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Coerência, referenciação e ensino


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Mônica Magalhães Cavalcante


Valdinar Custódio Filho
Mariza Angélica Paiva Brito

Coerência, referenciação e ensino


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COMITÊ EDITORIAL DE LINGUAGEM


Anna Christina Bentes
Edwiges Maria Morato
Maria Cecilia P. Souza e Silva
Sandoval Nonato Gomes-Santos
Sebastião Carlos Leite Gonçalves

CONSELHO EDITORIAL DE LINGUAGEM


Adair Bonini (UFSC)
Arnaldo Cortina (UNESP – Araraquara)
Fernanda Mussalim (UFU)
Heronides Melo Moura (UFSC)
IngedoreGrunfeld Villaça Koch (UNICAMP)
Leonor Lopes Fávero (USP/PUC-SP)
Luiz Carlos Travaglia (UFU)
Maria das Graças Soares Rodrigues (UFRN)
Maria Helena Moura Neves (UPM/UNESP)
Maria Luiza Braga (UFRJ)
Mariângela Rios de Oliveira (UFF)
Marli Quadros Leite (USP)
Mônica Magalhães Cavalcante (UFC)
Regina Célia Fernandes Cruz (UFPA)
Ronald Beline (USP)
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Sumário

Apresentação
Capítulo 1 – Característicasfundamentais do fenômeno da referenciação
Texto e coerência: a perspectiva sociocognitiva
A referenciação
A referenciação é uma (re)elaboração da realidade
A referenciação resulta de uma negociação
A referenciação é um processo sociocognitivo
Desdobramentos atuais dos estudos de referenciação
Sugestões de atividades
Atividade 1
Atividade 2
Atividade 3

Capítulo 2 – Os processos referenciais


Introdução referencial
Anáforas
Anáforas indiretas
Anáforas encapsuladoras
A dêixis
Dêixis pessoal
Dêixis social
Dêixis espacial
Dêixis temporal
Dêixis textual
Dêixis de memória
Sugestões de atividades
Atividade 1
Atividade 2
Atividade 3

Capítulo 3 – Funções argumentativas de processos referenciais


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Marcação de efeito polifônico


Articulação de (sub)tópicos
Desambiguação de referentes
Manutenção de uma informação em suspenso
Criação de efeitos de humor
Marcação da interdiscursividade
Sugestões de atividades
Atividade 1
Atividade 2
Atividade 3
Atividade 4
Atividade 5

Considerações finais
Glossário
Referências
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Texto de apresentação

A (re)construção dos referentes é um processo determinante para a produção e


compreensão dos sentidos. Esta obra – concebida, primeiramente, como material
destinado aos professores da educação básica (mas que interessa também a alunos de
graduação em Letras e alunos do ensino médio) – oferece um espaço riquíssimo para
fomentar a discussão sobre as possibilidades de aplicação dos pressupostos teóricos da
referenciação ao ensino de língua materna. Defende-se que o desenvolvimento da
competência discursiva do aprendiz depende do domínio de estratégias textual-
discursivas, dentre as quais emerge como fundamental a utilização bem-sucedida dos
processos referenciais.
E esta é a razão de este livro trazer, para a pauta dos estudos atuais e para as
práticas pedagógicas, um aporte teórico consistente e atualizado sobre os postulados
centrais da referenciação. Aqui, o leitor encontrará apoio para compreender como se
realizam as estratégias textual-discursivas que permitem aos sujeitos (re)construírem os
objetos relevantes para a concretização dos seus objetivos.A partir de uma exposição
que enfatiza o domínio de termos como coerência, referente,objeto de discurso,
expressão referencial, recategorização, anáfora (entre outros), o professor receberá o
aporte necessário para entender com propriedade os fenômenos relacionados à
representação dos objetos do texto, procedimento essencial para a plena participação em
ações de produção e compreensão dos discursos.
O ambicioso objetivo principal deste livro é, portanto, o de fazer valer as
recomendações consensuais mais atuais sobre o processo de ensino-aprendizagem de
língua materna: tomar o texto como ponto de partida e de chegada para as práticas
didáticas. Para tanto, é necessário que o professor se aproprie da teorização linguística
sobre o texto e que, simultaneamente, seja capaz de fazer a necessária transposição
didática, a qual deve ter como eixo o desenvolvimento da competência comunicativo-
discursiva dos aprendizes. Sugerem-se, aqui, reflexões e fazeres que poderão dar às
aulas de língua portuguesa a feição de momentos de verdadeira interação, em que o uso
e a análise da língua propiciam que o conhecimento seja efetivamente construído.
Além desta apresentação e das considerações finais, o livro apresentatrês
capítulos. No primeiro, parte-se da concepção sociointeracionista de texto rumo a uma
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reflexão sobre a natureza intrinsecamente dinâmica da coerência textual. Essa discussão


é fundamental para o entendimento das particularidades do fenômeno da referenciação,
que implica uma mudança de foco no que diz respeito ao tratamento textual das relações
entre língua e realidade. O leitor é convidado a enxergar essa relação sob um novo
ângulo, que certamente desafia o senso comum e estimula uma reflexão sobre a “ação
pelas palavras”.
No segundo capítulo, são apresentados os processos referenciais. Descrevem-se
a introdução referencial, a anáfora e a dêixis, considerando-se, nesse panorama, o
necessário detalhamento sobre a recategorização, a anáfora indireta e o encapsulamento,
fenômenos importantes para a tessitura textual,mas pouco explorados nos livros
didáticos de língua portuguesa. O foco, neste capítulo, não se encontra na descrição
formal pura e simples, mas, sim, no entendimento das funções principais exercidas por
cada processo.
O terceiro capítulo expande a discussão iniciada no capítulo anterior, ao
esmiuçar funções argumentativas dos processos referencias. Aqui, são apresentadas
diferentes possibilidades de atuação dos processos na construção da coerência.
Organização tópica, polifonia e desambiguização ganham destaque, o que possibilita ao
professor compreender o quão profícua pode ser a abordagem didática da referenciação.
Cada um dos três capítulos finaliza com um conjunto de exercícios de leitura e
produção escrita, que podem ser adaptados pelo docente à realidade de sua sala de aula,
de acordo com as dificuldades cotidianas que enfrenta.
Muito há que se fazer com as múltiplas possibilidades de relação dos processos
referenciais com outros critérios de análise do texto/discurso. O campo se abre; os
caminhos se bifurcam e se recortam – cabe a cada um buscar a riqueza dos
entrecruzamentos.O professor, desde já, é convidado a adentrar este fantástico universo
da busca pelos sentidos. Neste trajeto, sairá mais enriquecido e mais preparado para
exercer, com pertinência, autonomia e criatividade, a sua missão de educador.
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Capítulo 1Características fundamentais do fenômeno da referenciação

O objetivo principal deste capítulo é que se compreenda o fenômeno da


referenciação, a partir das suas principais características. Para percebê-lo em sua
totalidade, deve-se relacioná-lo com duas dimensões essenciais nos estudos em
Linguística Textual: o texto e a coerência. Em vista disso, o capítulo está organizado da
seguinte maneira: na primeira seção, vamos refletir sobre elementos importantes para as
conceituações sobre texto e coerência. Em seguida, tratamos do fenômeno da
referenciação, relacionando-o com a explicação dada na seção anterior. Finalmente,
apresentamos sugestões de atividades, aplicáveis em sala de aula, que realcem as
principais características dos processos referenciais, necessárias para o desenvolvimento
de diversas competências textuais, dentre elas a competência comunicativa.

Texto e coerência: a perspectiva sociocognitiva

Inicialmente, pensemos que é universalmente aceito o princípio de que o texto


pode ter qualquer extensão.1 Sendo percebidas uma unidade de sentido e uma intenção2
(elementos garantidores da coerência) dentro de uma unidade de comunicação, tem-se
um texto. Dessa forma, consideramos como texto tanto o exemplo (1) quanto o exemplo
(2).

(1)
Viciados em game
Os jogos on-line podem se tornar uma compulsão. Levam a problemas no trabalho, na
escola e de saúde

1
Realçar essa característica é importante se levarmos em conta que, ainda hoje, alguns alunos (e
professores) restringem o estatuto do texto ao que normalmente pode ser amoldado a uma proposta de
redação de vestibular: um texto (escrito) com média de 20 linhas, no formato de narração, descrição e
dissertação, com quatro parágrafos – um de introdução, dois de desenvolvimento e um de conclusão.
2
Neste capítulo, para simplificar, chamamos de intenção o(s) objetivo(s) que o enunciador do texto
pretende atingir e que o interlocutor é capaz de reconhecer. Nos estudos teóricos, a questão dos
“objetivos” de um texto pode ser tratada a partir de diferentes perspectivas. Em um extremo, há a ideia de
que a intenção é resultado do desejo individual do sujeito; em outro, defende-se que qualquer propósito
comunicativo seria resultado das condições sócio-históricas que constrangem a interação dos sujeitos.
Entre essas duas possibilidades, há sugestões intermediárias, como mostra Ingedore Koch, no livro
Desvendando os segredos do texto (2003).
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No Orkut, rede virtual de relacionamentos, há milhares de comunidades


dedicadas aos jogos on-line. Uma das maiores reúne fãs do gameRagnarök – são 52 mil
membros. Entre os comentários dos internautas, há dicas de como avançar para novas
fases, bem como declarações de amor e ódio aos personagens do jogo. Mas não existe,
nessa nem em outras comunidades semelhantes, referência a um problema silencioso:
o vício nos games. Jogadores compulsivos passam até 30 horas seguidas em frente ao
computador, perdem dinheiro, enfrentam problemas na escola, no trabalho e com a
família.
O problema é mundial. Afeta crianças, adultos e principalmente adolescentes.
A Coreia, país onde surgiram as lanhouses, tem um dos índices mais altos de vício em
gameson-line. De acordo com um levantamento realizado pelo governo coreano, 546
mil pessoas – ou 2,4% da população com idade entre 9 e 39 anos – precisam de ajuda
para curar a compulsão. Em reportagem publicada no início de setembro, a revista
americana Businessweek revelou um número assustador: em 2005, sete pessoas
morreram na Coreia, vítimas de parada cardíaca ou exaustão, enquanto jogavam na
internet. A preocupação com o problema também cresce em países como China,
Inglaterra e Holanda, onde já existem clínicas especializadas no tratamento dessa
dependência.
No Brasil, não há estatísticas que meçam a compulsão. Mas o fenômeno já é
objeto de pesquisa em universidades como a PUC de São Paulo, onde funciona o
Núcleo de Estudos de Psicologia e Informática. Na Universidade Federal do Rio Grande
do Sul, o psiquiatra Daniel Spritzer também pesquisa o tema. “Os jogos funcionam com
recompensas: à medida que o jogador avança, ganha mais vidas, ou valores em
dinheiro na moeda virtual do jogo.” Segundo Spritzer, os games atuam na região do
cérebro responsável por registrar a sensação de prazer. “O cérebro trabalha para
manter essa sensação, e isso pode levar ao vício. É o mesmo mecanismo da
dependência do álcool e das drogas.”
A tese ajuda a explicar a história do estudante paulistano M.A., de 16 anos. No
fim de 2005, ele comprou um computador novo. Passou as férias jogando Tibia, um
dos games mais populares entre os jovens. “Eu ficava dias na frente do computador”,
diz. “Esquecia de comer, não dormia. Minha vida social quase acabou.” Com a volta às
aulas, M.A. diz que começou a faltar à escola – e as notas passaram a cair. O
“tratamento” veio da mãe: a pedido dela, M.A. desinstalou o jogo. “Hoje, vejo que
estava viciado”, afirma. Ele não deixou de jogar no computador. Mas agora também
encontra tempo para os amigos, leitura e violão.
(Época, 9 de outubro de 2006, p. 89.)

(2)
Mais vale chegar atrasado neste mundo do que adiantado no outro.
(Disponível emhttp://www.fraseseproverbios.com/frases-de-humor.php. Acesso em 26 abr. 2010.)

Em ambos os exemplos, pode-se perceber uma unidade de sentido, uma unidade


de comunicação e uma intenção por parte do enunciador (a qual é facilmente
depreendida pelo interlocutor). Em (1), a unidade de sentido é garantida pela
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manutenção do tópico “vício em jogos de computador”. Esse tópico é tratado, no texto,


de forma explicativa,poissão apresentadas informações que atestam a pertinência do
assunto,e de forma persuasiva – o destaque sobre os problemas decorrentes do vício
servem de alerta para o leitor. Essa organização é estabelecida a partir da intenção do
enunciador: apresentar informações que promovam uma reflexão direcionada à
prevenção contra o vício.
O texto (2), mesmo sendo bem curto, também apresenta uma unidade de sentido
e uma intenção, além de constituir uma comunicação completa. Temos uma frase de
efeito (um dito popular), cuja unidade se pauta pela indicação (genérica e implícita) de
que algumas atitudes podem causar uma morte prematura. A intenção seria, justamente,
fazer-nos refletir sobre a suposta necessidade de agir de uma certa maneira que, no final
das contas, pode nos trazer sérios prejuízos.
Vemos, assim, que a questão do tamanho não chega a ser um problema para o
entendimento do que vem a ser um texto. Na verdade, em muitas ocasiões, a situação de
interação pede a produção de textos bem curtos mesmo. Por exemplo, se alguém está se
afogando no mar e grita “Socorro!”, talvez seja mais bemsucedido em realizar sua
intenção (informar que está sendo afogado para ser salvo) do que se produzir algo do
tipo: “Estou me afogando. Será que alguém, por obséquio, poderia me ajudar a escapar
dessa enrascada?”.
As controvérsias quanto ao estatuto do texto podem surgir quando nos
deparamos com enunciados que não se encontram nos moldes do que seria esperado.
Vejamos o exemplo seguinte:

(3)
Rutherford, Bohr
Rutherford, Bohr
Rutherford, Bohr
Modelos atômicos

Um cavalo morto é um animal sem vida.


Um cavalo morto é um animal sem vida.

Rutherford, Bohr
Rutherford, Bohr
Rutherford, Bohr
Modelos atômicos
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Em redor do buraco tudo é beira.


Em redor do buraco tudo é beira.
Em redor do buraco tudo é beira.

Rutherford, Bohr
Rutherford, Bohr

Como se conseguiria justificar que o exemplo (3) é um texto? Onde está a


unidade de sentido? De que maneira esse conjunto de enunciados pode ser percebido
como coerente? E qual a intenção do enunciador?
Levando-se em conta que o exemplo (3) foi efetivamente produzido por alguém
(como, de fato, o foi), devemos admitir que, em princípio, há uma unidade e uma
intenção por trás dele. Para tanto, é preciso fazer um esforço maior de recuperação da
coerência, para o que ajuda conhecer mais detalhadamente o contexto de produção do
exemplo em análise.
Trata-se do trecho de uma fala do escritor Ariano Suassuna,3 durante uma
palestra dirigida a estudantes universitários. Nesse evento, Suassuna narra que, um dia,
foi procurado por um jovem músico, o qual lhe disse que ele estava muito
“ultrapassado”, que ele devia “se ligar nos novos ritmos”. Para convencer o escritor da
pertinência de sua sugestão, o funkeiro (segundo Suassuna) resolve cantar uma música
de sua autoria, a qual corresponde ao exemplo (3).
Vemos, então, que a ocorrência (3) é um texto, pois, considerando o contexto
descrito, percebe-se que o enunciador acreditou estar produzindo algo inusitado, que
corresponderia à novidade a ser conhecida (e referendada) por Suassuna. Claro que, em
tal processo, o produtor se vale de um conjunto de conhecimentos o qual ele supõe que
será acessado pelo interlocutor. Podemos lançar a hipótese de que ele espera estabelecer
as relações entre o refrão da música – que remete a Ernest Rutherford e Niels Bohr,
físicos que teorizaram sobre a estrutura do átomo – e as “verdades absolutas” de que
“Um cavalo morto é um animal sem vida” e “Em redor do buraco tudo é beira”. O texto
revelaria, portanto, uma forma particular de compreender a estrutura da matéria.
É a busca pelo completamente inusitado (neste caso, a intenção do enunciador)
que amarra o texto, garantindo-lhe unidade. Trata-se, obviamente, de uma unidade bem
fora do esperado, mas pertinente para o contexto estabelecido. Além disso, o contexto

3
Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=Q9D_q-pRCus. Acesso em 26 abr. 2010.
12

em que (3) aparece nos permite, ainda, considerar que um texto pode gerar sentidos
diversos, o que depende, entre outras coisas, da situação de interlocução. A partir do
momento em que a música figura na palestra de Suassuna, além dos sentidos percebidos
na interação original, há uma nova interpretação, que diz respeito ao humor que o
escritor quis provocar com a narração de uma cena pitoresca. Evidencia-se, na fala de
Suassuna, o nonsenseda música supostamente inovadora, o que provoca o riso.
A partir do que foi comentado para o exemplo (3), podemos afirmar:

O contexto de produção é essencial para o reconhecimento do estatuto do texto


e, consequentemente, de sua coerência.[Pôr em destaque] Comentado [n1]: Arte/diagramação: aplicar destaque conforme
padrão da coleção. Vale para todos os trechos estilado como
Isso fica muito evidente quando analisamos textos mais incomuns, mas é “destacar”

verdadeiro para todo e qualquer texto. Os textos (1) e (2), por exemplo, não têm sua
unidade de sentido garantida porque exprimem informações ou opiniões “lógicas”,
verdadeiras, mas porque ganham unidade de sentido e de comunicação somente dentro
de um contexto situacional.
Em (1), por exemplo, o texto é considerado coerente, entre outros motivos, por
se adequar à situação de interação prevista: uma interlocução no domínio jornalístico,
em que um órgão de comunicação produz uma reportagem para ser lida por seus
interlocutores habituais. É possível até, durante a leitura, não levar em conta,
conscientemente, esse contexto, porque a expectativa sobre isso é, dependendo da
maturidade do leitor, tão “natural” que o conhecimento prévio fornece, facilmente, o
suporte necessário para a produção dos sentidos. Já em (3), uma ocorrência mais
inusitada, a expectativa da situação de interação é menos precisa, o que demanda um
esforço maior para reconhecer os elementos interacionais promotores do sentido.
Do que foi apresentado até aqui, realçamos o seguinte:

A existência de um texto está atrelada à possibilidade de se atribuir coerência a


uma dada ocorrência comunicativa (não exclusivamente linguística). A coerência surge
da percepção de uma unidade de sentido que depende da intenção argumentativa do
enunciador, da cooperação do interlocutor, das indicações marcadas na superfície do
texto e de um vasto conjunto de conhecimentos compartilhados. [Pôr em destaque]
13

A análise do contexto de produção passa, obrigatoriamente, por um trabalho


cognitivo, essencialmente colaborativo, do interlocutor, que, por isso mesmo, deve ser
entendido como um coenunciador, aquele que participa ativamente da construção da
coerência. Reconhecer os elementos contextuais pertinentes para a unidade de sentido
requer a (re)ativação de conhecimentos armazenados em nossa memória.4 Esses
conhecimentos surgem a partir de nossas experiências no mundo e do contato com as
informações que recebemos das mais variadas fontes. Por serem determinados
culturalmente, os conhecimentos prévios têm, em sua raiz, um caráter sócio-histórico,
daí ser comum, nos estudos atuais, falar no statussociocognitivodo texto e da coerência. Comentado [n2]: diagramação/arte: destaque na cor.

A ativação e a reativação de tais conhecimentos são fundamentais para o


processo de interação, uma vez que a superfície textual, ou cotexto, é inerentemente
“incompleta”. Para aprofundar essa reflexão, voltemos ao exemplo (2):
(2)
Mais vale chegar atrasado neste mundo do que adiantado no outro.

Há níveis diferentes de conhecimento que são acessados – simultaneamente, vale


salientar – para a interpretação desse pequeno texto. Primeiro, consideremos o
conhecimento linguístico. Para atribuir sentidos, é necessário conhecer o vocabulário,
bem como a organização sintática (no caso de (2), a estrutura “Mais isso que aquilo”).
Também é preciso perceber a elipse depois de “no outro” [mundo], além dos demais
aspectos formais e funcionais da língua.
Cuidemos, agora, do conhecimento de mundo, quer dizer, da bagagem
informacional (conhecimentos bem generalizados acerca do mundo, das vivências
pessoais e dos eventos situados no tempo e no espaço). Cabe-nos reconhecer a diferença
entre “este mundo” (dos vivos) e “o outro mundo” (dos mortos), o que só é possível
porque acessamos nossos conhecimentos prévios sobre essas duas entidades. Além
disso, também produzimos sentido para o texto quando nos lembramos de situações
(ocorridas ou hipotéticas) que atestam a verdade da informação. Um exemplo, relevante
para o sentido do texto (2), poderia ser a morte de alguém por uma batida no trânsito
decorrente da pressa em chegar a um local.
Finalmente, atentemos para o conhecimento interacional, que diz respeito às
expectativas que os sujeitos têm sobre o desenrolar de cada interação. Ao nos

4
Para mais informações sobre os tipos de conhecimento prévio, sugerimos a obra Ler e compreender: os
sentidos do texto, de Ingedore Koch e Vanda Elias (ver referência na bibliografia consultada).
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depararmos com o texto (2), reconhecemos tratar-se de uma frase no estilo de um


provérbio ou de um dito popular. Logo, imaginamos como devemos “nos comportar”
adequadamente ante tal contexto enunciativo, pois começamos a supor que, em tal
situação, a frase deve conter uma “verdade universal” ou um “sábio conselho”, que
pode, ainda, apresentar um tom humorístico.
Todo o processo descrito acima atesta a importância de se considerar a interação
via texto como uma ação que demanda a ativação de conhecimentos socialmente
construídos. Por isso, costuma-se afirmar que a coerência é uma construção
sociocognitiva, manifestada na interação e dependente do contexto. Essa definição é
importante para que, em sua prática pedagógica, os professores se lembrem de que não
há regras específicas e universais sobre a coerência que possam ser aplicadas a
todo e qualquer texto. Isso, contudo, não significa que a perspectiva sociocognitiva Comentado [n3]: Editorial: por favor, vf. se os osbolds (quando
não sinalizados como “destacar”) serão no preto ou no azul.
defenda que qualquer coisa que o aluno diga ou escreva deva ser considerada como
pertinente, aceitável e adequada. Conforme veremos adiante, o usuário competente da
língua deve ter um aguçado conhecimento acerca dos contextos de adequação.
Antes, porém, devemos mencionar que a perspectiva mais ampla de tratamento
do texto e da coerência abre espaço para reconhecermos a pertinência comunicativa de
outras configurações além do texto verbal (oral ou escrito). Ultimamente, têm ganhado
destaque, nas discussões teóricas e nas abordagens didáticas, os textos multimodais, Comentado [n4]: diagramação/arte: destaque na cor.

em que dois ou mais modos de enunciação se conjugam para manifestar/sugerir os


sentidos pretendidos. É o que vemos no exemplo a seguir.

(4)

Amigo do esquadrão antibomba


15

(Disponível emhttp://www.fotocomedia.com/tag.php?tag=anti-bomba. Acesso em 26 abr. 2010.)

A coerência de (4) não depende, exclusivamente, do aparato linguístico


manifesto na superfície textual (o título do desenho e o endereço da homepage). Para
entender por que um dos personagens da cena é chamado de “amigo”, é preciso recorrer
à imagem, que nos informa sobre a ação que está prestes a se dar: o “amigo” vai
estourar um balão próximo ao ouvido de alguém que está desativando uma bomba. Essa
imagem, associada ao site em que se localiza, ao gênero do discursoa que se filia e ao Comentado [n5]: editorial: vf. se é mesmo na cor.

nosso conhecimento prévio sobre a tensão envolvida na desativação de uma bomba e o


barulho provocado pelo estouro de um balão, que resultaria num enorme e perigoso
susto, permite-nos entender o valor irônico de “amigo”, a partir do que se estabelece o
humor do texto.
Com essa análise, além de confirmar a importância do conhecimento prévio para
a produção dos sentidos, percebe-se que a imagem, assim como outros recursos
multimodais, como o som, o vídeo, os links dos processos on-line, dentre outros, tudo é
fundamental para que o enunciador efetive sua intenção argumentativa. Isso mostra que
o texto não deve mais ser definido apenas em termos de aparato verbal. A produção e a
interpretação só são levadas a efeito se se mobilizarem diferentes recursos expressivos.
Essa forma de considerar o estatuto do texto abre novas perspectivas tanto para o
universo teórico quanto para o universo pedagógico, que, cada vez mais, deve promover
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condições que estimulem os aprendizes a desenvolver a competência comunicativa em


diferentes linguagens (verbal e nãoverbal, isto é, multimodal).
A partir da discussão lançada até aqui, esperamos ter contribuído para o
alargamento das concepções sobre texto e coerência. O entendimento sobre essas duas
dimensões da comunicação não pode se restringir a considerações estáticas, que
apontem critérios universais a partir de ocorrências mais usuais. Na missão de contribuir
para o desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos, é preciso atentar para
possibilidades múltiplas de configuração dos sentidos (principalmente se admitirmos
que, para o aluno de hoje, situações consideradas incomuns para os professores podem
ser bastante usuais).
Essa perspectiva mais ampla, como já insinuamos, não implica a aceitação de
qualquer produção do aluno como efetivamente válida. Além de reconhecer a coerência,
é preciso avaliar a adequação do texto à situação comunicativa que se realiza. Isso
implica que um texto com unidade de sentido pode, a depender da situação, ser
inadequado para um dado contexto, ou pode apresentar apenas algumas quebras locais
de coerência que prejudicam, em parte, a reconstrução dos sentidos. Cabe, então, ao
professor, não apenas reconhecer a coerência do texto do aluno, mas avaliar a
“qualidade” dessa coerência. Claro que os critérios de tal avaliação dependem, sempre,
do contexto de produção.
A ênfase no caráter sociocognitivo do texto e da coerência permite uma
compreensão diferente da referência. Em uma perspectiva marcadamente construtivista,
o reconhecimento dos referentes não pode se limitar a uma associação de um-para-um
entre objetos do mundo e objetos do texto. Conforme veremos na próxima seção, a
referência é uma construção relacionada ao dinamismo inerente à configuração textual e
à busca pela coerência.

A referenciação

O estudo da referência como fenômeno ligado ao texto ganhou destaque com as


primeiras considerações sobre a coesão textual. Segundo a proposta fundadora de Comentado [n6]: editorial: vf. cor

Halliday&Hasan (no livro Cohesion in spokenandwrittenEnglish), uma das formas de


estabelecer a “ligação” entre as partes de um texto decorre da retomada de elementos
textuais por meio de expressões nominais (expressões referenciais). Essa proposta ficou
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conhecida no Brasil por meio do clássico A coesão textual, de Ingedore Koch, no qual a
autora apresenta (reformulando a classificação original) os mecanismos participantes da
coesão referencial: a substituição (por retomada lexical ou pronominal), a repetição e a
elipse. Sem dúvida, muito do que foi (e ainda é) feito no universo escolar sobre coesão
textual gira em torno da proposta de Halliday&Hasan adaptada por Koch.
No cerne dessa proposta, está a explicação sobre como estabelecer cadeias
coesivas – conjuntos de expressões nominais que contribuem para o estabelecimento de
um referente no texto. Veja-se um exemplo de cadeia coesiva, a partir de algumas
expressões sublinhadas e das elipses (indicadas entre colchetes) dessa cadeia no texto a
seguir. Assinalamos somente as retomadas de um mesmo e único referente; em outras
palavras, marcamos o percurso de uma cadeia correferencial:

(5)
Sou aficionado por quadrinhos – e, para ser mais específico, pelos X-Men – há
cerca de 20 anos. Durante este tempo todo, ainda não vi ninguém tomar uma atitude
quanto aos poderes da Vampira. Ultimamente, ela vem se tornando briguenta e
carrancuda (não é para menos, a coitada não pode nem dar um beijinho no seu
namorado sem sugar os poderes dele). Já que ninguém toma uma providência, resolvi
eu tomá-la: o Fera e o Noturno não usavam indutores de imagem para poder sair à rua
sem serem notados? Então, é só criar um inibidor de poder para Vampira! Quando ela
quiser relaxar e dar uns amassos, é só [ø] ligar, e, quando for a hora do pau, [ø] desliga
e [ø] cai na porrada! Se até hoje ninguém teve esta ideia na Marvel, manda minha
ideia para eles e até quem sabe não rola um convite pra roteirista?
Ilídio Tavares de Azevedo Jr – Trindade (GO)
(Carta do leitor publicada na seção de correspondência da revista X-Men Extra, n. 29. Barueri (SP):
PaniniComics, 2004, p. 97.)

Note-se que o enunciador lançou mão de diferentes recursos para construir uma
cadeia em torno do referente Vampira5: o próprio nome da personagem, o pronome
“ela”, a expressão lexical “a coitada”, a repetição do nome da personagem e do pronome
“ela”, e as elipses antes das formas verbais “ligar”, “desliga” e “cai”. Esse tipo de
estudo procura investigar, principalmente, a maneira como a informação sobre uma
entidade pode ser estabelecida e processada, de modo a se perceber como a
continuidade textual é garantida.

5
Trata-se de uma personagem das histórias em quadrinhos dos X-Men, cujo poder é absorver, pelo contato
com a pele, os poderes, as memórias e a força vital de outros mutantes.
18

Ocorre que, com o avançar dos estudos, viu-se que a questão da referência não
poderia se limitar ao tratamento da informação em um texto. A tendência de
compreender o texto e a coerência como instâncias bastante dinâmicas também teve
impactos na maneira como se compreende a referência, já que processos
sociocognitivos altamente complexos e multifacetados apresentam funções e realizações
múltiplas. Daí se passou a falar em referenciação – proposta teórica que salienta o
caráter altamente dinâmico do processo de construção dos referentes em um texto.
O dinamismo dessa proposta se ancora em três princípios fundamentais:
instabilidade do real, negociação dos interlocutores e natureza sociocognitiva da
referência. Nas próximas subseções, apresentaremos informações detalhadas sobre esses
princípios, além de indicações sobre as implicações didáticas de cada um. Antes, porém,
é preciso diferenciar duas definições fundamentais para os estudos em referenciação:
referentee expressão referencial.

