um conhecimento que pode ser preconcebido a partir da
vivência do aluno. Logo, cabe à escola um ensino verdadeiramente crítico de Geografia, a fim
de torná-la mais apropriada para explicar o mundo atual e sua metamorfose.
Para Moares (1999), vários geógrafos críticos passaram a ter um posicionamento em
defesa de uma transformação da realidade social, tendo o saber como importante arma para esta
transformação. Assim, o conhecimento científico assume um conteúdo fortemente político e,
portanto, a Geografia deve ser militante, isto é, lutar por uma sociedade mais justa e servir como
um instrumento de libertação dos homens, pois ela tem condições de fazer uma análise do
conjunto de relações que atuam no processo de construção do Espaço Geográfico.
O ensino de Geografia hodiernamente requer dos professores a formulação de questões
centrais, de forma que despertem o interesse dos alunos para que a partir daí eles possam
entender o significado de se ensinar e aprender Geografia. Alguns autores afirmam que o ensino
de Geografia é fundamental para que as novas gerações acompanhem e entendam as
transformações do mundo o que dá um status que a disciplina não possuía. Oliveira (1998) apud

2
A colonialidade do saber diz respeito às formas coloniais que foram impostas pelos colonizadores e que
permanecem enquanto um colonialismo interno do ser, saber e do poder. Esse tema é encontrando no texto de
Anibal Quijano (2005).

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Straforini (2004, p. 51) acredita que existe um renovado interesse pelo estudo da Geografia em
virtude do processo de aceleração da Globalização. Nesse sentido, a Geografia se destaca como
a única disciplina que possibilita o acompanhamento das transformações recentes de forma
integrada. É nesse contexto que questões centrais sobre a luta antirracista no Brasil e no mundo
deve aparecer como um conteúdo interdisciplinar e transversal.
Porém, ao analisar o contexto de ensino de Geografia observa-se que as questões raciais
são excluídas ou pouco exploradas em temas de urbanização e população, por exemplo, e, não
raro, o continente africano é tratado como uma região de conflitos, pobreza, miséria, guerras e
endemias, como se na África não houvesse aspectos positivos em relação à sua história e
cultura. Assim, história da África aparece nos livros de Geografia limitada por um olhar
moderno-colonial civilizatório, cuja análise nega o lugar de fala dos sujeitos e reproduz
processos de violências epistêmicas, as quais passam despercebidas nos debates em sala de
aula.
Mesmo diante das contradições que faziam parte da vida dos escravos, estes trouxeram
para a colônia seus hábitos, suas crenças, formas e expressões religiosas e artísticas, ou seja,
manifestações socioculturais que precisam ser apresentadas como elementos identitários
presentes nas várias formas de produção do espaço geográfico, considerando o espaço
geográfico como “um conjunto indissociável, solidários e contraditórios, de sistemas de objetos
e sistemas de ações” (SANTOS, 1996, p. 63).
A formação de professores de Geografia no contexto brasileiro, de acordo com Brasil
(2008), deve ter uma

política curricular, fundada em dimensões históricas, sociais, antropológicas


oriundas da realidade brasileira, e busca combater o racismo e as discriminações
que atingem particularmente os negros. Nesta perspectiva, propõe-se a
divulgação e produção de conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e
valores que eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnicorracial –
descendentes de africanos, povos indígenas, descendentes de europeus, de
asiáticos – para interagirem na construção de uma nação democrática, em que
todos, igualmente, tenham seus direitos garantidos e sua identidade valorizada.

Somos o último país do mundo a declarar o fim da escravidão. Foram sustentados cerca
de 300 anos de escravidão e mesmo após o fim desse sistema o próprio Estado – alinhado ao
discurso da elite branca – criou todas as formas de invisibilidade, exploração e exclusão dessa
população. Os dados estatísticos sobre as questões sociais no Brasil se encarregam de conformar
a necessidade de políticas públicas inclusivas para as negras e os negros que se encontra nas
áreas periféricas das grandes cidades, nas áreas de conflitos fundiários no campo, nas zonas de
tensão social, no subemprego e no trabalho precário. Esse grupo sociorracial está nas evasões
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escolares da rede pública de ensino, nos baixos índices educacionais com altas taxas de
analfabetismo e na exploração do trabalho infantil.
Por isso, “a Geografia, necessariamente, deve proporcionar a construção de conceitos
que possibilitem ao aluno compreender o seu presente e pensar o futuro através do
inconformismo com o presente. Mas esse presente não pode ser visto como algo parado,
estático, mas sim em constante movimento” (STRAFORINI, 2005, p. 50). O professor
enquanto sujeito mediador do saber que transmite ao aluno deve também avaliar sua própria
formação e rever suas práticas pedagógicas, mas, com o objetivo de criar um desenvolvimento
autônomo do aluno, analisando teoria e praticidade.
Vesentini (1999) é categórico ao afirmar que, com a Globalização, a escola não tem
somente a função de desenvolver a inteligência, o senso crítico, a criatividade a iniciativa
pessoal, mas também discutir os grandes problemas do mundo. Nesse ínterim, é fato que um
dos grandes problemas do mundo é não compreensão de que a primeira mercadoria global do
capitalismo foi o Negro sequestrado da África pelo tráfico de escravos do Atlântico, que
construiu as bases para o capitalismo comercial, ou seja: as mesmas que ajudaram a construir o
racismo no mundo.
Por fim, deve-se atentar para o fato de que não é tarefa única e exclusiva da Geografia
o papel de transformação da sociedade. Um debate interdisciplinar envolvendo o diálogo com
as outras disciplinas é o mais coerente. Assim, a interação entre os diversos campos do
conhecimento seria alternativa mais eficaz para a construção de cidadãos mais críticos e
conscientes de seus deveres e direitos. Uma sociedade justa e solidária com a luta antirracista é
mister dentro e fora dos ambientes escolares; portanto, professor, aluno, escola e sociedade
devem estar alinhados em uma interação constante com os saberes construídos a partir de
verdades escondidas ou nunca ditas antes e que hoje devem aparecer no currículo escolar,
sobretudo, no ensino de Geografia crítica.

A luta antirracista no Brasil e o papel do ensino de Geografia

A chamada para o compromisso do ensino de Geografia crítica no contexto escolar vem


num momento importante de luta antirracista no Brasil e no mundo. Esse contexto também traz
lembranças de algumas conquistas das comunidades negras que foram marcadas pela criação
de Leis Federais durante os governos dos presidentes Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2010)
e Dilma Rousseff (2011 a 2016). Nesse sentido, destacam-se leis importantes, como:

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a) Lei n° 10.639/03, que foi alterada pela Lei n° 11.645/08, o que representa um marco
histórico na política educacional brasileira, onde orienta-se os sistemas de ensino e as
suas instituições a incorporarem o tema da diversidade étnicorracial e indígena no Brasil
aos seus projetos políticos pedagógicos e, por conseguinte, em suas práticas
educacionais;
b) Lei n° 12.288/10, que institui o Estatuto da Igualdade Racial, destinado a garantir à
população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos
étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas
de intolerância étnica;
c) Lei n° 12.711/12, que destina a reserva de 50% das vagas matriculadas por curso nas
Universidades e Institutos Federais para alunos oriundos integralmente do ensino
público. As demais 50% vagas continuam destinadas para ampla concorrência.

Para Souza (2009), a população negra e a cultura afro-brasileira propiciam ao


professor(a) condições de rever práticas e posturas, conceitos e paradigmas na construção de
uma educação antirracista que preze pela diversidade e igualdade racial. Segundo Kaercher
(1997, p. 61), “a geografia pode ser um instrumento valioso para elevarmos a criticidade de
nossos alunos. Por tratar de assuntos polêmicos e políticos, a Geografia pode gerar um sem
número limite quebrando-se assim a tendência secular de nossa escola como algo tedioso e
desligado do cotidiano".
Para Munanga e Gomes (2006), o debate sobre as políticas de ação afirmativa e de cotas
em benefício dos alunos negros e pobres no ensino público universitário parte do quadro das
desigualdades sociais e raciais gritantes acumuladas ao longo dos anos entre brancos e negros.
Essas desigualdades são observadas em todos os setores da vida nacional: mercado de trabalho,
sistema de saúde, setor político, área de lazer, esporte, educação, entre outros. Ora, no meio de
todas essas desigualdades, a educação ocupa uma posição de destaque como centro nevrálgico
ao qual são umbilicalmente vinculadas todas as outras.
Para Silvério (2006), as políticas de ação afirmativa são, antes de tudo, políticas sociais
compensatórias. Quando designamos políticas sociais compensatórias queremos dizer que são
intervenções do Estado, a partir de demanda da sociedade civil, as quais garantem o
cumprimento de direitos sociais, que não são integralmente cumpridos pela sociedade. As
políticas sociais compensatórias, por sua vez, abrangem programas sociais que remediam
problemas gerados em larga medida por ineficientes políticas preventivas anteriores ou devido
à permanência de mecanismos sociais de exclusão. Uma outra característica das políticas

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compensatórias é que elas têm uma duração definida, isto é, elas podem deixar de ter vigência
desde que inexistam os mecanismos de exclusão social que lhes deram.
O ensino de geografia no Brasil assume a responsabilidade de acompanhar as
transformações do mundo e promover a interação com a sala de aula, facilitando o papel do
aluno enquanto sujeito social e transformador do espaço geográfico. Assim, deve-se “provocar
o educando para conhecer e conquistar o seu lugar no mundo em uma teia de justiça social.
Parece ser simples, mas não é, no mínimo, desafiador, como toda prática pedagógica”
(CASTROGIOVANNI, 2007, p. 44).

E para isso é fundamental uma adoção de novos procedimentos didáticos: não


mais apenas ou principalmente a aula expositiva, mas, sim, estudos do meio
(isto é, trabalhos fora da sala de aula), dinâmicas de grupo e trabalhos
dirigidos, debates, uso de computadores (e suas redes) e outros recursos
tecnológicos, preocupações com atividades interdisciplinares e com temas
transversais etc. (VESENTINNI, 2004, p. 228).

Nesse sentido, o ensino de Geografia, quando considerados esses elementos, torna-se


uma importante ferramenta de luta e resistência ao racismo, à discriminação e ao preconceito,
pois é importante trabalhar em sala de aula as categorias geográficas de espaço, território, lugar,
paisagem e região, demostrando a relação desses conceitos com a formação dos espaços de
resistências da população negra, destacando-se, então, as periferias, favelas e os territórios
remanescentes quilombolas no campo.
A luta do movimento negro brasileiro pelo fim das desigualdades raciais teve grande
contribuição para a criação da Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010, já apresentada neste texto
como o Estatuto da Igualdade Racial. Desse modo, em seu Art. 1° esta Lei institui o Estatuto
da Igualdade Racial, destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de
oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à
discriminação e às demais formas de intolerância étnica. Faz-se necessário um saber-fazer que
ajude na construção de um projeto de descolonização dos saberes e dos sujeitos, através do
ensino de uma Geografia crítica antirracista, “no intuito de que este saber, fundamental na
construção de visões de mundo e comportamentos e posicionamento, contribua com o projeto
de educar para a igualdade racial” (SANTOS, 2009, p. 22).
O ensino de Geografia crítica antirracista também pode se apresentar enquanto uma
ferramenta ou instrumento de luta contra a violência ou genocídio da população negra no Brasil.
Existe uma Geografia particular que define quem morre e quem vive, estabelecendo uma
necropolítica (MBEMBE, 2006) que torna corpos negros matáveis e reforça a naturalização das
políticas de extermínio relacionadas ao racismo de Estado. Analisar esse fenômeno pelo

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componente espacial é dever do ensino de Geografia, mas ela deve explicar o contexto
considerando as questões raciais.
Os resultados da pesquisa desenvolvida pelo Instituto de Pesquisas Econômicas
Aplicadas (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) apresentaram o Atlas
da Violência 2019 e os números divulgados só reforçam as colocações acima. De acordo com
o estudo, a diferença da morte de negros em relação a dos brancos é significativa. Por exemplo,
em 2016 o percentual de negros assassinados no Brasil era de 71,6% e em 2017 houve um
incremento desses números, passando para 75% das vítimas de homicídio. Ou seja, a taxa de
homicídios de negros (pretos e pardos) por grupo de 100.000 habitantes em 2017 foi de 43,1 e
a de não negros (brancos, amarelos e índios) foi de 16,0. Nestes termos, para cada indivíduo
não negro assassinado a de negros tem uma taxa de 2,7.
De acordo com os dados do Atlas da Violência (2019), em um período de 10 anos,
correspondendo de 2007 a 2017, a taxa de letalidade de negros no Brasil cresceu 33% e a de
não negros de 3,3%. Uma avaliação apenas do ano de 2017 apresenta um índice com redução
de 0,3% das mortes de não negros e um aumento de 7,2% de negros. O Brasil registrou 65.602
homicídios em 2017, o que equivale a uma taxa de aproximadamente 31,6 mortes para cada
cem mil habitantes. É o maior nível histórico de letalidade violenta intencional no país.
Nesse mesmo ano 35.783 jovens foram assassinados no Brasil, um dado preocupante
que representa um índice de 69,9 homicídios para cada 100 mil jovens. Ainda segundo esse
estudo, entre 2016 e 2017 houve no Brasil um aumento de 6,7% na média de homicídios de
jovens. Na última década esse número passou de 50,8 pessoas entre 15 e 29 anos executadas
por grupo de 100 mil jovens em 2007, para 69,9 em 2017 – aumento de 37,5% sendo este
crescimento um recorde histórico em relação à morte de jovens. Esses dados demostram que há
uma desigualdade sociorracial histórica no Brasil e que só pode ser resolvida com políticas de
inclusão.
No Brasil, o Estado sustenta-se em políticas e ações que mantêm uma estrutura
escravocrata em sua essência, tendo uma sociedade racista que reproduz discursos de morte.
Esses discursos soam como narrativas que justificam uma política de extermínio direcionada,
sobretudo, para a população negra dispersa nas favelas e periferias das grandes cidades
brasileiras. Então, o racismo é um regulador da maneira como a morte é administrada, ele define
quem morre, onde morre e até mesmo como se deve morrer, é o dever-morrer. É uma política
sobre formas de vida que são transformadas em vidas sem forma.
A responsabilidade do ensino de Geografia a partir de uma proposta educativa
antirracista caminha por ensinar o educando a:

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(i) conhecer sua posição no mundo, e para isto o indivíduo precisa conhecer o
mundo; (ii) tomar posição neste mundo, que significa se colocar politicamente
no processo de construção e reconstrução desse mundo. Se posicionar no
mundo é, portanto, conhecer a sua posição no mundo e tomar posição neste
mundo, agir. Saber Geografia é saber onde você está, conhecer o mundo, mas
isto serve fundamentalmente para você agir sobre esse mundo no processo de
reconstrução da sociedade: se apresentar para participar (SANTOS, 2007, p.
27).

Ao trazer reflexões importantes da vida cotidiana para a sala de aula e relacionar os


dados estatísticos à realidade socioespacial do Brasil, o ensino de Geografia, através de uma
perspectiva crítica, também contribui para o resgate de identidades e ancestralidades não
reconhecidas ou negadas historicamente pela racialidade presente na sociedade e,
consequentemente, presentes no processo educativo brasileiro. A racialidade deve estar
presente na geografia a partir de uma nova gramática que seja capaz de desconstruir o racismo
presente implicitamente nos primeiros textos geográficos. Mais ainda, a racialidade presente na
Geografia deve dar voz aos vários movimentos de resistências presentes na dinâmica dos
conflitos socioespaciais e que estavam silenciados pela geopolítica do conhecimento. Portanto,
a narrativa da desconstrução dos discursos é mais do que necessária: ele é urgente.
Em relação à Raça, Mbembe (2019) destaca que só é possível falar de raça (ou do
racismo) numa linguagem fatalmente imperfeita, dúbia, até inadequada. Por hora, bastará dizer
que é uma forma de representação primária. Incapaz de distinguir entre o externo e o interno,
os invólucros e os conteúdos, ela remete, em primeira instância, aos simulacros de superfície.
Vista em profundidade, a raça é um complexo perverso, gerador de temores e tormentos,
perturbações do pensamento e de terror, principalmente de infinitos sofrimentos e,
eventualmente, de catástrofes.
Frantz Fanon (1968) destaca que raça é também o nome que se deve dar ao
ressentimento amargo, ao irreparável desejo de vingança, isto é, à raiva daqueles que,
condenados à sujeição, veem-se com frequência obrigados a sofrer uma infinidade de injúrias,
todos os tipos de estupros e humilhações e incontentáveis feridas. Primeiramente, a raça não
existe enquanto fato natural, físico, antropológico ou genético. A raça não passa de uma ficção
útil, uma construção fantasmática ou uma projeção ideológica, cuja função é desviar a atenção
de conflitos considerados, sob outro ponto de vista, como mais genuínos – a luta de classes ou
a luta de sexos, por exemplo (MBEMBE, 2019, p. 2019).
O professor de Geografia defronta-se na escola com dois tipos distintos de práticas
pedagógicas; as instituídas e tradicionais, e as práticas alternativas. De um lado, uma prática

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marcada por mecanismos conhecidos de antemão: a reprodução de conteúdos, a consideração


de conteúdos como inquestionáveis, acabados, o formalismo, o verbalismo, a memorização. De
outro, algumas experiências e alguns encaminhamentos que começam a ganhar consistência
(CAVALCANTI, 2006). A tabela 02 a seguir é uma proposta metodológica de ensino para
trabalhar os conteúdos que tratam de questões étnicorraciais importantes. São temas/conteúdos
que podem ser abordados a partir das categorias ou conceitos da Geografia.

Tabela 02 – Relação das questões raciais com os conteúdos de Geografia


LEIS FEDERAIS OBJETIVOS CONTEÚDOS
Lei n° 10.639/03 Lei de Diretrizes e Bases da Educação - Organização do espaço;
que inclui no currículo oficial das redes - Territórios quilombolas no
de ensino público e privada a Brasil;
obrigatoriedade do ensino de História e - Cultura da periferia e
Cultura Afro-Brasileira e Africana. resistência;
- Religiões de Matriz Africana.
Lei n° 12.288/10 Institui o Estatuto da Igualdade Racial, - Raça, gênero e classe;
destinado a garantir à população negra - Religiões de matriz africanas;
a efetivação da igualdade de - Racismo estrutural e
oportunidades, a defesa dos direitos institucional;
étnicos individuais, coletivos e difusos - Genocídio da população
e o combate à discriminação e às negra.
demais formas de intolerância étnica.
Lei n° 12.711/12 Destina a reserva de 50% das vagas - Políticas socioafirmativas;
matriculadas por curso nas - Políticas educacionais;
Universidades e Institutos Federais - Educação e inclusão;
para alunos oriundos integralmente do - Superação das desigualdades
ensino público. As demais 50% vagas raciais.
continuam destinadas para ampla
concorrência.
Lei n° 11.645/08 Altera a Lei n° 10/639/03 que inclui no - Organização do espaço
currículo oficial a obrigatoriedade da indígena;
temática história e cultura afro- - Povos originários das
brasileira e indígena em todas as américas;
escolas, públicas e particulares, do - Etnicidade e diversidade no
ensino fundamental até o ensino médio. Brasil;
- Direitos territoriais.
Fonte: Elaboração própria (2020).

A ideia é contextualizar as Leis n° 12.288/10, n° 12.711/12 e n° 11.645/08 de forma


interdisciplinar e transversal. A criação da Lei n° 10.639/03 representa um marco histórico na
política educacional brasileira, pois foi ela que deu como orientação aos sistemas de ensino e
às suas instituições a incorporação do tema sobre a diversidade étnicorracial no Brasil aos seus
projetos políticos pedagógicos. Todavia, sabe-se que há uma resistência por parte dos sistemas
educacionais em seguirem tais orientações.

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É importante, pois, salientar que tais políticas têm como meta garantir o direito dos
negros a se reconhecerem na cultura nacional, expressarem visões de mundo próprias,
manifestarem com autonomia, individual e coletiva, seus pensamentos. Desse modo, destaca-
se que por essas políticas busca-se como meta o direito dos negros, assim como de todos os
cidadãos brasileiros, a cursarem cada um dos níveis de ensino, em escolas devidamente
instaladas e equipadas, orientados por professores qualificados para o ensino das diferentes
áreas de Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnicorraciais e para
o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2003).
Por fim, estudar Geografia verdadeiramente crítica na sala de aula torna-se um
instrumento de formação/libertação contra processos hegemônicos de dominação dos saberes.
É pela Geografia que se consegue ter a compreensão do espaço geográfico e sua totalidade, por
ela compreende-se também a relação sociedade e natureza e as contradições socioespaciais das
heranças da formação econômica e territorial do Brasil. A Geografia deve assumir esse
compromisso na luta antirracista e não se resumir aos conteúdos que invisibilizaram processos
raciais. Cabe, então, aos professores de Geografia escolar buscarem leituras e alternativas
pedagógicas cabíveis com a realidade do povo brasileiro e, a partir disso, engajar-se na luta por
justiça social e pelo fim das desigualdades sociorraciais.

Considerações finais

Com efeito, o ensino de Geografia crítica deve possibilitar em sala de aula o


desenvolvimento de novos saberes no campo científico educacional, valorizando,
especialmente, temas importantes das relações étnicorraciais, os quais devem aparecer como
formas de desconstrução de saberes coloniais que reforçam o racismo. Como uma prática
educativa antirracista, a Geografia escolar – ao aprimorar a análise das categorias espaço,
território, lugar, paisagem, formação socioespacial e organização espacial – traz para o ensino
conteúdos que tratam do cotidiano da população afrodescendente no Brasil.
A articulação entre teoria e prática se consubstanciou com a adoção da prática enquanto
componente curricular, sendo vivenciada ao longo da formação do educando e não apenas no
desenvolvimento das disciplinas do núcleo pedagógico ou do estágio supervisionado. A
destinação de um percentual de carga horária prática nas disciplinas formadoras do núcleo
específico permitirá a efetivação de uma práxis pedagógica pautada na discussão sobre a

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aplicação dos conteúdos destas disciplinas no âmbito da Educação Básica, em especial, nos
níveis fundamental e médio de ensino (Projeto Político Pedagógico, 2009).
É necessária essa reflexão acerca da raça, pois embora algumas poucas conquistas
tenham acontecido para as comunidades negras no Brasil – como a política de reserva de vagas
no ensino superior público que legitima e legaliza as ações afirmativas de combate às
desigualdades raciais (políticas de cotas) e a criação da Lei n° 10.639/03 que representa um
marco histórico na política educacional brasileira e que orienta os sistemas de ensino e as suas
instituições a incorporarem o tema da diversidade étnicorracial no Brasil aos seus projetos
políticos pedagógicos e às suas práticas pedagógicas – ainda prevalece um número bastante
desigual em relação às desigualdades socioeconômicas. Cabe então ao ensino de uma Geografia
verdadeiramente crítica construir metodologias ativas e inovadoras a partir de práticas
pedagógicas libertadoras de fato e de direitos, ou seja, tornando-se uma das referências na busca
por justiça social.

Referências

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Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
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O ENSINO DE GEOGRAFIA NOS ANOS INICIAIS: O


LUGAR EM MILTON SANTOS COMO PONTO DE
PARTIDA

TEACHING GEOGRAPHY IN THE EARLY YEARS: THE PLACE IN MILTON


SANTOS AS A STARTING POINT

LA ENSEÑANZA DE LA GEOGRAFÍA EN LOS PRIMEROS AÑOS: EL LUGAR DE


MILTON SANTOS COMO PUNTO DE PARTIDA

João Manoel de Vasconcelos Filho (2)

Virgínia Célia Cavalcante de Holanda (1)

(1)
Professora Associada da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA) e docente do Mestrado
Acadêmico em Geografia da mesma Instituição.
E-mail: virginiaholand@hotmail.com

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Resumo

Esse artigo foi construído depois de anos trabalhando como professora da disciplina de “Ensino de Geografia
nos Anos Iniciais,” no Curso de Graduação em Pedagogia da Universidade Estadual Vale do Acaráu (UVA). A
experiência vivida com os acadêmicos de pedagogia em formação demostrou a importância da Geografia para
os anos iniciais, sendo possível constatar as especificidades didáticas, pedagógicas e desafios nos quais os
docentes em formação se encontravam. Os textos explorados foram revelando como era necessário situações
que aproximassem os conteúdos formais ao cotidiano, visando explorar os diferentes aspectos de um mesmo
fenômeno em distintos momentos da escolaridade, de modo a construir compreensões novas e mais complexas.
Nessa perspectiva o trabalho com o lugar foi sendo apontado como ponte para os alunos dos anos iniciais
desenvolverem a capacidade de identificar e refletir sobre os diferentes aspectos da relação sociedade-natureza,
base necessária a efetivação de uma Geografia Critica no processo de leitura do espaço nos anos subsequentes.
Nossas reflexões ocorrem em diálogos com diversos autores, mas ancoradas sobretudo nas contribuições do
Professor Milton Santos para compreensão do conceito do lugar, pensando-o dentro da totalidade mundo.

Palavras-chave
Ensino de Geografia; Lugar; Anos Iniciais.

Abstract Resumen
This article was built after years of working as a Este artículo se construyó luego de años de trabajo
teacher in the subject of “Teaching Geography in the como docente en la asignatura de “Enseñanza de la
Early Years,” in the Pedagogy Graduation Course at Geografía en la Primera Infancia”, en el Curso de
Vale do Acaráu State University (UVA). The Graduación de Pedagogía de la Universidad Estatal
experience lived with students of pedagogy in training Vale do Acaráu (UVA). La experiencia vivida con
showed the importance of Geography for the initial estudiantes de pedagogía en formación mostró la
years, being possible to verify the didactic, importancia de la Geografía para los años iniciales,
pedagogical specificities and challenges in which the siendo posible constatar las especificidades y desafíos
teachers in formation were. The explored texts didácticos, pedagógicos en los que se encontraban los
revealed how it was necessary to bring situations that docentes en formación. Los textos explorados
brought formal content closer to daily life, aiming to revelaron cómo era necesario acercar situaciones que
explore the different aspects of the same phenomenon acercaran los contenidos formales a la vida cotidiana,
in different moments of schooling, in order to build con el objetivo de explorar los diferentes aspectos de
new and more complex understandings. In this un mismo fenómeno en diferentes momentos de la
perspective, the work with the place was pointed out escolarización, para construir entendimientos nuevos
as a bridge for students in the early years to develop y más complejos. En esta perspectiva, el trabajo con el
the ability to identify and reflect on the different lugar se señaló como un puente para que los
aspects of the society-nature relationship, a necessary estudiantes en los primeros años desarrollen la
basis for the realization of a Critical Geography in the capacidad de identificar y reflexionar sobre los
process of reading space in subsequent years. Our diferentes aspectos de la relación sociedad-naturaleza,
reflections occur in dialogues with different authors base necesaria para la realización de una Geografía
but anchored above all in the contributions of Crítica. en el proceso de lectura del espacio en los años
Professor Milton Santos for understanding the concept siguientes. Nuestras reflexiones se dan en diálogos con
of place, thinking it within the whole world. diferentes autores, pero anclados sobre todo en las
aportaciones del profesor Milton Santos para entender
el concepto de lugar, pensándolo en el mundo entero.

Keywords: Palabras clave:


Geography teaching; Place; Early Years. Enseñanza de la geografía; Sitio; Primeros años.

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Introdução

D
entre os objetivos da Geografia nos primeiros anos de escolarização
estão: (1) Reconhecer algumas das manifestações da relação entre
sociedade e natureza presentes na sua vida cotidiana e na paisagem
local; (2) Reconhecer e localizar as características da paisagem local e compará-las
com as de outras paisagens; (3) Ler, interpretar e representar o espaço por meio de
mapas simples.
Em relação aos conteúdos valorizados destacam-se o estudo das manifestações
da natureza em suas múltiplas formas presentes na paisagem. A ênfase recai nas
diferentes manifestações da paisagem local que propiciem aos alunos a compreensão
mais ampla das relações entre sociedade e natureza. Requer a definição de meios de
apreensão das transformações que a paisagem local sofre, resultantes de atividades
econômicas, políticas, sociais ou hábitos culturais que, de diferentes maneiras, afetam
os espaços em que se inserem os alunos. Ressaltam, contudo, que mesmo sendo a
paisagem local, o objeto de estudo da geografia ensinada nos primeiros anos do ensino
fundamental deve-se procurar romper com a hierarquização dos métodos de
transmissão do conhecimento que fragmentou a dimensão da paisagem local daquela
construída em espaços sociais mais amplos. Com as palavras do PCN:

[...] o espaço vivido pode não ser o real imediato, pois são muitos e
variados os lugares com os quais os alunos têm contato e, sobretudo,
que são capazes de pensar sobre. A compreensão de como a realidade
local relaciona-se com o contexto global é um trabalho que deve ser
desenvolvido durante toda a escolaridade, de modo cada vez mais
abrangente (1997, p. 7).

Vê-se que um dos mais importantes desafios da geografia ensinada é a própria


ruptura com os métodos pedagógicos tradicionais hierarquizados, fragmentados,
descontextualizados, acrescido da necessidade da criação de situações pedagógicas que
favoreçam a apreensão do conhecimento geográfico, articulado dialeticamente com as
formas como os homens de cada época exprimiam seu pensamento sobre o seu “lugar-
mundo”. Aqui o domínio da dimensão teórica do conhecimento geográfico e dos
elementos fundamentais do conjunto dos saberes acumulados pela cultura humana
torna-se imprescindível.
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No processo de leitura do “lugar-mundo” ou dos “lugares-mundo” um aspecto


fundamental é a utilização de situações didático-pedagógicas que propiciem ao aluno
a aquisição de habilidades para ler diferentes tipos de imagens apresentadas na
fotografia, nas produções cinematográficas, na literatura, na pintura, na música, nos
mapas, nos gráficos, nas imagens televisivas e, também na observação direta da
realidade.
Para o recorte deste trabalho faremos uma reflexão a respeito da trajetória da Geografia
nos anos iniciais do ensino fundamental no Brasil, desde a atuação do professor licenciado para
este nível da educação aos pontos que configuram a geografia ensinada e a geografia possível
de ser ensinada tendo o lugar como ponto de partida e a geografia crítica como opção necessária.
Encerra-se com as considerações finais.