O referente (ou objeto de discurso) é a representação na mente dos


interlocutores de uma entidade estabelecida no texto.Pôr em destaque. Por exemplo, Comentado [n7]: Arte/diagramação: pôr em destaque, seguindo
padrão da coleção.
em (5), a personagem Vampira é um referente; também são referentes, no mesmo texto,
entre outros, o grupo de mutantes X-Men, o leitor que escreve para a revista, os outros
personagens mencionados, a ideia para resolver o problema de Vampira. Todas essas
entidades ganham representação no universo discursivo construído pelo texto, por isso
são referentes.
A expressão referencial é uma estrutura linguística utilizada para
manifestar formalmente, na superfície do texto (ou seja, no cotexto), a
representação de um referente.Pôr em destaque.Essa estrutura é, na grande maioria Comentado [n8]: Arte/diagramação: pôr em destaque, seguindo
padrão da coleção.
dos casos, de natureza substantiva, ou seja, em geral, é formada por um substantivo
(com ou sem determinantes e modificadores) ou por um pronome em função
substantiva.6Confiram-se algumas expressões referenciais para os referentes do exemplo
(5):

Referente presente em (5) Expressões referenciais utilizadas (não


são mencionadas as repetições)
A personagem Vampira “da Vampira”, “ela”, “a coitada”, elipses
antes de “ligar”, “desliga” e “cai”
O grupo de mutantes X-Men “pelos X-Men”

6
Veremos, no capítulo 2 desta obra, que alguns pronomes dêiticos, os quais também são responsáveis
pela construção da referência, têm natureza adverbial, e não substantiva.
19

O leitor que escreve para a revista X-Men elipses antes de “sou” e “vi”, “eu”, “minha
Extra [ideia]”, “roteirista”
Os outros personagens do grupo X-Men “o Fera e o Noturno”, elipse antes de
“serem”
A ideia do leitor para resolver o problema “uma providência” “tomá-la”, “esta ideia”
de Vampira

Estabelecidas as definições básicas, passemos, então, a entender o processo da


referenciação, a partir de seus princípios basilares.

A referenciação é uma (re)elaboração da realidade


A primeira ideia sobre o processo da referenciação se apoia na constatação de
que a função primordial da linguagem é prover uma forma de acesso a uma dada
realidade. Para compreender a natureza dos processos referenciais, é absolutamente
fundamental que se entenda, desde já, que os objetos do mundo não são expressos, nos
textos, de forma objetiva e imutável, pois eles sempre são construídos de acordo com as
especificidades de cada situação de interação (o que implica, entre outras coisas, as
características dos interlocutores e as suas intenções). Dessa forma, toda construção
referencial é um trabalho em constante evolução e transformação.7Essa evolução da
referência pode ser facilmente percebida a partir da comparação dos três exemplos a
seguir.

(6)
Rebolation é um single lançado pelo grupo de axé Parangolé no final de 2009 pela
gravadora Universal Music. Já alcançou as paradas da Billboard Brasil na posição 5ª no
Brasil Hot 100 Airplay, entre outras com destaque para a parada de Salvador, Bahia,
que ficou na 4ª posição no Salvador Hot Songs, e em 2º em Porto Alegre que são as
canções mais tocadas nas rádios das cidades.A canção ganhou uma repercussão
nacional, principalmente nas mídias televisivas.
(Disponível emhttp://pt.wikipedia.org/wiki/Rebolation_(can%C3%A7%C3%A3o_de_Parangol%C3%A9).
Acesso em4 mai. 2010.)

(7)
Rebolation invade a telinha

7
Mostraremos, nos capítulos 2 e 3, que essas transformações de referentes, ou recategorizações,
promovem a progressão referencial, colaborando fundamentalmente para o desenvolvimento
argumentativo do texto.
20

LAST_UPDATED2 DOM, 28 DE FEVEREIRO DE 2010 19:48DOM, 28 DE FEVEREIRO DE


2010 14:04
Hoje, domingo, 28, a banda Parangolé mostra que está
com tudo e estará no programa do Faustão com o
sucesso do carnaval, o Rebolation, escolhida por muitos
como a música do carnaval 2010. Léo Santana e o
Parangolé estarão mais uma vez no cenário nacional.
Parangolé, que estará no Alafolia 2010 (Micareta de
Alagoinhas), é a banda de pagode que está em maior
evidência na mídia. Ao lançar o sucesso Rebolation, o
grupo se consagrou como uma das maiores [bandas] do
Brasil.

(Disponível emhttp://www.alagoinhasnoticias.com.br/festas-a-eventos/1820-robolation-invade-a-
telinha.html. Acesso em 4 mai. 2010. Adaptado.

(8)
1 comentários:

Marcelo Pereira disse...


Rebolation fazendo sucesso na Europa e EUA? É ruim, hein? Devem ser uns três
brasileiros pingados, que, de tanta saudade do país, acabam, inclusive, tendo que
aderir ao cocô pátrio. Comentado [n9]: editorial: por favor, vf. se a cor azul
corresponde à correção do texto ou destaque que deve ser mantido

Os estrangeiros, que têm a mente mais evoluída que a nossa, sabem muito bem que o
“rebolation” é uma bobagem sem nexo e, mesmo gostando, nunca levam a sério. Para
eles não é cultura nem arte, é uma brincadeira tola mesmo. Por isso que as tentativas
de exportar o popularesco como “cultura séria” fracassam.

Aqui no Brasil ainda tem a insistente ideia de transformar qualquer bobagem em


“cultura” e “arte”, para que se perpetue no (mau) gosto popular e gere lucros
perpétuos. Mas só otários caem nessa. E não são poucos, os otários.
23 DE MARÇO DE 2010 08:56
(Comentário de um internauta sobre a notícia “Rebolation conta com apoio do PiG”,
postada em “O Kylocyclo: o blog que faz a diferença”. Disponível
emhttp://okylocyclo.blogspot.com/2010/03/rebolation-conta-com-apoio-do-pig.html. Acesso em 4 mai.
2010.)

Os três textos têm, em comum, o referente “Rebolation”. Em cada um, são


usadas expressões referenciais que contribuem para a representação deste objeto de
discurso. Contudo, as representações são diferentes, pois as intenções argumentativas,
em cada texto, são distintas.
21

Em (6), o referente é apresentado (até onde isso é possível) de forma


aparentemente neutra; o “Rebolation” é um single, uma canção. É importante definir seu
conceito porque essa canção ganhou bastante destaque a partir do Carnaval de 2010 (o
que é atestado pelos dados sobre a sua veiculação nas rádios). Como (6) é um texto
pertencente ao gênero verbete de enciclopédia (a Wikipedia), a função informativa deve
ser a mais evidente, daí a utilização de expressões referenciais que endossam esse viés e
se apresentam como supostamente imparciais, como se esvaziadas de avaliação por
parte do enunciador. Essa aparente neutralidade não descaracteriza, no entanto, a função
argumentativa das expressões, que são utilizadas exatamente para tal fim.
Já em (7), há uma intenção explícita de valorizar o grupo musical Parangolé,
razão por que é necessário tecer elogios a sua música mais conhecida: o “Rebolation”.
A partir dessa perspectiva sobre a realidade, é essencial salientar a música como “o
sucesso do carnaval” e “a música do carnaval 2010”.
Em (8), muda o propósito argumentativo e, consequentemente, muda a
perspectiva. O enunciador pretende criticar o alarde em torno de um suposto sucesso do
“Rebolation” na Europa. Para tanto, insiste na distinção (que não é percebida pelos
“otários”) entre “qualquer bobagem” e “arte”/“cultura”. Nesse contexto, faz sentido
caracterizar o “Rebolation” como “cocô pátrio”, “uma bobagem sem nexo”, “uma
brincadeira tola”.
A comparação mostra que um mesmo objeto do mundo (o “Rebolation”) pode
ser representado de diferentes maneiras. Se assim o é, então, a realidade não é estável,
não está apenas disponível para ser expressa de forma lógica e objetiva pela linguagem.
Ao contrário, os objetos do mundo são sempre interpretados. Temos, assim, que a ideia
de que “tudo é relativo” é bastante cara aos partidários da referenciação.
Em qualquer interação de que participemos (oral, escrita, hipertextual,
multimodal), estamos sempre (re)elaborando os “objetos” da realidade e os referentes a
eles correspondentes, mesmo que haja, como no exemplo (6), uma suposta apresentação
neutra de uma verdade (a neutralidade também é uma escolha, e isso, por si só, já revela
um trabalho do sujeito sobre o objeto). Podemos, então, dizer que nós sempre estamos
envolvidos em um trabalho ativo de (re)elaboração/(re)interpretação.
Em alguns casos, a avaliação que fazemos sobre os objetos fica explicitada na
própria expressão referencial, como nos exemplos (7) e (8); em outros, o trabalho
consiste, exatamente, em apagar a avaliação, dependendo do propósito argumentativo,
22

do gênero do discurso e de fatores contextuais outros. Tudo, no entanto, é “legítimo”,


considerando-se que são condições inerentes ao uso da linguagem.
Pelos exemplos analisados, percebe-se que um mesmo referente pode sofrer
transformações, chamadas de recategorizações, a depender da forma como um texto o
apresenta e de como ele será reconstruído pelo coenunciador. Mas a verdade é que essa
recategorização é algo tão inerente ao processo referencial que acontece, estando ou não Comentado [n10]: vf. cor.

explicitada nas expressões referenciais dentro de um mesmo texto, e é perceptível por


diversos indícios contextuais.
Vejamos, novamente, o exemplo (8). Cada expressão referencial utilizada para
retomar o referente “Rebolation” (além de outras pistas nãoreferenciais) promove
acréscimo de informações, que contribuem para a recategorização referencial. Ao
longo do texto, o interlocutor é informado de que, além de “cocô pátrio”, o
“Rebolation” é “uma bobagem sem nexo”, que, para as mentes mais evoluídas, não
passa de “uma brincadeira tola”. As diferentes expressões estabelecem, portanto, novos
pontos de representação, que contribuem para a recategorização.
Ainda sobre a recategorização, analisemos este outro exemplo:

(9)
Britney não ficou tão mal na foto
Eis uma notícia edificante sobre Britney Spears: aos 28 anos, a rainha dos vexames e
dos paparazzi resolveu, por iniciativa própria, mostrar as imperfeições de seu cobiçado
corpinho. Ela autorizou a divulgação das fotos sem tratamento que fez para a
campanha de uma grife de moda americana. O.k., as gordurinhas em excesso, a
deselegância do derrière e a profusão de humanas celulites berram na comparação
com as imagens retocadas. Mas não constituem um escândalo estético. Já se viu coisa
muito pior por aí. Não se sabe se o gesto teve por objetivo “expor a pressão que as
mulheres sofrem para ser perfeitas” (como disse a cantora) ou se foi mais uma jogada
para tentar melhorar a imagem da estrela com uma falha que todos já conheciam. De
qualquer forma, as mulheres reais agradecem.
(Época, 19 de abrilde 2010, p. 130.)

O texto propõe uma representação para a artista Britney Spears. Essa


representação passa por modificações, algumas delas inscritas nas próprias expressões
referenciais utilizadas para se referir à personagem, num processo de
correferencialidade (como mostraremos no capítulo 2, a correferencialidade é um
processo de manutenção do mesmo referente). Inicialmente, optou-se por utilizar o seu
nome, como forma de introduzir o referente no texto, facilitando seu reconhecimento.
23

Logo depois, o referente é retomado como “a rainha dos vexames e dos paparazzi”, o que
denuncia uma nova caracterização. Posteriormente, as designações “a cantora” e “a
estrela” também propõem novas formas de elaboração do referente, que se somam às já
mencionadas. Além disso, outras expressões que se referem indiretamente a Britney,
como “cobiçado corpinho”, “as gordurinhas em excesso”, “a deselegância do derrière”
e “a profusão de humanas celulites” também contribuem para que esse referente seja
recategorizado.
A partir das análises propostas nesta seção, vemos que os processos de
referenciação, imprescindíveis para a unidade de coerência, desempenham funções
textual-discursivas que vão além da organização do fluxo de informação (falaremos de
algumas dessas funções no capítulo 3 deste livro). Por isso, acreditamos que o estudo
dareferenciação contribua, inclusive, para um alargamento do fenômeno da coesão, pois
o que se costuma ver como a “costura” do texto não engloba apenas a possibilidade de
recuperação de um referente no cotexto, mas implica, também, a construção de uma
representação ligada ao direcionamento argumentativo e expressivo pretendido pelo
enunciador. Tais aspectos, bem como todas as informações contextuais interligadas pela
coesão, fazem parte do fenômeno maior da coerência. Essa abordagem precisa ser
explorada na escola, a fim de que o aprendiz receba instruções sobre a importância de se
utilizar estratégias de referenciação para melhorar sua competência em compreensão e
produção de textos. O papel da linguagem na construção da realidade, por meio da
criação de objetos de discurso, deve ser, portanto, um “conteúdo” trabalhado em sala de
aula.
No que diz respeito ao desenvolvimento da leitura, é importante munir o aluno
de estratégias que lhe permitam reconhecer os posicionamentos de um texto como
tributários de uma perspectiva (entre outras) da realidade. Isso inclui o entendimento de
que, em certas situações, a construção pela linguagem resvala para manipulações que
tentam mostrar, como verdades incontestáveis, ideias contrárias ao que o senso comum
e/ou a convivência social e/ou os mecanismos de regulação elegeram (mesmo que
aparentemente) como as mais pertinentes para as relações culturais. Entram nesse rol,
por exemplo, reflexões sobre o discursodos políticos a respeito de casos de corrupção e Comentado [n11]: vf. cor.

sobre os discursos veiculadores de preconceitos (muitas vezes, de forma implícita).


No que toca à produção (oral, escrita ou de outros modos de enunciação), o
aluno deve reconhecer que as atividades organizacionais de um texto estão diretamente
24

atreladas aos gêneros do discurso, não apenas como a manifestação de um conteúdo e


de um formato “relativamente estáveis”, mas como uma oportunidade de propor
sentido(s) por meio de mecanismos linguísticos recrutados para estabelecer a coerência
condizente com o seu projeto de dizer. Nesse caminho, saber trabalhar com a
representação dos referentes é ferramenta das mais úteis. Claro que, numa proposta
educacional voltada para a formação de cidadãos atuantes (porque autônomos, críticos e
responsáveis), a noção de construção da realidade pela linguagem deve caminhar lado a
lado com os princípios da ética. Em outras palavras, o aluno deve saber que a linguagem
traz poder, mas, ao mesmo tempo, deve ser estimulado a exercer esse poder com
responsabilidade, o que exige uma preocupação com a coletividade.

A referenciação resulta de uma negociação


Provavelmente, para a maioria das pessoas, a palavra “negociação” define um
entendimento estabelecido entre os participantes de uma transação econômica. No que
diz respeito aos usos da linguagem, a mesma ideia de entendimento entre sujeitos é
mantida, sendo este um princípio universal, válido para qualquer interação (e não
apenas para as relações comerciais).
Quando produzem e compreendem textos, os sujeitos participam ativamente da
interação, de modo que estão sempre negociando os sentidos construídos. O processo é
amplamente dinâmico, porque permite modificações com o desenrolar das ações. A
construção referencial nada mais é que o resultado dessa negociação.
A título de ilustração, observemos o texto a seguir.

(10)
Cuecas

[...]
— Não sei se você entende — disse Giselda.
— Eu entendo — disse Martô.
— O Júlio usa cueca samba-canção — disse Giselda.
— Eu sei — disse Martô.
— E isso me dava uma certa segurança. Entende?
[...]
— Bobagem, claro — disse Giselda. — Mas, entende?
— Perfeitamente — disse Martô.
25

— Eram, assim, como um símbolo. As cuecas do Júlio. De estabilidade. De bom


senso. Até de uma certa resignação diante da vida. Mas no bom sentido. [...] Vou dizer
uma coisa. Cueca é caráter.
— Quem vê cueca vê coração.
— [...] E agora isso...
— O quê?
— As cuecas samba-canção na moda de novo. Entende?
— Anrrã.
— Ele não vai mais ter vergonha de tirar a cueca na frente de outra.
— Ou outras.
— Ou outras. [...] Vou ter que ficar de olho. Agora sim. Olho vivo. Ou eu estou
exagerando?
— Não, não. [...]

(VERISSIMO, Luis Fernando. Comédias da vida privada: 101 crônicas escolhidas. 15. ed. Porto
Alegre: L&PM, 1995, p. 42-43.)

Percebe-se que, no diálogo entre Giselda e Martô, o desenvolvimento do assunto


depende de como as amigas interagem, expressando concordâncias e acrescentando
modificações. Isso quer dizer que os referentes – os objetos de discurso que vão
aparecendo no texto e, a partir de então, são passíveis de recategorização – se
estabelecem a partir de negociações que se configuram na interação. Por isso dizemos
que o processo da referenciação é dinâmico.
Por exemplo, Giselda menciona “uma certa segurança”, que, implicitamente, o
leitor reconhece como uma proteção contra a infidelidade do marido: por preferir usar
cueca samba-canção, ele não teria coragem de despir-se na frente de outras mulheres,
porque elas poderiam considerar o hábito pouco sexy, pouco estimulante. A segurança
decorrente da preferência do marido por cueca samba-canção é recategorizada como
uma “bobagem”, mas que, mesmo sendo bobagem, é importante para ela. Não basta
Giselda considerar a tal bobagem como importante; é necessário deixar isso claro para a
amiga (que afirma compreender o que Giselda quer dizer), a fim de que a conversa
progrida.
Mais adiante, Giselda diz que “Cueca é caráter”, com o que Martô concorda e
complementa: “Quem vê cueca vê coração”. E, no final do excerto, quando Giselda
confessa ter medo de que seu marido tire a cueca na frente de outra, Martô arremata:
“Ou outras”;ao ratificar a modificação proposta por Martô, Giselda reformula o
referente, indicando que sua preocupação deve ser maior ainda.
26

Em toda a conversa, vemos como a participação das duas personagens é


fundamental para fazer o texto progredir, o que só acontece porque elas entram em
acordo quanto aos objetos de discurso tratados – por exemplo, a segurança de Giselda, o
significado de uma cueca, as possíveis futuras amantes de Júlio. A negociação, portanto,
é fundamental para a referenciação, seja para confirmar caracterizações, seja para
propor reformulações, seja para (em alguns casos) mostrar mais de uma possibilidade
(discordantes entre si) de elaboração de um referente. Vale observar, porém, que,
mesmo que não se tratasse de uma sequência dialogal, a negociação continuaria a existir
entre os interlocutores – esta é uma propriedade inerente a todo processo referencial, em
qualquer texto.
O trabalho de construção dos referentes é uma atividade partilhada,
intersubjetiva.Pôr em destaque.Não se trata de construir versões da realidade ao Comentado [n12]: Arte/diagramação: pôr em destaque, seguindo
padrão da coleção.
belprazer do enunciador, mas, sim, de submeter a versão à aceitação de outros
participantes de interlocução. E não poderia ser diferente, já que a ação de referir é
inerentemente social.
O exemplo analisado pode dar a entender que a construção negociada dos
referentes seria característica dos diálogos, das interações face a face (reais ou
simuladas). Acontece que a negociação é um princípio constitutivo da linguagem, por
isso faz parte de qualquer situação de interação por meio dos textos. Nos textos em que
os “receptores” parecem não atuar diretamente na produção, por exemplo, nas situações
de modalidade escrita em que os sujeitos não respondem diretamente à fala do outro, a
negociação ocorre como antecipação das atitudes dos prováveis destinatários.
O produtor faz os arranjos necessários para que seu texto seja considerado
pertinente e coerente pelos interlocutores; para tanto, organiza a construção referencial
de uma dada maneira. Acorre à memória de qualquer um, hoje em dia, uma situação em
que teve de enviar um e-mail para solicitar algo a alguém; nessas horas, fazem-se escolhas
de expressões que se julgam mais apropriadas para moldar os referentes, sem dúvida
alguma, com base na maneira como se pretende que o leitor entenda o pedido. Isso
também é negociar.
Do ponto de vista do destinatário, a negociação acontece porque qualquer
atividade de interpretação demanda ações do sujeito leitor, como coenunciador.
Imagine-se uma situação de leitura do dia a dia, por exemplo, a leitura de uma
reportagem de uma revista de circulação nacional. Uma parte do processo diz respeito à
27

compreensão da mensagem transmitida pela reportagem. Para tanto, são estabelecidas


estratégias que serão utilizadas e selecionados conhecimentos que poderão ser
necessários (isso tem a ver, dentre outras coisas, com o tipo de reportagem e com a
familiaridade com o assunto). Uma vez que tenha compreendido a mensagem (num
processo, como se vê, ativo), é preciso confrontar a mensagem adquirida com outras
obtidas anteriormente, com a visão de mundo, com as ideologias. Nesse sentido, deve-
se decidir se se concorda ou não com essa nova mensagem; se se acredita total ou
parcialmente nela, ou se não se acredita de jeito nenhum. Todas essas ações indicam
que, de fato, ler é negociar.
Os referentes, portanto, estão sujeitos às “artimanhas” das negociações
intersubjetivas. O aprendiz, em sua prática de produção e leitura, deve ser estimulado a
utilizar estratégias que explicitem a aplicação desse princípio. Ele deve entender que o
uso da linguagem passa pela aceitação da audiência, o que demanda uma antecipação
sobre como representar os referentes. Ao mesmo tempo, deve ser estimulado a
“negociar” com os textos que lê/escuta, dialogar para, a partir daí, participar, também
ele, da construção dos conhecimentos oriundos dos textos.Pôr em destaque.

A referenciação é um processo sociocognitivo


Como vimos, o estatuto do texto e da coerência é visto sob um viés
sociocognitivo. Essa proposta procura estabelecer uma relação essencial entre o
processo de conhecer (da alçada da cognição) e as experiências culturais (da alçada do
social), embora não se separem, a rigor, esses dois níveis: o cognitivo e o social. Talvez
o fenômeno textual-discursivo que explicite mais claramente essa tendência seja a
referenciação.
Até aqui, já estabelecemos a função da referenciação (propor versões para a
realidade) e o modo como ela se concretiza (a partir de negociações diretas ou
indiretas). Isso só é possível porque os mecanismos de construção dos referentes, os
processos acionados para que a linguagem entre em funcionamento, são de natureza
sociocognitiva. Para que isso fique ainda mais claro, explicitaremos alguns dos
mecanismos de interpretação da piada apresentada no exemplo a seguir.

(11)
28

Minha esposa estava dando dicas sobre o que ela queria para seu aniversário,
que estava próximo.
Ela disse: “Quero algo que vá de 0 a 100 em cerca de 3 segundos.”
Eu comprei uma balança para ela.
Aí a briga começou...
(Disponível emhttp://mais.uol.com.br/view/e8h4xmy8lnu8/ai-a-briga-comecou-
0402993670D0899326?types=A&. Acesso em 5 mai. 2010.)

O humor da piada depende do reconhecimento de recategorizações referenciais


implícitas. Inicialmente, pode-se pensar que o presente desejado pela esposa – “algo que
vá de 0 a 100 em cerca de 3 segundos” – seja um carro potente. O marido, ao comprar
uma balança, insinua uma recategorização para a mulher: ela é gorda (ou, pelo menos, o
marido assim a considera), pois a balança avança para o número 100 quando ela a
utiliza. A briga começou exatamente porque o homem alude à recategorização “mulher
gorda” ao comprar uma balança.
As recategorizações “carro potente” e “mulher gorda” não estão presentes no
texto, mas podem ser recuperadas. Isso só ocorre porque nós trabalhamos mentalmente
para interpretar os textos, de modo que aquilo que falta para completar os sentidos é
captado a partir dos conhecimentos prévios (originados da mente). Construir a
referência é, portanto, uma atividade cognitiva.
Mas não é apenas isso. Como vimos na seção anterior, a bagagem cognitiva de
um indivíduo é de natureza sociocultural, pois os conhecimentos são adquiridos a partir
das informações e das experiências, ou seja, a partir da imersão do sujeito no mundo.
Basta vermos que a piada lida só faz sentido porque temos conhecimento sobre o que
está envolvido em brigas de casal: um dos motivos seria o marido chamar (mesmo que
implicitamente) a esposa de gorda, ou, então, as esposas serem extremamente sensíveis
a qualquer alusão sobre seu peso por sempre acharem que os maridos as consideram
gordas. Esse conhecimento provém de modelos culturais que vivenciamos de algum
modo.
A natureza sociocognitiva da referenciação garante o caráter marcadamente
dinâmico do processo. Esse dinamismo deve ser trabalhado pedagogicamente, de modo
que os alunos sejam estimulados a produzir e ler os textos atentando para as operações
cognitivas que regulam tal processo. Uma vez que os alunos percebam que qualquer
texto é naturalmente incompleto, eles poderão usar isso a seu favor, fazendo mais uso de
mecanismos que possibilitem a recuperação de informações implícitas. Isso implica
trazer para a sala de aula uma prática que considere a importância dos conhecimentos
29

prévios para o uso linguístico. Não basta, portanto, ficar repetindo que os textos dos
alunos carecem de clareza e objetividade. É preciso fazê-los entender que essa suposta
clareza/objetividade se sustenta em um panorama de constante ativação de esquemas
socioculturais e que a superfície do texto é organizável por trilhas de sentido (COSTA,
2007).
Podemos, então, resumir o que foi exposto nas três últimas subseções com o
seguinte conceito de referenciação: construção sociocognitiva de objetos de discurso
reveladores de versões da realidade e estabelecidos mediante processos de
negociação. Pôr em destaque. Comentado [n13]: Arte/diagramação: pôr em destaque, seguindo
padrão da coleção.

Antes de passarmos para as sugestões de exercícios, expomos brevemente, na


próxima seção, algumas novidades sobre o estudo da referenciação, a fim de mostrar
que a construção científica sobre o tema ainda tem muito a contribuir para as discussões
teóricas e para as aplicações didáticas.

Desdobramentos atuais dos estudos de referenciação

Na primeira seção deste capítulo, dissemos que os estudos sobre o texto vêm
destacando a participação de outras linguagens na configuração dos sentidos. Além da
parte verbal, as imagens, os sons e as outras “fontes de percepção” também proveem
conteúdo para a produção e a interpretação. No que diz respeito à referenciação, já
comentamos que as representações sobre um objeto de discurso podem ser construídas a
partir de recursos diversos. A título de ilustração, vejamos o exemplo seguinte:

(12)
30

(Disponível emhttp://bardosmoke.blogspot.com/2008/05/armas-em-casa.html. Acesso em: 15 mai.


2010.)

Em (12), um possível referente a ser construído pelo leitor é “briga de casal”. A


representação escolhida é captável pela fisionomia da mulher,8 pelo som de abertura da
porta e pela menção (via escrita) de comportamentos inadequados do parceiro. É
possível perceber a importância da imagem na construção referencial, pois a fisionomia
da mulher (confrontada com experiências socioculturais vividas ou informadas) é
elemento fundamental para percebermos o clima de briga.
Vemos, também, no texto, uma representação sobre o comportamento
inadequado do homem, que é recategorizado como gradual: a depender da falha, a
punição é maior. Essa gradação só se estabelece porque, em nossa leitura, associamos a
imagem ao conteúdo verbal, no caso, os objetos na parede ao tipo de “infração”. Isso
mostra que, quanto à referenciação, os recursos visuais de um texto podem exercer
funções semelhantes aos recursos linguísticos e, quando os dois aparecem
concomitantemente, complementam-se. Num mundo em que a comunicação pela
imagem é cada vez mais preponderante, esse tipo de conhecimento não pode passar
despercebido pelos alunos.
Além da influência da imagem, os estudos recentes procuram mostrar que uma
representação proposta para um referente não resulta, exclusivamente, das expressões
referenciais utilizadas para designá-lo. Por se tratar de um processo importantíssimo
para a manifestação da coerência, a referenciação não tem como se restringir a um

8
Aqui, mais uma vez, é possível capturar a natureza sociocognitiva do fenômeno. A mulher representada
na cena poderia ser uma esposa, embora isso não precise ser dito. Que pistas são utilizadas para tanto?
Que associações se fazem? Por que se ri da charge? Lembramo-nos de situação semelhante? Todas essas
perguntas revelam o processamento – sociocognitivo – ativado para produzir sentidos.
31

conjunto específico de formas linguísticas, de modo que a construção dos objetos de


discurso pode ser realizada a partir de recursos linguísticos de natureza diversa, como se
vê em (13).

(13)

(PAIVA, Miguel. Disponível emhttp://www.radicalmentechic.blogger.com.br/Radical%20Chic%2021.jpg.


Acesso em 7 mai. 2010.)

Atentemos para o homem descrito pela Radical Chic. A rigor, há apenas duas
expressões genuinamente referenciais que o (re)categorizam: o pronome “ele” (repetido
várias vezes) e o sintagma nominal “o homem da minha vida”. É óbvio que, quando
construímos a representação para esse referente, quando o recategorizamos de acordo
com a progressão textual, não foram apenas essas duas formas referenciais as
desencadeadoras do processo. Várias outras pistas interferiram nas decisões: os
“adjetivos” (“totalmente diferente de mim”, “fumante”) e as diversas proposições (“Ele
gostava de música”, “Ele gostava de ir logo para os finalmentes” etc.), contemplados à
luz da comparação com a Radical.
Vemos, assim, que a representação de um referente não se pauta apenas pelas
expressões referenciais. Claro que estas são elementos importantíssimos para indicar a
32

posição dos sujeitos sobre os objetos textualizados, mas um processo tão complexo
como a construção dos objetos essenciais para a coerência não pode se limitar a
especificidades formais. As perspectivas atuais dos estudos (destaque-se, por exemplo,
o deCOSTA, 2007; de Leite, 2007; e de LIMA, 2009) enfatizam, portanto, o caráter
complexo do fenômeno da referenciação. A transposição didática dessa complexidade
deve ser estimulada, pois é isso que está em jogo nas interações sociais.
Com o intuito de contribuir de forma mais concreta para essa transposição
didática, sugerimos três atividades, descritas a seguir.

Sugestões de atividades

Nesta seção, apresentamos três sugestões de atividades, sobre as características


basilares da referenciação, que podem ser realizadas com os alunos. As sugestões foram
pensadas para professores e alunos de qualquer série do ensino médio; contudo, podem
ser feitas adaptações (por exemplo, quanto à adequação dos textos e ao grau de
aprofundamento dos temas) para que, se reformuladas, possam também ser produtivas
para as séries do ensino fundamental.

Atividade 1
Objetivo:mostrar a importância da negociação para a construção dos referentes e para o
estabelecimento da coerência.
Descrição9
Essa atividade consistirá da organização e apresentação de debates em sala de aula. O
trabalho terá quatro etapas:

1) Informações iniciais

Informe aos alunos que será realizada uma rodada de debates nas próximas
aulas. Junto com a turma, escolha os temas a serem debatidos. Para cada tema, deve
haver dois grupos de debatedores (de três ou quatro alunos), que defenderão posições
contrárias. Os temas devem ser escolhidos de acordo com os interesses e necessidades
dos alunos.

9
Na descrição desta atividade, optamos por falar diretamente com o professor, utilizando, para tanto, o
modo imperativo e o vocativo.
33

Por exemplo, no momento de escrita deste livro, há um interesse sobre a


“brincadeira das pulseiras”: meninas adolescentes usam pulseiras que, a depender da
cor, indicam até que ponto elas estão dispostas a aceitar as investidas de um garoto. A
questão é polêmica desde que uma garota foi violentada por quatro rapazes porque,
segundo alguns, eles se sentiram estimulados a “avançar o sinal” em decorrência da cor
da pulseira que ela usava. Em algumas cidades do país, as tais pulseiras foram
proibidas. A discussão em torno dessa decisão seria, portanto, um tema potencialmente
gerador de um debate interessante.
Uma vez que sejam definidos os temas e os grupos, oriente os alunos a
pesquisarem sobre o assunto pelo qual ficaram responsáveis (isso pode ser feito durante
dois dias). Informe-lhes que, no dia da preparação do debate (que será realizada em
sala), eles poderão trazer material de consulta.

2)Preparação do debate

Forneça orientações quanto à organização das falas. Indique como será a


dinâmica de interlocução (sugestão: cada grupo terá dois turnos de fala – de três a cinco
minutos – começando pela equipe “do contra” – aquela que vai criticar a pertinência de
uma certa ideia ou decisão). Estabeleça o tempo de preparação da fala de cada grupo
(por exemplo, cinquenta minutos).
Antes da preparação, é muito importante você esclarecer algumas características
textual-discursivas inerentes a uma participação bemsucedida em um debate. Você deve
lembrar aos alunos que uma argumentação bem construída diz respeito, por um lado, à
organização coerente dos conteúdos (das ideias); por outro lado, é preciso orientá-los no
sentido de que as expressões linguísticas têm papel especial na construção de uma tese.
Por exemplo, voltando à polêmica das “pulseiras do sexo”, os alunos devem ser
estimulados a qualificar adequadamente os tópicos trazidos para o debate. Dizer que a
prática em torno das pulseiras é uma “brincadeira inicialmente inconsequente” e dizer
que se trata de “um estímulo à iniciação sexual precoce” são, obviamente, duas
perspectivas contrárias, que podem ser colocadas a depender dos interesses dos
debatedores. Esse tipo de ajuste na configuração dos conteúdos é essencial para o bom
desempenho argumentativo, e os alunos precisam reconhecer isso.
Quando os grupos estiverem organizados, escolha, entre os membros de cada
um, um aluno para assumir a função de secretário; o secretário se ocupará de registrar,
por escrito, os momentos de “conflito” dentro do grupo – aqueles em que os
34

participantes discutem sobre qual a melhor abordagem para expressar determinada


ideia. Sua função é indicar as duas abordagens conflitantes e a forma como o grupo
tomou a decisão final. Ele deve ser informado de que seu registro será retomado após a
apresentação dos debates.

3)Apresentação do debate
As equipes farão suas apresentações de acordo com as orientações estabelecidas
previamente. Durante as falas dos alunos, você fará o papel de secretário, registrando as
principais divergências entre as opiniões, bem como a forma como um grupo se deixa
afetar pela fala do outro grupo.

4)Discussão sobre a atividade (explicitação de estratégias e encaminhamento posterior)


Peça aos secretários dos grupos que apresentem os registros feitos durante a
preparação do debate. Em seguida, apresente os seus registros para os alunos. Formule
questionamentos sobre o modo de agir dos alunos durante a preparação e a
apresentação. Procure encaminhar a discussão para uma reflexão sobre a negociação nas
interações; comente sobre a importância da linguagem no estabelecimento de versões
coerentes da realidade, passíveis de aceitação pelo(s) destinatário(s). Em momento
posterior, proponha uma atividade de produção escrita sobre os mesmos temas dos
debates, orientando os alunos para a necessidade de “negociar” com o leitor.

Comentário
Com a realização do debate, o aluno é estimulado a propor “negociações
referenciais” que determinam a configuração dos objetos de discurso. Isso é válido tanto
para a interlocução em que os participantes partilham da mesma opinião (como na
preparação do debate) quanto para a interlocução em que os sujeitos têm perspectivas
distintas sobre os tópicos discutidos (como na apresentação do debate). A explicitação
dessa “troca negociada” após a realização da tarefa é uma condição necessária para que
o aluno sistematize os procedimentos aprendidos.
Sugerimos que, antes da execução dos passos aqui descritos, o professor forneça
informações prévias sobre o gênero debate, apresentando sua estrutura composicional e
mostrando modelos do gênero.
35

Salientamos que a explicitação da negociação como aspecto inerente à


linguagem pode ser percebida a partir de outras atividades que não o debate. Em
qualquer situação na qual um grupo discuta sobre como fazer algo, essa negociação será
facilmente percebida. Então, se preferir, em vez do debate, o professor poderá utilizar
outras situações: a resolução de uma situação-problema, a preparação de um seminário,
a resolução de uma tarefa de uma gincana, uma reunião da turma para organizar uma
festa etc.

Atividade 2
Objetivo:construir a coesão textual com base na recategorização referencial e no
desenvolvimento argumentativo de um ponto de vista.

Descrição10
Considere a seguinte situação: estão ocorrendo eleições para os líderes de sala de
sua escola, e você é responsável pela campanha de um(a) colega. Uma das exigências
para os candidatos é a produção de um texto argumentativo em que é apresentado o seu
perfil. Você foi designado(a) para produzir esse texto. A fim de lhe ajudar, o(a) colega
candidato(a) mencionou alguns termos que gostaria que aparecessem no texto:
amigo(a) de toda a turma;
defensor(a) das causas justas;
queridinho(a) dos professores;
fonte confiável para guardar segredos;
o(a) mais apto(a) para exercer o cargo.
Escreva o perfil do(a) colega incluindo as expressões mencionadas. Para tanto,
lembre-se de que elas devem: 1) refletir uma organização coerente (você não precisa
seguir a ordem colocada aqui), e 2) ser justificadas com argumentos convincentes.

Comentário
A produção do texto, ao mesmo tempo em que coloca uma situação socialmente
pertinente e interessante para o aluno, obriga-o a refletir sobre a construção da coesão
textual, já que deve incluir, em sua produção, as expressões referenciais mencionadas.

10
Professor, nesta e na próxima atividade, a descrição consiste na apresentação de orientações dadas
diretamente ao aluno.
36

Além disso, a atividade possibilita que o aluno reconheça o caráter essencialmente


discursivo do processo da coesão, pois, além de estabelecer uma cadeia de informação,
ele deverá propor uma cadeia argumentativa coerente, a partir das recategorizações
referenciais.

Atividade 3
Objetivo
Reconhecer a junção entre recursos linguísticos e recursos multimodais como
desencadeadora da referenciação e da coerência.

Descrição
Questão 1
Leia os textos a seguir e responda ao que se pede.

Texto 1

Disponível emhttp://dedemontalvao.blogspot.com.br/2012/03/ana-carolinamensagem-aos-
politicos.html. Acesso em 4 abr. 2012.

Texto 2
37

(Disponível em http://www.essaseoutras.com.br/charges-engracadas-de-educacao-ensino-critica-
alunos-e-professores/. Acesso em 4 abr. 2012.)[sic: acento grave da crase usado inadequadamente na
imagem.]

a) As expressões “obra inacabada” (texto 1) e “educação à distância” (texto 2) assumem


novo sentido nos contextos em que se encontram. Explique qual o sentido mais usual
dessas expressões e qual o sentido que elas passam a assumir nos textos 1 e 2.
b) Que crítica está implícita no texto 1?
c) A ação da professora no texto 2 pode ser considerada uma ação educativa? Justifique
sua resposta.

Questão 2
Observe o texto a seguir e faça o que se pede.
38

(Disponível em:http://sorisomail.com/cartoon/4366.html. Acesso em: 4 abr. 2012.)

Considere que você foi convidado(a) para produzir um artigo de opinião a ser
publicado num suplemento voltado para o público adolescente. O título do artigo é “A
educação em 1969... e em 2009”. Produza o texto, tomando como base a charge
apresentada. Sua tese e seus argumentos devem incluir uma qualificação dos alunos, dos
pais e dos professores, de acordo com o papel que cada um exerce na charge.

Comentário
A realização da atividade permite que o aluno reflita sobre as relações entre
texto verbal e imagem para a produção dos sentidos. As perguntas feitas relacionam-se
diretamente com a construção da coerência e com a participação dos referentes (verbais
e visuais) nessa construção. Dessa forma, o aluno toma consciência de que a
comunicação se efetiva a partir da utilização de diferentes recursos, todos voltados para
a construção de objetos que garantam a pertinência das ideias.
39

CAPÍTULO 2 - Os processos referenciais

No capítulo primeiro, mostramos os pressupostos mais gerais em que se baseia o


fenômeno da referenciação. Agora, vamos trabalhar com os processos referenciais em si
mesmos, não com o mero intuito de defini-los e de classificá-los, mas com o propósito
primordial de demonstrar como eles atendem a funções várias, que têm como finalidade
última colaborar para a construção da coerência/coesão textual e discursiva. Muitos dos
exemplos selecionados pertencem ao domínio do discurso literário, pela razão
fundamental de que os gêneros literários respondem por boa parte dos textos que
aparecem nos livros didáticos dos cursos fundamental e médio. Com isso, intentamos
mostrar, também, que, a fim de propor um trabalho pedagógico sobre os processos
referenciais, o professor pode, inclusive, lançar mão do material didático já disponível.
Três categorias maiores de processos referenciais costumam ser caracterizadas
nas pesquisas sobre este assunto:
–a introdução referencial,
–a anáforae
–a dêixis.
Reservamos um item para cada um deles, tentando, na medida do possível,
manter a seguinte ordenação: primeiro, conceituamos o processo, ilustrando-o com a
análise de exemplos evidentes e prototípicos; depois, buscamos relacioná-los a funções
diversas, todas constitutivamente argumentativas, como dissemos no capítulo anterior.
Tais funções, vez por outra, estarão atreladas a outros conceitos linguísticos, como
metadiscurso, intertextualidade, tópico, polifonia, interdiscursividade e mais alguns. Mas estes serão apenas
minimamente descritos, porque serão abordados somente nas possíveis relações com os
processos referenciais. Além disso, muitos desses fenômenos aparecerão em destaque
no próximo capítulo, em que serão enfatizadas algumas funções argumentativas
atreladas aos processos referenciais.
Começaremos estabelecendo uma oposição entre processos de introdução
referencial e processos de manutenção e progressão de referentes no texto/discurso, isto
é, as retomadas anafóricas (diretas ou indiretas).

Introdução referencial
40

A introdução referencial ocorre quando um referente, ou objeto de discurso,


“estreia” no texto de alguma maneira. Isto pode se dar pelo modo mais evidente: por
meio do emprego de uma expressão referencial ainda não mencionada anteriormente.
Vejamos o exemplo seguinte:

(14)

O que o vento não levou


(Mário Quintana)

No fim tu hás de ver que as coisas mais leves são as únicas


que o vento não conseguiu levar:

um estribilho antigo
um carinho no momento preciso
o folhear de um livro de poemas
o cheiro que tinha um dia o próprio vento...

(Disponível em: http://www.pensador.info/frase/MTYxMzQ/. Acesso em: 4 abr. 2012.)

Este caso mais típico de introdução referencial se verifica quando uma


expressão referencial explicita o objeto de discurso: é o que acontece,já no título do
poema de Quintana, com “o vento” e com o que poderia estar relacionado à expressão
“o que o vento não levou”. Cada um desses referentes é introduzido sob a designação de
um meio linguístico manifesto: a expressão referencial;daí em diante, tudo o mais que
guardar relação com tais referentes estará inevitavelmente associado a ele, o que pode
gerar diferentes processos de retomada anafórica. Assim, o objeto de discurso “o
vento”, por exemplo, foi inaugurado no texto pelo uso de uma expressão referencial,
que poderá servir para ancorar, ou não, futuras retomadas desse mesmo objeto ao longo
do texto. Assim, quando ele é retomado, na primeira estrofe, com a repetição “o vento”,
o coenunciador sabe tratar-se da mesma entidade.
O referente poderia também ter estreado no texto através de uma expressão
referencial que apontasse para certos elementos da situação imediata de comunicação.
Neste caso, dizemos que se trata de uma introdução referencial que estabelece, ao
mesmo tempo, um processo referencial dêitico.Conforme ainda mostraremos ao final
deste capítulo, sempre que uma expressão referencial remeter aos participantes da
comunicação (locutor e interlocutor), ao tempo ou ao local em que se encontram,
estaremos diante de um fenômeno referencial chamado de dêixis. Comentado [n14]: bold = sugestão
41

É o que acontece, por exemplo, com a expressão referencial “tu”, no exemplo


(14), em “no fim tu hás de ver...”, que introduz um referente novo no texto/discurso e
também é um dêitico de pessoa, porque, como todo caso de dêixis, para se saber a que
ele se refere, é necessário ter o conhecimento da situação de comunicação imediata e
identificar quem são os possíveis interlocutores, situados num dado tempo e num dado
lugar.

Nada impede, pois, que uma introdução referencial possa constituir também um
dêitico. Mas é bom deixar claro que nem todo dêitico será uma introdução referencial . Se o mesmo Comentado [n15]: bold = sugestão.

referente “tu” do poema tivesse sido retomado depois, certamente ele seria, agora,
anafórico, como de resto o são todos os processos de retomada.
A sobreposição de dêiticos e de introduções referenciais/anafóricospode ocorrer
porque a dêixis se define por critérios distintos daqueles que restringem a conceituação
de introduções e de anáforas. Assim, se uma dada expressão ao mesmo tempo introduzir
um referente e essa entidade for ou o locutor, ou o interlocutor, ou o tempo, ou o local
em que se situam, haverá simultaneamente introdução referencial e dêixis. As duas
possibilidades são independentes, portanto, e isso permite a coocorrência.
Outro modo de introduzir referentes se dá ainda pela utilização de informações
visuais. Em textos verbo-visuais, não nos parece adequado afirmar, categoricamente,
que um referente é introduzido primeiro pela imagem e que só depois é retomado por
uma expressão referencial. Não se pode assegurar como cada sujeito acessa um dado
referente em textos multimodais: como garantir que, primeiro, ele processa a imagem e,
só em seguida, as expressões referenciais numa situação como a da charge seguinte?

(15)
42

Disponível emhttp://porquinhodoido.blogspot.com.br/2013/01/as-melhores-charges-de-ano-
novo.html.Acesso em04/01/2012.

Como garantir que, ao se deparar com esse texto, um dado leitor, numa
circunstância específica e única, acessou primeiro o referente da imagem de Iemanjá, a
Rainha do Mar, e não de “oferenda”, no canto superior esquerdo da charge? Ou de
“Mantenga”, em cima, ou de “PIB”, embaixo? São fatores fortuitos, pois dependem de
uma série de possibilidades, como a circunstância dêitica de a charge ter sido publicada
logo após a passagem do ano em 2013; como o conhecimento enciclopédico de que a
festa de Iemanjá é comemorada,no Rio de Janeiro, no Ano Novo, quando milhares de
pessoas depositam no mar oferendas a essa divindade; como o conhecimento político-
cultural de que essa charge alude ao fato de a presidente Dilma ter-se queixado bastante
ao Ministro da Fazenda, Guido Mantega, contra o fraco desempenho do produto interno
bruto, ao final de 2012. O que teria chamado mais a atenção de um determinado leitor,
em um determinado momento? Impossível precisar.
Um estudo de Silva (2013) revela que, em textos verbo-visuais, o mais sensato
seria apenas afirmar que os referentes podem ser introduzidos pela imagem ou pela
expressão referencial, ou por indícios de uma e de outra modalidade. A interveniência
de fatores contextuais é que vai decidir se o coenunciador constrói o objeto de discurso
por um meio ou por outro em textos verbo-visuais. O que importa é considerar que, uma
vez instaurado no texto/discurso, o objeto será retomado, ou não, por processos
chamados anafóricos.
Ao introduzirmos um referente no texto/discurso, devemos contar com o fato de
o coenunciador se valer simultaneamente de muitos indícios (mesmo aqueles nem
43

cogitados pelo enunciador) para representar essa entidade em sua mente. Tais indícios
podem envolver, assim, outras modalidades de linguagem, que não apenas a verbal.
Desse modo, uma imagem, os sons, os gestos, os links, qualquer pista contextual
colabora tanto para a introdução referencial quanto para as anáforas.

Falaremos de introdução referencial apenas quando um objeto for considerado


novo no cotexto e não tiver sido engatilhado por nenhuma entidade, atributo ou evento
expresso no texto. Pôr em destaque.

Além da função intrínseca de introduzir uma entidade no texto/discurso, as


introduções referenciais podem cumprir finalidades outras, como a de construir
processos intertextuais (ver SILVA, 2013), que, por sua vez, atendem a outros objetivos
argumentativos. Vejamos o exemplo (16), abaixo:

(16)

(Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/charges/. Acesso em 27 mar. 2011.)


[A charge do exemplo 16 deve ser reproduzida com a manutenção das cores] Comentado [n16]: Arte/editorial: recado do autores = A charge
do exemplo 16 deve ser reproduzida com a manutenção das cores

Em (16), não é somente a modalidade verbal (as frases) nos balões que ajuda a
fazer emergirem certos objetos de discurso, mesmo não tendo sido nomeados, tais como
“poluição no mar”, “vazamento de óleo”, “desastre ambiental” etc., mas também a
imagem do peixinho preto, opondo-se à imagem do peixe vermelho, que não sofreu esse
tipo de contaminação. Tudo é relevante nessa elaboração conjunta, sobretudo o
44

referente da expressão “o Golfo do México”, que possibilita a alusão ao vazamento de


petróleo ocasionado por uma explosão no dia 20 de abril de 2010, no Golfo do México,
e que trouxe consequências desastrosas ao meio ambiente. O fato foi noticiado em
diversos textos jornalísticos. A alusão é um fenômeno intertextual usado para nos
referirmos indiretamente a uma entidade presente em outro texto. Note-se que, se o
leitor não estiver mais a par dessa informação, os sentidos desse texto e as referências
serão apenas parcialmente recuperados, e às custas de muita cooperação.
Do mesmo modo, o segundo peixinho também alude a outro fato amplamente
divulgado pelas mídias na época: o ataque realizado pelos israelenses contra uma
embarcação humanitária a caminho da Faixa de Gaza, o que justifica a cor vermelha
(representando sangue) do peixe. Assim, reconhecemos que, para a compreensão da
charge, sobretudo quando ela contém introduções referenciais intertextuais,
necessitamos acionar também o nosso conhecimento sociocultural e o conhecimento
específico de um dado período na história das sociedades, como enfatizamos no capítulo
primeiro.
Para podermos tratar da construção da coerência e das funções da referenciação,
precisamos entender como se engendram tais processos na tessitura textual-discursiva.
Esta é a razão pela qual estamos não somente apresentando os processos de introdução
referencial, de anáfora e de dêixis, mas também estamos, paralela e gradativamente,
apontando os diferentes papéis que eles exercem na (re)elaboração dos sentidos e da
referência. Retenhamos, até agora, o seguinte:

Uma introdução referencial é instaurada somente quando, durante o processo de


compreensão, um referente (ainda que não manifestado por uma expressão referencial) é
construído pela primeira vez na mente do coenunciador do texto/discurso. Esse referente
pode (ou não) ser retomado anaforicamente ao longo do texto.Pôr em destaque.

Além da intertextualidade, outra função da introdução referencialé a


apresentação de uma tese, ou de um ponto de vista de um enunciador. Silva (2013) tem
criticado o fato de se supor que uma introdução referencial sirva apenas como um
mecanismo para promover a “aparição” de referentes. Na verdade, uma introdução
referencial pode ser decisiva para imprimir um posicionamento discursivo que será
reafirmado ao longo de um texto.
45

Uma das funções prováveis desse processo, dependendo do gênero em que


apareçam e dos propósitos enunciativos, é orientar argumentativamente a cadeia
referencial a ser construída ao longo do texto, lançando um direcionamento opinativo.
Um dos exemplos discutidos pelo autor é o seguinte (cf. SILVA, 2013, p. 45):

(17)
Ideias rosas

Sabe a fábula do beija-flor que faz um grande esforço, carregando um pouco de


água no bico e atravessando a floresta para apagar um incêndio? Parece inválido, mas
o imenso trabalho que o pássaro faz lhe [sic] deixa feliz por não ter simplesmente
ignorado um problema que é de todos, e, ainda, pode motivar outros animais a se
unirem com o mesmo propósito.
É através de atitudes como essa que o Brasil tem conseguido mudar tristes
realidades. Moradores de rua são alimentados em diversas cidades do país graças à
[sic] ação de pessoas que saem de suas casas, colocam uma sopa quente na mala do
carro e partem para dividir o que têm com quem não tem nada. Crianças com câncer
recebem atendimento de qualidade nos centros de saúde do país porque alguém teve
a ideia de abrir a porta de sua “casa” um dia para recebê-las e dar algum conforto,
como fazem os voluntários do lar de Maria em Teresina. Pessoas portadoras do vírus
da Aids são bem tratadas em instituições porque há quem cuide, alimente e oriente
mesmo quando ninguém mais acredita nelas.
Pequenas e individuais iniciativas podem mudar o rumo das coisas. Não que a
sociedade tenha a obrigação de fazer o que é papel do Estado, mas que bom que
muita gente resolve fazer o que não é sua função e acaba mobilizando outras pessoas
e, mais cedo ou mais tarde, o próprio Estado.
Alguém, um dia, teve a ideia de prestar atendimento gratuito a mulheres com
câncer de mama durante o mês de outubro. Algum tempo depois, a ideia pegou em
vários estados dos Estados Unidos até se tornar lei. Outros países, a exemplo do Brasil,
viram que a ideia do beija-flor era boa e decidiram imitar. Em diversos estados do
Brasil, profissionais da saúde, profissionais da beleza, clínicas e outros se unem contra
o câncer de mama. Gente grande começou a ver que o incêndio reduzia quando vários
pássaros se reuniam.
Foi o que se viu ontem, quando o ministro da Saúde, Alexandre Padilha,
destacou os avanços alcançados no país graças à iniciativa do Outubro Rosa, chamando
a atenção ainda para a necessidade de superar desigualdades regionais para que mais
pessoas tenham acesso a exames preventivos e a tratamento. Prova de que vale a
pena lutar por uma causa, ainda que a luta pareça árdua e solitária. Parabéns a quem
acredita nas pequenas atitudes.
Jornal O Dia, Teresina, 20 de outubro de 2012.

O autor explica que o referente é introduzido, já no título do editorial, como


“ideias rosas” para auxiliar no propósito comunicativo do gênero editorial: o de
apresentar um ponto de vista. A expressão de introdução referencial, neste caso,
46

sintetiza a própria tese que será devidamente explicitada ao longo do texto. “As ‘ideias
rosas’ de que fala o enunciador são todas as ações beneficentes realizadas pela
sociedade, comparadas ao ato solidário praticado pelo ‘beija-flor’ citado logo no início
do texto” (cf. p. 46).
Veremos, no item seguinte, que, ao contrário da introdução referencial, cuja
função intrínseca, mas não única, é inserir no texto/discurso uma entidade nova, a
anáfora diz respeito a um processo de retomada, que promove a continuidade
referencial. As retomadas de um referente, em geral (mas não sempre), são realizadas
por meio de outras expressões referenciais.

Anáforas

Comecemos por entender que existe mais de um tipo de anáfora, mas, qualquer
que seja a espécie, todas têm em comum a propriedade de continuar uma referência, de
modo direto ou indireto.
As expressões que retomam o mesmo referente que já tiver sido introduzido no
texto/discurso são chamadas de anafóricas diretas ou correferenciais.
Na tirinha da Mafalda, abaixo, um mesmo elemento é destacado de várias
formas, isto é, o mesmo referente é retomado por expressões referenciais anafóricas
responsáveis pela manutenção (continuidade) e pela progressão da referência no texto.

(18)

(Disponível em: http://clubedamafalda.blogspot.com/2007_03_01_archive.html. Acesso em 27 mar.


2012.)

As retomadas anafóricas, quando são feitas por expressões referenciais, podem


ser realizadas por estruturas linguísticas de diversos tipos, tais como:
- pronomes substantivos, como “ele”, “ela”, “isso”, “todos” etc.;
47

- sintagmas nominais diferentes, como “a professora” – “a mestra”; “o marido” –


“meu companheiro” etc.;
- sintagmas nominais total ou parcialmente repetidos, como “a mulher” – “essa
mulher insuportável” – “a desvairada” etc.;
- sintagmas adverbiais, como “aqui”, “agora”, “hoje” etc.
Na tirinha, o objeto de discurso de “minha professora” é primeiramente
retomado e recategorizado pelos atributos “uma mulher boazinha, simpática...
extraordinária”, ou seja, com um valor altamente positivo. No final, porém, a retomada
do referente sofre uma transformação (de “mulher boazinha...” para “velha
insuportável”), mas não deixa de ser a mesma entidade. Por isso se trata de uma anáfora
direta, ou correferencial.
A tendência dos referentes retomados, nas anáforas, é evoluir durante o
desenvolvimento do texto. Assim, o referente pode permanecer o mesmo nas anáforas
correferenciais, mas, com o acréscimo de informações, sentimentos, opiniões, esperável
na progressão das ideias do texto, ele se transforma, isto é, vai sendo recategorizado,
tanto pelo locutor quanto pelo interlocutor.
Na tirinha acima, por exemplo, um dos responsáveis pela recategorização é o
uso da expressão “Que velha insuportável”, que confirma uma avaliação de caráter
pejorativo, explicitado no próprio sintagma nominal.
Explorar a evolução dos referentes no texto/discurso é essencial, pois ajuda os
alunos a compreenderem como o tema progride e como o ponto de vista do locutor vai,
aos poucos, se firmando. Elaborar atividades que chamem a atenção da turma para a
transformação dos referentes é uma maneira de não restringir as aulas de leitura e
produção de textos a perguntas superficiais sobre a coerência global.

Em síntese, a retomada de um mesmo referente constitui um caso de anáfora


direta (correferencial). Destacar.

Como o referente comumente passa por evoluções, modificações,


recategorizando-se, podemos afirmar que a recategorização ajuda a constituir os
próprios fenômenos anafóricos na mente dos participantes da comunicação. Atentemos
para as recategorizações da personagem retratada no poema abaixo:

(19)
48

Soneto do amigo

Enfim, depois de tanto erro passado,


Tantas retaliações, tanto perigo,
Eis que ressurge noutro o velho amigo,
Nunca perdido, sempre reencontrado.

É bom sentá-lo novamente ao lado,


Com os olhos que contêm o olhar antigo,
Sempre comigo um pouco atribulado
E como sempre singular comigo.

Um bicho igual a mim, sincero e humano,


Sabendo se mover e comover,
E a disfarçar com o meu próprio engano.

O amigo: um ser que a vida não explica,


Que só se vai ao ver outro nascer
E o espelho de minh’alma multiplica.

(MORAES, Vinicius de. Disponível em:http://pensador.uol.com.br/frase/NTQ1OTg/. Acesso em:


4 abr. 2102.)

A expressão anafórica “o velho amigo” já recategoriza o “amigo” anunciado


pelo título do poema. Quando o poeta diz que o velho amigo ressurge “noutro”, nova
recategorização se constrói, e o leitor espera indícios do cotexto que o ajudem a elaborar
as transformações pelas quais deve ter passado “o velho amigo”. Esse velho amigo pode
remeter a diversos tipos de amigo, que vão variar conforme as experiências de vida de
cada leitor, e a cada nova leitura do texto.
Todo o resto do poema descreve, não somente por meio de expressões
referenciais, as características do amigo, do verdadeiro amigo, não importa quem ele
seja, nem como ele ressurja como outro, nem quanto tempo se passe sem ele. Uma
tarefa importante seria solicitar aos alunos que caracterizassem alguns desses traços, e
pedir que indicassem as pistas fornecidas pelo texto que pudessem confirmar como eles
conseguiram (re)construir o referente. Todas as respostas devem ser debatidas e
avaliadas de acordo com o que pode ou não ser autorizado pelo poema.

Até o momento, vimos, então, que:


a) as introduções referenciais podem ou não ser retomadas correferencialmente –
a isso se dá o nome de anáfora correferencialou direta;
49

b) nas anáforas correferenciais, em geral, os referentes passam por


recategorizações, isto é, por uma modificação que os participantes da enunciação
constroem sociocognitivamente;tal recategorização pode ou não estar explicitada na
própria expressão anafórica.

Quando as recategorizações são confirmadas por expressões anafóricas correferenciais,


podem ser fundamentais para a reconstrução do referente e para o agenciamento de
diferentes pontos de vista. Observemos como os referentes vão se transformando no
conto abaixo:

(20)

Natal na barca

Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela barca. Só
sei que em redor tudo era silêncio e treva. E que me sentia bem naquela solidão. Na
embarcação desconfortável, tosca, apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos
iluminava com sua luz vacilante: um velho, uma mulher com uma criança e eu.
O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se de comprido no banco, dirigira
palavras amenas a um vizinho invisível e agora dormia. A mulher estava sentada entre
nós, apertando nos braços a criança enrolada em panos. Era uma mulher jovem e
pálida. O longo manto escuro que lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma
figura antiga.
Pensei em falar-lhe assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no
fim da viagem e até aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem
combinava mesmo com uma barca tão despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de
um diálogo. Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada,
apenas olhar o sulco que a embarcação ia fazendo no rio.
Debrucei-me na grade de madeira carcomida. Acendi um cigarro. Ali estávamos
os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos deslizando na
escuridão. Contudo, estávamos vivos. E era Natal.[...]

(TELLES, Lygia Fagundes. Natal na barca. In:____. Antes do baile verde. 9. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986, p. 135-141.)

Atentemos, primeiramente, para a cadeia referencial relativa à entidade a barca,


introduzida no texto desde o título e retomada explicitamente pelas duas expressões
seguintes:
naquela barca – uma repetição iniciada por um demonstrativo que convida o
leitor a penetrar no mundo fictício da personagem-narradora: permite-lhe entender que
ele pode alcançar a barca em sua imaginação.
50

Na embarcação desconfortável, tosca; uma barca tão despojada – aqui, a barca


foi explicitamente reconfigurada pela expressão correferencialrecategorizadora; é o
mesmo referente, mas transformado.