A institucionalização do Ensino de Geografia Para os Anos Iniciais


– apontamentos necessários para entender a importância da
Geografia Critica

O ensino de Geografia passou a fazer parte do currículo oficial do ensino primário no


País a partir da promulgação da Lei Orgânica do Ensino Primário e a Lei Orgânica do Ensino
Normal em 1946, conhecida como Reforma Capanema. Até aquele ano, a Geografia fazia parte
desse nível de escolaridade de forma indireta, pois os conteúdos geográficos eram estudados
em textos dos livros didáticos que os professores selecionavam. Os dados geográficos eram
apresentados de forma descritiva, com a predominância do enciclopedismo e da
descontextualização;

O ensino de Geografia não integrava diretamente os conteúdos das escolas de


primeiras letras. Isso não impediu, porém, que aparecesse de maneira indireta
nesses estabelecimentos. Sua presença ocorria por meio da história do Brasil
e da língua nacional, cujos textos eram dedicados à descrição do seu imenso
território com ênfase para suas dimensões e belezas naturais. (VLACH, 2004)

A Reforma Capanema foi, então, a responsável pela inclusão da Geografia nas classes
do Ensino Fundamental elementar e complementar, de acordo com as propostas da Escola Nova
o Ensino Primário tem a função de promover o desenvolvimento geral do aluno e não apenas a
leitura e a escrita. Desse modo, a reestruturação curricular da educação, de forma geral, e
também o ensino de Geografia foram ao encontro das necessidades de assimilação de
conhecimentos úteis para a vida em sociedade. Mesmo assim o ensino de Geografia foi
embasado no referencial tradicional que, enraizada no positivismo clássico, analisa a realidade
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de forma empírica, enciclopédica e neutra, deixando de lado as reflexões sociais de produção


do espaço, desligando-se da sociedade e afastando-se de qualquer propósito de contribuir para
o seu conhecimento e transformação.
No contexto da sala de aula, configurou-se como uma Geografia centrada na transmissão
de conteúdos pretensamente neutros e que mascara as determinações do espaço.
No período de pouco mais de uma década, foram promovidos alguns debates, que
tinham o objetivo de alinhar o sistema educacional aos planos do estado capitalista militar, a
fim de adequar a educação à ideologia do “desenvolvimento com segurança”. Dessa forma,
com a flexibilidade o currículo real de cada estado passou a ser organizado de acordo com as
suas peculiaridades e necessidades. Como a Geografia não colaborava para a realização dos
objetivos políticos e ideológicos daquele momento, o governo Jânio Quadros1 instituiu a
Educação Moral e Cívica- (EMC) em todos os graus da rede de ensino.
Assim, o ensino de Geografia nos anos iniciais do Ensino Fundamental sofreu
duplamente as conseqüências da lei de Diretrizes e Bases – (LDB) de 1961, posto que a
flexibilidade curricular da nova lei permitia a cada estado fazer novos arranjos. Cada órgão
estadual de Educação se organizava de acordo com seus recursos humanos e com a instituição
da EMC. Os professores, ao se organizarem na sua prática docente, viam uma aproximação
muito grande nas questões tratadas na Geografia e na EMC, haja vista que, de acordo com as
determinações do Governo, tais disciplinas deveriam ser trabalhadas em círculos concêntricos,
sob a égide de Deus e da pátria, englobando num leque maior a família e a comunidade, hoje
corremos o risco do dèjà vur.
Como podemos ver, a educação escolarizada limitava a adestrar o indivíduo a escrever
o nome. A leitura de mundo, que requer um sujeito critico, com a capacidade de observar e
analisar o que está em sua volta, não era de interesse da classe política dominante.
O ensino de Geografia conheceu avanços com a sua institucionalização, por meio da Lei
Orgânica do Ensino Básico, mas, também retrocessos, com a pseudo-abertura dada pela
LDB/61, que tornou o currículo mais flexível, mascarou a carência de professores formados
para ensinar nessas series e a exigência das crianças na escola.
No período da Ditadura Militar de 1964 a 1985, caracterizado pela falta de democracia,
supressão de direitos constitucionais, censura, perseguição política e repressão aos que eram
contra o regime militar. Os professores já não tinham liberdade para exprimir seus pensamentos
(considerados subversivos) e, principalmente, desenvolver nos alunos o espírito crítico. O

1
Jânio da Silva Quadros sucedeu ao Presidente Juscelino Kubitschek. Foi eleito em outubro de 1960 com uma
expressiva vitória. Mas seu governo durou poucos meses, provocando uma crise política, que culminaria mais
tarde no Golpe Militar.
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ensino de Geografia e História sofreu um duro declínio, quando o governo autorizou a criação
do Curso Superior de Estudos Sociais, agregando nesta formação duas ciências.
Configurando-se por meio da implantação da área de Estudos Sociais para o ensino do
1º Grau (atual ensino fundamental), estabelecido pela Lei nº 5.692/71. A regra geral para a
formação do professor, ditada pelo artigo 30 da Lei 5.692/71 evidencia a existência de dois
esquemas: o primeiro, correspondente à formação dada por cursos regulares e, o segundo,
correspondendo à formação regular acrescida de estudos adicionais, pressupondo a existência
de 5 níveis de formação de professores, a saber: 1) formação de nível de 2º grau, destinada a
formar o professor polivalente das quatro primeiras séries do 1º grau; 2) formação de nível de
2º grau com 1 ano de estudos adicionais, para formar o professor apto a lecionar até a 6ª série
do 1º grau; 3) formação superior em licenciatura curta, destinada a preparar o professor para
uma área de estudos e a torná-lo apto a lecionar em todo o 1º grau; 4) formação em licenciatura
curta mais estudos adicionais, preparando o professor de uma área de estudos com alguma
especialização em uma disciplina dessa área, apto a lecionar até a 2ª série do 2º grau; 5)
formação em nível superior em licenciatura plena, destinada a preparar o professor de
disciplina, apto a lecionar até a última série do 2º grau. Formações que não garantiram a
interrelação das disciplinas História e Geografia.
O saber geográfico até 1990 foi usurpado da população pelo fato da Lei autorizar
professores leigos, que em nome da premência de docentes, concedia iguais direitos de
exercício docente no curso primário tanto aos portadores do nível ginasial normal quanto
àqueles com o diploma secundário de magistério, cujo disposto na lei era regulamentado pelo
Distrito Federal e respectivos estados da federação.
Assim, perante critérios variados de formação de professores, para o exercício docente
no ensino fundamental, pois cada estado tinha a liberdade de agir de acordo com a realidade
específica. que a atuarem nas Series Iniciais do antigo 1º Grau, o que reflete diretamente na
forma e no conteúdo desse nível de ensino e, em especial, no ensino de geografia, pois esses
professores também são órfãos dos conteúdos geográficos durante sua formação.
Conforme Fonseca (1993), o declínio da Geografia e da História nas escolas brasileiras
acentuou-se com a introdução dos Estudos Sociais no currículo das escolas primarias que
procuravam acompanhar o modelo pedagógico dos Estados Unidos da América. O primeiro
estado a adotar tal mudança foi Minas Gerais e posteriormente São Paulo.
Após esta institucionalização dos Estudos Sociais nos anos inicias e nos anos posteriores
do Ensino Fundamental (antigo 1º grau), nota-se que foi uma disciplina que pouco contribuiu
para a formação do indivíduo, pelo fato de ocorrer uma excessiva fragmentação do

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conhecimento que se colocava a partir das reformas, quando esta disciplina se configurou
meramente informativa, superficial e reducionista.
A fim de mesclar em apenas uma disciplina temas oriundos da Geografia, História e
Ciências Sociais, houve uma descaracterização e descontextualização dos temas geográficos
que, muitas vezes, eram ensinados de maneira tradicional, exigindo cópia e memorização dos
conhecimentos, aumentando a sua desvalorização no meio educacional.
Após algumas leituras, constata-se que uma grande parcela da população brasileira de
diversos Municípios ficou aproximadamente três décadas, sem estudar Geografia de 1ª a 4ª
série, sendo lecionados para esses, a disciplina de Estudos Sociais, sendo que uma grande leva
de estudantes até meados dos anos 90, nunca tiveram contatos com os saberes geográficos na
escola.
Com o intuído de mudar este quadro da educação brasileira nas últimas décadas foi
homologada em 20 de dezembro de 1996, a nova LDB2, em substituição as Leis n.4.024/61, n.
5.540/68 e n. 5.692/71, já mencionadas anteriormente. Porém, o dualismo existente entre a
educação do povo e a da elite permaneceu. Os governos continuaram com projetos de caráter
educacional ligados ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional (FMI), vinculado a
um projeto global neoliberal, que se preocupa somente com o retorno quantitativo, esquecendo
de analisar o retorno qualitativo das propostas do ensino.
A LDB/1996 estabelece como regra para a formação dos profissionais da educação o
nível superior admitindo, como formação mínima para o magistério no âmbito da educação
infantil e das quatro primeiras séries do ensino fundamental a de nível médio na modalidade
Normal. Também se intensifica o debate em torno dos riscos de que os institutos apesar de
definidos como de nível superior, foram considerados de segunda categoria.
Neste período vivenciava-se a institucionalização ao direito exclusivo do Pedagogo em
atuarem no que chamamos de ensino fundamental I, respectivamente desde a Educação Infantil
a 4ª serie (hoje, 5º ano).
Ocorreu um aumento significativo do acesso da população brasileira ao Ensino
Fundamental. Nesse contexto a geografia passa a ser ensinada nos anos inicias de forma mais
ampla com aspectos mais definidos após a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais -
(PCN) em 1997 e o seu conhecimento nas escolas brasileiras no ano de 1998, Pode-se notar que

2
A LDB/1996 introduz uma inovação, a criação dos “institutos superiores de educação” (art. 62) como uma
alternativa às universidades (art. 63): I – cursos formadores de profissionais para a educação básica, inclusive o
curso normal superior, destinado à formação de docentes para a educação infantil e para as primeiras séries do
ensino fundamental; II – programas de formação pedagógica para portadores de diplomas de educação superior
que queiram se dedicar à educação básica.

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mais uma vez realizou-se uma agregação errônea dos conceitos e conteúdos geográficos e
históricos num único volume, dividindo este em duas partes em um só documento. Mas são
inegáveis os avanços nas sugestões dos conteúdos a serem ministrados, contidos nos
parâmetros. Com rebatimento também na formação do licenciado e na formação continuada
dos que atuam no sistema educacional, abrindo portas para uma inserção de conteúdos
realmente geográficos nos anos iniciais.

As mudanças na abordagem do lugar mundo nos anos inicias

A falta de prioridade para uma formação mais adequada dos professores trouxe
severos prejuízos ao alunado, assim, o Ensino de Geografia acumulou fragilidades
tanto ao que tange as questões metodológicas, quanto às indefinições da seleção de
conhecimentos para cada nível de ensino. Situação que passa vivenciar outro cenário
a partir do século XXI.
Nos anos iniciais do ensino fundamental, no entanto, vem sendo consensual que
as situações concretas ajudam no processo de aquisição de alguns conteúdos que serão
fundamentais para as situações de aprendizagens de conceitos mais abstratos nos anos
seguintes.
Tal concepção se junta aos desafios postos pela invasão das novas tecnologias
no cotidiano que impõem também formas de interpretação da realidade em curso,
através das relações inter escalares baseadas em um modelo explicativo que supera a
ideia linear dos círculos concêntricos, tão presentes nas escolas até anos recentes.
Nessa toada o lugar é o conceito fundamental a ser trabalhado nos anos iniciais
do ensino fundamental, não ainda como conceito abstrato, mas com situações que
possam contribuir para o aluno entender seu lugar de vida e de fala. Ressaltamos,
porém, que as situações de ensino aprendizagem não podem perder de vista que o
lugar é dinâmico, requerendo métodos de aprendizagem que proporcionem ao
educando a compreensão da realidade em curso de forma relacional, as diferentes
escalas com suas singularidades.

[...] O lugar é produto das relações humanas, entre homem e natureza


tecido por relações sociais que se realizam no plano do vivido o que
garante uma rede de significados e sentidos que são tecidos pela
história e cultura civilizadora produzindo uma identidade posto que
é aí que o homem se reconhece porque lugar é vida. O sujeito pertence
ao lugar como este a ele, pois a produção do lugar liga-se
indissociavelmente a produção da vida. No lugar emerge a vida, pois é
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aí que se dá a unidade social. Cada sujeito se situa num espaço real


onde se reconhece ou se perde, usufrui e modifica, posto que o lugar
tem usos e sentidos em si (CARLOS, 2007 p. 22).

O conceito de lugar, na história do pensamento geográfico, remonta aos estudos


da geografia tradicional possibilista La blachiana, na primeira metade do século XX,
nos seus estudos sintetizados dentro da denominada Geografia Idiográfica, permeado
pelos elementos que constituem as diferenciações das áreas, estando o lugar ligado à
ideia de singularidade.
Mas, durante muito tempo, a abordagem do lugar foi quase abandonada,
reaparecendo como conceito central na Geografia Humanista de bases
fenomenológicas na década de 1970. Um de seus representantes, Yu-Fu-Tuan,
incorpora ao conceito de lugar as questões dos laços de afetividade e dos sentimentos
das pessoas em relação ao meio em que vivem. Com o movimento mais amplo de
renovação da Geografia nos anos 70, surgiram distintas abordagens acerca do lugar,
mas sendo consensual o princípio de que o lugar advém das relações sociais.

Breves considerações sobre o lugar no pensamento do Prof. Milton


Santos

Parece-nos válido esclarecer nossa compreensão desse conceito. Em nosso quadro


de referência teórica, essa compreensão se apoia nas análises do Professor Milton Santos
(1996), de onde extraímos o pressuposto de que só é possível o desvendamento do conceito
de lugar, atrelando-o a outros, tais como: formação socioespacial, meio técnico-cientifico-
informacional, horizontalidades e verticalidades, densidades técnicas e densidades
comunicacionais, coexistência, etc.
Cada aspecto do mundo que tomarmos para análise deve estar articulado ao sistema de
conceitos e que devem vir conjugados para que seja possível a explicação e a interpretação, isto
é, para que o conhecimento se efetive, para tanto os conceitos devem vir bem explicitados e
articulados aos aspectos do mundo que selecionamos analisar.
Essa necessidade advém da clareza de que o lugar “é o espaço do acontecer
solidário”, (SANTOS, 1996) ou seja, não delimitável, possuindo uma existência
relacional. Subespaço que se qualifica pelas ações que ele mesmo vai abrigando, pelo
seu papel no processo das mediações, como oportunidade e possibilidade, nos
oferecendo suporte para apreender o uso do território.

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Com a aceleração do mundo contemporâneo, os eventos se multiplicam nos


lugares, gerando simultaneamente homogeneização e diferenciação. Afinal, o lugar
responde ao mundo de acordo com suas possibilidades, o lugar responde ao tempo
como possibilidade, diz respeito à possibilidade e cria novas possibilidades.

Cada lugar é, à sua maneira o mundo. Mas, também, cada lugar,


irrecusavelmente imerso numa comunhão com o mundo, torna-se
exponencialmente diferente dos demais. A uma maior globalidade
corresponde uma maior individualidade. (SANTOS, 1996; p. 213).

O lugar nessa perspectiva não pode ser delimitado, em parte, devido a


efemerizaçäo dos eventos e, quando se delimita, perde-se o lugar, não sendo ente
federado, é ativo, coexistência. Não é normatizado, muito embora as normas se
apresentem. O lugar as supera.
Todavia, para a sua captação, se faz imperativo conhecer o território usado
através de sua formação socioespacial. Então, deparamo-nos com o lugar e com os usos
diferenciados do território.
Para a compreensão das consequências das modernizações que de diferentes
formas, afetam a todos e os lugares mais longínquos, faz-se essencial recorrer aos
processos históricos que lhe deram origem, posto que, é com o auxílio de uma
perspectiva histórica, que percebemos as contradições que marcam as mudanças
espaciais.
Contudo, além da periodização, a compreensão da realidade empiricamente,
pode ocorrer amparada na cartografia, estatísticas, entre outros recursos, nos levando
a todo o momento, ao deslocamento da escala local para a escala regional, nacional ou
ainda mundial, numa busca coerente para compreender as correlações de forças entre
os lugares.

A compreensão do lugar nos anos inicias amparadas no Pensamento


do Prof. Milton Santos

Conforme já se fez menção, predominou no ensino de geografia duas opções


metodológicas na abordagem e na compreensão do lugar, pautada nos círculos
concêntricos do tipo analítico partindo da situação escalar imediata para a escala mais
distante, ou seja, do próximo para o distante.

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Uma outra situação, caminhava na direção contrária do geral para o particular,


do todo para o mais próximo, dentro do que se convencionou chamar modelo explicativo
sintético. Esses modelos falam das diversas dimensões escalares e seus contornos, mas
seus atritos e suas contradições não são explícitos.
Essa compartimentação negava as relações interescalares, e as forças
predominantes que geram dentro de um longo processo histórico, feições territoriais
diferenciadas e com repercussões na formação do lugar. Assim, o desafio no presente é
compreender as relações interescalares não perdendo de vista o lugar-mundo, superando
a prática dos círculos concêntricos que limitam o ensino de geografia a descrição da
casa, do bairro e, posteriormente, a cidade e bem mais tarde os acontecimentos mundiais.
A abordagem de forma interescalar se faz necessário à construção do
conhecimento geográfico, cujo enfoque é primordial para os níveis de com- plexidade
dos anos seguintes, onde o aluno se encontrará com desafios de compreender conceitos
fundamentais para a leitura do mundo.
Quando essa geografia é enviesada nos anos iniciais, o aluno poderá não
alimentar o interesse por esse campo de conhecimento, acabando por enxergar a
Geografia como uma disciplina com predominância da famosa “decoreba”, onde os
conhecimentos jamais são discutidos e analisados em sua totalidade. Os conteúdos são
posteriormente decorados, para enfim serem respondidos nas provas, depois, esquece-
se.
Nos anos de 1990, alguns professores-pesquisadores da Geografia se
debruçaram de forma mais intensa sobre as questões conceituais e metodológicas para
os anos iniciais, partindo da ideia de que é importante a aproximação entre os
conteúdos estudados nas aulas de Geografia e os aspectos vivenciados no cotidiano do
educando.
Estudar o município é importante e necessário para o aluno, na medida
em que ele está desenvolvendo o processo de conhecimento e de crítica
da realidade em que está vivendo. Ali estão o espaço e o tempo
delimitados, permitindo que se faça a análise de todos os aspectos da
complexidade do lugar. É possível verificar, vivenciar aquela realidade
concreta, e os pressupostos que dão conta do que seja a Geografia.
(CALLAI, 1998. p. 11).