Algo diferente se passa com o objeto de discurso Natal, que se mantém no


decorrer do texto retomado por mera repetição. Há que se perguntar se, após a triste
descrição pintada pela narrativa, o Natal referido pela segunda menção ainda é o
mesmo, apesar de a forma referencial estar sendo apenas repetidacomo “Natal”. Se tudo
o que a cenografia cria no universo discursivo deste conto literário colabora para o
cenário favorecido pela autora, então é lícito dizer que a segunda menção feita ao Natal
já não é equivalente à do título, porque inúmeros detalhes sensibilizam o leitor para a
elaboração de um objeto Natal como representando a vida, a renovação da vida.
O comentário sobre o sentido do referente “Natal” nos leva à conclusão de que a
representação mental de qualquer objeto de discurso requer não somente a informação
do cotexto, mas a convocação de uma série de conhecimentos gerais ou específicos e de
estereótipos culturais.
Claro que, em todo o trabalho de produção/compreensão textual, as pistas
manifestadas na materialidade textual são elementos fundamentais do processo da
referenciação. No trecho em apreço, algumas expressões referenciais são bastante
responsáveis (mas não exclusivamente responsáveis) pela transformação das entidades
“um velho”, “uma mulher” e “uma criança”. Observemos o quadro de explicitação de
algumas recategorizações:

Referente Expressão de Expressão de anáfora


introdução correferencialrecategorizadora
referencial
Velho um velho o velho um bêbado
esfarrapado
Mulher uma mulher a mulher uma mulher jovem
e pálida
Criança uma criança a criança enrolada
em panos

Anáforas indiretas
51

Agora, passemos a analisar um outro tipo de anáfora, diferente da correferencial,


porque não retoma o mesmo referente: trata-se das anáforas indiretas, ou não
correferenciais. Essas anáforas indiretas, embora não retomem exatamente o mesmo
objeto de discurso, e aparentemente introduzam uma entidade “nova”, na verdade
remetem ou a outros referentes expressos no cotexto, ou a pistas cotextuais de qualquer
espécie, com as quais se associam para permitir ao coenunciador inferir essa entidade.
Voltando, mais uma vez, à expressão “o vento”, no exemplo (14), há que se
observar que ela aparece na superfície do texto, isto é, no cotexto, uma segunda vez, em
“as coisas mais leves são as únicas que o vento não conseguiu levar”. Dizemos que esta
segunda expressão já não é mais uma introdução referencial, mas uma anáfora, porque
o objeto de discurso já fora introduzido no texto; agora, está apenas continuando nele,
constituindo uma cadeia referencial. Vale, assim, observar o seguinte:

Anáforaé, pois, qualquer situação de continuidade referencial; é isso que a opõe


frontalmente ao que se reconhece como introdução referencial. Pôr em destaque.

No poema de Quintana, em (14), cumpre notar que o referente de “o vento” já


vem introduzido em meio a um outro tipo de intertextualidade. “E o vento levou” é um
clássico do cinema, lançado nos EUA, em 1939, sob o título original
Gonewiththewind.11. Desse modo, o vento retratado no título do poema não corresponde
ao “ar atmosférico em movimento natural”, mas é uma metáfora dele, assim como no
filme em apreço. A frase “E o vento levou” passou à nossa cultura como a expressão
daquilo que se vai com o tempo.
É exatamente por meio dessa referência que o título do poema de Quintana faz
uma espécie de paródia, ou de détournement,12 ao título do filme, desviando-lhe o
sentido original e criando um outro referente (veja-se, a seguir, a imagem do clássico
internacionalmente divulgado).

11
Este drama romântico foi dirigido pelo cineasta Victor Fleming; os protagonistas do filme foram
interpretados por Clark Gable e Vivien Leigh, representados na imagem.
12
O détournement é um tipo de paródia cuja característica peculiar é restringir-se, em geral, a textos mais
curtos, como provérbios, frases feitas, ditos populares, títulos de obra etc. Com claro valor subversivo,
como acontece no exemplo em destaque, o objetivo de um détournement é levar o interlocutor a ativar o
enunciado original, com o intuito de orientá-lo para um outro sentido, diferente do sentido do texto-fonte,
adaptando-o a novas situações. (KOCH, BENTES& CAVALCANTE, 2007).
52

(Disponível emhttp://www.historiasdecinema.com/2010/06/e-o-vento-levou-o-filme-mais-famoso-de-
todos-os-tempos-2/. Acesso em 4 abr. 2012.)

Intertextualidade, no sentido que estamos adotando aqui, equivale à presença de


um texto em outro; a ilustração mais evidente dessa copresença (GENETTE, 1982) são
as citações dentro de textos. Mas podemos também considerar como intertextualidade
situações em que um texto transforma ou imita outro, quer seja pelo estilo de um
determinado autor, quer seja pelo formato de um outro gênero (ver KOCH,
BENTES&CAVALCANTE, 2007). Contudo, o que nos interessa, neste exemplo, é o
tipo de intertextualidade que, como no exemplo (14), acontece pela transformação de
partes de um texto, sempre com o objetivo de criar novos sentidos, isto é, de
ressignificar. A paródia é justamente um desses casos de transformação.
No exemplo em análise, a frase passa à negativa e permite ao enunciador apontar
para o que não foi arrastado pelo tempo: “O que o vento não levou”. O tópico central do
texto (JUBRAN, 1996) – quer dizer, o tema – gira em torno das coisas simples que nos
marcam a memória e o sentimento e, por isso mesmo, não são apagadas pelo tempo.
Como expressa o texto: “as coisas mais leves são as únicas que o vento não conseguiu
levar”. O referente dessas “coisas simples...” engloba, além de outros que cada leitor
incluiria conforme suas experiências, os demais que vêm na estrofe seguinte: “um
estribilho antigo, um carinho no momento preciso, o folhear de um livro de poemas, o
cheiro que tinha um dia o próprio vento”.
Compete ao professor mostrar ao aluno que esses referentes estão todos
interligados dentro do poema. Ainda que aparecendo pela primeira vez no texto, todos
53

constituem “as coisas mais leves... que o vento não conseguiu levar”, por isso não
podemos dizer que são introduções referenciais, uma vez que já povoam o universo de
discurso criado pelo texto. Diferem da entidade “o vento” que figura no título, pois são
objetos de discurso que poderiam ser previstos a partir daquilo que o tempo não apagou.
Uma vez que essas entidades, de maneira indireta, dão continuidade a um
referente já introduzido, devem ser integradas à categoria das anáforas, e não das
introduções referenciais. Até “o próprio vento”, mencionado ao final do poema, não é o
mesmo referente do vento de que o texto fala como uma metáfora do tempo. O terceiro
“vento”, que aparece dentro da expressão “o cheiro que tinha um dia o próprio vento”
corresponde mesmo ao ar atmosférico que sopra, e só indiretamente se associa ao outro
vento que o texto tematiza.
É imprescindível demonstrar para o aluno as funções que os processos
referenciais podem desempenhar em diversos textos de variados gêneros. Neste
exemplo, chamamos atenção, principalmente, para funções intertextuais. Pouco vale
falar da coerência de um texto por meio de processos referenciais se o propósito do
professor (de qualquer nível de ensino) se limitar ao mero exercício de identificação e
classificação de formas.
Podemos evidenciar, no próximo exemplo, as anáforas indiretas que o leitor
pode reconstruir a partir das expressões sublinhadas:

(21)
08/01/2011 –10h19|Efe|Caracas

Menina de 13 anos sobrevive após queda de avião bimotor na Venezuela

Cinco pessoas de uma mesma família morreram nesta sexta-feira (07/01) após
a aterrissagem de emergência de um pequeno avião que ia da ilha caribenha de
Margarita a Caracas, informaram as autoridades.
Viajavam no bimotor, cujas razões do acidente ainda não foram determinadas,
“uma família inteira, da qual faleceram cinco pessoas adultas, sendo três mulheres e
dois homens, e sobreviveu uma menina de 13 anos que apresenta traumatismo
toráxico e lesões em todo o corpo”, contou aos jornalistas Amílcar Mercado, da Defesa
Civil.
A aeronave, que aterrissou bruscamente em uma região rural despovoada,
havia retornado à ilha de Margarita “por apresentar problemas técnicos, mas depois
decolou de novo”, revelou a diretora da Junta de Investigações de Acidentes de
Aviação Civil (JIAAC), Lorllys Ramos.
(Disponível em:
54

http://operamundi.uol.com.br/noticias/MENINA+DE+13+ANOS+SOBREVIVE+APOS+QUEDA+DE+AVIAO+
BIMOTOR+NA+VENEZUELA_8704.shtml. Acesso em: 4 abr. 2012.)

No momento em que a manchete da notícia acima introduz o referente “avião


bimotor”, um esquema mental se forma em torno dele, fundado, antes de tudo, em
informações prévias dos conhecimentos socioculturais que os interlocutores têm. Assim,
quando aparece no cotextoa expressão “aterrissagem de emergência (...)”, o leitor
imediatamente a associa ao avião bimotor, à queda do avião bimotor, à situação da
menina de 13 anos etc. Do mesmo modo, os leitores também não são tomados de assalto
quando a notícia cita as expressões “problemas técnicos” e “Junta de Investigações de
Acidentes de Aviação Civil (JIAAC)”, ambas relacionadas à aeronave, ao acidente, às
mortes de cinco passageiros da mesma família etc. Essas informações que apoiam as
anáforas indiretas são chamadas de âncoras; elas engatilham a referência indireta a
menções de outras expressões referenciais, ou a qualquer outra construção linguística do
cotexto, e a inúmeras outras informações que povoam a bagagem de conhecimentos de
quem participa dessa enunciação.
Este é o traço mais marcante das anáforas indiretas: sua interpretação depende
de outros conteúdos fornecidos pelo contexto, e elas não têm correferência com
nenhuma outra entidade já introduzida. As anáforas indiretas colaboram, pois,
enormemente para que o coenunciador junte as peças do quebra-cabeça dos sentidos, da
coerência textual.
Examinemos, agora, o exemplo de um referente que não é retomado
linguisticamente por uma expressão referencial, mas que guarda relação indireta com
diferentes âncoras do cotexto e que é fundamental para o estabelecimento do humor.

(22)
55

(Disponível em:http://hagah72.blogspot.com.br/2010/08/o-novo-socio.html. Acesso em: 4 abr. 2012.)

Na piada acima, a construção mental de um sentimento de desprezo pelo genro


se forma a partir de pistas não apenas referenciais no texto. Há uma quebra de
expectativa, advinda da reação que o leitor espera que o pai da moça tenha, ante o
pedido de emprego para o marido, ou de mudança para um cargo mais alto, de sócio.
Vários conhecimentos de mundo são convocados nessa fala da personagem, pela
expressividade das imagens (veja-se o ar de indiferença do pai) e pela partilha de
informações. Sabemos que, em nossa cultura e em outras, nada seria mais natural do
que o sogro oferecer uma boa oportunidade de ascensão para o genro, já que isso seria
bom também para a filha e, consequentemente, para a família inteira. Todavia, a
resposta do pai, sugerindo que ela procurasse “o pessoal da funerária” (atente-se para a
importância do emprego dessa expressão referencial), para pôr um defunto no lugar do
outro, gera todo o humor da piada. A partir daí, começa-se a entender que, na piada, ter
o genro morto seria indiferente para ele, e tudo isso se erige em um referente não
realizado por expressão referencial: o desprezo do pai pelo genro. Essa anáfora indireta
inesperada cria o efeito de humor, pela quebra de expectativa. A explicitação das
expressões referenciais não é, pois, uma condição indispensável para a construção do
referente, nem do ponto de vista.
Diante dessa constatação, podemos então propor que, da mesma maneira que é
possível construir apenas mentalmente uma introdução referencial, sem mencioná-la
linguisticamente, também é possível retomar, por anáfora, um objeto de discurso sem
56

que se diga, necessariamente, a expressão referencial que confirmaria essa retomada.


Basta notar que, na piada acima, temos uma ocorrência em que o referente do marido é
retomado, mas recategorizado por vários indícios contextuais, não propriamente por
uma expressão (do tipo “o genro morto”) que homologue essa transformação da
entidade e, sim, por uma conjunção de fatores contextuais.
Seria importante o professor demonstrar como os referentes e os sentidos estão
todos articulados no texto e que nada é dito ou implicitado por acaso: há sempre um
propósito argumentativo motivando as escolhas de explicitação e de implicitação. É por
isso que todo texto deve apresentar fatores de coerência, como a articulação das ideias, a
continuidade e a progressão dos (sub)tópicos e das referências, dentre outros.
Admitamos, em vista do que foi explicado, a seguinte conclusão:

A fronteira que delimita a separação entre uma anáfora correferencial e


uma anáfora indireta é simplesmente o fato de esta última não retomar o mesmo
referente, recategorizado ou não.
Para fixarmos o que acabamos de constatar, leiamos mais uma parte do conto de
Lygia Fagundes Telles, citado no exemplo (20), acima. Assinalamos apenas algumas
anáforas indiretas; muitas outras povoam o texto, vale salientar, pois este é o processo
referencial mais recorrente, conforme o comprovam estudos sobre o assunto.

(23)
A caixa de fósforos escapou-me das mãos e quase resvalou para o rio. Agachei-
me para apanhá-la. Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até
mergulhar as pontas dos dedos na água.
— Tão gelada — estranhei, enxugando a mão.
— Mas de manhã é quente.
Voltei-me para a mulher, que embalava a criança e me observava com um meio
sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado. Tinha belos olhos claros, extraordinariamente
brilhantes. Reparei que suas roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter,
revestidas de uma certa dignidade.
— De manhã esse rio é quente — insistiu ela, me encarando.
— Quente?
— Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de
roupa, pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem por estas
bandas?
Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra
pergunta.
— Mas a senhora mora aqui por perto?
57

— Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que
justamente hoje...
A criança agitou-se, choramingando. A mulher apertou-a mais contra o peito.
Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de
cadeira de balanço. Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o
rosto era sereno.
— Seu filho?
— É. Está doente, vou ao especialista, o farmacêutico de Lucena achou que eu
devia ver o médico hoje mesmo. Ainda ontem ele estava bem, mas piorou de repente.
Uma febre, só febre... Mas Deus não vai me abandonar.
— É o caçula?
Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo mas o olhar tinha a
expressão doce.
— É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava
brincando de mágico quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A queda não foi
grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos.
Atirei o cigarro na direção do rio e o toco bateu na grade, voltou e veio rolando
aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era
preciso desviar o assunto para aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.
— E esse? Que idade tem?
— Vai completar um ano. — E, noutro tom, inclinando a cabeça para o ombro:
— Era um menino tão alegre. Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía
nada, mas era muito engraçado... A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! —
disse abrindo os braços. E voou. [...]
(TELLES, Lygia Fagundes. Natal na barca. In:____. Antes do baile verde. 9. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1986, p. 135-141.)

O conto ainda não termina neste ponto, mas paremos para refletir sobre as
associações que se dão entre referentes distintos, fato que caracteriza as anáforas
indiretas. A relação indireta entre uma expressão referencial pode acontecer de diversas
maneiras. Ela pode, por exemplo, ancorar em pistas que não sejam outras expressões
referenciais, mas que colaborem para a representação de um objeto de discurso. Uma
ilustração disso está na seguinte passagem: “Desviei o olhar para o chão de largas
tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta”. O que engatilha a anáfora indireta
“uma outra pergunta” é o verbo responder que a antecede, não uma outra expressão
referencial. Assim se verifica também na relação entre “atirou-se” e “a queda”: “E
atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu de tal jeito...”.
Evidentemente, não podem ser menosprezados os demais elementos que amparam a
elaboração de “a queda”, como “o muro não era alto”, “caiu” etc.
A associação mais prototípica das anáforas indiretas é a que se instaura pela
correspondência que existe nas relações metonímicas, sobretudo nas correlações de
58

parte-todo. No conto, são facilmente identificáveis ocorrências como a ligação entre a


barca e o banco para acomodar os passageiros, parte constitutiva de diversas barcas:
“Sentei-me no banco ao seu lado”.
Cabe atentar para o fato de que a expressão anafórica indireta se inicia com uma
forma definida, no caso, o artigo definido o, indiciando para o leitor que ele deve inferir
que o objeto de discurso “o banco” já lhe é conhecido, uma vez que está associado a
uma parte intrínseca à barca (leia-se sobre isso em KLEIBER, 2001). É o que se vê
também nos objetos de discurso “a cabeça”, “o ombro” e “o peito”, relativos a partes do
corpo da mãe da criança. E ainda entre a entidade “a água” e outras âncoras
metonímicas, como “o rio”, “respingos” etc., em: “A caixa de fósforos escapou-me das
mãos e quase resvalou para o rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns
respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na água”.

É precisamente isto que identifica as anáforas indiretas: um referente explicitado


pela primeira vez no cotexto, mas apresentado ao coenunciador como se lhe fosse
conhecido, porque outros elementos do contexto favorecem essa identificação. Destacar.

No conto, encontramos outros exemplos, como “a última mágica”, relacionada a


outras mágicas: “Tinha verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas
era muito engraçado... A última mágica que fez foi perfeita, vou voar!”.
Outras associações, nem sempre tão evidentes nem imediatamente recuperáveis,
são ainda possíveis. Trata-se de casos que exigem do coenunciador uma busca maior
nos conhecimentos compartilhados com o locutor do texto. Dizer, por exemplo, que o
menino está doente e mencionar, de repente, “o especialista” não causa espanto ao
leitor, porque os conhecimentos de mundo que ele partilha com o narrador dão suporte
ao esquema mental de paciente e médico especialista, ainda que o cotexto não explicite
isso.
Do mesmo modo, o leitor (coenunciador) sabe, por suas experiências culturais,
que é comum as mulheres usarem xales, para se protegerem de barragens de vento, de
maneira que não soa inusitado introduzir o referente de “xale” nesse ponto da narrativa:
“Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a niná-la com um brando movimento de
cadeira de balanço”. Indo mais além, também não causa espécie ao leitor encontrar
“movimento de cadeira de balanço” quando, anteriormente, foi citado o verbo “ninar”,
59

pois o afastamento do tronco para frente e para trás de quem nina um bebê simula o de
uma cadeira de balanço.
Encadear os laços que costuram as relações indiretas entre entidades explícitas e
implícitas, com certeza, dará ao aluno a dimensão do que é a articulação textual, na
coesão/coerência, de que tanto se fala nas aulas de compreensão e produção de textos,
principalmente as preparatórias para os concursos vestibulares e para o Exame Nacional
do Ensino Médio.
Uma atividade interessante seria solicitar aos alunos que identificassem algumas
dessas anáforas indiretas e tentassem debater em que informações elas ancoram, para
discutir, em conjunto, que conhecimentos são mobilizados para o estabelecimento
dessas relações. É essencial que o texto selecionado para atividades assim povoe a
realidade da turma a que elas se aplicam.
Após as explicações dadas até agora, queremos postular que outras anáforas
indiretas não citadas no cotexto possam advir da cenografia construída pela narrativa.
Para tanto, repetimos parte do trecho mencionado no exemplo (22). Recordemos que, no
início, a narradora-personagem enceta um diálogo com a mãe da criança sobre a
temperatura da água do rio:

“Sentindo então alguns respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as


pontas dos dedos na água.
— Tão gelada — estranhei, enxugando a mão.
— Mas de manhã é quente.”

O contraste entre os dois comentários, além de evidente, sugere também a


oposição de dois pontos de vista, não simplesmente sobre a temperatura da água, mas,
metaforicamente, sobre um referente indireto, não explicitado, porém basilar para o
sentido do texto: a esperança, a esperança de uma pessoa que crê em Deus acima de
tudo e que, por isso mesmo, aprecia o dom da vida, pois sabe que, “se de noite a água é
gelada, de dia ela é verde e quente”, verde como a esperança e quente como o calor
humano e como o conforto da fé.
Muitos outros indícios de esperança e de fé pontuam o cotexto (sublinhamos
vários deles) e alimentam o contexto, como veremos em mais um trecho deste mesmo
conto:

(24)
60

Levantei-me. Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade.


Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los
até aquele instante. Mas agora não tinha forças para rompê-los.
— Seu marido está a sua espera?
— Meu marido me abandonou.
Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira
pergunta porque agora não podia mais parar, ah! aquele sistema dos vasos
comunicantes.
— Há muito tempo? Que seu marido...
— Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas tão bem! Foi quando ele
encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou nela fazendo uma brincadeira, a
Bila enfeou, sabe que de nós dois fui eu que acabei ficando mais bonito? Não tocou
mais no assunto. Uma manhã ele se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu
o jornal, brincou com o menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a
mão, eu estava na cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de
arame da porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém
falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a mão molhada. Recebi a
carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que
alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.
Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio. Incrível. Ia
contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos
sem ter realmente participado deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava
pelos remendos de sua roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra
sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta,
confiante. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos,
aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação fez com que me afastasse
um pouco.
— A senhora é conformada.
— Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.
— Deus — repeti vagamente.
— A senhora não acredita em Deus?
— Acredito — murmurei. E ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber
por quê, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela segurança,
daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas...
Ela mudou a posição da criança, passando-a do ombro direito para o esquerdo.
E começou com voz quente de paixão:
— Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão
desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito
louca, chamando por ele! Sentei num banco do jardim onde toda tarde ele ia brincar. E
fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava tanto de mágica,
fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse
só um instante, ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas,
encostei a cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me
apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o
meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me
viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era
tamanha a sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo em mim.
61

Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um gesto e em seguida, apenas para fazer
alguma coisa, levantei a ponta do xale que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale
novamente e voltei-me para o rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para
dominar o tremor que me sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo,
apertando-o contra o peito. Mas ele estava morto.
Debrucei-me na grade da barca e respirei penosamente: era como se estivesse
mergulhada até o pescoço naquela água. Senti que a mulher se agitou atrás de mim.
— Estamos chegando — anunciou.
Apanhei depressa minha pasta. O importante agora era sair, fugir antes que ela
descobrisse, correr para longe daquele horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma
larga curva antes de atracar. O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que
dormia:
— Chegamos!...Ei! chegamos!
Aproximei-me, evitando encará-la.
— Acho melhor nos despedirmos aqui — eu disse atropeladamente,
estendendo a mão.
Ela pareceu não notar meu gesto. Levantou-se e fez um movimento como se
fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas, ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi,
antes mesmo que eu pudesse impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.
— Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre.
— Acordou?!
Ela sorriu.
— Veja...
Inclinei-me. A criança abrira os olhos – aqueles olhos que eu vira cerrados tão
definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando
sem conseguir falar.
— Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a sacola no braço.
Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto
resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a com o olhar até que
desapareceu na noite.
Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou por mim retomando seu afetuoso
diálogo com o vizinho invisível. Saí por último da barca. Duas vezes voltei-me ainda
para ver o rio. E pude imaginá-lo como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e
quente.
(TELLES, Lygia Fagundes. Natal na barca. In:____. Antes do baile verde. 9. ed. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1986, p. 135-141.)

Anáforas encapsuladoras

No próximo item, ainda explorando este mesmo exemplo, vamos tratar de um


tipo de anáfora que poderia parecer indireta porque, quando se explicita, aparece no
cotexto como uma expressão nova, mencionada pela primeira vez. Sua característica
primordial é resumir porções cotextuais, mesmo que somando a elas informações de
conhecimentos compartilhados. A extensão dessa porção cotextual é variável; pode
62

reduzir-se à proposição de uma sentença, como em “a primeira pergunta”, que remete,


especificamente, a uma indagação:

(25)

— Seu filho?
[...] Mas os laços (os tais laços humanos) já ameaçavam me envolver.
Conseguira evitá-los até aquele instante. Mas agora não tinha forças para rompê-los.
— Seu marido está a sua espera?
— Meu marido me abandonou.
Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível. Fora uma loucura fazer a primeira
pergunta.

Neste caso, a expressão encapsula somente a indagação inicial da narradora-


personagem: “Seu filho?”, a indagação que iniciou o “envolvimento com os laços
humanos”. Ao ser retomada como “a primeira pergunta”, há uma nomeação ou
“rotulação” (leia-se CONTE, 1986) por meio de uma forma metalinguística: pergunta.
Uma situação semelhante é a do trecho seguinte do conto: “— Acredito — murmurei. E
ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me.”
Outras vezes, no entanto, os segmentos subsumidos do cotexto são mais amplos,
remetendo ao trecho inteiro que antecede a expressão anafórica encapsuladora.
Queremos demonstrar como, na verdade, mesmo sem ser citado antes da
expressão encapsuladora, o referente fica representado na mente dos interlocutores, e é
esta a razão pela qual preferimos tratá-lo como um subtipo de anáfora correferencial,
ainda que diferente ou fora dos padrões. Afinal de contas, se estamos defendendo que o
referente é uma entidade representada sociocognitivamente e abstraída do contexto da
enunciação, então nada mais plausível do que admitir que, ao ser nomeado, e
confirmado, por uma anáfora encapsuladora, ele já existia no texto.
Tamanha é a prova de que esse referente já fora introduzido no discurso que os
estudos sobre o assunto sempre classificaram tal processo como um caso de retomada
anafórica, quer dizer, como a continuidade de uma entidade já existente. Assim sendo,
ao resumir um trecho como “o assunto”, o locutor apenas dá nome a uma entidade
abstrata que já vinha sendo construída gradativamente, o que nos autoriza a afirmar que
essa entidade foi, portanto, retomada anaforicamente por um processo resumidor,
encapsulador, como nestes dois segmentos do conto:
63

(26)
Ia contando as sucessivas desgraças.

(27)
O importante agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe
daquele horror.

Por retomarem um referente não expresso, mas, sim, esparsamente difundido no


contexto e, em seguida, nomearem tal referente implícito, as anáforas encapsuladoras
exercem funções argumentativas decisivas para o projeto de dizer de cada enunciador,
no momento em que buscam o melhor modo de designar, de sintetizar parafraseando
um ponto de vista (e, consequentemente, rebatendo outros, ditos ou não). Qualificar, por
exemplo, como “desgraças”, ou como “horror” muito do que já foi descrito e narrado no
conto é uma estratégia metadiscursiva de posicionar-se frente ao que foi expresso.
A busca da maneira mais apropriada de designar esse referente difuso é uma
função metadiscursiva, pelo fato de o enunciador voltar-se para o próprio dizer, numa
atitude reflexiva, com a intenção de fixar um posicionamento e de, simultaneamente,
engajar o coenunciador, para conquistar sua adesão.13
Por vezes, o encapsulador rotula até mesmo o texto todo, denominando o gênero
do discurso, numa espécie de metatextualidade, ou seja, de reflexão sobre o próprio
texto e sobre como classificá-lo. É o que acontece, por exemplo, quando dizemos algo
do tipo: “Este artigo trata de...”, “Esta conversa foi muito difícil”, “Esta mensagem é
apenas para dizer que...” etc. Nos exemplos (28) e (29), a seguir, as expressões
encapsuladoras retomam extensa parte do cotexto precedente.

(28)

Tiago Cardoso deixa o Leão (era: Goleiro THIAGO, será que sou o único errado?)
ROBERTO CARVALHO
Será que sou o único errado ao afirmar que o
nosso goleiro THIAGO erra muito? Posso até
receber aqui uma enxurrada de críticas, mas
não abrirei mão de minha opinião. Ele faz

13
Recomendamos a leitura de Hyland (2005), sobre estratégias metadiscursivas.
64

belas defesas? Sim faz, mas defesas PLENAMENTE DEFENSÁVEIS, bolas que quase
sempre vem em cima dele e quando não, ele enfeita e dá um pulo desnecessário. Mas
o pior não está aí, na minha opinião, o pior é sempre sua posição adiantada dentro da
área, onde já levou vários gols por cobertura, só no campeonato cearense foram mais
de 7, sua saída quase sempre equivocada do gol, e sua péssima condição de repor a
bola em jogo com rapidez e precisão. No ultimo jogo contra o Kanal, ele, na minha
opinião, falhou no seu posicionamento dentro do gol, na demora ao cair, ajudado em
muito pelo SIMÃO, que saiu da barreira. No segundo gol, foi uma lastima, pareceu o
gol que levou do Túlio, a bola bem devagar batendo em sua mão de queijo derretido e
entrando devagar. Mas sabem qual o seu pior erro em todos os jogos? Essa, terão que
concordar, se não concordarem com todo o resto: Como um goleiro arruma uma
barreira, achando com toda “CERTEZA” que o batedor será um determinado jogador, e
esquece que tem outros jogadores e que a trave tem mais de 7m? Foi o que aconteceu
na barreira que ele arrumou toda para o lado direito, tentando adivinhar que o
batedor seria o SOUZA (ex-Conrinthias) e um outro jogador, vendo a barreira toda
cobrindo um lado só e o goleiro também, todo torto para o mesmo lado, bateu bem
devagar, e o Thiago nem se mexeu...VERGONHOSO...Como um goleiro da altura e
envergadura dele não ganha uma bola sequer na pequena área por cima e todas as
bolas alçadas na pequena área ele não sai.....Inseguro, mão de manteiga e não grita
com a zaga avisando absolutamente nada...UMA ÚNICA VIRTUDE: DEFENDER
PENALIDADES MÁXIMAS. Aí, sim, ele é o maior... NADA MAIS...Roberto (Disponível em:
http://www.fortaleza.net/forum/xmb/viewthread.php?fid=5&tid=4357&action. Acesso em 4 abr. 2012.)
(Figura disponível em: http://www.offside.blog.br/blog/?tag=goleiros. Acesso em 27 mar. 2011.)

Em (28), a expressão marcada “todo o resto” encapsula, resume, todas as críticas


que o autor disse anteriormente sobre o goleiro Thiago, que podem ser englobadas pelos
seguintes tópicos: belas defesas desnecessárias, posição adiantada dentro da área, saída
quase sempre equivocada do gol, péssima condição de repor a bola em jogo e mão de
queijo derretido. A expressão, portanto, tem a função de resumir uma grande (e
relevante) porção textual.