Comunga desse pensamento Straforini (2004) ancorado nos ensinamentos do


Prof. Milton Santos, ao afirmar ser necessário que o professor de Geografia estimule o
educando e crie um vínculo entre o mesmo e o espaço à sua volta, para tanto, deve-se
criar mecanismos para compreensão das relações interescalares lugar-mundo. Assim,

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o aluno poderá aprender a pensar o espaço, e posteriormente, a ler esse espaço, “o que
significa criar condições para que a criança leia o espaço vivido” (CASTELAR, 2000,
p. 30).
Por ser uma ciência “que estuda a construção do espaço pelos homens, a partir
da forma como estão organizadas em sociedade e das condições naturais do espaço”
(CALLAI, 1988. p. 16), o professor deve ter como base uma bagagem de conhecimento
acerca das questões locais referentes àquele município e/ou lugar do qual o aluno faz
parte, para esclarecer eventuais dúvidas e questionamentos que ocorrerem durante a
discussão do tema. Dessa constatação advém o imperativo de termos professores
pesquisadores.
Da leitura do lugar-mundo vai se configurando a apropriação da leitura de mundo
de forma mais consciente e totalizadora, pois nos anos posteriores, o conceito de lugar
não desaparece, torna-se mais complexo e mais aprofundada sua discussão, com
incorporação de outros conceitos geográficos, mas com o uso dos mesmos recursos, tais
como; mapas, gráficos, fotos etc.

Fazer essa leitura demanda uma série de condições, que podem ser
resumidas na necessidade de se realizar uma alfabetização
cartográfica, [...] é um processo que se inicia quando a criança
reconhece os lugares, conseguindo identificar as paisagens, para tanto,
ela precisa saber olhar, observar, descrever, registrar e analisar. Fazer
a leitura do mundo não é fazer uma leitura apenas do mapa, ou pelo
mapa, embora ele seja muito importante. É fazer a leitura do mundo da
vida, construído cotidianamente e que expressa tanto as nossas utopias,
como os limites que nos são postos, sejam eles do âmbito da natureza,
sejam do âmbito da sociedade: (culturais, políticos, econômicos)
(CALLAI, 2001; p. 228).

Segundo os PCN’s (1997), a Geografia nos anos iniciais deve ser a área do
conhecimento com competência para oferecer os instrumentos essenciais para a
compreensão e intervenção na realidade social do educando. Por meio dela, podemos
compreender como diferentes sociedades interagem com a natureza na construção de
seu espaço; as singularidades do lugar em que vivemos; o que o diferencia e o
aproxima de outros lugares e, assim, adquire-se uma consciência maior dos vínculos
afetivos e da identidade que o aluno estabelece com ele.

[...] não se deve trabalhar mais do nível local para o global


hierarquicamente [...]. A compreensão de como a realidade local se
relaciona com o contexto global é um trabalho que deve ser
desenvolvido durante toda a escolaridade de maneira mais abrangente
(PCN’S, 1997, p.116).
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É por saber da importância que a Geografia do lugar tem na formação da própria


identidade cultural do aluno, que o professor dos anos iniciais deve analisar o estudo
do lugar, compreendendo o lugar como nos ensina Santos, (1996), resultante da
conjugação de tempos pretéritos e tempos presentes, ou seja, em constante
transformação.

Considerações Finais

Com a finalidade de contribuir para as discussões acerca do Ensino de Geografia nos


anos iniciais, realizamos um recuo histórico discorrendo sobre a oficialização da disciplina de
geografia no currículo dos anos iniciais e as heranças provindas das diversas LDB. As reflexões
apontam que em paralelo o avanço da formação do professor para trabalhar nesse nível de
ensino e necessário trabalhar com o lugar como ponte para os alunos dos anos iniciais
desenvolverem a capacidade de identificar e refletir sobre os diferentes aspectos da relação
sociedade-natureza, base para a efetivação de uma Geografia Critica no processo de leitura do
espaço nos anos seguintes.
As reflexões ocorrem em diálogos com diversos autores, mas ancoradas sobretudo nas
contribuições do Professor Milton Santos para compreensão do conceito do lugar, pensando-o
dentro da totalidade mundo. Nessa toada o professor pode instigar o aluno a entender
exatamente a conjugação de tempos, e a formação do lugar. Esse exercício os ajuda a
entender o próprio conceito de lugar.
Se construímos a possibilidade do conhecimento do lugar, estamos contribuindo
para construção do reconhecimento das conexões existente entre o mundo e o lugar.
Estaremos saindo do livro didático e voltando a ele no momento seguinte, identificando
os lugares trazidos nos livros didáticos, com as realidades dos grandes centros urbanos,
os problemas ambientais do globo, as relações campo-cidade. A proposta é pesquisar
o local onde o aluno vive enquanto lugar em movimento, enquanto espaço único e
enquanto espaço contido no mundo.
Acreditamos que o primeiro exercício no estudo do lugar, seja a busca pela
compreensão das muitas transformações do espaço ao longo do tempo. O desafio
implica em muitas provocações, entre eles destacamos: a) Saber entender as
transformações socioespaciais; b) Escolher as metodologias mais adequadas para a
compreensão das transformações socioespaciais nas aulas de geografia; c) Discutir os

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elos existentes entre os conhecimentos geográficos e os demais saberes presentes nos


anos iniciais.

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CAMINHOS PEDAGÓGICOS NO PERÍODO


HISTÓRICO ATUAL: ESTEIOS À CONSTRUÇÃO DE
UMA “PRISÃO” RACIONALISTA/INSTRUMENTAL DE
SERES ALIENADOS E MAQUÍNICOS, OU UMA ÁGORA
DE “RAZÃO E EMOÇÃO” LIBERTADORAS E
CIDADÃS?

PEDAGOGIC PATHWAYS IN THE CONTEMPORARY HISTORICAL PERIOD:


MAINSTAYS TO THE ERECTION OF A RATIONALIST/INSTRUMENTAL “PRISON”
OF ALLIENATED AND MACHINIC BEINGS, OR AN AGORA OF LIBERATING AND
CITZEN “REASON AND EMOTION”

João Manoel de Vasconcelos Filho (2)

Alcindo José de Sá (1)

(1)
Professor do departamento de Ciências Geográficas e do Programa de Pós-Graduação em Geografia
da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE.
E-mail: alcindo-sa@uol.com.br

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Resumo

Como sugere o título do presente ensaio, procura-se abordar os percursos pedagógicos do período histórico
contemporâneo, buscando compreender seu papel de destaque na estruturação de uma sociedade brasileira e
global baseada em padrões civilizados (civitas) de cidadania e pertencimento territorial. Com base na geografia,
na filosofia e em várias áreas correlatas, visualizamos que o ser humano nasceu predestinado a viver em
liberdade, sem atavios, prenhe de razão e emoção. No entanto, no alvorecer do renascimento, iluminismo e
ascensão do estado moderno, isto é, do capital mercantil e depois industrial, como adverte Ortega y Gasset, os
iluminados filósofos, juristas e demagogos, na esteira da disciplina, exigem que o mundo do dinheiro e da razão
delineasse e erigisse regras, comportamentos morais e éticos, moldados em leis, solidificando um “novo ser
humano”, não mais regido por emoções instintivas, racionais e sobretudo livres. Para tanto, o novo status quo
sedimentou a nova base disciplinar pedagógica, matematicamente fria e calculada, alienante e alienada,
destinada a pensadores e fazedores maquínicos e burocráticos, bem como a trabalhadores dotados apenas de
sua força de trabalho como mercadoria vil. Assim, seguindo esse quadro histórico, este ensaio busca explicitar
as novas e velhas nuances a respeito da influência do papel educacional na chamada sociedade em rede
globalista, cada vez mais manipulada pela tecnociência informacional; dentro de uma sociedade, onde o info-
capital se retroalimenta por meio de um trabalho científico crescente e de uma pedagogia orientada pela
racionalidade instrumental. Essa contínua revolução tecnológica relega ou aprisiona o ser humano como mera
peça dentro da megamática entrelaçada entre Estado e mercado, agora com um condicionamento global baseado
em um motor único, moeda única, padrão de consumo padronizado e mimético, assim como supostos valores
morais e ideológicos de competição e competitividade, apontados por Santos (2007). Esse conjunto de
circunstâncias dá forma ao que Fukuiama (1992) chamou de fim da história. No entanto, diante da fragmentação
e da precariedade atual do trabalho e do mundo, Bauman (2005) afirma que a história ainda sequer começou.
Nesse contexto, C. Castoriadis (1987-1992) nos alerta que para uma sobrevivência humana civilizada é preciso
criar / resgatar uma paideia em que a economia não seja mais o fulcro, a base de todos os valores da sociedade,
mas antes, um simples apêndice, promovendo o resgate de uma sociedade baseada na verdadeira política. Nesse
sentido, Morin (2011) defende que neste novo momento histórico e, em última instância, no processo de ensino
/ aprendizagem, o cálculo não deverá ir ao encontro do coração e da carne viva. No entanto, é pertinente saber
navegar neste contexto e, mais ainda, no conjunto de circunstâncias a que se refere. Portanto, o ensino de
conhecimentos relevantes deve ser, em primeiro lugar, uma iniciação no âmbito da contextualização, no nosso
caso, da precariedade ambiental e social, ou melhor, como diz Santos (1996) “o mundo tal como se apresenta
verdadeiramente”.

Palavras-chave
Filosofia Política; Precariedade do trabalho; Paideia.

Abstract
As the title of the present essay suggests, it seeks to address the pedagogical pathways in the contemporary historical period, aiming
to understand its prominent role in structuring a Brazilian and global society based in civilized (civitas) patterns of citizenship and
territorial belonging. Based on geography, philosophy and several correlated areas, we envisage that the human being was born
predestined to live in freedom, without attachments, pregnant with reason and emotion. Nonetheless, in the dawn of renascence,
illuminism and rise of the modern state, that is, of the mercantile and later industrial capital, as Ortega y Gasset warns, the
illuminated philosophers, jurists and demagogues, in the wake of the discipline demand that the world of money and reason
required, outlined and erected rules, moral and ethical behaviors, shaped into laws, solidifying a “new human being”, no longer
governed by instinctive, rational and moreover free emotions. For this purpose, the new status quo sedimented the new pedagogical
disciplinary basis, mathematically cold and calculated, alienating and alienated destined to machinic and bureaucratic thinkers and
makers, as well as workers endowed solely with their workforce as a vile commodity. Thus, following this historical framework,
this essay seeks to explicit the new and old nuances regarding the influence of the educational role in the so-called globalist network
society, increasingly manipulated by the informational techno-science; within a society, where the info-capital feeds back by means
of a growing scientific labor and an instrumental rationality driven pedagogy. This continuous technological revolution relegates
or imprisons the human being as a mere pawn within the interwoven mega-mathics between state and market, now with a global
conditioning based on a single engine, single currency, a standardized and mimetic consumption pattern, as well as alleged moral
and ideological values of competition and competitiveness, as pointed out by Santos (2007). This set of circumstances shapes what
Fukuiama (1992) called the end of history. However, given the fragmentation and current precariousness of the work and the world,
Bauman (2005) asserts that history has yet not begun. In this context, C. Castoriadis (1987-1992) warns us that in order to achieve
a civilized human survival, it is necessary to create/rescue a paideia in which economy is no longer the fulcrum, the basis for all
society values, but rather a simple appendage, promoting the rescue of a society based on true politics. In this regard, Morin (2011)
advocates that in this new historical moment, and ultimately the teaching/learning process, the calculation shall not meet the heart
and the living flesh. It is though pertinent to know how to navigate this context, and moreover, the set of circumstances to which it
is related. Therefore, the teaching of relevant knowledge must be, in first place, an initiation in the realm of contextualization, in
our case, of the environmental and social precariousness, or rather as Santos (1996) puts it “the world as it truly presents itself”.

Keywords:
Political Philosophy; Work Precariousness; Paideia.

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Ser e Liberdade

E
m uma das obras de Sartre (2015), o mesmo ressalta que o homem, ao ser
jogado no mundo, possui naturalmente o potencial de ser livre. Todavia, por
que tanta dificuldade para alcançar esse nobre patamar? Lançando mão de um
texto de Ailton Siqueira de Sousa Fonseca (2010), sobre a obra de Clarice Lispector, intitulado
“A reconstrução do homem em Clarice Lispector”, a questão do humano e, portanto, de ser
livre, não é apenas conhecimento do seu entorno em busca de liberdade, mas de
autoconhecimento, enraizamento e destino, origem e humanidade, unindo razão e sensibilidade,
intuição e inteligência, racionalidade e paixão, já que o desejo da autora, era tocar a essência da
vida e religá-la à essência do universo, em suma, como posteriormente ressaltou Santos (1996),
nunca dissociar o ser de sua razão e emoção.
Nesta perspectiva vislumbra-se a possibilidade da formação de um sujeito total, de
essência e aparência, de razão e emoção, no contexto da natureza do seu espaço
(SANTOS,1996), espaço do cidadão, de civitas, de civilidade, de tolerância entre os estranhos,
visto que todos os sujeitos da pólis, ou não, conseguem, ou deveriam conseguir, tolerar o peso
da diferença do outro. Mas, por que, historicamente, é tão difícil uma paidéia construtiva de
um ser total? Resgatando Lavinas (apud BAUMAN, 1997), o mesmo frisa que não basta estar
no mundo, mas temos que estar para o mundo, já que o estar, digamos, no mundo do dinheiro
e da razão, despreza a sensibilidade com o outro, a paixão e compaixão, a piedade, a
solidariedade; já estar para o mundo é, como vislumbra Lispector, tocar a essência da vida em
sua totalidade e do universo (uno e diverso), ápice de um espaço cidadão.
Mas, como sugere o próprio título deste pequeno ensaio, e a realidade reinante, em todos
os quadrantes do mundo, em maior ou menor intensidade, o mesmo está em uma profunda crise
e, consequentemente, a formação educacional do sujeito, não somente para o seu estar no
mundo, mas, principalmente, quando jogado para uma educação formal nos parâmetros
curriculares do status quo do Estado Moderno estabelecidos, racional, individualista e
calculista. Isto se contrapondo, objetivamente, ao sentido pedagógico de estar para o mundo,
ou seja, uma educação humanista para enxergar o outro, repetimos, com paixão e compaixão,
piedade e solidariedade, ou seja, com cidadania e humanidade. Sem dúvida, esse estágio
envolve a dialética/dialógica ensino/aprendizagem.
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Caminhos pedagógicos: para uma prisão racionalista ou uma


ágora libertadora?

Bauman (2013, pp. 24-25), ressalta que o inglês Gregory Bateson, segundo ele, um dos
antropólogos mais perspicazes do Século XX, com uma capacidade incomensurável de
vislumbrar tendências culturais ainda incipientes, embrionárias, pelos idos dos anos 50, teve a
percepção do surgimento de “uma revolução educacional”. Nesse contexto via três níveis “no
processo de ensinamento e aprendizagem”. No primeiro degrau, mais baixo, situava, o que
comumente falamos, o ensino “decoreba”, o ensino mimético, no qual o aluno é obrigado a
repetir o que o professor diz; “aprendizagem rotineira” com lastro na memorização, tendo como
objetivo findo impedir qualquer formação crítica “transgressora”, ou seja, superficial, sendo,
segundo Batson, a produção pedagógica parecida a “mísseis balísticos”. No segundo nível, um
pouco mais elevado, situava-se uma pedagogia que releva uma estrutura de ensino que dá vazão
a bases e “predisposições cognitivas”, dando possibilidade a que os alunos se orientem em
contextos pouco conhecidos, mas observando, assimilando e incorporando conhecimentos
novos. Ironizando, e se embasando em Bateson, Bauman diz que é um “tipo de
ensino/aprendizagem destinado à produção de `mísseis espertos` [hoje cada vez mais
`inteligentes`]”. Mas, ainda embasado em Bateson, Bauman revela que o mesmo insinua uma
terceira via, em nível mais elevado: nesta etapa o ensino/aprendizagem busca, dado o número
cada vez mais crescente da ciência e da informação [grifo nosso], ou seja, um grau de “dados
anômalos” demasiadamente abundantes, a necessidade de sistematizá-los, fazendo-se
necessária uma mudança na “estrutura cognitiva”. Desse arcabouço pedagógico, segundo
Bauman, Thomas Kuhn denomina de “revolução científica”, tendo essa revolução um processo
contínuo de retroalimentação; um tropeço constante de uma revolução para outra.
Neste momento histórico, então, Bauman (2013, p.25) alega que estamos numa situação
de perpétuo contexto “revolucionário”. Em tais condições “o modelo de Mastrocola [educação
repetitiva, de memorização] é uma receita para incapacitar, e não para habilitar os jovens a se
juntar a companhia dos mais velhos. O único propósito da educação era, é e continuará a ser a
preparação desses jovens para a vida segundo as realidades que tenderão a enfrentar. Para estar
preparados, eles precisam da instrução: ´conhecimento prático, contrato e imediatamente
aplicável´, para usar a expressão de Túlio De Mauro. E, para ser `prático`, o ensino de qualidade
precisa provocar e propagar a abertura, não a oclusão mental”.
Mas eis o grande dilema do período histórico atual: como estruturar uma pedagogia, um
ensino/aprendizagem, com vistas à formação do eu como sujeito a partir da dialogia com o
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exterior, com o meio, o mundo circundante de conteúdo cidadão socialmente auto-organizado?


Tanto a pedagogia dos mísseis balísticos, da educação a-crítica, a dos “misseis espertos”, de
uma educação mais flexível e curiosa, quanto à sistemática e científica, bem como a instrução
para o pensamento prático, são completamente afinadas ao mundo técnico-científico-
informacional (SANTOS, 1996), cada vez mais fragmentado territorialmente, sob o lastro
virtual de uma sociedade em rede racionalmente caótica, numa temporalidade presente, “um
instante já”, em que a coisa está sendo criada, acontecendo, movimento, inacabamento, todavia,
inacabamento inovativo sempre inacabado; o velho tropeço de uma revolução para outra; o
cyber-espaço (BIFO, 2005), no qual os objetos inteligentes proliferam sem limitações,
impedindo uma auto-organização por dentro, visto que a possibilidade de diálogo com o mundo
circundante é atabalhoado e infinito propositalmente. Isto porque o que mais o mundo globalista
demanda, é a alienação do “refugo humano” sobre as elites detentoras dos diversos setores
especulativos, comerciais e produtivos em redes. Assim, fica nítido que para esse “novo
mundo”, o ensino qualificado deve ser pautado na abertura para assimilação e feitura de novas
revoluções e não nas pedagogias oclusivas, fechadas, mesmo que portentosas em críticas à
estrutura econômica e de ensino/aprendizagem com outros valores, outras ideologias que não a
da sociedade para consumo.
Buscando, ou “forçando” um pouco de otimismo diante deste cenário “pandêmico”
preocupante e caótico, nas suas múltiplas vertentes, Bauman (2013, p. 28) declara:

[...] dadas as pressões, os modismos e peculiaridades aparentemente


irresistíveis que hoje prevalecem – ainda podemos ter a expectativa ou a
esperança de que nossos filhos se comportem diferentemente como a maioria
de hoje se comporta, minha resposta é ‘sim’. Se é verdade (e é) que cada
conjunto de circunstâncias contém algumas oportunidades e seus perigos,
também é verdade que cada um está repleto tanto de rebelião quanto de
conformismo. Não nos esqueçamos de que toda maioria começou com uma
pequena, invisível e imperceptível minoria. E que mesmo carvalhos
centenários desenvolvera-se a partir de bolotas ridiculamente minúsculas.

Assim, resgatando Lavinas, nunca precisamos tanto de seres para a feitura de um novo
mundo no e para ele!

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Meandros e empecilhos sócio/econômicos, espaciais para uma


pedagogia libertadora

Este contexto nos faz lembrar as assertivas, também, de Castoriadis (1987-1992),


quando o mesmo alude às significações imaginárias sociais (SIS), como valores culturais e
simbólicos que nos impregnam desde o nosso despontar no mundo. Sim, como diz Sartre,
nascemos predestinados a ser livres, mas, desde o berço, somos obrigados, como ressalva o
filósofo Ortega e Gasset (2002), a nos assomarmos ao nosso entorno com todas as suas
significações imaginárias sociais. Assim sendo, somos atrofiados por leis, normas, códigos
(aqueles códigos sintagmáticos, segundo Raffestin (1993), capazes de realizar os mais diversos
programas, desde os sinais da fala, aos sinais binários computacionais), religiosos,
ideológicos/educacionais nas suas infinitas matizes, enfim, a perdermos, em parte, o nosso
potencial subjetivo “de autoconhecimento, enraizamento e destino”.
Ernesto Sábato (1993), no seu famoso livro Homens e Engrenagens, frisa que, no
alvorecer da ascensão do capital, há um acasalamento indissociável entre o dinheiro e a razão
e, desde então, os serem humanos passaram a ser, paulatinamente, engrenagens alienadas de
uma megamáquina teleguiada pelo Estado e grande capital. Isso nos anos 40, pois hoje, no
mundo da tecnociência (GEORGE, 1993), acirrou-se ainda mais esse processo.
No atual mundo do cyber-espaço (a disseminação territorial global da rede cibernética
global) e do cyber-tempo (o somatório de todas as pesquisas informacionais cyber [“tempo
mente”], da inteligência artificial, com vistas ainda mais ao “encurtamento do tempo”, ou a
maximização cronômetra, à exemplo do 5G), segundo o filósofo italiano, Bifo (2005), dá-se
um deslocamento do centro de gravidade social da esfera do trabalho para a esfera do trabalho
cognitivo, ou como fala o sociólogo alemão R. Kurtz (2018), a esfera da mão de obra ciência.
Faz isso por intermédio da miséria humana, ou como afirma Z. Bauman (2005), tratando o ser
humano como refugo, com a chantagem de que o lixo humano (o antigo/novo exército de
reserva) não possa mais ser reciclado e assim, a gente vai percebendo que o nosso entorno é
manipulado pelo cartesianismo, no qual, segundo Bifo (2005), pauta-se meramente na
matemática, na noção de desejo em parâmetros incivilizados, bem como da corporeidade
(comercialmente narcísica); também, através do niilismo, tangencia a noção de morte e, em
especial, o sentido real da história. Assim, nesse mundo da tecnociência virtual, cria-se uma
realidade da qual se tirou toda a fisicidade palpável. No seu rastro a cidade como sinônimo de
civitas, civilidade, cordialidade, um urbano com espírito de comunidade social, transmuta-se,

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paulatinamente, em um “invólucro morto”, no qual as relações sociais, crescentemente,


carecem de uma autêntica humanidade.
Ainda nesse contexto, podemos acrescentar que a sexualidade a o convívio humano no
cerne da comunidade urbana perdem, agora, vivacidade, já que tudo se torna mercantilizado,
padronizado, estandartizado ou, como assevera Z. Bauman (2004) , os amores são cada vez
mais “líquidos”, fugazes, sem pertencimento e sem afeto. Os referidos invólucros, para Daniele
Linhart (apud, BAUMAM, 2005) constituem-se de homens e mulheres que perderam seus
empregos ou vivem no subemprego, ou seja, que “perderam seus projetos, seus pontos de
orientação, a confiança de terem o controle de suas vidas; também se veem despidos da sua
dignidade como trabalhadores, da autoestima, do sentimento de serem úteis e terem um lugar
social próprio...Assim, por que os empregados subitamente desqualificados deveriam respeitar
as regras do jogo político-democrático, se as normas do mundo do trabalho são solenemente
ignoradas?”
Assim, jogados em um mundo no qual a miséria humana tem sido a palavra de ordem,
perguntamos, como essas significações imaginárias sociais foram se estabelecendo, a revelia
do homem para o mundo, do homem em potência se fazendo ato através de formas animadas e
inanimadas de pertencimento cidadão. Cremos que a resposta recai na ascensão do capital e da
elite ilustrada, iluminada/iluminista, pois estas passam a “‘revelar às nações os fundamentos
sobre os quais construir a moralidade’, ‘instruir as nações’ nos princípios da conduta moral. A
ética dos filósofos devia substituir a Revelação da Igreja – com a pretensão ainda mais radical
e inflexível de validação universal” (BAUMAN,1997, p.33).
Assim, cabia à emergente elite filosófica substituir o clero como elite legisladora e
guardiã das nações; e o novo código de ética devia embasar-se na “natureza do homem”. Mas,
não na “natureza” dos homens e mulheres empíricos, concretamente existentes e dotados de
impulsos ´rudes e não processados (emoções, instintos), tais como revelados nas escolhas que
as pessoas realmente fazem na busca de seus fins e em seus intercursos recíprocos”, e sim na
natureza humana como potencial; “potencial não realizado, mas – o que é mais importante –
irrealizável por conta própria, sem ajuda da razão e dos portadores da razão” (idem, p.34).
Para d’Alembert (apud BAUMAN, 1997, p.34), “a vida seria vil, embrutecida e rude”,
sem razão, já que “a multidão era ignorante e estúpida ...incapaz de ação forte e generosa”. Por
ser ignara, sem razão, cruel e dotada de selvagens paixões, “les philosophes” despendiam pouco
apreço para com as mulheres e homens “empíricos”, mas era um grande problema que
demandava solução, visto que era na “‘natureza’ desses homens e mulheres que buscavam

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encontrar o código ético que por sua vez devia legitimar o papel dos iluministas legisladores
éticos e guardiães morais”. (BAUMAN, 1997, p.34)
Nessa perspectiva, as pessoas carentes de padrões morais e incapazes de os encontrar
sem ajuda, precisavam (precisam) de um “ambiente cuidadosamente planejado para favorecer
e recompensar verdadeiramente a conduta moral”, ou favorecer a escolha racional para “a
pessoa que deseja vida boa” em virtude das recompensas que traz. Isto demanda primeiramente
mestres e legisladores capazes de difundir e praticar o conhecimento e o conhecível ao posto
de “suprema autoridade”, pois se faz necessário “dizer”, instruir, “educar” as pessoas sobre o
que verdadeiramente lhes interessa. Nesta perspectiva, “o destino de refazer a realidade humana
em harmonia com a natureza humana dependia de suas mentes e de seus atos” (idem. p.35),
patenteando-se que a tão propalada natureza humana, não é a humana natureza na sua
realização, mas um enquadramento ideológico de visão normativa e classista de mundo; de um
mundo como nos alerta Sábato (1993), pautado no casamento indissociável do dinheiro e da
razão privados; de uma razão cada vez mais instrumental e descartada de emoções. Neste
contexto, talvez encontremos o verdadeiro ensino/aprendizado não somente racional,
matemático/instrumental, mas o seu conteúdo ideológico e os seus ideologizadores.
Mas essa ordem normativa falhou, como bem demonstra a crise econômica, moral e
ética, ou seja, política, em que nos encontramos. Para termos ideia, segundo dados estatísticos
recentes, em 2015, foram assassinadas no Brasil mais de 295.000 mil pessoas, 30% a mais do
que na Síria, país imerso numa guerra civil bárbara há anos. E bem sabemos os motivos: sem
uma mínima formação cidadã dos sujeitos, as cortesias se esfumaçam e a indiferença ou mesmo
a agressão, tornam-se normas; crimes amenos ou graves restam impunes, pois as organizações
são desprovidas de condições humanas e materiais para subsidiar as instâncias punitivas. Por
isso Z. Bauman (2015) destaca: “é o projeto humano que evoca a desordem, juntamente com a
visão da ordem, a sujeira juntamente com o plano da pureza...a modernidade é uma condição
compulsiva de projetos...onde há projetos há refugos...quando se trata de projetar as formas do
convívio humano, o refugo são seres humanos” (BAUMAN, 2005), em especial no projeto
globalista. Nesse contexto tão radical e com base nas atrocidades que cotidianamente
vivenciamos no Brasil, menciono ainda Bauman (idem, 2015) quando faz alusão a escória
humana excluída no império romano, chamada de Homo Sacer. Para ele, “o modelo ideal –
típico de pessoa excluída é oferecido pelo Homo Sacer, categoria do antigo império romano
estabelecida fora da jurisdição humana sem ser trazida para o domínio da lei divina. A vida de
um homo sacer é desprovida de valor, seja na perspectiva humana ou na divina. Matar um homo
sacer não é um delito passível de punição”. Assim, o Homo sacer é a principal categoria de

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refugo humano estabelecida no curso da moderna produção de domínios soberanos ordeiros


(obediente à lei e por ela governados” (BAUMAN, 2005). No linguajar comum recifense, este
infeliz renegado é uma “alma sebosa”, imunda, pária que merece – e geralmente sofre a lei de
Linch: o linchamento coletivo, por sicários, matadores impiedosos ao preço de trinta moedas,
pois sem valor humano ou divino, nascem, quase vivem e morrem à margem social e territorial.
É aqui que se estampa a verdadeira falta de civilidade, de tolerância, e o ser se afunda,
ou se anula, na sua subjetividade e mesmo objetividade histórica como alienado, estúpido,
grosseiro, através, hoje, inclusive do necropoder. Neste contexto, talvez encontremos o
verdadeiro ensino/aprendizado não somente racional, matemático/instrumental, mas uma
pedagogia que releve não somente a tão propalada natureza humana idealizada ideologicamente
por filósofos, juristas e demagogos, a serviço do Estado Moderno, com perspectiva normativa
e classista do mundo, mas, também, a humana natureza na sua realização total, ou seja, um ser
que carece de um resgate pedagógico que releve também uma razão e sensibilidade, intuição e
inteligência, racionalidade e paixão, já que, segundo Lispector (FONSECA, 2010), a mesma
devia abarcar a essência da vida e religá-la a essência do universo. Daí o incomensurável papel
do pedagogo Paulo Freire. Segundo ele, em Pedagogia do Oprimido (1987), o homem faz
história, temporalizando os espaços geográficos. Esta temporalização dos usos territoriais
(espaciais) sempre foi e será carregada de valores ideológicos; de classes sociais, de
subordinadores e subordinados; dos mandadores e dos fazedores ou, como ressalta Raffestin
(1993), de sistemas relacionais de poderes dissimétricos. Hoje, um sistema imaginário e social
(SIS) impregnado, quase que como natural, já que os valores conteudistas dos sistemas
educacionais, como já elencado no início, são meramente racionais, matemáticos, não
corpóreos, instrumentais.
A virtude de P. Freire e sua pedagogia, há mais de 60 anos, está na busca de um
ensino/aprendizado conteudista que envolva o indivíduo a pensar a desumanização da estrutura,
que no processo “revolucionário” da ciência de Kuhn é anuviado, pois há sempre o processo
histórico dialético, a temporalização do uso e feitura desigual do território entre opressores e
usurpadores da riqueza produzida e os usurpados, por intermédio da “mais-valia”. Através de
uma pedagogia que ilumina o homem como ser social feitor do seu próprio meio (mesmo não
lhe pertencendo de fato, pela força da pedagogia opressora do status quo das elites nacionais e
globais reinantes), pode lhe trazer uma consciência, menos alienação, e vontade de poder
transformador do referido meio, com lastro empírico de sua consciência social.
Mas para uma pedagogia crítica, demanda-se mestres, docentes, com escopo
problematizador do mundo real no qual se insere o educando. Tem que transgredir os valores,

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hoje, globalistas, do “fim da história” e sua ideologia da competição, competitividade e


meritocracia, difundidos pelos economistas, juristas, demagogos etc., do status quo dominante
do capital, mas apresentar aos educandos, como fala Milton Santos, o homem e seu meio como
ele de fato é e se apresenta. Assim, tem que assumir um papel problematizador do complexo de
circunstâncias do seu meio no qual se encontra. Somente por intermédio dessa pedagogia, desse
ensino/aprendizagem, o aluno, ou educando pode se curvar, se subjugar ao mundo da razão
instrumental, mas tendo a ciência real da sua condição, bem como a perspectiva de forjar uma
revolução de valores, quiçá, que fomente uma sociedade mais justa, sustentável e cidadã. Sem
uma educação problematizadora, jamais teremos revolução científica inclusiva, sistema de
ideias carregadas de uma epistemologia, tendo o homem como o fulcro de sua criação e destino.
Por isso cabe ainda uma pequena digressão histórica, para não cairmos na
temporalização de um espaço, inclusive educacional, da violência e da morte, sob o jugo da
necropolítica e do necropoder cada vez mais avassaladores.