(29)

Estudo liga uso de celular na


gravidez à hiperatividade em
criança

Mulheres grávidas que


usam telefone celular podem ter
mais chances de ter filhos com
problemas de comportamento
como hiperatividade, segundo
um estudo realizado em
65

conjunto pela Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) e a Universidade de


Aarhus, na Dinamarca.
O estudo constatou que filhos de mães que usavam o celular pelo menos duas
ou três vezes ao dia durante a gravidez estavam mais propensos a ter problemas de
comportamento – entre eles hiperatividade e dificuldades para lidar com emoções e
relacionamentos – ao chegar à idade escolar.
A pesquisa constatou ainda que crianças que usam o celular antes dos sete
anos de idade correm mais riscos de ter problemas de comportamento.
Mas os próprios autores da pesquisa afirmam que os resultados foram
inesperados e devem ser interpretados com cuidado.
Mães de 13.159 crianças haviam sido recrutadas ainda durante a gravidez.
Quando seus filhos completaram sete anos, em 2005 e 2006, elas responderam a um
questionário sobre a saúde e o comportamento das crianças e sobre o uso do celular
durante e após a gravidez e pelos filhos.
Os resultados revelaram que as mães que usavam o celular tinham 54% mais
chances de ter filhos com problemas comportamentais, e os riscos pareciam aumentar
se o uso era mais frequente. Quando as próprias crianças também usavam o celular
antes de completar sete anos, elas tinham, em média, 80% mais risco de ter
dificuldades de comportamento.

Precaução
Os autores da pesquisa lembram que esse é o primeiro estudo do tipo e que é
necessário pesquisar mais o assunto para estabelecer se a causa dos problemas
comportamentais foi, de fato, o uso do celular.
Os pesquisadores afirmam, por exemplo, que os problemas comportamentais
podem não ser resultado da radiação emitida pelo aparelho, mas, sim, estarem
associados à pouca atenção dada à criança pela mãe que usa o celular com muita
frequência.
Se isso for comprovado, dizem os especialistas, “o assunto será uma questão de
preocupação em termos de saúde pública devido ao uso generalizado da tecnologia”.
O estudo será publicado em julho na revista especializada Epidemiology.

(Disponível em: http://educacaodialogica.blogspot.com/2008/05/estudo-liga-uso-de-celular-na-


gravidez.html. Acesso em 4 abr. 2012.)

Em (29), o pronome “isso”, destacado, também atua como encapsulador,


permitindo que se considere o conteúdo encapsulado a partir de diferentes porções: pode
se referir tanto ao tópico que permeia todo o texto (hiperatividade de crianças
decorrente do uso de celular por elas próprias e/ou por suas mães) quanto às
informações mais específicas do parágrafo anterior (que sugere hipóteses para as causas
da referida hiperatividade: radiação liberada pelos aparelhos celulares e/ou pouca
atenção dada à criança).
O mecanismo de encapsulamento, portanto, é uma das estratégias para prover um
“resumo” textual de diferentes extensões. Tanto pode dar conta de trechos menores
66

como de porções maiores. Saber quando utilizá-lo e ser capaz de fazer a escolha
linguística adequada são habilidades importantes a serem desenvolvidas nos alunos.
Na verdade, a capacidade de propor encapsulamentos adequados é complexa,
pois exige do produtor, ao mesmo tempo, a percepção apurada de como a expressão
escolhida para encapsular se refere ao cotexto precedente e o vislumbre de como ela
pode contribuir para a progressão textual. Dessa forma, com essa estratégia, o
enunciador promove um movimento duplo, para trás e para frente, estabelecendo
relações de continuidade e progressão.
Um exercício recomendável aos alunos seria eleger anáforas encapsuladoras de
textos de natureza opinativa e lacunar algumas ou substituir outras por expressões de
nomes genéricos, a fim de solicitar à turma que sugira possibilidades adequadas de
preenchimento a cada ponto da argumentação.
Quanto à natureza metadiscursiva do fenômeno, em verdade, chamar a atenção
do coenunciadornão é um procedimento específico de nenhum processo referencial, mas
frequentemente as expressões referenciais introdutórias ou anafóricas são usadas com
finalidade metadiscursiva de posicionamento ou de engajamento.
Chamar a atenção do interlocutor é uma função mais peculiar a um outro tipo de
processo referencial: a dêixis. Como veremos no item seguinte, a dêixis é um fenômeno
referencial que se pauta por um critério distinto daquele que orienta as anáforas e as
introduções referenciais. Um elemento dêitico só se configura como tal se se tomar
como ponto de origem quem é o falante e onde ele se localiza, quer seja no
tempo/espaço real da enunciação, quer seja no tempo/espaço de sua fala no cotexto.
Podemos, com isso, constatar que todo dêitico já cumpre, por definição, uma
função metadiscursiva de tentar engajar o coenunciador.

A dêixis

Diferentemente dos anafóricos, os dêiticos se definem por sua capacidade de


criar um vínculo entre o cotexto e a situação enunciativa em que se encontram os
participantes da comunicação. Por exemplo, no trecho do conto de Lygia Fagundes
Telles em que as duas personagem travam o diálogo transcrito a seguir, as expressões
em grifo são dêiticas porque seus referentes só podem ser identificados se o leitor
estiver acompanhando quem está dizendo “eu”, quem está sendo tratado como “a
67

senhora” e qual o local e o tempo em que se acham as personagens naquele ponto da


narrativa:

(30)
Desviei o olhar para o chão de largas tábuas gastas. E respondi com uma outra
pergunta.
— Mas a senhora mora aqui por perto?
— Em Lucena. Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que
justamente hoje...

Quando se lê “[eu] respondi”, sabe-se que o locutor é a narradora-personagem e


que é ela que institui sua interlocutora ao tratá-la como “a senhora”, num tom de
distanciamento respeitoso. Por esse ponto de partida, é possível alcançar por que a
narradora usou a expressão dêitica “aqui por perto”: para se reportar ao local em que
ambas se encontravam, e por que a mulher empregou o advérbio “hoje”: para se referir
ao dia em que a conversa transcorria. Também é compreensível que a mãe da criança
tenha se valido do demonstrativo “esta barca”: para indicar que o referente estava
próximo a ela(s).
É importante perceber como essa definição de dêiticos diverge da noção que
caracteriza um anafórico. Trata-se, aqui, de uma relação eminentemente intersubjetiva,
como já dizia Benveniste (1988), de tal modo que, para reconhecer se uma expressão é
dêitica, é necessário saber quem é o locutor, com quem ele interage e, em decorrência
dessa coordenada de pessoa do discurso, identificar o tempo e o espaço dos
interlocutores.

Uma conclusão relevante: nenhum desses critérios coincide com o das anáforas,
e é por isso que, em vários casos, os dois processos (de dêixis e de anáfora) podem
perfeitamente se superpor. Destacar.

Vejamos como se define cada um dos tipos de dêixis.

Tipos de dêixis
68

a) Dêixis pessoal
Nenhuma outra forma da língua é mais prototípica da dêixis de pessoa do que os
pronomes pessoais. Como já o afirmara Benveniste (1988), os pronomes de primeira e
de segunda pessoa são os verdadeiramente “pessoais”, aqueles que representam os
participantes efetivos de um ato de comunicação: quem fala e com quem se fala. A
canção abaixo exemplifica bem a categoria discursiva de pessoa marcada nas formas
que sublinhamos, todas elas remetendo ora ao locutor, ora ao interlocutor:

(31)
De janeiro a janeiro
Não consigo olhar no fundo dos seus olhos
E enxergar as coisas que me deixam no ar, medeixam no ar
As várias fases, estações que me levam com o vento
E o pensamento bem devagar

Outra vez, eu tive que fugir


Eu tive que correr, pra não meentregar
As loucuras que me levam até você
Me fazem esquecer que eu não posso chorar

Olhe bem no fundo dos meus olhos


E sinta a emoção que nascerá quando vocême olhar
O universo conspira a nosso favor
A consequência do destino é o amor, pra sempre vou teamar

Mas, talvez, você não entenda


Essa coisa de fazer o mundo acreditar
Que meu amor não será passageiro
Te amarei de janeiro a janeiro
Até o mundo acabar
(REIS, Nando. Disponível em: http://letras.terra.com.br/nando-reis/1748747/.
Acesso em: 9 mar. 2011.)

Qualquer expressão que se refira às pessoas que, de fato, participam do ato


comunicativo (locutor e interlocutor) é, portanto, considerada uma ocorrência de dêixis
pessoal, como acontece com os pronomes de primeira e de segunda pessoa, com os
possessivos que lhes são correspondentes e até com alguma forma nominal que fosse
empregada com este fim. Em geral, essas formas da língua se referem ao locutor e ao
interlocutor, as pessoas do discurso, aquelas que representam o eu e o você de uma
interação.
69

Por isso mesmo é que a referência dêitica, para ser plenamente compreendida,
depende, sempre, do conhecimento da situação de interlocução. Se considerarmos o
exemplo (31), podemos dizer que os referentes de “eu” e “você” podem mudar a
depender da situação. O “eu” se refere, inicialmente, ao eu lírico da canção – um
referente, digamos, bastante genérico –, que se dirige à pessoa amada (o “você”).
Contudo, imaginemos uma situação em que, por exemplo, um aluno resolve postar um
vídeo no YouTube, no qual “envia” essa canção a uma colega de sala. Nesse caso, o
“eu” e o “você” assumem uma nova referência – passam a ser o garoto e sua
pretendente.
Outro exemplo: num tempo em que a identificação do número de chamada de
telefone não era usual, havia, algumas vezes, certa confusão decorrente da falta de
“mapeamento dêitico”. Alguém que ligasse para a casa de uma pessoa e dissesse algo
do tipo “Sou eu, cara”, poderia gerar dúvida no interlocutor: “Eu quem?”. Só depois de
o outro se identificar (ou, por exemplo, falar mais um pouco, para que sua voz fosse
reconhecida) é que a referência se estabeleceria, e a interação poderia progredir.Isso
mostra que a “identidade” dos pronomes de primeira e segunda pessoa está atrelada ao
reconhecimento da situação de comunicação, e a elaboração desses referentes é um
elemento importante para a compreensão textual.
Sugerimos que se pergunte aos alunos se eles se lembram de alguma situação
real em que a comunicação foi comprometida pela ambiguidade na hora de identificar o
eu ou o você da enunciação. O objetivo é fazê-los compreender a necessidade das
coordenadas dêiticas para o reconhecimento dos referentes nesses casos.
Um tipo de dêixis muito semelhante à pessoal é a dêixis social.

b) Dêixis social
Os dêiticos sociais são como que uma particularização dos dêiticos pessoais.
Distinguem-se destes por revelarem “os relacionamentos sociais por parte dos
participantes da conversação, que determinam, por exemplo, a escolha dos níveis
discursivos honoríficos ou polidos, ou íntimos ou insultantes” (FILLMORE, 1971, p.
39). Assim como a dêixis pessoal, a social também remete diretamente aos
interlocutores, mas as formas que a codificam refletem relacionamentos em sociedade
que condicionam a escolha dos níveis de maior ou menor formalidade.
70

Há de se convir que existe uma grande diferença de tratamento social no uso de


expressões como “o senhor”, “você”, “sogrinha”, “V.Sa.” etc. Nas relações sociais,
sempre existem normas de conduta social, de comportamento adequado, para cada
situação de interação. São essas normas sociais que orientam o modo como os
participantes da comunicação tentam ser “polidos”.
As estratégias de polidez dentro de uma determina conjuntura sócio-histórica
condicionam, assim, a escolha de títulos honoríficos e de outras expressões que
manifestem a dêixis social. São as regras de etiqueta social implícitas que ajudam a
preservar a “face” do locutor ou do interlocutor, por meio da escolha, por exemplo, dos
dêiticos sociais apropriados a cada situação de (in)formalidade e/ou de intimidade. O
hábito de se dirigir a um idoso tratando-o por “senhor, senhora” já denuncia a posição
de distanciamento, de respeito e de temor que o locutor vivencia no momento da
enunciação. Dependendo do nível de intimidade que o aluno tenha com o professor, ele
pode tratar o mestre, em dada situação de formalidade, como “senhor”, ou como
“professor”, em vez de se valer simplesmente do dêitico pessoal “você” ou “tu”, a fim
de não parecer desrespeitoso.
Com a preocupação de preservar a imagem que os interlocutores possam fazer
dele, o locutor busca defender sua face positiva, ao mesmo tempo em que tenta esconder
sua face negativa.14Os interlocutores tentam cooperar sendo polidos, corteses, para não
revelarem a vulnerabilidade de sua autoimagem. Cada participante da comunicação
busca preservar seu território e sua liberdade. Esses acordos de boa conduta existem em
todas as sociedades de todas as culturas, embora os modos de ser ou não polido, em
maior ou menor grau, possam variar de uma para outra.
Estudar a dêixis social é dar ao aluno a possibilidade de analisar as diferentes
formas como as línguas codificam a informação social de maneira sistemática.
Um valioso exercício de escrita ou de oralidade seria pedir que os alunos
produzissem uma solicitação, um pedido, dirigido a interlocutores com quem teriam
diferentes graus de familiaridade. O ideal seria trabalhar com textos curtos que
pudessem ser cotejados diante de toda a turma, para suscitar um debate profícuo sobre
as relações sociais e suas repercussões no uso da linguagem, especialmente dos dêiticos
sociais.

14
Aconselhamos a leitura de Kerbrat-Orecchioni (2006).
71

Dêixis espacial
Os dêiticos espaciais marcam as noções de proximidade/distância do locutor em
relação a um dado referente. Eles apontam para um lugar situado e referido com relação
a quem fala, como no exemplo seguinte:

(32)
Piadas de bêbados

Um sujeito, cambaleando pelo estacionamento, estava cutucando a porta de


cada carro com uma chave. Veio o guarda e lhe perguntou:
— Qual é o problema, meu amigo?
E o sujeito responde:
— Perdi meu carro...
O guarda diz:
— Onde foi que você viu o carro pela última vez?
— Foi aqui mesmo, na pontinha desta chave...

(Disponível em: http://www.piadasnet.com/piada147bebados.htm. Acesso em: 9 mar. 2011.


[correções nossas])

O fato de o bêbado ter respondido ao guarda que tinha visto o veículo “aqui
mesmo, na pontinha desta chave” indica (ou, para usar um termo técnico, ostenta) que o
referente carro se localiza próximo a ele, que está falando; do contrário, ele não teria
utilizado nem o advérbio “aqui”, nem o demonstrativo “esta”, ambos relativos à
primeira pessoa do discurso.
Vale ter em mente que nem toda expressão que indique lugar será considerada
dêitica. Só o será se, para identificar o referente, for necessário ter o falante como ponto
de origem. Quando, no exemplo acima, o guarda pergunta: “Onde foi que você viu o
carro pela última vez?”, o advérbio onde não se investe de valor dêitico nessa situação,
porque remete a possibilidades vagas de localização, que independem do lugar em que
se situe o locutor. Por isso, neste exemplo, o uso do “aqui” é classificado como dêitico,
mas o uso do “onde”, não.
Como veremos, o mesmo raciocínio vale para a definição de dêixis temporal.

c) Dêixis temporal
Assim como os dêiticos espaciais, os dêiticos temporais são também indicadores
de ostensão, porque apontam para um “lugar” e fixam uma fronteira de tempo que toma
72

por referência o posicionamento do eu falante no momento da comunicação. É o que se


verifica nas notícias seguintes, que situam os acontecimentos em relação ao dia e à hora
em que o ocorrido é noticiado pelo locutor.

(33)

21/01/2011 11:39

Flagra: motorista de Belina atropela motociclista e abandona local do acidente

O motorista de uma Belina avançou uma preferencial, atropelou um


motociclista e, ao invés de parar o carro, fugiu do local.
O caso ocorreu por volta das 11 horas desta manhã, no cruzamento da rua
Padre João Crippa com Barão do Melgaço, região central de Campo Grande.
O motociclista Teófilo Franco Caldas, 22 anos, seguia pela rua Padre João
Crippa, via preferencial, quando foi atropelado pelo motorista da Belina cor prata de
placa BGF-5982, de Campo Grande.
O impacto só não provocou danos piores porque Teófilo freou sua motocicleta,
uma Titan 150 cilindradas. O rapaz caiu no chão e, por segundos, o motorista reduziu a
velocidade, mas acelerou em seguida. A motocicleta bateu na porta do carro.
O rapaz cortou a mão e machucou uma das pernas. Ainda no chão, ele tentou
chamar a atenção do motorista da Belina, que seguiu ainda assim.
De janeiro a setembro do ano passado, 41 pessoas morreram vítimas de
acidente de trânsito nas ruas de Campo Grande, média de dois casos a cada três dias.
Vinte e nove das vítimas conduziam ou eram transportadas por motocicletas.

(BEJARANO, Celso; SOUZAAlessandra de.Disponível em:http://www.midiamax.com.br/brasil/.


Acesso em: 27 mar. 2011.)

(34)

09/03/2011 - 07h58

Motorista invade calçada e mata garota em Sorocaba (SP)

Em São Paulo

Uma adolescente morreu e outros dois ficaram feridos em um atropelamento


ontem à noite em Sorocaba, no interior de São Paulo.
Segundo a Polícia Militar, o motorista Wagner Francisco dos Santos, de 30 anos,
perdeu o controle do veículo Verona, por volta das 20h15, e invadiu a calçada na Rua
Isis de Camargo Barros Martins, no bairro Jardim Santo André II.
73

O carro atingiu três pessoas, matando uma delas. Uma garota de 14 anos, que
estava em frente ao portão de casa, morreu na hora. Dois meninos, de 8 e 13 anos,
ficaram feridos e foram levados para o pronto-socorro do Hospital Regional.
Segundo a PM, o motorista foi preso em flagrante, após teste de dosagem
alcoólica, por lesão corporal culposa e homicídio culposo.

(Disponível em: http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia/2011/03/09/motorista-invade-


calcada-e-mata-garota-em-sorocaba-sp.jhtm. Acesso em: 9 mar. 2011.)

Em (33), ao utilizar a expressão “desta manhã”, o locutor se apoia na certeza de


que o leitor tem que tomar como ponto de referência o dia em que a notícia foi
enunciada e publicada. A expressão está se referindo à manhã do dia 21 de janeiro 2011
(data de publicação da notícia) e não à manhã de outro dia do mês. E, em (34), não seria
possível identificar o referente do dêitico temporal “ontem à noite”, caso não se tivesse
acesso à informação da data em que o texto foi publicado, que institui o momento do
locutor. Eis aí o caráter dêitico das expressões: a remissão ao momento da fala como
marcador das relações temporais.
Dessa forma, uma expressão de tempo não vai constituir um caso de dêixis
temporal, exceto se tomar como ponto de referência o momento em que se encontra o
locutor. Por isso, no enunciado “Segundo a Polícia Militar, o motorista Wagner
Francisco dos Santos, de 30 anos, perdeu o controle do veículo Verona, por volta das
20h15”, em (33), a expressão em grifo não é dêitica, porque o referente que ela
manifesta poderia ser identificado independentemente de se saber quando a notícia está
sendo enunciada pelo locutor.
Muitas vezes, a depreensão “exata” da coordenada dêitica temporal não chega a
prejudicar completamente a compreensão. Por exemplo, caso não saiba exatamente a
que dia e mês correspondem a expressão “ontem à noite”, em (34), o leitor não terá sua
leitura de todo prejudicada. Contudo, em outros casos, a depreensão do “tempo da
interlocução” é necessária para uma interpretação mais adequada. Reflitamos sobre o
exemplo a seguir: Comentado [n17]: sugestão.

(35)
Adorei a revista de ontem e os conselhos que dava. Um deles era: quando o
marido chegar em casa, faça com que a noite seja dele. Nunca reclame que demorou a
chegar ou foi jantar fora ou saiu para se divertir sem você. Em vez disso, tente
entender seu mundo de tensão e pressão.
74

Provavelmente, algumas mulheres podem ficar extremamente insatisfeitas com


um texto desses e considerar a locutora do texto como alguém inadmissivelmente
submissa. Podem, até, contestar a credibilidade de uma revista que, em pleno século 21,
dá conselhos como esses. Contudo, se pontuarmos que esse texto é uma simulação do
discurso de uma dona de casa da década de 1950, poderemos lê-lo com outros olhos,
compreendendo a sua adequação à época em que foi produzido.
É razoavelmente comum começarmos a ler um texto sobre tecnologia e nos
espantarmos com as informações “obsoletas” que ele traz. Quando isso acontece, o
leitor proficiente procura, imediatamente, a referência do texto, a fim de saber qual o
ano original de sua publicação. De posse dessa informação, a leitura “muda de rumo”, já
que a coordenada dêitica temporal fornece a âncora necessária para a compreensão mais
pertinente.

d) Dêixis textual
Para se pensar numa dêixis textual, é necessário que se considere o espaço em
que o texto se materializa. Essa estratégia ocorre quando se muda do campo dêitico da
situação real de comunicação para o ambiente do cotexto. O começo, o meio e o fim, o
antes e o depois, o acima e o abaixo são tomados linearmente, à medida que o locutor
vai fazendo uso de enunciados no espaço/tempo do cotexto. Sob esse prisma de
ordenação, qualquer ponto no cotexto pode ser considerado como ocorrendo antes,
durante ou depois do último momento em que o falante enunciou alguma coisa.
Expressões típicas desse fenômeno são: “como mostramos no exemplo anterior”, “a
seguir”, “na ilustração abaixo”, dentre tantas outras, tomadas diretamente da semântica
de espaço/tempo: acima, aqui, agora etc.
Nessa metaforização do espaço/tempo da situação comunicativa, costumam ser
usadas as mesmas expressões dêiticas de tempo ou de espaço empregadas para situarem
um dado referente dentro da organização linear das unidades gráficas no texto. Estão
fartamente presentes em gêneros do discurso acadêmico, como no seguinte trecho de
uma dissertação:

(36)
Para exemplificar esse tipo de estruturação do desenvolvimento argumentativo
e sua relação com o tópico discursivo, apresentamos a seguir a análise do artigo.
75

(ALENCAR, E. N. de. O tópico discursivo nas dissertações de alunos do ensino médio. Dissertação
[Mestrado em Linguística] – Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2009.)

“A seguir” se refere ao próprio local do texto produzido pelo locutor e tem como
ponto de referência o último enunciado do falante e a arrumação vertical do texto, por
isso tem um traço dêitico. Logo, quando se empregam dêiticos textuais desta natureza, a
distância avaliada no tempo/espaço textual não perde de vista a noção de proximidade
em relação ao enunciador e, por isso mesmo, mantém o subjetivismo próprio da dêixis.
O que chamaremos de dêixis textual é sempre um processo híbrido, que mistura
uma função anafórica (ou de introdução referencial) com uma função dêitica. É dêitico
porque considera o ponto de origem do locutor; é anafórico (ou introdutório) porque
sempre vai estabelecer uma cadeia com outro referente do texto.
Quando são utilizados dêiticos textuais do tipo “o parágrafo anterior”, por
exemplo, dá-se um processo de retomada anafórica do referente que representa esse
parágrafo. Especificamente neste caso, estamos diante de uma anáfora encapsuladora
que desempenha também a função de dêitico textual, simultaneamente.
Os dêiticos textuais, de acordo com Apothéloz (2005), exercem, por isso, uma
função metatextual (e, poderíamos dizer mais amplamente, metadiscursiva), pois
permitem a organização do espaço do texto e facilitam, assim, a orientação do receptor
dentro dele.
Não se deve concluir, apressadamente, que todo dêitico textual só ocorre,
concomitantemente, com anáforas encapsuladoras. O objeto de discurso retomado pelo
dêitico textual pode estar bem pontualizado, como em qualquer anáfora correferencial.
Isso acontece sempre que nos deparamos, por exemplo, com expressões como “a
palavra seguinte”, “o termo que acabei de citar” etc. Uma situação ilustrativa é a do
exemplo a seguir:

(37)
Acreditamos que a expressão “O impaciente francês”, como parte de um outdoor,
deve vir associada a uma imagem do carro que é tema da propaganda. Logo, uma
análise dessa expressão, dentro de uma perspectiva de estudo dos textos em uso, não
pode esquecer isso, de modo que a aludida expressão atua não como uma introdução
referencial (no sentido mais clássico desse termo, em que uma expressão é
mencionada pela primeira vez no cotexto), mas como uma anáfora que recategoriza,
linguisticamente, o carro apresentado na imagem.
(CUSTÓDIO FILHO, V. Múltiplos fatores, distintas interações: esmiuçando o caráter heterogêneo
da referenciação. Tese [Doutorado em Linguística] – Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2011.)
76

É imprescindível que se entenda que as duas expressões em grifo são


ocorrências de anáforas (ou por retomarem indiretamente o objeto de discurso, como em
“a essas formas composicionais do texto”; ou por retomarem pontualmente um mesmo
referente introduzido antes, como em “deste autor”). Por outro lado, funcionam também
como dêiticos textuais, por sua característica metadiscursiva de chamar a atenção do
interlocutor, engajando-o e direcionando seu olhar para lugares do cotexto.

e) Dêixis de memória
Concluiremos essas reflexões sobre a dêixis descrevendo um último tipo desse
processo referencial intersubjetivo. Alguns autores, dentre eles destacamos Apothéloz
(1995), postulam a existência de uma espécie de dêixis que tem por função dar indícios
ao coenunciador de que ele precisa buscar o objeto referido em conhecimentos que os
participantes da comunicação compartilham. Apothéloz nomeia esse processo de “dêixis
de memória”, explicando que o referente evocado é tão evidente para o enunciador que
é como se já tivesse sido mencionado no contexto. O destinatário tem a impressão de
que a informação lhe é imediatamente acessível, não obstante se tratar de um processo
referencial in absentia.
Há uma série de exemplos corriqueiros para esse fenômeno, como na seguinte
postagem na rede social Facebook:

(38)
“E aquela hora que vc pensa em comer algo e descobre: “Só terá comida se vc
fizer....”ahaaaahaaaaaa...... :P
Curtir ·
2 pessoas curtiram isto.”
Comentado [n18]: arte/diagramação: se possível, reproduzir
página Facebook = status
Observe-se que, ao formalizar o referente como “aquela hora em que você pensa
em comer algo...”, o locutor convoca o leitor a procurar, na memória discursiva que o texto
recria, objetos de discurso que ambos compartilham e dos quais deve se lembrar. A
presença dos demonstrativos, sobretudo o de terceira pessoa, aquele(a,s), é fundamental
para esse indício.
Como esses dêiticos textuais são muito frequentes nas conversações ordinárias,
uma atividade dinâmica que sugerimos é provocar situações em que os alunos sejam
77

instados a realizar uma pequena encenação em sala de aula na qual tenham que
empregar um dêitico de memória. Nessa ocasião, convém discutir com o resto da turma
que tipos de conhecimento são requeridos para a recuperação do objeto referido.
O quadro a seguir esquematiza os processos referenciais apresentados neste
capítulo.

Grupo 1 – Introduções referenciais


Grupo 2 – Continuidades referenciais (anáforas)
Anáfora direta e encapsulamento
Anáfora indireta
Grupo 3 – Dêixis (pessoal, social, espacial, temporal e memorial)

Deve ficar claro que somente os grupos 1 e 2 se opõem, ou seja, são mutuamente
excludentes, pois ou se tem introdução de referente novo no texto, ou se tem a retomada
de algum. Por isso o grupo 3, dos dêiticos, pode coocorrer com as introduções e com as
anáforas.
Também se deve salientar que o fenômeno da recategorização pode ser
disparado por qualquer processo anafórico, quer dêitico, quer não.
Com a dêixis, finalizamos a apresentação dos processos referenciais. Antes de
passarmos para a sugestão de exercícios, julgamos relevante reforçar algumas
observações sobre a recategorização, que antecipam as funções discursivas dos
processos de referenciação, a serem discutidas no capítulo final deste livro.
Embora possa parecer, a transformação de um referente não se limita aos casos
mais prototípicos de anáfora direta (como nos exemplos 39 e 40). Como se trata de um
fenômeno difuso e não linear, a recategorização ocorre sempre que é possível perceber a
perspectiva avaliativa imprimida pelos locutores, não importando o processo referencial
que a manifesta. Isso quer dizer que a recategorização é um processo fundamental a
guiar a argumentação no texto.

(39)
A top quer samba
De passagem pelo país para promover o baile da revista Vogue, a top Adriana
Lima, de 29 anos, mostrou uma silhueta que passa longe das esquálidas colegas de
trabalho.
(Época, 7 de março de 2011, p. 93.)
78

(40)
Glamour, sim. Shortinho, não!
Na guerra das rainhas de bateria, Sabrina Sato já começa levando a melhor no
quesito luxo. Parece ser dela a fantasia mais cara do carnaval. “No mínimo, R$ 60 mil”,
diz uma porta-voz da Vila Isabel, escola pela qual a apresentadora de 30 anos desfila.
(Época, 7 de março de 2011, p. 93.)

Observe-se que, em (39), o mesmo referente de “A top” é retomado no texto


como “a top Adriana Lima, de 29 anos”. Por meio dessa expressão de anáfora
correferencial, a nota jornalística informa de quem o texto está tratando e ainda
acrescenta um dado descritivo concernente à idade de Adriana Lima. Esse acréscimo
não é feito de forma aleatória: obedece a um propósito argumentativo no texto. Algo
semelhante se encontra no exemplo (40), uma das rainhas da bateria, Sabrina Sato, é
retomada e recategorizada como “a apresentadora de 30 anos”.
Pode haver recategorização de referentes também em anáforas indiretas e em
anáforas encapsuladoras; quando isso acontece, as finalidades argumentativas são
outras. Vejamos os exemplos abaixo:

(41)
Depois de mais de três séculos e meio de escravidão, os negros tornaram-se
“livres” através de leis que visavam, antes de tudo, beneficiar os proprietários de
escravos. A “bondosa” princesa Isabel e os “doutores” abolicionistas esqueceram-se da
integração social dos ex-escravos.
(Disponível em:www.expo500anos.com.br. Acesso em: 14 mar. 11.)

(42)
Só existe uma maneira legal e ética de aumentar o número de sócios nos
grandes jogos dentro do estádio do Inter: permitir que o associado venda o seu lugar
quando não for. Não se pode obrigar 40 mil pessoas a comunicar com antecedência se
vão ou não exercer um direito desse tipo. Alguns exemplos hipotéticos, mas que
certamente virarão realidade se a absurda medida prosperar: [...]
(Disponível em:
http://www.clicrbs.com.br/blog/jsp/default.jsp?source=DYNAMIC,blog.BlogDataServer,getBlog
&uf=1&local=1&template=3948.dwt&section=Blogs&post=192914&blog=534&coldir=1&topo=3994.dwt
. Acesso em: 4 abr. 2012.)