O imprescindível papel do ensino/aprendizagem para um mundo


verdadeiramente Sapiens

Como afirma Morin (2002, p. 116-117), o Estado Nação, a Modernidade e o iluminismo


legaram-nos a convicção, ou melhor, a ideologia pautada na premissa de que o homem,
doravante, estava fadado a ser o regente do universo, adquirindo o selo do homo sapiens, faber,
economicus. A racionalidade instrumental estaria disposta à busca do conhecimento objetivo
do mundo exterior, através de elaborações estratégicas eficientes de feituras de seres e coisas,
ou seja, territórios “sadios”, análises críticas, criando um “princípio de realidade” radicalmente
oposto “ao princípio de desejo”, envolvente de emoções.
Todavia, segundo o supracitado autor, para Platão o psiquismo humano sempre foi um
campo de luta “entre o espírito racional (nós), a afetividade (thumus) e a impulsividade
(epithumia)”. Já para Freud, o ser racional estava vulnerável “à violência do id pulsional e a
dominação do superego autoritário [‘onde estava o id, o eu deve surgir’]”. Portanto, o homo
sapiens, faber, economicus é também killer. Daí a “loucura assassina” explodir de diversas
formas: por motivos religiosos, étnicos, nacionalistas, “ideológicos” e mesmo “banais”, ou seja,
os crimes letais intencionais. Afinal, em todos os quadrantes “onde imperam o homo faber e
economicus, a barbárie está pronta para ressurgir”.
Ainda para Morin (2002, p. 118),
[...] os psicanalistas não se cansam de mostrar a loucura latente sob os
comportamentos ditos normais. Olivenstein sabe que em toda civilidade há
o ‘homo paranóico’, ou seja, um megalômano, desconfiado, interpretando
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de forma delirante, percebendo sem parar indícios de uma conjunção


contra ele. A loucura humana aparece quando o imaginário é considerado
como real, quando o subjetivo é considerado objetivo, quando a
racionalização é considerada como racionalidade e quando tudo isso está
ligado...os gregos diagnosticaram a disposição humana para a hubris,
termo que significa, desmedida demente.

Muito embora seja assunto “tangencial” à Geografia, percebemos o quanto essas


premissas psicanalíticas se atrelam às territorialidades do medo no Brasil, pois ao mesmo tempo
que ascende o homo economicus globalizado descende o homo faber, o trabalhador precarizado,
o refugo humano do qual fala Bauman, e no seu lastro, o homo sapiens. Na luta entre o nós
racional, a afetividade (thumus) e a impulsividade (epithumia), tem ganho esta última; a
impulsividade hedonista e egoísta do tudo ter e querer aqui e agora, muitas vezes lançando mão
a todos os tipos de violência e incivilidade.
Assim, desponta com vigor o homo paranóico competidor numa seara de escassez de
possibilidades, no seio da lógica produtivista da racionalidade global como destino inabalável.
Nossa loucura atual recai, então, nesse imaginário coletivo e individual de realização total, via
mercado, como realidade inabalável, quando de fato não é. Nessa subjetividade mentirosa de
inclusão e de vazão desmedida de potenciais criadores, todavia amarrada numa racionalidade
objetiva/histórica de um capitalismo com atavios sutis e perversos (desregulação, terceirização,
trabalho flexível, temporário, desemprego estrutural etc..). Todos esses conflitos têm induzido
às muitas demências, incluindo-se, no Brasil, a grande demência criminosa e assassina.
Finalizando esse tópico e ainda ancorando-me em Morin (2002, p.118):

[...] a cultura e a sociedade proíbem as pulsões destrutivas da hubris, não


apenas por meio de punições da lei, mas também introduzindo, desde a
infância, no espírito dos indivíduos, normas e interdições. Além disso, a
agressividade é inibida por regras de cortesia, que são ritos de pacificação,
saudações, cumprimentos, palavras anódinas. Contudo, uma atitude agressiva
ou uma humilhação despertam a nossa agressividade; com frequência, o amor
frustrado pode transformar-se em ódio. Uma avalanche de desejo ou ódio pode
romper controles e regulações...O desprezo e a rejeição legitimam-se
empurrando o desprezado para uma condição subumana; o ódio acredita-se
racional justificando-se pela ideia de castigo, de eliminação de um ser
reputado malfeitor; exacerba-se na alegria de fazer sofrer, torturar e matar.
Enquanto que no mundo animal só se mata para comer ou desfazer-se, a
violência assassina desencadeia-se, entre os homens, fora da necessidade: a
‘estupidez’, ou a ‘desumanidade’ são traços especificamente humano.

Como também são traços unicamente humanos a humanidade e a sabedoria. Estas,


ressalte-se, transcende as especialidades racionalmente instrumentais; transcende o

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matematicismo frio e calculista que perpassa todo o mundo material capitalista,


mercadologicamente mensurado e descartante de corpos potencialmente humanos. Precisamos,
então, como nos alertam Ortega y Gasset (2002), Castoriadis (2002), Morin (2002), Santos
(1996), etc., uma paidéia em que se vislumbre o mundo como físico-bio-antropo,social; uma
totalidade muito mais do que a soma das partes, pois estas se complementam na formação de
uma outra totalidade maior e mais complexa. Se estamos amarrados numa estrutura que se diz
acabada e fechada; dotada de uma história finda, muito embora a permanência e crescimento
da estupidez e desumanidade, cabe-nos, então, superar as limitações ideológicas dos que situam
e são situados no conhecimento. Superar as limitações dos que classificam a vida e o
conhecimento humano em áreas estanques, na perspectiva instrumental/produtivista como valor
natural que situam seres, mas, intencionalmente alienando-os da possibilidade de um conhecer
que recomponha a diversidade na unidade. Cremos que somente através da implementação
desse projeto a gente possa desenvolver, como ressaltou Castoriadis (2002):

[...] seres humanos em lugar de novos objetos de consumo. Para isso tem de
haver uma outra organização do trabalho, que faça com que ele deixe de ser
uma obrigação penosa e se torne um campo onde as capacidades humanas
possam se manifestar; tem de haver outros sistemas políticos, uma verdadeira
democracia comportando a participação de todos na tomada de decisões, uma
outra organização da paidéia para formar cidadãos capazes de governar e de
serem governados, como disse admiravelmente Aristóteles – e assim por
diante”. Enfim, uma boa cidade, uma boa sociedade, somente aflorarão através
de “uma radical transformação da sociedade como sociedade política”.

Em meio ao caos, uma nova paidéia “para o futuro da


humanidade”

Repito, que diga a barbárie em que se encontra a sociedade brasileira no momento. As


elites clássicas nunca tiveram compaixão; da sociedade escravista, ao mundo político de hoje,
teleguiado pelas elites de outrora, em acasalamento com o capital global, nunca sentiram nem
pensaram na perturbação que eles têm trazido ao cotidiano dos seres humanos constituintes
desse país na sua totalidade; ou seja nunca se ativeram “a temporalidade presente, o instante-já
em que a coisa está sendo criada, acontecendo, movimento, inacabamento”, que expressam a
condição do homem que está se auto-organizando por dentro, mas a partir da dialogia com o
exterior, com o meio, seu “mundo circundante”, já que este foi sempre imposto de forma
alienada e autoritária; mundo fragmentado social e territorialmente; desumano por natureza
humana, mas de um humano racionalmente pensado cartesianamente e instrumentalista. Por
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isso e para findar, retomo C. Castoriadis (1987-1992), quando alerta: “deveríamos desejar uma
sociedade na qual os valores econômicos deixassem de ser centrais (ou únicos); em que a
economia fosse recolocada em seu lugar de simples meio de vida humana e não de fim último;
onde, portanto, se renunciasse a essa corrida louca para um consumo cada vez maior. Isso não
apenas é apenas necessário para evitar a destruição definitiva do meio ambiente terrestre, mas
também, e sobretudo para salvar da miséria psíquica e moral dos homens contemporâneos”.
Todavia, enxergando o mundo como ele é e se apresenta, vislumbramos, pelo menos no
território brasileiro atual, uma maior miséria psíquica da sociedade que os usa, bem como uma
degradação moral nunca vistas. Isto porque os valores de uma “vida para consumo”, ou seja, os
valores econômicos nunca foram tão desmedidos e a economia globalizada nunca teve tanta
proeminência. Como lastro, temos um grau de devastação da natureza, uma exploração dos seus
recursos e a destruição das culturas nativas em níveis críticos, como reflexos não somente no
Brasil, mas também o seu replique no mundo. E em se tratando da cultura educacional,
comparativamente a outros países, inclusive países latino americanos, também vivemos tempos
nebulosos: cortes de recursos para todos os níveis educacionais, estagnação e degradação das
infraestruturas, defasagem salarial, carência de qualificação dos docentes, violência entre
alunos e entre estes e professores, quebra quase total de “hierarquia”, enfim, a escola tem
cambiado de território pedagógico civilizacional para campo de barbárie, já que a “fronteira”
entre o oikos, a casa, com famílias desestruturadas pela nova ordem econômica, e a escola se
esmaece, tornando-a também território e territorialidades da violência e do medo e não campo
de aprender a saber e fazer saber.
Por isso vejo pertinente as assertivas de Morin (2011, p. 147-152), quando o mesmo
contesta Jean Jacques Rousseau, ao afirmar para seus alunos: “quero ensinar-lhes a viver”. Ao
invés, Morin vê tal afirmação excessiva e, para ele, o mais adequado seria “pode-se ajudar a
aprender a viver”. E essa noção de vida se aprende através das próprias experiências [algo bem
afinado com as proposições de Paulo Freire], com a ajuda dos outros, através dos pais e
educadores [preferencialmente equilibrados, em um mundo aterrorizado pelo precariado e o
desalento total], mas também dos livros e da poesia. Viver é viver como indivíduo que enfrenta
os problemas da vida pessoal, é viver tanto quanto um cidadão de uma nação, é viver também
na própria permanência do gênero humano. O ensinamento atual proporciona conhecimento
sem ensinar o que é o conhecimento. Não se preocupa em conhecer o que é o conhecer, ou o
conhecimento, ou seja, não estuda os dispositivos cognitivos, suas dificuldades, suas
debilidades nem suas propensões ao erro e a ilusão.

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Hoje sabemos que muitas crenças do passado são, efetivamente, erros e ilusões.
Sabemos que as certezas dos comunistas sobre a União Soviética ou sobre a China de Mao eram
grossas ilusões. Começamos a saber que as verdades sobre o neoliberalismo econômico são
ilusórias. Quem poderá dizer que os conhecimentos de hoje considerados verdadeiros não são
errôneos? Como indicava Descartes, é próprio do erro não se reconhecer como tal. São muitos
os questionamentos e uma visão propositiva quanto à educação e o mundo vindouro.
Outro ponto que o autor menciona para questionarmos sobre as incertezas da estrutura
da paidéia reinante, é que a humanidade nunca deixa de estar possuída por mitos, Deuses, ideias
que, mesmo produzidas e alimentadas pela mente, se impõem a esta como realidades
transcendentes. Mesmo que lá onde impera um Deus, pode-se morrer por ele e o mesmo pode
ocorrer com uma ideia, ou seja, morrer e matar por ela (nada mais real no mundo hoje como ele
é e se apresenta, com tantas guerras, guerrilhas, atos terroristas em nome de um Deus, de uma
ideia e ideal transcendentes). Lenin, segundo Morin, dizia: “os fatos são teimosos”. As ideias
ainda são muito mais e sabem esconder os fatos.
É fundamental, portanto, que o conhecimento comporte consideráveis riscos de erros e
ilusões e mostrar quais são suas causas e quais podem ser suas consequências. Portanto, ainda
para o referido autor, deve-se ensinar o que é um conhecimento pertinente. Esse não é mais
pertinente pelo fato de se dotar de mais informações, ou quanto mais rigorosamente organizado
está matematicamente; é pertinente, sim, se sabe situar-se no seu contexto e, mais que isso, no
conjunto com o qual está relacionado. Finalmente, o cálculo não pode conhecer o coração e a
carne da vida. Por isso, o ensinamento dos conhecimentos pertinentes deve ser, em primeiro
lugar, uma iniciação à contextualização. Deve, também, relacionar o conhecimento abstrato
com seu referente concreto. O conhecimento abstrato é necessário, mas está mutilado se não
vai acompanhado de conhecimentos concretos.

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ARTIGO

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Artigo

RISCOS E VULNERABILIDADES SOCIOAMBIENTAIS


DECORRENTES DE EVENTOS CLIMÁTICOS E
GEOMORFOLÓGICOS NA CIDADE DE CAMPINA
GRANDE–PB

SOCIO-ENVIRONMENTAL RISKS AND VULNERABILITIES ARISING FROM


CLIMATIC-GEOMORPHOLOGICAL EVENTS IN THE CITY OF CAMPINA
GRANDE-PB

RIESGOS SOCIOAMBIENTALES Y VULNERABILIDADES DERIVADAS DE EVENTOS


CLIMATICO-GEOMORFOLÓGICOS EN LA CIUDAD DE CAMPINA GRANDE-PB

João Manoel de Vasconcelos Filho (2)

Rejane do Nascimento Silva (1)


Sérgio Murilo Santos de Araújo (2)

(1)
Graduada em Geografica (UFCG), Mestre em Geografia (UFPB).
E-mail: rejanengeo@gmail.com

(2)
Professor da Unidade Acadêmica de Geografia; Ciências Ambientais (Programa de Pós-Graduação em
Recursos Naturais); História (Programa de Pós-Graduação em História) da Universidade Federal de
Campina Grande.
E-mail: sergiomurilosa.ufcg@gmail.com

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Artigo

Resumo

acelerado e intenso processo de urbanização mundial ocasionou inúmeros problemas para a dinâmica das
cidades, entre eles a ocorrência de desastres naturais. O aumento do número de desastres suscita a necessidade
de compreensão do fenômeno e na identificação dos territórios mais vulneráveis. O objetivo desta pesquisa foi
analisar os riscos naturais e as vulnerabilidades sociais decorrentes de eventos climáticos e geomorfológicos na
área urbana de Campina Grande-PB. A metodologia foi composta de: a) Estudo exploratório, a partir de artigos,
relatórios da Defesa Civil e reportagens de jornais, nos quais foi feito o levantamento dos riscos e
vulnerabilidades existentes nos bairros ou setores censitários; b) Mapeamento e avaliação dos níveis de
vulnerabilidade social, baseada na proposta de Rezende (2015) com alguns ajustes, como a utilização do método
estatístico bootstrap. Os resultados mostraram que a cidade possui onze áreas de risco segundo dados da Defesa
Civil, e os setores que possuem nível elevado de vulnerabilidade estão dispostas principalmente nas margens
do perímetro urbano, enquanto o nível mais baixo de vulnerabilidade social se encontra na área central da
cidade. Destaca-se que os mecanismos de defesa civil ainda são insuficientes, principalmente na educação para
a redução de riscos de desastres (ERRD) das áreas sujeitas aos riscos.

Palavras-chave
Desastres; Geomorfologia; Planejamento Urbano, Paraíba.