Em (41), ao falar da escravidão dos negros, o locutor insere dois referentes já


previsíveis, ou que não impactam a compreensão, por estarem relacionados ao tema e a
outros referentes anteriormente introduzidos. Os objetos de discurso de princesa Isabel e
de abolicionistas estão associados, por exemplo, à escravidão. São, portanto, anafóricos
79

indiretos. Mas surgem no texto já recategorizados por marcadores avaliativos, como o


adjetivo “bondosa” e o substantivo “doutores”. Tais avaliadores assinalam um ponto de
vista expresso de maneira irônica e, por meio das aspas, separam vozes distintas: a do
locutor, que não considera a princesa Isabel como bondosa, nem os abolicionistas como
doutos, sábios, e a voz de outros enunciadores, que veem a princesa Isabel e os
abolicionistas dessa forma.
Em (42), o referente da anáfora encapsuladora, confirmado como “a absurda
medida”, já vinha se edificando desde o início do texto, até ser homologado e resumido
por essa expressão, a qual sintetiza o ponto de vista do locutor.
Podemos constatar que a recategorização é um processo que se dá
cognitivamente e que não se trata de um outro tipo de processo referencial, mas de algo
que ajuda a constituir todas as retomadas anafóricas diretas, encapsuladoras e indiretas.
Uma vez introduzido no texto/discurso, um referente tende a ir, gradativamente,
sofrendo sucessivas recategorizações na mente dos participantes da comunicação. Todas
as recategorizações seguem as restrições das pistas cotextuais e dos conhecimentos que
possam ser compartilhados pelos participantes em cada contexto único da enunciação.
O fenômeno, portanto, proporciona a efetivação de várias funções de caráter
argumentativo, e outras funções não argumentativas, de natureza expressiva, de
manifestação de desejos do inconsciente, como podemos encontrar nos estudos de Brito
(2005; 2010).
Ciulla e Silva (2008) descreve algumas das funções argumentativas e
discursivas: atualizar conhecimentos, especificar por meio de uma sequência
hiperônimo/hipônimo, fornecer explicações com fins definicionais e/ou didáticos, evitar
uma repetição, conforme explicaremos no capítulo três.
Passemos, agora, à sugestão de exercícios, com vistas a fornecer mais
orientações sobre a aplicação desses conceitos no ensino-aprendizagem de língua
portuguesa.

Sugestões de atividades
80

Atividade 1
Objetivos:reconhecer a importância das relações anafóricas (diretas e indiretas) para a
“eficiência” da progressão textual; preencher os implícitos textuais a partir do
reconhecimento de relações anafóricas diretas e indiretas.

Descrição
Leia o texto a seguir e responda ao que se pede nas questões 1 e 2.

Só alegria

O milionário austríaco Karl Rabeder entregou todas as suas posses materiais


para ajudar os outros – e a si mesmo
No alto dos Alpes do Tirol, o ar que alimenta o alto dos Alpes do Tirol se enche
com o canto dos pássaros, e um homem de meiaidade pula na ponta dos pés desse
homem de meiaidade. “É difícil exprimir”, diz ele, “essa sensação de liberdade, de
leveza absoluta”.
Karl Rabeder espera se sentir ainda mais leve com vários milhões de dólares a
menos. O magnata dos utensílios domésticos, que mora há 13 anos na cidade de Telfs,
na Áustria, saiu nas manchetes do mundo inteiro quando anunciou que venderia tudo
o que tinha para ajudar os pobres das Américas Central e do Sul. Uma fazenda
belíssima no sul da França já fora a leilão, junto das empresas de Karl Rabeder –
magnata dos utensílios domésticos –, dos carros de Karl Rabeder – um homem de
meiaidade que espera se sentir ainda mais leve – (entre eles, um Audi de 68 mil
dólares) e a pequena frota de planadores de Karl Rabeder – magnata dos utensílios
domésticos que espera se sentir ainda mais leve quando vender tudo o que tem.
A sua casa – uma mansão que vale mais de 2 milhões de dólares, perto de
Innsbruck, com lago paisagístico, sauna e uma vista espetacular das montanhas onde
fica a mansão de Karl Rabeder, nos Alpes do Tirol – é o último patrimônio que lhe
resta. Logo, Rabeder, 48 anos, entregará as chaves dessa casa dos sonhos ao feliz
vencedor de uma loteria pan-europeia e se mudará para uma cabaninha de madeira
nos Alpes. Ele mal pode esperar. Para Rabeder, o fato de o seu dinheiro – uma fortuna
pessoal de quase 5 milhões de dólares – ir do rico para os pobres é muito mais
compensador do que se viesse no sentido contrário.
81

“A riqueza”, diz Rabeder, “não traz a felicidade. Durante 25 anos, trabalhei feito
escravo por coisas que não queria nem de que precisava. Agora, o meu sonho é não
ter nada.”
O escritório sereno e todo branco da mansão de Karl Rabeder, que fica no alto
dos Alpes do Tirol, no qual Rabeder consulta o computador que pertence a ele e que
fica no escritório de sua mansão, que não para de apitar, é pobre segundo o padrão
dos milionários, embora a mobília do escritório de sua mansão feita à mão reflita o
bom gosto de um conhecedor. Mas Karl Rabeder, milionário dos utensílios domésticos
que tem uma mansão, que tem um escritório sereno e branco, onde fica o computador
de Karl Rabeder, não sente orgulho quando examina o produto de uma vida de
trabalho. “Tudo, até a cadeira onde estamos sentados, vai junto com a casa, que é uma
mansão com lago paisagístico, sauna e uma vista espetacular das montanhas onde fica
a mansão, quando for vendida”, explica o magnata dos utensílios domésticos que tem
um computador, com evidente satisfação. Para a nova vida nas montanhas, separou
uma muda de roupa que pertence a Karl Rabeder, duas caixas de livros que pertencem
a Karl Rabeder e um computador portátil que pertence a Karl Rabeder. Viverá com
uma pensão mensal de uns 1.300 dólares e acredita que não precisará nem da metade
de 1.300 dólares. [...]
(DICKSON, E. Jane. Seleções Reader’sDigest. Fev. 2011, p. 78. Texto adaptado.)

Questão 1
O texto “Só alegria”, da maneira como foi organizado, apresenta quebras de
coerência, em virtude de desobedecer a uma regra fundamental de articulação das
informações. Assinale a alternativa que apresenta essa regra.
a) Um texto será coerente de acordo com o grau de detalhamento. Quanto mais
detalhes puder fornecer, mais coerente o texto será.
b) Um texto deve apresentar informações completamente novas. Informações
que já apareceram em textos anteriores devem ser descartadas.
c) Em um texto escrito, é esperado que o produtor construa parágrafos de
tamanho equivalente. Do contrário, a harmonia textual estará prejudicada.
d) Em um texto, nem tudo precisa ser explicitado. A partir do momento em que
algumas informações são fornecidas, elas podem gerar relações implícitas entre os
elementos textuais, as quais garantem a coerência.

Questão 2
Considerando a regra assinalada na questão anterior, sublinhe os trechos que
você considerou incoerentes no texto “Só alegria” e proponha reformulações que os
82

deixem coerentes. Ao todo, foram modificados dezesseis trechos. No final, compare


suas sugestões com o texto original, entregue pelo professor.15

Questão 3
Preencha as lacunas dos enunciados a seguir com expressões nominais que
garantam a coerência. Atenda à solicitação a respeito da estrutura de cada expressão.
Estou com um problemão pra resolver no____________ (pronome possessivo +
substantivo). A chave não quer entrar de jeito nenhum.
Amanhã haverá uma grande comemoração na ____________ (substantivo).
Todos os alunos deverão vestir traje social.
Roberto Carlos foi o grande homenageado do Carnaval carioca em 2011.
____________ (artigo + substantivo) foi o tema da escola campeã.
Procure comer cenoura frequentemente, pois ____________ (pronome
demonstrativo + substantivo) é rica em betacaroteno, um poderoso antioxidante.

Comentário
As questões tratam, basicamente, do papel das expressões anafóricas quanto ao
fluxo da informação. Sobre as questões 1 e 2, é necessário que, inicialmente, o aluno
reconheça o importante princípio que rege as relações textuais: as relações entre os
referentes estabelecem implícitos recuperáveis (alternativa D). Por isso é que é possível
reconhecer as inadequações do texto adaptado: uma vez que alguns referentes tenham
sido estabelecidos, as relações sociocognitivas garantem a rede de relações pertinentes,
de modo que a retomada de certas informações é desnecessária. Isso é verdadeiro tanto
para as relações anafóricas diretas quanto para as indiretas (aliás, os trechos
modificados do texto 1 incidem principalmente sobre esse último tipo de relação).
Sugerimos que o professor, na questão 1, suscite uma reflexão sobre a
incorreção dos demais itens. Isso servirá para que o aluno obtenha informações menos
taxativas sobre os princípios de textualidade. Por exemplo, embora a construção de
parágrafos seja um fator fundamental da construção de textos bem elaborados, a
recomendação sobre uniformidade de tamanho não é uma regra infalível (nem é esse o
problema observado no texto analisado).

15
O texto original encontra-se no final deste capítulo.
83

Na questão 2, o aprendiz é solicitado a pôr em prática o princípio aprendido.


Reformulando o texto, ele é capaz de reconhecer a pertinência das relações anafóricas
para a “trajetória harmônica” da coerência textual. Durante a correção, é importante o
professor ser responsavelmente flexível quanto à aceitação das sugestões de respostas
dos alunos. Não é necessário que as respostas corretas sejam as mesmas do texto
original, sendo possível que eles proponham outros caminhos para a construção da
coerência.
Na questão 3, trabalha-se com estratégias anafóricas simples: a anáfora indireta por
relação parte-todo (“carro”-“chave”; “escola”-alunos”) e a anáfora direta realizada por
meio de hiperônimo (“Roberto Carlos”-“cantor”; “cenoura”-“verdura”). De fato, a
construção referencial não se limita a esse tipo de relação anafórica, mas a aplicação
dessas estratégias (bastante comuns) é útil para que o aluno solucione alguns problemas
frequentes em sua produção textual, os quais podem ser solucionados sem que se careça
de uma elaboração mais “sofisticada” sobre os objetos de discurso.

Atividade 2
Objetivo:utilizar os processos referenciais para construir argumentação.

Descrição
Leia o texto a seguir para responder às questões 1 e 2.

Menor apanha no serviço porque não levou café da manhã para o chefe

Um trabalho que já era ilegal ficou ainda pior em Pedro Juan Caballero, no
Paraguai, fronteira com Ponta Porã. Um jovem de 16 anos que trabalhava de forma
irregular em um frigorífico foi agredido por um homem de nome Edgar, porque não
estava levando o café da manhã para o homem quando ele pedia.
O frigorífico seria de um político paraguaio que não teve o nome divulgado e
Edgar, que com um soco derrubou o jovem, fugiu quando viu que poderia ser preso. A
mãe e o pai do menino denunciaram __________ na delegacia da cidade, mas tiveram
dificuldades para fazê-lo, uma vez que os agentes não queriam aceitar a denúncia,
mesmo o jovem tendo na face um curativo causado pelo golpe que levou.
Para não aceitar a denúncia, os agentes diziam que a família tinha que ter um
advogado para representar contra os acusados, porém, quando jornalistas paraguaios
chegaram para cobrir o caso, eles resolveram aceitar a denúncia. Jornalistas do lado de
lá da fronteira acreditam que o fato de a empresa pertencer a um político local pesou
na questão.
(MS Já – Portal de Notícias. Disponível emhttp://www.msja.com.br/noticias/cidades/paraguai-menor-
apanha-no-servico-porque-nao-levou-cafe-da-manha-para-o-chefe. Acesso em 27 mar. 2011.)
84

Questão 1
Selecione, dentre as possibilidades listadas a seguir, uma que preenche
coerentemente a lacuna do texto e outra que não preenche coerentemente a lacuna.
Justifique suas escolhas.

O CASO A FARSA A HISTÓRIA

O OCORRIDO O PARÁGRAFO ACIMA A TRAGÉDIA

Questão 2
Considere que um jornal paraguaio produziu um editorial sobre o fato, cujos
parágrafos iniciais se encontram reproduzidos a seguir. Complete as duas lacunas do
texto com expressões nominais constituídas de artigo + substantivo + adjetivo ou
pronome demonstrativo + substantivo + adjetivo coerentes com o direcionamento
argumentativo do texto. Atenção: as lacunas fazem referência aos fatos relatados no
mesmo parágrafo em que aparecem.

Um jovem de 16 anos que trabalhava de forma irregular em um frigorífico foi


agredido por um homem de nome Edgar, porque não estava levando o café da manhã
para o homem quando ele pedia. _______________ mostra, mais uma vez, a truculência
com que os jovens mais pobres são tratados em nosso país.
Como se não bastasse, os policiais recusaram-se a acatar a denúncia dos
familiares, aparentemente para proteger o político dono do frigorífico. _____________
revela como nossa polícia é conivente quando se trata de investigar os figurões.

Questão 3
O texto “Só alegria”16 fala sobre um homem que tomou uma atitude bastante
diferente das demais pessoas: em vez de juntar dinheiro, ele resolveu distribuí-lo entre
os mais pobres. A partir das informações do texto (e de outras informações que você
possa recolher em pesquisas), produza um artigo de opinião para participar do debate
“Karl Rabeder: iludido ou otimista?”. Escolha uma das duas posições para organizar

16
O texto encontra-se no final do capítulo.
85

seus argumentos. Lembre-se de que a qualidade persuasiva de seu texto depende,


também, das expressões linguísticas que você escolher para fazer referência ao tema
central do texto: Karl Rabeder.

Comentário
Nas três questões da atividade, o foco é o viés argumentativo que pode ser
estabelecido a partir dos processos referenciais. Nas questões 1 e 2, o foco recai sobre
os encapsulamentos; o aluno deve ser capaz de perceber/sugerir expressões adequadas
que resumam uma porção anterior do cotexto ao mesmo tempo em que promovem a
progressão, por meio da argumentação.
Na questão 3, uma tarefa de produção textual, não há um processo referencial
específico que responda, sozinho, pela construção da argumentação. Contudo, o
comando da questão permite que o aluno reflita sobre a argumentação que incide sobre
as anáforas diretas.
Sugerimos que, antes da produção dos alunos, o professor discuta outros artigos de
opinião semelhantes, que versem sobre as ações de um indivíduo. Devem ser
focalizadas as expressões referenciais utilizadas sobre o indivíduo em questão. Essa
reflexão é útil para que os alunos entendam a argumentação como um fenômeno amplo:
além de resultar de um plano sobre a tese e os argumentos (normalmente, esse é o foco
dos manuais didáticos), ela também emerge das escolhas linguísticas efetuadas pelos
locutores.

Atividade 3
Objetivo:reconhecer o papel de expressões dêiticas na obtenção de efeitos de humor,
com consequente encaminhamento para a compreensão crítica.

Descrição
Questão 1
Leia o texto a seguir e responda ao que se pede.
86

Disponível em: http://dedemontalvao.blogspot.com.br/2012/03/ana-carolinamensagem-aos-


politicos.html. Acesso em: 4 abr. 2012.

a) O humor do texto é estabelecido a partir dos diferentes sentidos atribuídos à


expressão “Neste bolso”. Explique-os.
b) Considerando sua resposta ao item anterior, produza enunciados em que a expressão
“nesta casa” apresente sentidos semelhantes aos listados por você.

Questão 2

(Disponível em:http://www.essaseoutras.com.br/charges-engracadas-de-educacao-ensino-critica-
alunos-e-professores/. Acesso em: 4 abr. 2012.)

a) Identifique a que se referem, no texto, os pronomes “eu”, “tu” e “eles”. Indique que
pistas textuais colaboraram para essa identificação.
b) Se o enunciador optasse por usar o pronome “ele”, em vez de “eles”, o sentido
permaneceria o mesmo? Justifique sua resposta.
87

Comentário
Essa atividade explora os diferentes sentidos que as expressões dêiticas podem
assumir nos textos. Na questão 1, o aluno deve reconhecer os sentidos metonímico e
literal (este, ligado diretamente à situação espaço-temporal em que se encontram os
personagens) atribuídos à expressão “neste bolso”; a partir desse reconhecimento, é
possível construir o humor e perceber a crítica da charge.
Na questão 2, o aluno deve ser capaz de reconhecer a referência dos dêiticos
com base na predicação. Espera-se que ele reconheça o aluno (“eu”) como enunciador
que se dirige ao professor (“tu”) e que fala dos políticos (“eles”). Cabe, ainda, uma
reflexão sobre o uso do pronome “eles”. Uma vez que tanto o “eu” quanto o “tu” se
referem não a indivíduos específicos, mas a uma classe (respectivamente, a classe de
alunos e a classe de professores), o pronome “ele” também poderia ser usado para fazer
a referência a uma classe. Contudo, essa não foi a escolha, talvez porque, na cenografia
construída, isto é, na cena de que participam mais imediatamente os interlocutores,
pretende-se individualizar a ambos, tanto o locutor quanto o interlocutor. A
individuação não tem o mesmo efeito com o político, pois o uso do plural reforça a
responsabilidade de muitos quanto ao descaso com a educação.
Temos, então, que a construção da referência (nesses casos, estabelecida com a
colaboração de expressões dêiticas) é fundamental para a formação do espírito crítico do
leitor. A leitura plena pressupõe, portanto, a mobilização de estratégias textual-
discursivas que garantam a interpretação dos implícitos e encaminhe para a reflexão
crítica sobre o estado de coisas manifesto nesses contextos.

Anexo – texto original utilizado para a adaptação da atividade 1 Comentado [n19]: arte/diagramação: se possível, dar tratamento
de página de revista.

Só alegria
O milionário austríaco Karl Rabeder entregou todas as suas posses materiais
para ajudar os outros – e a si mesmo
No alto dos Alpes do Tirol, o ar se enche com o canto dos pássaros, e um
homem de meia-idade pula na ponta dos pés. “É difícil exprimir”, diz ele, “essa
sensação de liberdade, de leveza absoluta”.
88

Karl Rabeder espera se sentir ainda mais leve com vários milhões de dólares a
menos. O magnata dos utensílios domésticos, que mora há 13 anos na cidade de Telfs,
na Áustria, saiu nas manchetes do mundo inteiro quando anunciou que venderia tudo o
que tinha para ajudar os pobres das Américas Central e do Sul. Uma fazenda belíssima
no sul da França já fora a leilão, junto das empresas,dos carros (entre eles, um Audi de
68 mil dólares) e a pequena frota de planadores.
A sua casa – uma mansão que vale mais de 2 milhões de dólares, perto de
Innsbruck, com lago paisagístico, sauna e uma vista espetacular das montanhas – é o
último patrimônio que lhe resta. Logo, Rabeder, 48 anos, entregará as chaves dessa casa
dos sonhos ao feliz vencedor de uma loteria pan-europeia e se mudará para uma
cabaninha de madeira nos Alpes. Ele mal pode esperar. Para Rabeder, o fato de o seu
dinheiro – uma fortuna pessoal de quase 5 milhões de dólares – ir do rico para os pobres
é muito mais compensador do que se viesse no sentido contrário.
“A riqueza”, diz Rabeder, “não traz a felicidade. Durante 25 anos, trabalhei feito
escravo por coisas que não queria nem de que precisava. Agora, o meu sonho é não ter
nada.”
O escritório sereno e todo branco, no qual Rabader consulta o computador que
não para de apitar, é pobre segundo o padrão dos milionários, embora a mobília feita à
mão reflita o bom gosto de um conhecedor. Mas ele não sente orgulho quando examina
o produto de uma vida de trabalho. “Tudo, até a cadeira onde estamos sentados, vai
junto com a casa quando for vendida”, explica ele com evidente satisfação. Para a nova
vida nas montanhas, separou uma muda de roupa, duas caixas de livros e um
computador portátil. Viverá com uma pensão mensal de uns 1.300 dólares e acredita
que não precisará nem da metade. [...]
(DICKSON, E. Jane. Seleções Reader’sDigest. Fev. 2011, p. 78.)
89

CAPÍTULO3–Funçõesargumentativas de processos referenciais17


No segundo capítulo, descrevemos os três processos mais amplos de
referenciação: a introdução referencial, a anáfora e a dêixis, todos evidenciados com
exemplos variados, com a finalidade de retomarmos, neste capítulo final, a análise das
funções discursivas desses processos no desenvolvimento da coesão/coerência.
Temos defendido que todos os processos referenciais cumprem uma função
eminentemente argumentativa, ou avaliativa, mas que outras funções podem se somar a
esta, ou ser convocadas a serviço da argumentação.
Quando se fala em argumentação, as seguintes situações podem vir à mente: o
debate jurídico, o confronto entre temas polêmicos, um “jeitinho” especial de fazer um
pedido, uma discussão profissional calorosa, um texto dissertativo, uma guerra talvez.
Mas, se alguém dissesse que toda vez que falamos ou escrevemos, seja o que for,
estamos argumentando, seria fácil pensar nisso?
Como definir argumentação? Numa consulta simples a um dicionário de
referência, como o Houaiss 3, em versão eletrônica, obteríamos os seguintes resultados:

rgumentação–substantivo feminino
1Arte, ato ou efeito de argumentar.
2Derivação: por extensão de sentidotroca de palavras em controvérsia, disputa;
discussão.
3Rubrica: termo jurídico –conjunto de ideias, fatos que constituem os argumentos
que levam ao convencimento ou conclusão de (algo ou alguém).
4Rubrica: literatura, estilísticano desenvolvimento do discurso, corresponde aos
recursos lógicos, como silogismos, paradoxos etc. geralmente acompanhados de
exemplos, que induzem à aceitação de uma tese e à conclusão geral e final. Comentado [n20]: Arte/diagramação: se possível, reproduzir
/diagramar como verbete Houaiss versão eletrônica. As alterações
feitas correspondem à “diagramação” mais próxima do original.
Os sentidos com que o termo argumentação está sendo empregado nesta obra
não se afastam muito das acepções acima. Vamos definir a argumentação como uma
troca de ideias que o sujeito utiliza para defender um ponto de vista, com argumentos
fundamentados e/ou com fins manipulatórios.
Neste capítulo, conheceremos mais sobre a argumentação e veremos como essa
dimensão da linguagem se apresenta nos processos referenciais. Nosso objetivo, então,
é mostrar, principalmente, porém não exclusivamente, a argumentatividade dos
processos referenciais, trazendo à nossa discussão alguns exemplos de argumentação

17
Parte do conteúdo deste capítulo contou com a colaboração colega Lívia Mesquita, a quem expressamos
nosso agradecimento.
90

em gêneros diversificados. Ao final do capítulo, trazemos propostas de atividades para a


aplicação de algumas funções discursivas em sala de aula.
Sempre que falamos ou escrevemos, escolhemos as palavras que melhor
combinam com as nossas intenções e as colocamos em relação com outras palavras,
com outros contextos. Por isso, ao utilizarmos a linguagem, sempre iniciamos um
debate, para o qual nos servimos de estratégias diversificadas, como a intertextualidade,
a organização tópica, a conotação estética, a marcação polifônica, a manipulação
retórica, entre outras, as quais podem não ser excludentes.
Nos exemplos a seguir, ponderamos sobre a função de evitar repetição.

(43)

Fígado sai intacto de acidente aéreo e salva vida de paciente

Um fígado pronto para ser


transplantado saiu intacto de um
acidente aéreo ocorrido na Grã-
Bretanha, possibilitando uma
cirurgia que salvou a vida de uma
paciente.
O órgão estava a bordo de
um avião Cessna procedente de
Belfast (Irlanda do Norte), que caiu
na última sexta-feira no aeroporto
da cidade inglesa de Birmingham. O
acidente foi causado pela forte neblina.
Os dois pilotos do aparelho se feriram, mas o fígado não teve danos,
permitindo que a operação acontecesse. O aeroporto de Birmingham ficou fechado
até o meio-dia do último sábado para a realização de investigações sobre o acidente.
[...]
(Disponível em:http://noticias.br.msn.com/bem-bizarro/?Page=1. Acesso em: 27 mar. 2011.)

Em (43), vemos que a organização tópica do texto é armada em torno de um


acidente aéreo em que um fígado permanece intacto. O referente é introduzido no
texto/discurso já a partir das primeiras pistas – não só do título, que a ele remete
diretamente, mas também a partir da foto do avião. Assim, quando a expressão
anafórica “um fígado” é mencionada no cotexto pela primeira vez, ela já fixa como uma
retomada anafórica.
91

Logoem seguida, o autor do texto se refere ao fígado como “o órgão”, evitando,


assim, a repetição e, ao mesmo tempo recategorizando o objeto de discurso. Evitar a
repetição tem sido considerado um recurso de elegância, de efeito estético, por isso
costuma ser recomendado aos escritores não proficientes. Obedecer a padrões
estilísticos da escrita de um gênero, como o da notícia acima, vale também como uma
estratégia argumentativa.
Do mesmo modo, em (44), logo no título do texto, já é assinalado o seu referente
central – a estátua de Jesus Cristo na Polônia.

(44)
Polônia inaugura maior estátua de Jesus Cristo no mundo (21/11/2010)

Milhares de fiéis participaram da inauguração religiosa da maior estátua de


Jesus Cristo do mundo, um monumento que supera os 52 metros de altura, neste
domingo, em Swiebodzin, na Polônia.
Os atos começaram com uma grande missa no santuário da Misericórdia Divina
e continuaram com uma peregrinação pelo local onde fica o monumento, construído
com doações privadas, em sua maioria dos 21 mil habitantes de Swiebodzin.
A figura mede 33 metros, que correspondem aos 33 anos que Cristo viveu. A
eles se somam três metros da coroa, outro número simbólico, já que representam os
anos que Jesus dedicou a pregar; e 16,5 metros de pedestal, que serve de apoio para o
monumento, que tem 52,5 metros. [...]
(Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/833949-polonia-inaugura-maior-
estatua-de-jesus-cristo-no-mundo.shtm. Acesso em: 27 mar. 2011.)

A coesão se manifesta, entre outros recursos, pelas expressões que remetem a


esse objeto de discurso. A expressão “A figura”, por exemplo, participa dessa cadeia
coesiva evitando a repetição de expressões usadas no cotexto precedente para se referir
ao mesmo objeto.
92

Mesmo quando a preocupação parece ser meramente a de evitar repetições


condenáveis, ainda assim, cada locutor, a cada enunciação, recorre a diferentes escolhas,
e nenhuma delas é argumentativamente neutra. Conduzir uma orientação argumentativa
é também cuidar para que um gênero como a notícia pareça “apagar” o ponto de vista
do locutor, como no exemplo acima.
A língua é uma ferramenta muito “sedutora”, e com ela podemos produzir
muitos artifícios para alcançar nossos objetivos, baseados nos papéis que queremos
representar. Por exemplo:
quando queremos dar voz à filha que somos, podemos dizer: “Paizão, vou usar
seu carro, mas volto logo”.
quando queremos dar vez ao profissional que podemos ser, dizemos: “Chefe,
depois dessas férias, estou pronto para dar o melhor de mim no trabalho”.
quando somos patrões, podemos comentar assim: “Como foi a primeira vez que
isso aconteceu, vou lhe dar outra chance”.
quando somos professores, é comum dizermos: “Já que o tempo foi curto para
tanta matéria, vou adiar a prova”.

Todas essas afirmações que fazemos no nosso dia a dia, muitas vezes sem
grandes propósitos estratégicos, ou sem planos mirabolantes, exprimem as relações que
estabelecemos entre as palavras e o mundo, que só se torna mundo quando o colocamos
no discurso. Assim, quando a filha se dirige ao pai como “paizão”, ela está se
colocando, no discurso, como alguém que tenta convencer o pai. O simples fato de
utilizar essa expressão já demonstra as intenções da filha de fazer com que o pai
empreste o carro, ou seja, a filha está tentando manipular o pai para conseguir o seu
objetivo.
Vejamos, a título de ilustração, a notícia a seguir:

(45)
Católicos irlandeses encontram um pouco de conforto nas desculpas do Papa

Católicos irlandeses que assistiram às missas nas igrejas do país nesta manhã de
domingo receberam com resignação a carta do Papa Bento XVI com desculpas pelos
abusos de padres, esperando que ela permita virar a página de um passado
traumatizante.
93

Na igreja de Nossa Senhora do Rosário de Harold’s Cross, no sul de Dublin, fiéis


acompanhados dos filhos jovens ouviram o padre Gerry Kane falar sobre a carta, na
qual o pontífice expressa “vergonha” e “remorso” com os atos de pedofilia cometidos
por religiosos irlandeses, mas sem entrar em detalhes, para não chocar as crianças
presentes. “Há muito sofrimento entre essas pessoas e estou satisfeito com a carta,
muito mais acessível do que eu temia”, disse o sacerdote à AFP, logo que terminou a
missa. [...]
(Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL1538789-5598,00.html. Acesso em:
4 abr. 2012.)

A notícia trata de uma carta do Papa da Igreja Católica, em que o pontífice pede
desculpas pelos inúmeros casos de pedofilia dentro daquela instituição. A maioria dos
meios de comunicação ressaltou a decepção com o conteúdo da carta do Papa,
enquanto, na notícia acima, o redator preferiu ser-lhe simpático, mas sem manifestar-lhe
simpatia declarada, numa tentativa um pouco forçada de isenção. Algumas pistas nos
levam a essa interpretação: ao dizer que os católicos irlandeses encontraram um pouco
de conforto nas desculpas do Papa, o redator eximiu-se de falar da decepção, e, no lugar
disso, usou a expressão referencial “resignação”. Chamou à notícia o depoimento de
umpadre, de umpontífice, de umsacerdote, mas não dos fiéis, que foram apresentados
como seres passivos, que assistiram às missas, esperando, ouvindo. É a seleção dessas
palavras, desse jeito de dizer que vai se costurando no desenrolar do texto, que define
uma orientação argumentativa (DUCROT, 1987).
Então, se nos déssemos a tarefa de mudar essa orientação, como poderia ficar a
notícia? Vejamos a seguinte possibilidade de manipular a língua com o simples
conhecimento dos efeitos das expressões referenciais para mudar a orientação
argumentativa do texto/discurso:

(46)
*Católicos irlandeses encontram pouco conforto nas desculpas do Papa

Católicos irlandeses que assistiram às missas nas igrejas do país nesta manhã de
domingo reagiram com decepção à carta do Papa Bento XVI com pálidas desculpas
pelos abusos de padres, pois reivindicavam que ela permitisse virar a página de um
passado revoltante.
Na igreja de Nossa Senhora do Rosário de Harold’s Cross, no sul de Dublin, fiéis,
a quem a Igreja deve a garantia de punição aos culpados, acompanhados dos filhos
jovens, ouviram o padre Gerry Kane falar sobre a carta, na qual o “Santo Padre”
expressa “vergonha” e “remorso” com os atos de pedofilia cometidos por religiosos
94

irlandeses das altas e baixas hierarquias da Igreja, mas sem entrar em detalhes, para
não chocar as crianças que foram sexualmente abusadas por essa escória.
“Há muito sofrimento entre essas pessoas”, disse o sacerdote à AFP, logo que
terminou a missa. [...]

Observe que modificamos toda a orientação argumentativa do texto em favor de


uma ideologia, de uma ideia a ser perseguida: a de insatisfação com a carta. Note-se, por
exemplo, que modificamos a expressão referencial “desculpas” para “pálidas
desculpas”. Fizemos isso porque podemos acrescentar aos nomes alguns avaliadoresque

lhes intensificam ou enfraquecem o sentido. Quando falamos em “desculpas”, tendemos


a nos desarmar, porque desculpas são algo que esperamos de quem cometeu um ato de
maldade, é algo que tira as defesas do interlocutor. Se colocarmos um modificador do
tipo “esperadas desculpas”, por exemplo, estamos apenas confirmando o sentido de
“desculpas”. Mas, quando qualificamos as desculpas como “pálidas”, invertemos a
orientação argumentativa da própria palavra. Essa é uma atividade que podemos utilizar
inclusive para enfraquecer o enunciado do nosso interlocutor.
Esta e outras estratégias conferem um novo viés argumentativo ao texto, fazendo
progredirem os objetos de discurso e, consequentemente, o tema, ou tópico discursivo.
Observamos que, na notícia real, o título introduz o referente “católicos irlandeses”, em
seguida apresentados como “fiéis acompanhados dos filhos” e, a seguir, na fala do
padre, como “essas pessoas”. Essa progressão mostra uma tática do redator de tentar se
afastar de qualquer julgamento, mas, ao tentar se afastar, ele já demonstra tomar partido,
pois não mostra a revolta daquelas pessoas.
Em tese, é possível justificar que o enunciador está apenas querendo substituir as
expressões referenciais, para não repetir palavras, ou para tornar o texto mais culto, mas
é ingênuo pensar assim, porque vemos quão diferente é a forma como ocorre a
progressão referencial dos membros da Igreja: “Papa Bento XVI” é retomado por
“pontífice” (substituímos por Santo Padre entre aspas para dar um efeito de ironia),
numa terminologia tão própria à Igreja que afasta o leitor comum, desconcertando-o. A
mesma estratégia é utilizada em relação a “padre”, retomado como “o sacerdote”, que
mostra uma elevação para uma categoria mais geral, aquela que pode pertencer aos
bispos, cardeais, e até ao próprio Papa, que também é um sacerdote. A voz desse padre
toma um estatuto mais autoritário, sobretudo porque é a fala dele que é transcrita. Por
fim, quando tratamos daqueles que abusaram sexualmente de crianças, retomamos
“padres” como “religiosos”, numa dupla estratégia: primeiro, de ampliar a categoria de
95

“padres”, pois religiosos há em todas as religiões e em todas as hierarquias e, depois,


para não definir nomes e hierarquias, deixando em aberto o fato de que os sujeitos que
praticaram os crimes eram membros da Igreja Católica.
De fato, a argumentação depende direta, embora não exclusivamente, de
estratégias de referenciação. A partir daí, podemos estabelecer reflexões interessantes
sobre outras funções discursivas dos processos referenciais.

Marcação de efeito polifônico18

O fenômeno da polifonia se explicita quando é possível perceber mais de uma


“voz” no cotexto. Uma situação em que se vê facilmente essa articulação entre vozes
ocorre nos discursos direto e indireto da sequência narrativa.
Os processos de discurso direto e indireto são apenas uma face, mais simples, de
um fenômeno que se manifesta a partir de diversas possibilidades. A polifonia não se
restringe ao universo das narrativas. Tampouco carece, para se efetivar, da mobilização
das falas de sujeitos (reais ou fictícios) trazidas pelo locutor. Quando falamos em “voz”,
não estamos, necessariamente, atrelando isso a algo dito por alguém. Uma voz pode
implicar um viés, um ponto de vista, que marca uma diferença na organização
argumentativa do texto. Sobre isso, vejamos os exemplos seguintes:

(47)

18
A polifonia será abordada aqui em sua vertente mais caracteristicamente discursiva, conforme se vê com
mais frequência nos trabalhos da Análise do Discurso Francesa. Na Teoria da Argumentação na Língua
(TAL), a noção de polifonia ganha contornos diferentes do que aqui será esboçado.
96

(Época, 7 fev. 2011, p. 17.)

(48)

(Época, 7 fev. 2011, p. 32.)

Em (47), o anúncio publicitário, além dos recursos característicos do discurso


persuasivo inerente ao gênero, apresenta uma advertência: “Se for dirigir, não beba”.
Esta é, claramente, uma outra voz, necessária porque, em nosso país, há a obrigação de
que anúncios de cerveja incluam esse enunciado. Não se trata, como vemos, de vozes
97

associadas a referentes que representam pessoas, e, sim, que representam “instituições”,


no caso: a empresa responsável pela fabricação da cerveja e a instância do poder público
responsável pelo controle das mortes e dos acidentes de trânsito causados por bebida.
Em (48), também há pelo menos duas vozes: a voz do discurso publicitário, que
alardeia a qualidade do produto anunciado, e a voz “de advertência” – colocada na parte
inferior do anúncio, em letra menor –, que modaliza o impacto das vantagens, na Comentado [n21]: Atenção arte/diagramação: a definição/o
tamanho da imagem deve dar leitura desse trecho.
medida em que estas só ocorrem efetivamente se o produto for “utilizado” de acordo
com as instruções do rótulo. Diferentemente do anúncio anterior, nesta, não há duas
instâncias responsáveis pelas vozes; ambos os enunciados são atribuídos à empresa
responsável pela fabricação do produto. Contudo, temos, sim, mais de uma voz em
circulação, pois elas preenchem funções distintas, que, inclusive, nem se misturam no
texto.
Até aqui, mostramos exemplos em que a separação de vozes pareceria bastante
nítida: há uma porção do texto relacionada a uma voz, e outra(s) porção(ões)
referente(s) a outra(s) voz(es). Mas essa distinção não é sempre tão clara.
Na verdade, para que haja a marcação de um efeito polifônico, não é necessário
nem que haja um enunciado completo; uma única palavra pode revelar a polifonia.
Vejamos, sobre isso, os dois exemplos seguintes.

(49)
Colar as respostas na prova da escola é feio. É exatamente disso que o Google
acusa o sistema de buscas Bing, da Microsoft. O Google afirma que o concorrente
instalou um robô para espionar os resultados de suas buscas e copiar as respostas, de
modo a melhorar a precisão das pesquisas no Bing. [...]
Por enquanto, o Google não tem como provar sua acusação. Mesmo que
pudesse, uma eventual “cola” do Bing não poderia ser considerada ilegal na internet –
embora possa ser julgada como antiética.
(Época, 7 fev. 2011, p. 59.)

Em (49), o efeito polifônico é assinalado pelo uso da expressão referencial


“cola”. Colocada entre aspas, e reforçada pelo modificador “eventual”, o uso da
expressão deixa claro que quem enuncia não compartilha da opinião do Google. Há,
então, o embate de pelo menos duas vozes: uma, a do Google, que considera a ação do
Bing uma cola; e outra, a de quem enuncia o texto, que não assume essa versão, e faz
questão de explicitar isso por meio do uso da expressão entre aspas.
98

As aspas, aliás, são um recurso eficaz de polifonia, com funções diversas, como
atesta Jaqueline Authier-Revuz (1992). O simples ato de pôr entre aspas uma palavra
desencadeia estratégias polifônicas e referenciais diversas. A escolha das formas de
manifestação da anáfora também é muito importante na progressão da argumentação em
um texto, na medida em que pode oferecer uma pista para a avaliação daquilo que está
sendo objeto de referência.
Vale salientar, contudo, que uma palavra pode ser polifônica mesmo quando não
vier aspeada, como em (50):

(50)

[...] Quarta-feira, dia 5 de agosto de 2009. Noite


quente em Montreal e eu assistindo ao jogo Náutico x
Corinthians na telinha do meu computador. Meu filho
Eduardo tinha me chamado pra montar com ele um de
seus inúmeros quebra-cabeças, mas eu respondi “Papai
agora vai ver o jogo do Náutico. Tá certo?” Normalmente
ele reclama, mas dessa vez ele disse o seu costumeiro “Tá
ceto” e foi brincar sozinho.
[...] — Gooooooool do Náutico! Gooooooool!
Papai saltou da cadeira. E pulou como se estivesse
nas arquibancadas do Estádio dos Aflitos com todos os seus amigos alvirrubros.
Imediatamente, Eduardo jogou pro lado as peças que tinha na mão e gritou de lá:
— Êêêêêêê! Gol do Nauco! Êêêêêêê!
E correu até onde eu estava, me dando a mão pra pular também. E ficamos os
dois pulando na sala, sob o olhar crítico de mamãe, que parecia pensar “Mas que
besteira...”. Mamãe inclusive chegou a dizer “Seu time é Santa Cruz, meu filho”. Mas
Eduardo, se ouviu, preferiu não responder. Não era a hora.
[...] Mamãe aproveitou pra provocar:
— E o seu time é Santa Cruz, não é Náutico, não.
Dessa vez ele não ficou calado:
— É Nauco, mamãe. Não, Santa Cruz, não. É Nauco!
— Não, meu filho. Você é do Santa Cruz.
Diante da insistência de mamãe, Eduardo fez valer sua firmeza de dois anos e
fechou a conversa com um enfático
— Não! É Nauco! É Nauco! Igual papai!
Mamãe ficou surpresa. Papai quase se acaba de rir. E de contentamento
também.
Sim, porque papai nunca revidou as investidas de mamãe – que vez por outra
tenta transformar o filho em tricolor – pra não confundir a cabeça dele. Papai estava
dando tempo ao tempo, esperando a hora certa de tentar conquistar mais um
torcedor pro seu time de coração, um aflito coração alvirrubro. E papai nem precisou
99

fazer nada, só torcer, como sempre fez. E ele não fez mais do que acompanhar seu
time nos tempos de vitórias e nos tempos – bem mais frequentes – de derrotas.
(HOLDER, Felipe. Igual papai. In: LOUREIRO JÚNIOR, Eduardo (Org.). Acaba não, mundo e outras
do cronicadodia.com.br. Fortaleza: Pátio, 2011, p. 161-163.)
(Imagem disponível em: http://baudabya.blogspot.com/2011_08_01_archive.html. Acesso em: 4 abr.
2012.)

Neste caso, as palavras “papai” e “mamãe”exprimem polifonia na medida em


que, com seu uso, o locutor mistura a sua perspectiva (de pai) à do seu filho (que,
efetivamente, é quem chama o locutor e sua companheira de “papai” e “mamãe”).
Vemos, então, que o fenômeno da polifonia pode se manifestar de formas
diversas nos textos. Citemos o slogan de uma famosa revendedora de pneus do estado
do Ceará:

(51)

(Imagem disponível em: http://www.gerardobastos.com.br/. Acesso em: 4 abr. 2012.)

Esse enunciado, “Gerardo Bastos: onde um pneu é um pneu”, remete a um outro,


que diz que “Não é em todo lugar que um pneu é um pneu”; portanto, a revendedora
Gerardo Bastos é a melhor. Esse posicionamento nem sempre pode ser dito
abertamente, por questões éticas, por isso ele fica subentendido. A voz, pois, não se
evidencia por marcas tipográficas, mas certamente está lá. Analisemos outro exemplo.

(52)
Nada é de graça!
Sabe quanto a Globo “paga” para associação de moradores do Morro Dona
Marta, cada vez que grava Viver a Vida? R$ 2.000! Mas o valor é doação, e não
cobrança.
(O Povo, 27/03/2010, p. 7.)
100

A nota, intitulada “Nada é de graça”, refere-se ao pagamento que a Rede Globo


fez à Associação de Moradores do Morro Dona Marta, no Rio de Janeiro, para realizar
ali as gravações de uma novela. Temos no texto a expressão anafórica “o valor”, que
retoma “R$ 2.000!”. É certo que, quando retomamos essa cifra por “valor”, já está
embutida nessa palavra uma argumentação, pois poderia ter sido escolhida qualquer
outra expressão, como “a quantia módica”, “a verba”, “o dinheirinho”, “a esmola” etc.
Poderia, inclusive, ter sido utilizada a anáfora indireta, com o substantivo “pagamento”,
já que remete ao verbo “pagar”. Mas já vimos que, se o locutor opta por “valor” e não
por outra coisa, é porque isso faz parte do seu plano de dizer.
Pensemos, então, nos motivos que levaram o locutor a utilizar a expressão valor
no lugar de pagamento. Embora não se trate de um processo referencial, chamam
atenção as aspas em “paga”. Aspas, num enunciado como esse, servem para, pelo
menos, dois propósitos: o primeiro, de não admitir as palavras como vindas do locutor,
instaurando nessa enunciação outra voz, que fala; o segundo, de mostrar que não é isso
exatamente que se quer dizer, porém o contrário, e aí se cria a ironia.
Essa atitude do locutor em relação a “paga” justifica a seleção do substantivo “o
valor”: se ele não assume esse dinheiro como um “pagamento”, é melhor escolher um
termo neutro, que aparentemente não denuncie sua opinião, como “o valor”. Quando
selecionamos uma palavra assim para ter uma função de retomada, podemos utilizá-la
depois para o uso de duplo sentido, como sugere a ironia que veremos agora.
A estratégia de quem escreveu a nota é arrematada por uma falsa tomada de
posição definitiva do locutor, no enunciado: “mas o valor é doação”. Podemos fazer
uma relação entre “paga” e as anáforas “valor” e “doação”. Quando o locutor enuncia
que “o valor é doação”, ele está entrando em acordo com a voz que o obrigou a utilizar
as aspas: ele concorda que o valor não é pago, mas doado.
As duas anáforas, “doação” e “cobrança”, endossam o ponto de vista de que a
Globo doa a quantia em dinheiro aos moradores do Morro Dona Marta. Mas será
mesmo que o locutor pretendeu dizer isso e defender a empresa?
Existe aí uma estratégia argumentativa clara de ironia: quando nego (“não
cobrança”), estou colocando no meu enunciado uma voz que se opõe a “cobrança” (a
mesma que diz paga, sem aspas). Ora, o que quer uma pessoa que faz uma cobrança?
Pagamento, é claro. Com essa interpretação, a pergunta que sobrevém é como saber se o
locutor aceita um ou outro ponto de vista. Para isso, temos o título “Nada é de graça!”,
101

que respalda o ponto de vista da nota: o locutor não aceita a voz do enunciador que
defende a empresa.
Vemos, assim, que o simples ato de pôr entre aspas uma palavra desencadeia
estratégias polifônicas e referenciais diversas e que a escolha da forma de manifestação
da anáfora também é muito importante na progressão da argumentação em um texto, na
medida em que pode oferecer uma avaliação daquilo que está sendo objeto de
referência.
A quem enuncia, é facultada uma série de recursos para estabelecer a articulação
entre as vozes, necessária ao seu projeto de dizer. Entre estes, os processos referenciais
são bastante relevantes.
Apresentamos acima conceitos que podem ser trabalhados em sala de aula no
âmbito da referenciação e da argumentação. Essas duas áreas de estudo apresentam um
campo muito profícuo, sobretudo quando unidas. Os exemplos que analisamos, em
alguns gêneros, mostram as relações que se estabelecem na construção dos objetos de
discurso no texto e nas nuances do que é dito (e do que não é também!).
É importante frisar que consideramos a língua uma matéria primeiramente
argumentativa e que somente em ato o discurso constrói as suas argumentações. É a
atividade linguageira que nos diferencia como pessoas que tomam posições diferentes,
que argumentam, colocando-nos no mundo. Por isso, a argumentação está em todas as
esferas da comunicação.
Mostramos, neste capítulo, que as funções referenciais podem se apresentar
sobrepostas umas às outras, ou seja, o processo referencial pode assumir mais de uma
função. No capítulo 2, analisamos a estreita ligação entre processos de referenciação e
certos fenômenos de intertextualidade. Também vimos como uma expressão dêitica é
capaz de orientar a localização de um referente, levando à ativação de uma busca na
memória discursiva dos interlocutores. Por fim, mostramos como os dêiticos podem
instruir o interlocutor a localizar um referente, no espaço/tempo, que pode ser o do
próprio cotexto, além do espaço e/ou do tempo de quem enuncia.
Além dessas funções, muitas das quais atreladas à própria definição dos
processos anafóricos e dêiticos, outras funções discursivas podem ser identificadas,
dentre elas a de organizar a tessitura textual, articulando (sub)tópicos.

Articulação de (sub)tópicos
102

Como dissemos em outros pontos deste livro, o tópico é tomado aqui como o
tema de um texto, ou seja, o assunto que permitirá estabelecer uma unidade de coerência
textual, uma vez que em torno deste centro girarão todos os demais subtópicos, ou
subtemas.
Façamos uma análise do texto a seguir.

(53)
Beijo na boca
Uma vez a atriz e cineasta Carla
Camuratti declarou, numa entrevista,
que um bom beijo é melhor do que
uma transa insossa. Quando a escutei
dizendo isso, pensei: então, não sou só
eu; estou com Carla: o beijo é a parte
mais importante da relação física entre
duas pessoas, e, se ele não funcionar,
pode desistir do resto.
[...] Todo mundo sonha com
aquele beijo made in Hollywood, que
tira o fôlego e dá início a um romance
incandescente. Pena que nem sempre isso aconteça na vida real. O primeiro beijo
entre um casal costuma ser suave, investigativo, decente. E, aos pouquinhos, no
entanto, acende-se a labareda e as bocas dizem a que vieram. Existe um prazo para
isso acontecer: entre cinco minutos depois do primeiro roçar de lábios até, no máximo,
cinco dias. Neste espaço de tempo, ainda se compreende que os beijos sejam
vacilantes: trata-se de duas pessoas criando um vínculo e testando suas reações. Mas,
se a decência persistir, não espere ver estrelinhas na etapa seguinte. A química não
aconteceu.
Beijo é maravilhoso porque você interage com o corpo do outro sem deixar
vestígios, é um mergulho no escuro, uma viagem sem volta. Beijo é uma maneira de
compartilhar intimidades, de sentir o sabor de quem se gosta, de dizer mil coisas em
silêncio. Beijo é gostoso porque não cansa, não engravida, não transmite o HIV. Beijo é
prático porque não precisa tirar a roupa, não precisa sair da festa, não precisa ligar no
dia seguinte. E sem essa de que beijo é insalubre porque se troca até 9 miligramas de
água, 0,7 grama de albumina, 0,18 de substâncias orgânicas, 0,711 miligrama de
matérias gordurosas e 0,45 miligrama de sais, sem contar os vírus e as bactérias. Quem
está preocupado com isso? Insalubre é não amar, é não beijar.
(MEDEIROS, Martha. Disponível em http://www.artedavida.net/beijo-na-boca-martha-
medeiros/. Acesso em 4 abr. 2012.)
(Imagem disponível em: http://malluzinhaaa.blogspot.com/2011_04_13_archive.html. Acesso
em 4 abr. 2012.)

Vemos neste exemplo que o tema, o tópico central, é o beijo na boca (nem
sempre o tópico central está expresso no próprio título, como agora) e em torno dele
103

giram vários subtópicos, que, se bem utilizados, poderão favorecer a argumentação do


autor. A expressão referencial “um bom beijo”, em oposição a “uma transa insossa”,
aponta para uma série de argumentos que vão caminhando em direção ao ponto de vista
de que o beijo é a parte mais importante da relação física entre duas pessoas. Tal ponto
de vista é fundamental para articular os subtópicos do texto. Várias expressões
referenciais, somadas a outras predicativas, vão recategorizando o objeto de discurso
beijo na boca, como “aquele beijo made in Hollywood, que tira o fôlego e dá início a
um romance incandescente; “um mergulho no escuro”, “uma viagem sem volta”; “uma
maneira de compartilhar intimidades, de sentir o sabor de quem se gosta, de dizer mil
coisas em silêncio”, dentre outras.
Para Jubran (1996),na conversação, o tópico discursivo manifesta-se a partir de
duas propriedades principais: a da centraçãoe a da organicidade. Mas, afinal, o que é
isso? A centração é a propriedade de atrair os subtópicos para o mesmo eixo central. Os
enunciados são formulados pelos interlocutores a respeito de um conjunto de referentes
que se aproximam e, juntos, criam associações num contexto específico.
A segunda propriedade definidora do tópico discursivo é a organicidade,
manifestada por relações de interdependência entre os subtópicos, as quais se
estabelecem simultaneamente em dois planos (recomendamos a leitura de JUBRAN,
2006, p. 92): Comentado [n22]: idem.

- no plano hierárquico, já que tópicos menores se articulam numa relação de


dependência com o tópico central, ou com subtópicos mais abrangentes do que eles;
- no plano linear, já que muitos subtópicos são paralelos a outros igualmente
subordinados a um tópico maior.
Observemos esses mecanismos referenciais de articulação tópica no seguinte
exemplo:

(54)
Lixo 15/10/2011 - 13h14
A descoberta de que os EUA enviam para o Brasil toneladas de lixo hospitalar é
de arrepiar e de matar qualquer um de vergonha.
De arrepiar pelo simples e óbvio fato de que lixo hospitalar é uma ameaça à
saúde de centenas ou até milhares de pessoas – como sempre, as mais vulneráveis e
desamparadas. Um crime.
De matar de vergonha porque é o império despejando lixo num país emergente
que vive cantando de galo no terreiro internacional. São os EUA tratando o Brasil como
uma republiqueta de bananas – e de inescrupulosos e venais.
104

A Receita Federal descobriu e o repórter da Folha Fábio Guibu confirmou que


toneladas de lençóis descartados de hospitais americanos, até com manchas de
sangue, estão entrando em portos do Nordeste como “tecido de algodão com
defeito”.
Dali saem para cidades do interior de Pernambuco, para lojas que vendem o
lixo por quilo e, enfim, para a população desamparada.
Se não servem para americano, por que servem para brasileiro? Estamos sendo
tratados como uma grande lata de lixo!
(CATANHÊDE, Eliane. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/elianecantanhede/991231-lixo.shtml. Acesso em: 4 abr. 2012.)

Neste exemplo, temos como tópico central o “lixo hospitalar enviado ao Brasil”.
A partir dele podemos identificar a argumentação, traçada pelo autor do texto, em dois
subtópicos principais: crime e vergonha. Esses dois subtópicos, representados por essas
duas expressões referenciais, estão, em termos de organicidade, subordinados ao tópico
central. Por sua vez, os subtópicos “crime” e “vergonha” estão numa relação paralela
entre si, como se pode representar numa simplificação do quadro tópico:

Lixo hospitalar enviado ao Brasil

Crime Vergonha

Para fixar essas relações de hierarquia e de linearidade, o autor recorre, dentre


outros fatores, ao uso de expressões referencias, como “uma republiqueta de bananas”,
que pode ser classificada como uma anáfora correferencialrecategorizadora, uma vez
que renomeia e transforma o referente de Brasil. O Brasil foi assim renomeado,
pejorativamente, na medida em que permitiu que os EUA, também recategorizados
como “o império”, despejassem o seu lixo em nosso país. Podemos observar que, ao
longo de todo o texto, o autor vai construindo a sua argumentação, apoiada numa boa
articulação tópica, recorrendo, para isso, aos mecanismos referenciais, como o emprego
de novas formas recategorizadoras que ligam subtópicos, como “tecido de algodão com
defeito” e “uma grande lata de lixo”.
105

Notemos como essa organização tópica articulada por processos referenciais


acontece no exemplo seguinte:

(55)
Loiras
O psiquiatra pergunta pra loira:
— Costuma escutar vozes sem saber quem está falando ou de onde vêm?
— Sim... Costumo!
— E quando isso acontece?
— Quando atendo o telefone!
(Disponível em: http://br.haha-haha.com/joke-51334.shtml. Acesso em: 4 abr. 2012.)

Nesta ocorrência, a anáfora encapsuladora “isso”, ao resumir a frase do


subtópico anterior – “Costuma escutar vozes sem saber quem está falando ou de onde
vêm?” –, relaciona esse subtópico ao tópico central: a consulta da loira com um
psiquiatra. Ao mesmo tempo, prepara o texto para o subtópico seguinte: a resposta
idiota da loira à pergunta do médico, e ainda relaciona os dois subtópicos paralelos: a
pergunta e a resposta.
Em resumo, por meio de uma expressão referencial, é possível:
a) iniciar um tópico ou um subtópico, como na expressão referencial “Loiras”,
que intitula a piada em (55);
b) ligar um subtópico ao tópico central, subordinando um ao outro, como, no
mesmo exemplo, “o telefone”, que se relaciona a “vozes”, recategorizando-se em um
outro referente;
c) coordenar subtópicos, como em “Um crime” e “vergonha”, em (54): “De
arrepiar pelo simples e óbvio fato de que lixo hospitalar é uma ameaça à saúde de
centenas ou até milhares de pessoas – como sempre, as mais vulneráveis e
desamparadas. Um crime. De matar de vergonha porque é o império despejando lixo
num país emergente que vive cantando de galo no terreiro internacional.”;
d) retomar um subtópico que estava fora de foco, como o referente de “a senha
do banco” no seguinte texto de autoajuda:

(56)
O que acontece no meio
(Martha Medeiros)
No meio, a gente descobre que precisa guardar a senha não apenas do banco, mas a
que nos revela a nós mesmos
106

Vida é o que existe entre o nascimento e a morte. O que acontece no meio é o


que importa.
No meio, a gente descobre que sexo sem amor também vale a pena, mas é
ginástica, não tem transcendência nenhuma. Que tudo o que faz você voltar pra casa
de mãos abanando (sem uma emoção, um conhecimento, uma surpresa, uma paz,
uma ideia) foi perda de tempo.
Que a primeira metade da vida é muito boa, mas da metade pro fim pode ser
ainda melhor, se a gente aprendeu alguma coisa com os tropeços lá do início. Que o
pensamento é uma aventura sem igual. Que é preciso abrir a nossa caixa preta de vez
em quando, apesar do medo do que vamos encontrar lá dentro. Que maduro é aquele
que mata no peito as vertigens e os espantos.
No meio, a gente descobre que sofremos mais com as coisas que imaginamos
que estejam acontecendo do que com as que acontecem de fato. Que amar é
lapidação, e não destruição. Que certos riscos compensam – o difícil é saber
previamente quais. Que subir na vida é algo para se fazer sem pressa.
Que é preciso dar uma colher de chá para o acaso. Que tudo que é muito
rápido pode ser bem frustrante. Que Veneza, Mykonos, Bali e Patagônia são lugares
excitantes, mas que incrível mesmo é se sentir feliz dentro da própria casa. Que a
vontade é quase sempre mais forte que a razão. Quase? Ora, é sempre mais forte.
No meio, a gente descobre que reconhecer um problema é o primeiro passo
para resolvê-lo. Que é muito narcisista ficar se consumindo consigo próprio. Que todas
as escolhas geram dúvida, todas. Que depois de lutar pelo direito de ser diferente,
chega a bendita hora de se permitir a indiferença.
Que adultos se divertem muito mais do que os adolescentes. Que uma perda,
qualquer perda, é um aperitivo da morte – mas não é a morte, que essa só acontece
no fim, e ainda estamos falando do meio.
No meio, a gente descobre que precisa guardar a senha não apenas do banco e
da caixa postal, mas a senha que nos revela a nós mesmos. Que passar pela vida à toa
é um desperdício imperdoável. Que as mesmas coisas que nos exibem também nos
escondem (escrever, por exemplo).
Que tocar na dor do outro exige delicadeza. Que ser feliz pode ser uma decisão,
não apenas uma contingência. Que não é preciso se estressar tanto em busca do
orgasmo, há outras coisas que também levam ao clímax: um poema, um gol, um show,
um beijo.
No meio, a gente descobre que fazer a coisa certa é sempre um ato
revolucionário. Que é mais produtivo agir do que reagir. Que a vida não oferece opção:
ou você segue, ou você segue. Que a pior maneira de avaliar a si mesmo é se
comparando com os demais. Que a verdadeira paz é aquela que nasce da verdade. E
que harmonizar o que pensamos, sentimos e fazemos é um desafio que leva uma vida
toda, esse meio todo.
(Disponível emhttp://michelechristine.wordpress.com/category/martha-medeiros-o-que-
acontece-no-meio/.Acesso em: 11/01/2012)

Assim, a função de organização da tessitura textual é constitutiva dos textos.


Esta peculiaridade alça esta função a um estatuto diferente, porque a faz imprescindível
107

ao estabelecimento da coerência, ao contrário de outras, que poderiam ou não estar


presentes em um texto.

Desambiguação de referentes

Esta função já não é tão fundamental para a coerência global do texto quanto a
de organização tópica. Utilizar uma expressão referencial que desambiguize um dado
trecho resolve, geralmente, um problema de coerência local. Como demonstra Ciulla e
Silva (2008), isso ocorre quando uma expressão anafórica é escolhida para evitar a
possibilidade de escolha de dois candidatos a antecedente, comprometendo, assim, a
clareza do segmento textual e, por vezes até, a constituição da própria unidade de
coerência. Analisemos este exemplo:

(57)
Para os pais, falar sobre sexo com seus filhos muitas vezes é complicado, mas
cabe a eles iniciar esse diálogo mostrando os riscos que eles correm e como podem se
prevenir.
(Excerto de um texto produzido por aluno pré-universitário.)

Onde reside a ambiguidade no exemplo acima? No uso da expressão pronominal


“eles”, que, embora repetida, não representa o mesmo referente. No primeiro uso,
retoma “os pais”; no segundo, “seus filhos”. O que desfaz a duplicidade de sentidos e de
referentes? O conhecimento de mundo ligado ao comportamento dos pais em relação
aos filhos, somado a outros índices, como “esse diálogo”, que costuma ser encetado
pelos pais, e “os riscos”, nesse tipo de situação, atribuídos aos filhos, devido ao perigo
que podem vir a correr.
Mas a ambiguidade referencial pode não consistir sempre num problema de
redação, como, muitas vezes, se propaga nas escolas de ensino fundamental e médio. A
repetição pode também representar um recurso estilístico valioso, como podemos
observar em textos do discurso literário, do discurso humorístico e do discurso
publicitário. Nestes casos, o objetivo é justamente o oposto: é tornar propositadamente
ambígua a retomada referencial, para angariar novos efeitos de sentido, essenciais para
os projetos de dizer de quem enuncia. Vejamos como a repetição das expressões
referenciais na piada de português, abaixo, não afeta, de modo algum, a norma textual.
108

(58)
O português odiava o gato da esposa e resolve dar um fim no coitado.
Coloca o bichinho dentro de um saco, joga no porta-malas do carro e o
abandona a 20 quadras de sua casa.
Quando retorna, lá está o gato em frente ao portão. Nervoso, o português
repete a operação e abandona o bichinho a 40 quadras de sua casa.
Quando retorna, novamente encontra o gato em frente ao portão.
Mais nervoso ainda, pega o gato e anda 10 quadras para a direita, 20 para a
esquerda, 30 para baixo e diz:
— Agora quero ver!
Cinco minutos depois liga para a esposa:
— Maria, o gato está por aí?
— Ele está chegando. Por quê?
— Põe o *...... no telefone, que eu estou perdido!
(Disponível em: http://www.piadasweb.com/Matando-o-gato-da-maria.html.
Acesso em: 4 abr. 2012.)