Abstract Resumen
The accelerated and intense process of world El acelerado e intenso proceso de urbanización global
urbanization has caused numerous issues for the ha causado numerosos problemas para la dinámica de
dynamics of cities, including the occurrence of natural la ciudad, entre ellos la ocurrencia de desastres
disasters. The increase in the number of disasters naturales. El aumento del número de desastres suscita
raises the need to understand this phenomenon mainly la necesidad de entender el fenómeno y la
with regard to the identification of more vulnerable identificación de territorios más vulnerables. El
territories. The objective of this research was to objetivo de esta investigación fue analizar los riesgos
analyze the natural risks and social vulnerabilities naturales y vulnerabilidades sociales resultantes de
arising from climatic and geomorphological events in eventos climáticos y geomorfológicos en el área
the urban area of Campina Grande-PB. The urbana de Campina Grande-PB. La metodología se
methodology was composed of: a) Exploratory study, compuso de: a) Estudio exploratorio, basado en
based on articles, civil defense reports and newspaper artículos, informes de defensa civil e informes
reports, in which the risks and vulnerabilities existing periodísticos, en el que se examinaron los riesgos y
in the neighborhoods or census tracts were surveyed; vulnerabilidades existentes en los barrios o distritos;
b) Mapping and evaluation of levels of social b) Mapeo y evaluación de los niveles de
vulnerability, based on the proposal of Rezende (2015) vulnerabilidad social, basado en la propuesta de
with some adjustments, such as the use of the Rezende (2015) con algunos ajustes, como el uso del
bootstrap statistical method. The results showed that método estadístico de bootstrap. Los resultados
the city has eleven risk areas according to civil defense mostraron que la ciudad tiene once áreas de riesgo
data, and the sectors that have a high level of según datos de defensa civil, y los sectores que tienen
vulnerability are arranged mainly on the margins of un alto nivel de vulnerabilidad están dispuestos
the urban perimeter, while the lowest level of social principalmente en los márgenes del perímetro urbano,
vulnerability is in the central area of the city. It is mientras que el nivel más bajo de vulnerabilidad social
noteworthy that civil defense mechanisms are still se encuentra en la zona central de la ciudad. Cabe
insufficient, especially in disaster risk reduction destacar que los mecanismos de defensa civil siguen
education (ERRD) of risk-prone areas. siendo insuficientes, especialmente en la educación
para la reducción del riesgo de desastres (ERRD) de
las zonas propensas al riesgo.

Keywords: Palabras clave:


Disasters; Geomorphology; Urban Planning, Paraíba. Desastres; Geomorfología; Urbanismo; Paraíba.

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Artigo

Introdução

O
acelerado e intenso processo de urbanização ocasionou inúmeros
problemas para a dinâmica da cidade entre eles a ocorrência de desastres, e
sua potencialidade tem relação direta com fatores ambientais e
socioeconômicos. O aumento do número de desastres suscitou a necessidade de compreensão
deste fenômeno principalmente no que diz respeito à identificação de territórios mais
vulneráveis.
O século XX foi marcado por grandes mudanças tecnológicas e transformações na
relação campo-cidade e na migração para as áreas urbanas. O processo de urbanização é um
fenômeno de escala mundial, ocorrendo de forma mais rápida ou mais lenta em cada região
habitável do planeta. Entre 2007 e 2008 a população urbana ultrapassou a rural na Terra e
embora na Europa esse fato já tenha ocorrido ainda no século passado, somente no século XXI
ocorre no nível mundial. Com a rapidez com que se processa a urbanização em alguns países
ou regiões, como no caso do Brasil, observa-se que muitas cidades não conseguem atender às
demandas básicas das populações menos favorecidas econômica e socialmente; e, assim, vão
sendo criados bolsões de pobreza, segregando e aumentando os riscos (e a vulnerabilidade) para
essa população.
O aumento da segregação espacial é consequência do processo de supervalorização do
espaço urbano, a população de baixa renda não tem o seu direito de acesso à moradia garantido
e passam a ocupar terrenos que são constantemente sujeitos às contingências ambientais, as
chamadas áreas de risco (SANTOS; SOUZA, 2014). O risco é um “constructo eminentemente
social, ou seja, é a percepção de um indivíduo ou grupos de indivíduos da probabilidade de
ocorrência de um evento potencialmente perigoso e causador de danos” (ALMEIDA, 2011, p.
87).
Argumentam Marandola Júnior e Hogan (2004) que os riscos e vulnerabilidades devem
ser trabalhados simultaneamente, e isto se deve ao fato de que em estudos sobre risco o conceito
de vulnerabilidade esteve bastante presente, inicialmente em riscos de dimensão ambiental e
socioeconômica. Cepal (2002) elencou três etapas que constituem e auxiliam no entendimento
da vulnerabilidade. A primeira, diz respeito a existência de um evento potencialmente adverso,
de origem endógena ou exógena; a segunda, a incapacidade de responder à situação, por causa

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Artigo

da ineficiência de suas defesas, ou pela ausência de recursos que lhe deem suporte; e, por último,
a inabilidade de adaptação à situação gerada pela materialização do risco (CEPAL, 2002, p. 1).
Segundo Marandola Júnior e Hogan (op. cit.) a ciência geográfica iniciou os estudos de
risco e vulnerabilidade na dimensão ambiental. Os cientistas desta área desenvolveram
metodologias de análise do risco diferenciada, contemplando tanto variáveis ambientais quanto
as respostas coletivas e individuais das populações em risco.
A pesquisa teve como objetivo analisar os riscos naturais e as vulnerabilidades sociais
decorrentes de eventos climáticos e geomorfológicos (inundações e movimentos de massa) na
área urbana de Campina Grande-PB. Esta temática vem sendo tratada sistematicamente no
campo científico, haja vista sua grande importância para a geração de novos conhecimentos da
ciência geográfica e continua a apresentar um campo fértil para a pesquisa. Deve-se chamar
atenção também que as comunidades mais vulneráveis devem ser alvo de ações educativas para
a redução dos riscos de desastres e estar preparadas para eventos, extremos ou não, que possam
causar impactos sociais e econômicos, incluindo óbitos.

Metodologia

a) Área Estudada

O município de Campina Grande localiza-se no estado da Paraíba na região oriental do


Planalto da Borborema e possui as seguintes coordenadas geográficas: 7°13’11’’ de latitude sul
e 35°52’31’’ de longitude oeste (Figura 01). Devido a sua altitude, cerca de 560m acima do
nível do mar, usufrui de temperaturas amenas, com média anual que oscila em torno dos 23,3°C,
sendo a máxima em torno dos 30,9°C e a mínima em torno de 18,4°C (MEDEIROS et al.,
2011).
A área do município de Campina Grande corresponde a 620,63 km², e a população
município era de 385.276 habitantes de acordo com o Censo de 2010, do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), o que lhe conferia uma densidade demográfica de 620,78
hab./km². O clima característico é a o semiárido quente com precipitação média anual variando
entre 700mm e 800 mm. O município também é composto pela cidade de Campina Grande
(sede do município) e cinco distritos: Catolé de Boa Vista, Catolé de Zé Ferreira, São José da
Mata, Santa Teresinha e Galante, além da área rural (NÓBREGA, 2012); porém neste estudo
foi dado enfoque apenas ao perímetro urbano da sede do município.

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Artigo

Figura 01: Localização do Município e da Área Urbana de Campina Grande-PB

Fonte: Rejane Silva, 2018.

b) Caracterização da Pesquisa

Para alcançar os objetivos da primeira etapa da pesquisa optou-se por uma pesquisa de
natureza exploratória. A pesquisa exploratória possui um planejamento flexível, uma vez que
possibilita a consideração dos mais variados aspectos relativos ao fato estudado. Quanto às
fontes, a pesquisa é bibliográfica, sendo este procedimento o mais adequado para este trabalho,
haja vista a necessidade de um aprofundamento conceitual do problema investigado, além da
disponibilidade de material bibliográfico que trata do assunto. Este tipo de delineamento
permite estudar o problema da pesquisa de forma mais ampla do que seria possível pesquisar
diretamente, constituindo um excelente ponto de partida para um estudo preliminar (GIL,
2002). As fontes bibliográficas utilizadas aqui foram exclusivamente obras de divulgação
reconhecidas no meio acadêmico, foram também utilizados relatórios disponibilizados pela
Defesa Civil de Campina Grande – PB e o acervo online do Jornal da Paraíba.

c) Índice de Vulnerabilidade Social (IVS)

Inicialmente, a principal dificuldade encontrada na construção do IVS foi devido à


limitação existente no que diz respeito à disponibilidade de dados. Desta forma, para a
construção do IVS escolheu-se indicadores que expressam fatores considerados de risco à

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sociedade por implicarem em fragilidades econômicas e sociais que contribuem para a condição
de vulnerabilidade.
Para a elaboração deste índice foram utilizados 21 indicadores socioeconômicos do
censo 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE disponíveis para os setores
censitários de Campina Grande – PB, descritos no Quadro 01.

Quadro 01: Indicadores utilizados para a construção do IVS


N° INDICADORES
1 Proporção de responsáveis por domicílio de 10 a 19 anos de idade
2 Proporção de responsáveis por domicílio acima de 64 anos de idade
3 Proporção de responsáveis do sexo feminino de 10 a 19 anos de idade
4 Proporção de responsáveis do sexo feminino acima de 64 anos de idade
5 Proporção de responsáveis analfabetos
6 Proporção de pessoas responsáveis moradoras em domicílios particulares
permanentes sem rendimento nominal mensal
7 Proporção de domicílios particulares permanentes de 5 a 10 moradores
8 Proporção de pessoas residentes de 0 a 14 anos de idade
9 Proporção de pessoas residentes acima de 64 anos de idade
10 Proporção de pessoas analfabetas
11 Proporção de domicílios próprios ou em aquisição
12 Proporção de domicílios alugados
13 Proporção de domicílios tipo casa cedida
14 Proporção de domicílios particulares improvisados
15 Proporção de domicílios sem banheiro de uso exclusivo dos moradores e nem
sanitário
16 Proporção de domicílios sem abastecimento de água de rede geral
17 Proporção de domicílios sem coleta de resíduos sólidos
18 Proporção de domicílios sem esgotamento sanitário via rede geral de esgoto,
pluvial ou fossa séptica
19 Proporção de domicílios sem rendimento mensal
20 Proporção de domicílios com rendimento mensal per capita de até ¼ de salário
mínimo.
21 Proporção de domicílios com rendimento mensal per capita de ¼ até 1 salário
mínimo.
Fonte: Adaptado de Rezende (2015).

d) Cálculo da Vulnerabilidade Social

De maneira similar a Rezende (2015), considerou-se a vulnerabilidade social como um


fator resultante da ação conjunta dos indicadores definidos no Quadro 2. Dessa forma definiu-
se a variável aleatória Vulnerabilidade Social (VS) como a soma dos indicadores para cada
setor censitário. Em Probabilidade, define-se distribuição de probabilidade como uma função
que descreve as chances, ou probabilidade, de ocorrência dos valores possíveis de uma variável
aleatória (ROSS, 2006). Sob esta perspectiva, obteve-se a distribuição de probabilidade
bootstrap para o valor médio da variável aleatória VS. O principal objetivo deste procedimento
foi identificar quais os setores censitários que apresentaram elevados valores de VS, em termos
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da distribuição de probabilidade do valor médio desta variável aleatória. Isto pode ser verificado
através da seguinte fórmula.

𝐹𝑋̅𝑉𝑆 (𝑥) = 𝑃 (𝑋̅𝑉𝑆 < 𝑥)

Na fórmula acima, 𝑋̅𝑉𝑆 representa o valor médio de VS e 𝐹𝑋̅𝑉𝑆 é a função de


probabilidade acumulada de 𝑋̅𝑉𝑆 . Isto quer dizer que a fórmula acima calcula o quão provável
é obter um valor médio de VS menor do que 𝑥 , este 𝑥 representando o valor observado de VS
em um dado setor censitário. Setores censitários com valores altos desta função estão associados
a elevados valores de vulnerabilidade social.

Para a VS adotou-se uma escala de medida variando de 1 a 0, o menor valor corresponde


a baixa probabilidade de vulnerabilidade e o limite superior a uma maior probabilidade de
vulnerabilidade. Para representar os valores de VS optou-se pela escolha de cores apresentadas
no Quadro 02.

Quadro 02: Classificação e Representação dos Índices em Vulnerabilidade Social


ÍNDICE (0 – 1) NÍVEL DE COLORAÇÃO
VULNERABILIDADE SOCIAL
0,0000-0,2000 Muito Baixo
0,2001-0,4000 Baixo
0,4001-0,6000 Médio
0,6001-0,8000 Alto
0,8001-1,0000 Muito Alto
Fonte: Adaptado de Rezende (2015).

e) Mapeamento

Os mapas apresentados neste estudo surgem no sentido de proporcionar uma alternativa


para melhor visualização das áreas de risco e vulneráveis a desastres do município de Campina
Grande. Os mapas das áreas de risco foram disponibilizados pela Defesa Civil do município, o
mapa do índice de vulnerabilidade social foi elaborado através do software livre Arc GIS.

Resultados e discussão

Diagnóstico da Gestão do Riscos em Campina Grande-PB

A cidade de Campina Grande não difere das diversas cidades do Brasil, mostrando que
tem crescido de forma desordenada, como consequência tem-se a formação das chamadas áreas
de risco, constituídas por habitações e infraestrutura precárias e escassez de serviços (ARAÚJO;
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NASCIMENTO, 2014).O Ministério da Integração Nacional (MIN, 2014) tendo como objetivo
analisar os riscos a escorregamentos e inundações em municípios mais recorrentemente
atingidos por esses desastres contratou a empresa a PANGEA - Geologia e Estudos Ambientais
para a realização de levantamento de dados e análise a desastres naturais, elaboração de mapas
de vulnerabilidade e de risco e apresentação de propostas de intervenções e prevenção de
desastres para sessenta e dois municípios do Brasil, entre eles, Campina Grande. Desta forma,
segundo o relatório foram identificados onze setores de risco correspondendo a um total de 540
edificações (MIN, 2014). Estas áreas correspondem a três tipos de eventos (Quadro 02).

Quadro 02 – Principais tipos de eventos hidro-geomorfológicos que ocorrem em Campina


Grande-PB
TIPOLOGIA DO DEFINIÇÃO
PROCESSO
Inundação Transbordamento das águas de um curso d’água atingindo a planície de
inundação ou área de várzea (Ministério das Cidades - MCID, 2007)
Enchente Elevação do nível d’água no canal de drenagem devido ao aumento da vazão,
atingindo a cota máxima do canal, porém, sem extravasar (MCID, 2007).
Deslizamento Eventos geológicos originados a partir de fluxos ou movimentos gravitacionais
de materiais (solos, sedimentos e rochas), desencadeados por agentes naturais
(chuvas, terremotos etc.) ou antrópicos (explosões, alteração da geometria dos
taludes, tráfego de veículos) (CARVALHO; REIDEL, 2005).
Fonte: Elaborado pelos autores com base em Ministério das Cidades – MCID (2007) e Carvalho; Reidel
(2005).

As áreas de risco em Campina Grande existem principalmente devido aos dois riachos
urbanos existentes na cidade, o riacho de Bodocongó e o riacho das Piabas; e nos períodos de
chuvas extremas as pessoas que moram próximo acabam sofrendo com as consequências. A
Figura 02 mostra a área de risco localizada na Travessa Cecília Nunes de Oliveira, no bairro
Dinamérica 3, esta área está sujeita a episódios de inundação e escoamento com potencial
destrutivo e alta energia de escoamento em períodos de intensa pluviosidade quando ocorre a
enchente do riacho de Bodocongó.
Outra área de risco é conhecida como “Vila dos Teimosos” e está sujeita a inundação
com alta energia de escoamento e potencial destrutivo, além disto nesta área há várias casas de
estrutura vulnerável construídas na planície de extravasamento do açude de Bodocongó,
estando sujeitas a inundações temporárias constantes (Figura 03).

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Artigo

Figura 02: Área de risco localizada no bairro Dinamérica, Campina Grande-PB

Fonte: MIN, 2014.

Figura 3 – Área de risco no bairro de Bodocongó, Campina Grande-PB

Fonte: MIN (2014).

A Figura 04 apresenta área de risco à inundação com alta energia de escoamento e


potencial destrutivo localizada no bairro Três Irmãs. Neste local há casas construídas na planície
de inundação de um riacho, em eventos de alta pluviosidade ocorre o extravasamento das águas
do canal de drenagem atingindo as áreas marginais, em eventos já ocorridos uma das casas foi
destruída ocasionando um óbito.

Devido a sua localização geográfica, Campina Grande usufrui de um clima menos árido,
a sua altitude influencia na ocorrência de temperaturas menores proporcionando um clima

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ameno e mais agradável (MEDEIROS et al., 2014). A precipitação média anual é de 750mm
anuais, estando as chuvas mais concentradas nos meses de março a julho, com abril e julho
sendo os meses mais chuvosos (Figura 05).

Figura 04 - Área de risco localizada no bairro Três Irmãs

Fonte: MIN, 2014.

Figura 05 - Climograma do Município de Campina Grande

Fonte: Adaptado de INMET, 2009.

Medeiros et al. (2014) analisando a ocorrência de eventos extremos de precipitação em


Campina Grande no período de 1970-2010, constataram que estes eventos são mais evidentes
nos meses da estação chuvosa (março à julho, com 5 meses) do que na estação seca (agosto a
fevereiro, com 7 meses). Segundo os autores os eventos extremos não possuem tanta frequência,
porém são caracterizados por grande quantidade de água suficiente para ocasionar prejuízos.
Analisando o acervo dos jornais de circulação da cidade, foi possível encontrar algumas
notícias sobre os eventos extremos que já ocorreram. No dia 14 de fevereiro de 1985, uma

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notícia relata um evento pluviométrico com total de 93,3 mm no período de três horas e meia
(Figura 06).

Figura 06 – Reportagem sobre perdas das chuvas registrada em Campina Grande, 14 fevereiro
de 1985

Fonte: Retalhos Históricos de Campina Grande (2016).

Em junho de 2000 também se verificou um outro evento pluviométrico com mais de


230 mm de precipitação que ocasionou diversos impactos, com alagamentos e possibilidades
de desabamento de casas e prédios (Figuras 07, 08 e 09).

Figura 07 - Matéria mostra dificuldades no Figura 08 - Reportagem sobre os transtornos


trânsito com as chuvas em Campina Grande- ocasionados pela chuva forte em Campina
PB, no ano 2000. Grande-PB, ano 2000.

Fonte: Acervo do Jornal da Paraíba, 2000. Fonte: Acervo do Jornal da Paraíba, 2000.

Figura 09 - Reportagem sobre os riscos nas comunidades mais pobres de Campina Grande-PB
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Artigo

Fonte: Acervo do Jornal da Paraíba, 2000.

Em junho de 2011 choveu consideravelmente na cidade de Campina Grande, cerca de


333mm. Naquele ano ocorreram diversos eventos como desabamento de casas e sangria de
pequenos açudes com ameaça de rompimento, como mostram as reportagens (Figuras 10 e 11).
Também houve muitos desabrigados na cidade e na Paraíba, e chamou atenção o
desaparecimento de um menino de 10 anos que dias depois foi encontrado morto (Figuras 12 a
14).

Figura 10 - Consequência de chuvas no ano Figura 11 - Pequenos reservatórios no


2011 em Campina Grande-PB entorno da cidade preocupam moradores

Fonte: Acervo do Jornal da Paraíba, 2011. Fonte: Acervo do Jornal da Paraíba, 2011.

Figura 12 - Campina Grande entre as cidades com estragos das chuvas em 2011

Fonte: Acervo do Jornal da Borborema, 2011.

Figura 14 - Reportagem denuncia diversos impactos da forte chuva de 2011


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Fonte: Acervo do Jornal da Paraíba, 2011.

Gestão Municipal de Riscos e Educação para Redução de Riscos de Desastres

A identificação, análise e monitoramento de riscos são elementos imprescindíveis na


gestão municipal de riscos e na elaboração de programas de prevenção e de planos de
contingência. O monitoramento é indispensável, pois possibilita a contínua atualização da
situação dos riscos. O município apresenta insuficiência nesta capacidade, principalmente por
não possuir Plano Municipal de Redução de Riscos (PMRR) e acervo de informações e um
histórico de desastres anteriores.
Segundo o MIN (2014) é necessário que o município elabore urgentemente a PMRR
carta geotécnica de aptidão urbana, elemento obrigatório pelos artigos 22, 26 e 27 da Lei
Federal 12.608/2012. Além da implantação de um sistema de monitoramento e de alerta prévio
de desastres e ampliação da rede de comunicação e criação do cadastro de moradores em área
de risco e disponibilize SIG para a sua gestão.
Com relação à capacidade de prevenção e mitigação de desastres, o município apresenta
insuficiência no quesito estruturação, atividades e respaldo do Sistema Municipal de Proteção
e Defesa Civil. É necessário que o município fortaleça o órgão municipal de proteção e defesa
civil disponibilizando recursos orçamentários, humanos e administrativos; além da capacitação
dos membros da defesa civil, adequação da gestão e da legislação municipal à Lei Federal
12.608/2012, que Institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil - PNPDEC.
No quesito planejamento, política habitacional, programas de redução/erradicação de
riscos também se mostrou insuficiente, além de considerar as exigências citadas anteriormente,
torna-se necessário acrescentar no Plano Diretor Municipal o mapeamento das áreas
susceptíveis a deslizamentos e inundações e aprimore seu Plano de Contingência (MIN, op.

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cit.). As ações de prevenção e mitigação de desastres também se mostraram insuficientes, sendo


recomendável a elaboração de um plano de ação para a execução de medidas não estruturais
visando a prevenção e mitigação de desastres e intervenções estruturais, desenvolvimento de
programas socioeducativos nas comunidades expostas aos riscos e a imediata criação de uma
rede de Núcleos de Proteção e defesa Civil (NUPDEC). Para isso se faz necessário:

Compreender uma ameaça que pode desencadear um desastre e de que forma


esta possa atingir um indivíduo vulnerável, ou grupos deles, torna-se
prioridade, tanto para gestores públicos cientes de acordos internacionais em
que o Brasil é signatário, como por exemplos, o Marco de Sendai para a
redução de risco a desastres até 2030 e o acordo de Paris para o
desenvolvimento sustentável, ambos firmados em 2015; quanto para a
sociedade em geral. E isso se faz por meio de processos educativos em todas
as faixas etárias, principalmente de crianças e adolescentes, com intuito de
promover a percepção de risco, para se prevenirem, prepararem ou até mesmo
encontrarem formas de mitigação, quando a ameaça é eminente.
(FILGUEIRA et al., 2019, p. 31-32, Grifo nosso).

Ações educativas que a Defesa Civil de Campina Grande realiza nas escolas não bastam,
se faz necessário que no conteúdo escolar em seus temas transversais estejam contemplados a
realidade dos fatos e eventos como desastres, sejam eles esporádicos, muito frequentes ou não.
Pois, como se nota nas informações coletadas em jornais, os desastres acontecem e com perdas
de vidas humanas como no caso de uma criança de 10 anos ocorrida no ano de 2011.
Os sistemas de monitoramento, alerta e comunicação do município foram considerados
suficientes em Campina Grande; porém, ainda se faz necessário a instalação do sistema de
monitoramento de alerta prévio para risco de escorregamentos e inundações ampliando o
número de pluviômetro existentes, priorizando áreas de risco para a instalação. Para
acompanhamento de previsões meteorológicas faz-se necessária também a coleta de
informações de outras instituições federais, como o Centro de Previsão de Tempo e Estudos
Climáticos/Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (CPTEC/INPE) e o Instituto Nacional de
Meteorologia (INMET).
Se faz extremamente necessária a criação de um cadastro de lideranças comunitárias do
município, de membros do NUPDEC, de voluntários, agentes comunitários de saúde,
principalmente das áreas de risco alto e muito alto. O cadastro deverá constar dados que
permitam contatar de imediato todas as pessoas relacionadas para comunicação de alerta de
previsões meteorológicas adversas e iminência de desastres.
Com relação a capacidade de planejamento e preparação para emergências, no quesito
planos de contingência, programas de mitigação e respostas a desastres o município mostrou-
se insuficiente. Para suprir essa demanda é necessária a criação de fundos para emergência,
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ampliação do plano de contingência através da articulação de diferentes instituições e a


preparação periódica das comunidades expostas aos riscos.
Quanto ao item organização e articulação da estrutura administrativa municipal, o
município apresenta-se suficiente, porém mostrou-se insuficiente no quesito sistemas de
abrigamento e estoque estratégico mínimo, instituições municipais de saúde não estão
capacitadas para atender a população em emergências. Desta forma, torna-se necessário a
capacitação destes e a obtenção de um estoque estratégico composto por produtos de primeira
necessidade (água, alimentos, remédios, cobertores, roupas, fraldas, produtos de higiene
pessoal e de limpeza, lonas plásticas para a impermeabilização de taludes e coberturas de
moradias).
O município foi considerado insuficiente no item informação, organização e
mobilização da sociedade civil, este item reflete uma grande importância, pois experiências
nacionais e internacionais demonstram que o sucesso das políticas da gestão de riscos de
desastres está associado principalmente a qualidade da participação das comunidades expostas
aos riscos, como recomendação é necessário a adoção da prática permanente de ações
socioeducativas nas comunidades, buscando desenvolver seu nível de percepção do risco,
formar uma consciência crítica e abrir a perspectiva da participação comunitária na gestão de
riscos. Assim, a informação e formação educativa são fundamentais pois:

Por meio da educação voltada para RRD, deve-se desenvolver técnicas de


ensino e aprendizagem para capacitar o indivíduo, para compreender as
ameaças, de como elas se formam e se desenvolvem, para poder perceber o
risco conforme quanto vulnerável este se encontra. Neste caso, não se deve
“engessar” o processo educativo, e sim, fazer com que se produzam
conhecimentos a partir do aprendizado dos conceitos na temática dos desastres
e da percepção de risco. (FILGUEIRA, op. cit., p. 32).

Assim como Campina Grande, diversos municípios não estão preparados para o
gerenciamento das áreas de risco. Almeida (2015) analisou dados dos municípios de todo país
objetivando verificar o grau de atuação da PNPDEC no âmbito municipal; a análise foi feita a
partir de dados que dizem respeito a existência de Coordenadorias Municipais de Proteção e
Defesa Civil (COMPEDEC); legislação específica relacionada à prevenção de riscos de
desastres; articulação entre os sistemas de planejamento e gerenciamento de riscos de desastres
com outras leis municipais.
Almeida (op. cit.) em sua análise constatou que 51% dos municípios brasileiros possuem
algum tipo de planejamento de medidas preventivas de desastres; estas medidas estão
relacionadas principalmente com os Planos de Saneamento Básico, mas apenas 9% dos

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municípios possuem Plano Municipal de Redução de Riscos; 2% possuem lei específica que
contemplem a prevenção de enchentes ou enxurradas e 1% com leis específicas que
contemplem a prevenção de escorregamentos ou deslizamentos de encostas.
Ainda segundo Almeida (2015), a grande maioria dos municípios não possuem Carta
Geotécnica de aptidão à urbanização, apenas 3% possuem. Entre os municípios apenas 17%
possuem medidas preventivas contra enchentes ou enxurradas em seus planos diretores e 14%
possuem medidas preventivas a tais desastres em Leis de Uso e Ocupação do Solo. De todos os
municípios 19% possuem o mapeamento das áreas de risco como gerenciamento, porém quando
se trata da fiscalização destas áreas de risco, apenas 11% dos municípios realizam. Apenas 14%
apresentam plano de contingência e 4% apresentam sistema de alerta antecipado de desastres.

Geografia da Vulnerabilidade Social de Campina Grande-PB

Há diversos métodos de identificação de áreas de riscos ou vulneráveis a desastres, são


instrumentos essenciais e que podem auxiliar no gerenciamento dos desastres. Desta forma,
para medir a vulnerabilidade de sociedades é necessário que o pesquisador responda as
seguintes perguntas: “Qual tipo de vulnerabilidade está se propondo a medir?” “Porque o
pesquisador precisa medir este tipo de vulnerabilidade?” e só assim poder buscar dados
administrativos que combinados na forma de taxas, proporções, índices ou mesmo valores
absolutos que serão transformados em indicadores (JANUZZI, 2009), ou seja, não existe um
padrão pré-definido sobre quais indicadores devem ser utilizados para mensurar a
vulnerabilidade sobre determinada comunidade (SCHMDT-TOMÉ e JARVA, 2004).
A mensurabilidade da vulnerabilidade ainda é um procedimento complexo, pois associa
várias informações. Os índices sintéticos possuem diversas vantagens, porém muitos
pesquisadores o criticam afirmando que em sua maioria são construídos utilizando variáveis
escolhidas de forma arbitrária ou simplesmente devido á disponibilidade de dados fazendo com
que sua capacidade analítica não seja confiável, porém, não deixam de ser instrumentos
indispensáveis na análise da vulnerabilidade (FUNDAÇÃO SAEDE, 2000).
Dentre as diversas formas de mensuração, na presente pesquisa foi elaborado o Índice
de Probabilidade a Vulnerabilidade para a cidade de Campina Grande. Para a elaboração deste
índice foram utilizados 21 indicadores socioeconômicos do censo 2010 do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística – IBGE disponíveis para os setores censitários de Campina Grande –
PB, descritos no Quadro 2.
Através do IVS elaborado e aplicado à Campina Grande foi possível identificar todos
os níveis de VS como mostra a Figura 13. Observa-se que a maioria dos setores censitários
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localizados na área marginal da cidade se encontra em situação de alta vulnerabilidade social.


Para os bairros que apresentaram um nível muito alto de probabilidade de vulnerabilidade
social podemos citar: Velame, Três Irmãs, Distrito Industrial, Acácio Figueiredo, Cidades,
Serrotão, Novo Bodocongó, Ramadinha, Universitário, Araxá, Cuités, Jardim Continental,
Louzeiro, Nações, Jardim Tavares, Nova Brasília, José Pinheiro, Monte Castelo, Vila Cabral,
Sandra Cavalcante, Pedregal, Jeremias,Tambor, Dinamérica, Alto Branco, Santa Rosa e
Palmeira. Deve-se salientar que alguns bairros como o Catolé, Centro, Malvinas, Liberdade,
Lauritzen, Bela Vista, Cruzeiro e Centenário apresentaram apenas uma pequena parte do setor
censitário com vulnerabilidade muito alta.

Figura 15 – Probabilidade de Vulnerabilidade Social de Campina Grande-PB

Fonte: Elaborado por Rejane Nascimento da Silva (2017).

Deve-se considerar que eventos como os desastres, assim como a existência das
ameaças, tem seu componente natural que pode se concretizar com a vulnerabilidade de um
indivíduo ou uma comunidade. Em Campina Grande, os setores ou bairros com vulnerabilidade
alta ou muito alta, tem sua componente ambiental que são os riachos, ou seus canais produzidos
para receber as águas de chuvas. A ameaça é maior para as populações que vivem nas margens
e área baixas que podem sofrer inundações, enchentes, alagamentos ou movimentos de solo,
provocando também o risco de desabamento entre outras consequências.

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Considerações finais

Esta pesquisa possibilitou o conhecimento de diversos aspectos referentes aos riscos e


vulnerabilidades da cidade de Campina Grande, entre os diversos aspectos, vale ressaltar o
conhecimento das onze áreas de risco da cidade, a partir de informações oriundas da Defesa
Civil. Como qualquer outra cidade que não possui um planejamento urbano efetivo, Campina
Grande sofre com eventos extremos de precipitação, portanto torna-se necessário o
gerenciamento das áreas de risco identificadas na cidade.
Procurou-se, nesse estudo, refletir e apresentar algumas análises que abordam os
problemas relativos à questão dos riscos e vulnerabilidades urbanas. Foi possível identificar
que a cidade de Campina Grande apresenta o maior nível de vulnerabilidade social
principalmente nas áreas mais afastadas do centro da cidade. Porém, não se pode generalizar
no sentindo de que somente as populações inseridas em condições sociais inferiores são as
únicas afetadas por tais eventos, porém, é notório a existência de diferentes graus de
vulnerabilidade, tendo em vista que o fator social tem um peso fundamental na determinação
da vulnerabilidade.
A construção dos índices apresentados neste trabalho constituiu um passo importante
para a identificação, delimitação e mapeamento da vulnerabilidade; espera-se que esse trabalho
possa contribuir no gerenciamento da vulnerabilidade social do município. A partir da pesquisa
percebeu-se o quanto o conhecimento dos riscos e das vulnerabilidades é relevante, não só do
ponto de vista acadêmico, mas do ponto de vista social e a sociedade também precisa entender
as suas causas e consequências; bem como ser informada e educada para a ocorrência de
desastres, pois este fenômeno atinge grande quantitativo de pessoas no país e no mundo inteiro.

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