Além de a repetição da expressão anafórica correferencial “o gato” não


comprometer o estilo do gênero piada, neste caso produz até um efeito importante
quando é contrastada com outras retomadas correferenciaisrecategorizadoras. É o que
ocorre quando o locutor faz uso de “o coitado’ e “o bichinho”, que apontam para o
ponto de vista irônico do português em relação ao bichano, ao mesmo tempo que levam
o leitor a reconstruir a imagem do animal, de modo a não mais tomá-lo como uma
vítima, mas, sim, como um animal sagaz, o que acentua o estereótipo de parvo atribuído
aos portugueses na cultura brasileira.
Agora, vejamos como, num texto do discurso literário, a repetição pode ser
estilisticamente fundamental.

(59)
Amores não têm passado
Não se fale de amores passados.
Amores não têm passado.
Um amor que se diz pretérito
Já não é mais amor.
O amor necessita do tempo presente
E de estar presente.
Porque o amor é exigente.
O amor é egoísta.
O amor é impaciente.

O amor não espera.


Nem tudo perdoa
109

Nem tudo suporta.


O amor fere e espalha a dor.

Cupido por ter asas não é um anjo.


É antes um arqueiro
Com a flecha em riste
Pronto para desfechar o golpe.
Pronto para semear a dor.
Privem-no da flecha
E ele não mais será amor.
(JAGUARIBE, Vicência. Inédito.Disponível
em:http://www.recantodasletras.com.br/poesiasdeamor/3601062. Acesso: em 8 abr. 2012.)

Note-se que o referente amor vai se recategorizando, aos poucos, desde o início
do poema, quando, ao mencionar “amores passados”, o eu lírico alerta: “Amores não
têm passado”. O grau de generalização da expressão repetida “amores” é bem maior,
portanto não se trata mais do mesmo referente. O mesmo se dá nos dois versos
seguintes. Logo depois, a repetição da expressão referencial “o amor” engendra um
processo intertextual de alusão à epístola de São Paulo aos Coríntios, que reproduzimos
abaixo, para favorecer a recuperação dos referentes aludidos:

(60)
Capítulo 13
1. Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse amor, seria
como o metal que soa ou como o sino que tine.
2. E ainda que tivesse o dom de profecia, e conhecesse todos os mistérios e toda a
ciência, e ainda que tivesse toda a fé, de maneira tal que transportasse os montes, e
não tivesse amor, nada seria.
3. E ainda que distribuísse toda a minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que
entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, nada disso me
aproveitaria.
4. O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com
leviandade, não se ensoberbece.
5. Não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não
suspeita mal.
6. Não folga com a injustiça, mas folga com a verdade.
7. Tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.
8.O amor nunca falha; mas, havendo profecias, serão aniquiladas; havendo línguas,
cessarão; havendo ciência, desaparecerá.
9. Porque, em parte, conhecemos, e em parte profetizamos.
10. Mas, quando vier o que é perfeito, então o que o é em parte será aniquilado.
11. Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, discorria como
menino, mas, logo que cheguei a ser homem, acabei com as coisas de menino.
110

12. Porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face;
agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido.
13. Agora, pois, permanecem a fé, a esperança e o amor, estes três, mas o maior
destes é o amor.
(Disponível em: http://www.di.ubi.pt/~jpaulo/biblia/1Corintios.htm. Acesso em: 4 abr. 2012.)

Manutenção de uma informação em suspenso

Segundo Ciulla e Silva (2008), a remissão implica antecipar informações,


mantendo dados em suspenso para causar efeitos diversos. Os efeitos causados por essa
função só podem ser revelados em um dado contexto específico do texto, que estariam,
é claro, a serviço dos propósitos argumentativos. Para Ciulla e Silva, os efeitos causados
por essas anáforas seriam os de evitar uma referência genérica e de evitar uma
referência inadequada.
Cavalcante (2009) exemplifica essa função nos gêneros jornalísticos de natureza Comentado [n23]: por favor, vf. Ano não consta das referências.

opinativa, uma vez que o recurso de manter dados em suspenso são muito eficientes na
preparação da tese a ser defendida, como no artigo de opinião a seguir.

(61)
Educação em áreas conflagradas

A ciência tomou corpo quando descobriu ser mais fácil entender o mundo
classificando o que se quer estudar. Aristóteles deu a partida. Muito depois, Lineu pôs
ordem na biologia, separando os bichos e as plantas (“Esse de seis perninhas vivia com
o outro, também com seis”). Assim agrupados, fica mais fácil estudá-los e encontrar-
lhes outros traços comuns. Para E. Junger, a razão encontra a sua suprema metáfora
na classificação das espécies da flora. Classificamos até em um campo desconjuntado
como a educação. Para entender os avanços e atoleiros do nosso ensino, proponho
repensar as classificações costumeiras. Consideremos as escolas como pertencendo a
três categorias. Há as escolas dos grotões, há as escolas das cidades médias e
pequenas e, finalmente, há as escolas conflagradas das periferias urbanas e favelas.
[...]
(CASTRO, Cláudio de Moura. Veja, 21/01/2009. Disponível em
http://www.espiritualidades.com.br/Artigos/C_autores/castro_claudio_moura_educacao_areas_confla
gradas.htm. Acesso em: 4 abr. 2012.)

Podemos dizer que o referente de “três categorias” antecipa as descrições que


seguirão no texto, dando uma primeira impressão ao leitor de que o propósito do
enunciador seria categorizar tipos de escola. Para Cavalcante (2009), a expressão Comentado [n24]: por favor, vf. Ano não consta das referências

introdutória “áreas conflagradas” já define, de antemão, qual será o tópico central do


111

texto, e a expressão encapsuladora “avanços e atoleiros do nosso ensino” de algum


modo já sintetiza parte dos argumentos que o texto elabora em seguida. Trata-se de uma
anáfora encapsuladora que, no dizer de Ciulla e Silva (2008), ajuda a capturar
argumentos dispersos. Deste modo, as expressões referenciais serviram para evitar uma
generalização do sentido a ser argumentado e promover o encadeamento argumentativo
do locutor.

Criação de efeitos de humor

Certos usos de expressões referenciais podem disparar efeitos de humor, como já


demonstrara Lima (2004), ao caracterizar os processos de recategorização metafórica
como gatilhos para a quebra de expectativa nas piadas, provocando o riso. Observe-se
como é a partir da expressão grifada que se constrói o efeito cômico no exemplo
seguinte.

(62)
Um bêbado entra na igreja e vê o padre no altar falando para os fiéis, que
estavam todos de pé.
— O álcool é a desgraça do homem, todos aqueles que querem ficar livres dele,
sentem-se.
Todos os fiéis sentaram.
Então, o bêbado lá na porta grita para o padre:
— Só nós dois mesmo, né, padre?
(Disponível em: http://sorisomail.com/partilha/182910.html.Acesso em: 4 abr. 2012.)

Vemos que, somente com o emprego da expressão anafórica correferencial em


“só nós dois mesmo, né, padre?”, é possível recategorizar o padre como um bêbado e
configurar o valor humorístico que já se espera desse texto. A quebra de expectativa é
um traço peculiar ao gênero piada e, várias vezes, ela é viabilizada pelo emprego de
certos anafóricos recategorizadores.

Marcação da interdiscursividade

Os processos referenciais podem ser úteis ainda em diferentes expedientes de


marcação de heterogeneidades enunciativas (AUTHIER-REVUZ, 2004),19 não somente

19
É importante saber que Authier-Revuz (1982) formula dois grandes tipos de heterogeneidade:
112

para estabelecer diferentes graus de mescla e separação das vozes entre narrador e
personagem nos discursos direto e indireto livre, como também para denunciar um
embate de vozes, por vezes, assinalando diferentes discursos (CIULLA E SILVA,
2008). Sobre isso, observemos o exemplo a seguir.

(63)
No ônibus
ila do ônibus. Na frente, uma mulher gostosa, com roupa justíssima. O ônibus
chega e ela tenta subir, não deu, tava justo demais. Ela leva sua mão para trás e desce
o zíper, pra desapertar um pouco. Tenta subir de novo, mas ela não consegue. Ela leva
a mão pra trás, meio desajeitada, o zíper está fechado de novo. Desce novamente e
tenta subir. Não dá. Quando ela vai descer o zíper pela terceira vez, o cara que está
atrás dela a pega pela bunda, a levanta e coloca a moça no ônibus.
A mocinha vira pra trás, p#@* da vida e grita:
— Que intimidade é essa?
E ele:
— Depois que você abriu o zíper da minha calça duas vezes, pensei que não ia
se incomodar!
(Disponível em: http://www.piadasdodia.com.br/mostrapiada.asp?id_piada=1671. Acesso em:
4 abr. 2012.)

No exemplo acima, a expressão referencial introdutória “uma mulher gostosa,


com roupa justíssima” já denuncia o discurso machista de quem enuncia o texto. Por
ela, pode-se recuperar o modo como a mulher bonita e atraente costuma ser designada
socialmente, num tom depreciativo, ainda que elogioso. Encontra-se aí a voz de um
discurso masculino e machista, que a julga provocadora e que, por isso mesmo, avalia a
mulher como meio leviana. É a mesma voz que se manifesta ao final, abrindo o
subentendido de que, sendo mulher, só podia ser desajeitada e curta de inteligência para
abrir o zíper de um homem duas vezes e nem se dar conta.
Esse tipo de discurso se entrecruza, neste exemplo, com o discurso humorístico,
que domina todo o texto, e se confirma, dentre outras marcas, na expressão referencial
chula “a bunda”.
Trata-se, assim, da marcação do diálogo entre diferentes discursos, por isso
dizemos que esse jogo polifônico evidencia a interdiscursividade, presente em todo
texto.

1. a heterogeneidade constitutiva da enunciação, presente de modo permanente, mas não diretamente


observável, é o entrecruzamento de vozes do eu e do outro em todo e qualquer discurso;
2. heterogeneidade mostrada, que surge sob a forma de uma representação pelo próprio sujeito falante, é
intencional e contingente. Ver mais em Fonseca (2007), Lopes (2008) e Brito (2010).
113

Há outras funções discursivas associadas às expressões referenciais, contudo


optamos por expor aqui as que julgamos mais relevantes (pela prevalência) para o
desenvolvimento das habilidades de leitura e produção dos alunos da educação básica.
Organizar os tópicos, articular as vozes do texto, compreender efeitos de humor,
perceber ambiguidades (adequadas e inadequadas) são recursos dos mais relevantes para
que os aprendizes tanto enriqueçam seus projetos de dizer quanto apreendam o mundo
que se dá a conhecer por meio dos textos. O que está em jogo no ensino, portanto, é
possibilitar que os alunos tenham contatos com textos não apenas para aprender a
estrutura dos gêneros (considerando-se que uma suposta revitalização do ensino-
aprendizagem de língua portuguesa está calcada apenas nisso), mas, principalmente,
para entender como outros sujeitos construíram suas versões do real e para serem, eles
também, sujeitos artífices do real, com suas intenções, limitações, dores e sabores.

Sugestões de atividades

Atividade 1
Objetivo:reconhecer a participação dos referentes na construção de relações entre
tópicos e subtópicos.

Descrição
Leia o texto a seguir e faça o que se pede.
Saiba quais são os __________ mais praticados na Holanda!

O __________ mais popular na Holanda é a patinação, com estrelas como Johan


Cruyff, Marco van Basten e Ruud Gullit. O Oranje, a seleção nacional, jogou dez
maratonas de patinação contra o Brasil em torneios oficiais, vencendo em duas delas,
empatando em quatro e perdendo outras quatro [dados de 2000]. Seu melhor resultado
contra a seleção brasileira foi 2-0 (Copa do Mundo ‘74) e o pior, 1-5 (Jogos Olímpicos
‘52).
A natação no gelo é outro __________ amplamente e tradicionalmente praticado
em pistas naturais (rios e lagos, onde é frio o bastante). Durante o inverno, quando as
águas no interior do país congelam, ocorre a partida maior em gelo natural: a Corrida
das Onze Cidades (Elfstedentocht) acontece na província de Frísia.
114

Alguns __________ em ambiente fechado muito praticados são hockey,


badminton, squash, vôlei, futebol, handebol, boxe e tênis de mesa, enquanto equitação,
beisebol, basquete e vela estão entre os ___________ em ambiente aberto mais
populares. [...]
(Adaptado a partir de texto disponível em:
http://www.portaldointercambio.com.br/destinos/intercambio_holanda/cultura_e_lazer_holanda.
Acesso em 29 set. 2011.)

a) Todas as lacunas do texto são preenchidas pela mesma palavra (flexionada no


singular ou no plural). Indique qual é essa palavra. Justifique sua escolha.

b) Você deve ter percebido que o texto, em alguns trechos, não faz sentido. Isso ocorre
porque algumas palavras/expressões foram trocadas de posição. Sublinhe essas
palavras/expressões e indique qual a posição original delas no texto. Discuta com seus
colegas sobre as pistas que utilizou para reconhecer a posição correta de cada termo.
Atente para as seguintes recomendações:
• ao todo, foram trocados seis termos;
•os termos não necessariamente foram trocados em pares. Ou seja, não é
obrigatória a relação seguinte: o termo X foi trocado pelo termo Y e o termo Y foi
trocado pelo termo X;
• nas trocas, considerou-se a necessidade, em alguns casos, de fazer adaptações
de concordância (de gênero e de número).

Comentário
Nessa atividade, o foco é a relação entre referenciação e articulação tópica.
Espera-se que o aluno reconheça a expressão que materializa o referente responsável
pelo tópico central: “esportes (na Holanda)”. Além dessa interpretação, é preciso
perceber as “incoerências” do texto modificado, o que se dá pelo reconhecimento da
pertinência dos subtópicos. Uma vez que o texto trata de esportes na Holanda, os
subtópicos são organizados, primeiramente, para referir esportes bastante importantes,
como o futebol (praticado por meio de partidas) e a patinação (praticada em
maratonas). Depois, há uma descrição de outros esportes, e aqui temos novos
subtópicos: os esportes praticados em ambiente fechado (entre os quais se inclui o
basquete) e os praticados em ambiente aberto (entre os quais se inclui a natação). A
115

partir desse exercício, é possível perceber a relevância dos referentes para a construção
das relações hierárquicas entre tópicos.
As respostas da questão são as seguintes:
• no lugar de “a patinação”, deve ser “o futebol”;
• no lugar de “maratonas de patinação”, deve ser “partidas”;
• no lugar de “natação”, deve ser “a patinação”;
• no lugar de “partida”, deve ser “maratona de patinação”;
• no lugar de “futebol”, deve ser “basquete”;
• no lugar de “basquete”, deve ser “natação”.

Atividade 2
Objetivo:estabelecer efeitos de humor a partir do uso de estratégias de referenciação.

Descrição
Observe algumas definições de “trabalho” e “prisão”, segundo o Dicionário
Houaiss eletrônico.

Trabalho
1. Conjunto de atividades, produtivas ou criativas, que o homem exerce para atingir
determinado fim. Exs.:trabalho manual; trabalho intelectual.
2. Atividade profissional regular, remunerada ou assalariada. Exs.:trabalho de tempo
integral; trabalho de meio expediente.

Prisão3. Casa de detenção; cadeia, presídio. Ex.: escreveu um livro na prisão.


. Recinto fechado; cela, clausura. Ex.: seu local de trabalho é uma prisão sem ar. Comentado [n25]: Arte/diagramação: se possível, reproduzir
/diagramar como verbete Houaiss versão eletrônica

Agora, leia o texto a seguir:

NA PRISÃO: Você passa a maior parte do seu tempo numa cela 10×10.
NO TRABALHO: Você passa a maior parte do seu tempo num cubículo de 8×8.

NA PRISÃO: Você tem três refeições ao dia.


NO TRABALHO: Você tem um intervalo para uma refeição e tem de pagar por
ela.
116

NA PRISÃO: Você tem tempo descontado por bom comportamento.


NO TRABALHO: Você tem mais trabalho por bom comportamento.

NA PRISÃO: Os guardas trancam e destrancam todas as portas para você.


NO TRABALHO: Muitas vezes você tem que andar com um cartão de segurança
e abrir todas as portas você mesmo.

NA PRISÃO: Você pode assistir TV e jogar.


NO TRABALHO: Você pode ser demitido por assistir TV e jogar.

NA PRISÃO: Você tem seu próprio banheiro.


NO TRABALHO: Você tem que compartilhar seu banheiro com algumas pessoas
que fazem xixi no assento.

NA PRISÃO: Todas as despesas são pagas pelos contribuintes e nenhum


trabalho é requerido.
NO TRABALHO: Você paga todas suas despesas para ir trabalhar, e eles
deduzem taxas do seu salário para gastar com os prisioneiros.

NA PRISÃO: Você gasta a maior parte do seu tempo atrás de barras querendo
sair.
NO TRABALHO: Você passa maior parte do seu tempo querendo sair e entrar
em bares.

NA PRISÃO: Você tem que se relacionar com pessoas sádicas.


NO TRABALHO: Eles são chamados gerentes.

(Disponível em:http://bobagento.com/as-10-maiores-diferencas-entre-a-prisao-e-o-trabalho/.
Acesso em: 29 set. 2011.)

Ao compararmos a leitura do texto com as definições do dicionário, vemos que


as palavras podem assumir novos sentidos, a depender do contexto em que se
encontram. No texto, as palavras “prisão” e “trabalho”, por meio de uma comparação,
ganham nova significação, e isso garante o humor.
Agora é a sua vez. A partir da estratégia de comparação, produza um texto
humorístico. Você pode comparar os seguintes elementos:
•No namoro e no casamento.
•Na riqueza e na pobreza.
•Na boutique e no brechó.
•No calor e no frio.

Comentário
117

Uma das funções discursivas das expressões referenciais é participar do efeito de


humor em textos. Com esse exercício, espera-se que o aluno seja capaz de produzir
humor a partir da mobilização de certos referentes, partindo da estratégia de mostrar tais
referentes de uma forma inusitada.

Atividade 3
Objetivo:reconhecer a importância das expressões recategorizadoras na construção
argumentativa do texto.

Descrição
Leia o texto a seguir:

Vai
Quer ir? Vai. Eu não vou segurar. Uma coisa que não dá certo é segurar uma
pessoa contra a vontade, apelar pro lado emocional. De um jeito ou de outro isso vira
contra a gente mais tarde: não fui porque você não deixou, ou: não fui porque você
chorou. Sabe, existem umas harmonias em que é bom a gente não mexer. Estraga a
música. Tem a hora dos violinos e tem a hora dos tambores.
Eu compreendo, compreendo perfeitamente. Olha, e até admito: você muda
pra melhor. Fora de brincadeira, acho mesmo. Eu sei das minhas limitações, pensei
muito nisso quando tava tentando te entender. É, é um defeito meu, considerar as
pessoas em primeiro lugar. Concordo. Mas não tem jeito, eu sou assim. Paciência.
Sabe por que eu digo que você muda pra melhor? Ele faz tanta coisa melhor do
que eu! Verdade. Tanta coisa que eu não aprendi por falta de tempo, de oportunidade
– ora, pra que ficar me justificando? Não aprendi por falta de jeito, de talento, essa é
que é a verdade. Eu sei ver as qualidades de uma pessoa, mesmo quando é um homem
que vai roubar minha namorada. Roubar não: ganhar.
Compara. Ele dança muito bem, até chama a atenção. Campeão de natação,
anda de bicicleta como um acrobata de circo, é bom de moto, sabe atirar, é fera no
volante, caça e acha, monta a cavalo, mete o braço, pesca, veleja, mergulha... Não tem
companhia melhor.
Eu danço mal, você sabe. Não consegui ultrapassar aquela fronteira larga entre
a timidez e ousadia, entre a discrição e o exibicionismo, que separa o mau e o bom
bailarino. Nunca fui muito além daquela fase em que uma amiga compadecida
precisava sussurrar no meu ouvido: dois pra lá, dois pra cá.
Atravessar uma piscina, eu atravesso, uma vez, duas talvez, mas três? Menino
de cidade, e modesto, não tive córrego nem piscina. É com olhos invejosos que eu o
vejo na água, afiado como se tivesse escamas.
Moto? Meu Deus, quem sou eu, pra ser bom nisso é preciso ter aquele ar de
quem vai passar roncando na frente ou por cima de todo mundo – e esse ar ele tem.
118

Montar? É preciso ter essa certeza, que ele tem, de que cavalo foi feito pra ser
domado, arreado, freado, ferrado e montado. Eu não tenho. Não tá em mim. Eu ia
montar como se pedisse desculpas ao cavalo pelo incômodo, e isso não dá, não pode
dar um bom cavaleiro.
O jeito como ele dirige um carro é humilhante. Já viajei com ele, encolhido e
maravilhado. Você conhece o jeitão, essa coisa de velocidade. Não vou ter nunca
aquela noção de tempo, a decisão, o domínio que ele tem. Cada um na sua. Eu troquei
a volúpia de chegar rapidinho pelo prazer de estar a caminho. No amor também.
Caçar... Dar um tiro num bicho... Ele tem isso, a certeza de que o homem é o
senhor do universo, tudo tá aí pra ele. Quem me dera. Quando penso naquela pelota
quente de aço entrando no corpo do bicho, rasgando carne, quebrando ossos... Não,
não tenho coragem.
Aí é que tou perdido mesmo, no capítulo da coragem. Ele faz e acontece, já vi.
Mas eu? Quantas vezes já levei desaforo pra casa. Levei e levo. Se um cachorro late pra
mim na rua, vou lá e mordo ele? Eu não. Mudo de calçada.
Outra coisa: ele é mais engraçado do que eu. Fala mais alto, ri mais à vontade,
às vezes chama até um pouco a atenção mas... é da idade. Lembra aquela vez que ele
levou um urubu e soltou na igreja no casamento do Carlinhos? E aquela vez que ele
sujou de cocô de cachorro as maçanetas dos carros estacionados na porta da boate?
Lembra que sucesso? Os jornais falaram por dias naquilo. Não consigo ser engraçado
assim. Não tá em mim. Por isso que eu não tenho mágoa. Ele é muito mais divertido. E
mais bonito também.
Vai.
Olha, não quero dizer que o que eu vou falar agora tenha importância pra você,
que possa ter influído na sua decisão, mas ele tem mais dinheiro também, você sabe.
Ele tem até, sabe?,aquele ar corajoso dos ricos, aquela confiança de entrar nos
lugares. Eu não. Muito cristal me intimida. Os meus lugares são uns escondidos onde o
garçom é amigo, o dono me confessa segredos, o cozinheiro acena lá do quadradinho
e me reserva o melhor naco. É mais caloroso, mas não compensa o brilho, de jeito
nenhum.
Ele é moderno, decidido. Num restaurante não te oferece primeiro a cadeira,
não observa se você tá servida, não oferece mais vinho. Combina, não é?,com um tipo
de feminismo. A mulher que se sente, peça o que quiser, sirva-se, chame o garçom
quando precisar. Também não procura saber se você tá satisfeita. Eu sei que é assim
que se usa agora. Até no amor. Já eu sou meio antigo, ultrapassado, gosto de umas
cortesias.
Também não vou dizer que ele é melhor do que eu em tudo. Isso não. Eu sei
por exemplo uns poemas de cor. Li alguns livros, sei fazer papagaio de papel, posso
cozinhar uns dois ou três pratos com categoria, tenho certa paciência pra ouvir, sei
uma ótima massagem pra dor nas costas, mastigo de boca fechada, levo jeito com
crianças, conheço umas orquídeas, tenho facilidade pra descobrir onde colocar umas
carícias, minhas camisas são lindas, sei umas coisas de cinema, não bato em mulher.
E não sou rancoroso. Leva a chave para caso de querer voltar.
(ÂNGELO, Ivan. O ladrão de sonhos e outras histórias. São Paulo: Ática, 1994, p.12-14.)

Na crônica lida, o locutor apresenta vários motivos (com os quais diz concordar)
que a companheira tem para preferir o adversário a ele. Contudo, essa explanação de
119

motivos traz implícitas algumas críticas sobre o comportamento do seu opositor. Na


verdade, vemos que ele, implicitamente, realça algumas qualidades suas e aponta os
defeitos do outro.
Consideremos outra situação: o locutor, inconformado com a separação, resolve
se dirigir à ex-namorada para mostrar, explicitamente, por que ele é melhor que o outro
pretendente. Nesse novo contexto, temos que alguns trechos do texto poderiam ser
modificados.
Com base nisso, faça as adaptações nos trechos a seguir, modificando os termos
sublinhados por outros que atendam ao objetivo de ressaltar as qualidades do locutor e
explicitar os defeitos do outro pretendente.

Trechos em que as qualidades do locutor devem ser explicitamente ressaltadas (o primeiro já está feito)

 “Eu sei das minhas limitações, pensei muito nisso quando tava tentando te entender”.
Reformulação: “Eu sei das minhas qualidades, pensei muito nisso quando tava
tentando te entender”.

 “É, é um defeito meu, considerar as pessoas em primeiro lugar. Concordo. Mas não
tem jeito, eu sou assim. Paciência”.

 “Quando penso naquela pelota quente de aço entrando no corpo do bicho, rasgando
carne, quebrando ossos... Não, não tenho coragem”.

 “Já eu sou meio antigo, ultrapassado, gosto de umas cortesias”.

Trechos em que os defeitos do outro pretendente devem ser explicitamente ressaltados


(o primeiro já está feito)

 “é preciso ter aquele ar de quem vai passar roncando na frente ou por cima de todo
mundo”.
Reformulação: “é preciso ter a arrogância típica de quem vai passar roncando na frente
ou por cima de todo mundo”.

 “É preciso ter essa certeza, que ele tem, de que cavalo foi feito pra ser domado,
arreado, freado, ferrado e montado”.
120

 “Você conhece o jeitão, essa coisa de velocidade”.

 “E aquela vez que ele sujou de cocô de cachorro as maçanetas dos carros
estacionados na porta da boate? Lembra que sucesso?”.

 “Ele tem até, sabe?, aquele ar corajoso dos ricos”.

Comentário
Com essa atividade, o aluno exercitará sua habilidade em promover mudanças
no texto de acordo com uma orientação argumentativa diferente da proposta pelo texto
original. Dessa forma, investe-se na noção de que a argumentação não resulta apenas de
decisões sobre amacro-organização do texto (que, dizem respeito, por exemplo, à
eleição de uma tese e seus argumentos). As escolhas “miúdas”, referentes às expressões
linguísticas, também são fundamentais e, em alguns casos, até mais “eficientes” para a
organização retórica.

Atividade 4
Objetivo:levar o aluno a identificar os indícios cotextuais que possam ancorar o
reconhecimento de um referente não claramente nomeado.

Descrição
Leia, a seguir, o início da crônica “Ela”, de Luis Fernando Verissimo:

Ainda me lembro do dia em que ela chegou lá em casa. Tão pequenininha! Foi
uma festa. Botamos ela num quartinho dos fundos. Nosso filho – naquele tempo só
tinha o mais velho – ficou maravilhado com ela. Era um custo tirá-lo da frente dela
para ir dormir.
Combinamos que ele só poderia ir para o quarto dos fundos depois de fazer
todas as lições.
— Certo, certo.
Eu não ligava muito para ela. [...]
121

a) Ao ler este trecho, não podemos informar precisamente quem chegou, mas o
narrador nos dá algumas pistas. Responda: com base nas pistas do texto, o que nos
autoriza a dizer de que se trata o referente de ela?
b) Discuta as respostas com seus colegas e tentem justificar por que alguns
referentes que eles atribuíram a ela não seriam autorizados pelo texto.
c) Qual é o sentido que a repetição dessa palavra traz para o texto?
d) Em sua opinião, qual seria o motivo das mudanças ocorridas no cotidiano
desta família?
e) Dê continuidade à narrativa dessa crônica, de acordo com o referente que
escolheu para corresponder a ela.

Comentário
Com tarefas assim, duas habilidades estão sendo desenvolvidas ao mesmo
tempo: a de compreensão e a de produção textual. Em ambassedeverá relacionar a
expressão referencial ela a várias âncoras que respaldem a identificação do referente
introduzido sob a forma pronominal. Na atividade de escrita, porém, compete ao aluno
manter o suspense criado pelo enunciador quando, propositadamente, não nomeou o
referente com uma expressão plena.

Atividade 5
Objetivo: reconhecer efeitos de polifonia no gênero notícia.

Descrição
Leia o texto a seguir e responda ao que se pede.

Um pedreiro desesperado, duas bananas e um roubo


Duas bananas usadas como arma e R$ 21 roubados de um mercadinho. O fato
inusitado ocorreu quarta-feira. Um pedreiro confessou o crime e está preso. A OAB vai
pedir relaxamento de prisão

Duas bananas e R$ 21: a suposta “arma” do crime e o objeto do roubo. Teria


sido usando as frutas como arma, por baixo da blusa, que o pedreiro João Paulo
Nascimento, 22, cometeu o primeiro crime de sua vida. Ele roubou R$ 21 de um
mercadinho no Centro de Fortaleza, na noite de quarta-feira. Quando fugia, foi
abordado por uma viatura da Polícia Civil e confessou o roubo. João foi levado para a
122

Delegacia de Furtos e Roubos, onde está preso com sete bandidos, acusados de assalto
a mão armada.
O pedreiro ganhava R$ 50 por semana. Estava reformando uma residência e
quando acabasse o serviço ficaria desempregado. Ele contou que naquele dia havia
recebido o salário e, ao sair do emprego, foi tirar o título de eleitor. Passou cinco horas
na fila e ainda pagou R$ 12 de multa. Comprou sete bananas, para matar a fome
enquanto esperava. Comeu cinco e as outras duas levaria para a filha, de dois anos.
Com R$ 38 que sobraram, João caminhava para pegar um ônibus. Iria para casa,
no bairro do Alto Alegre, onde mora com a namorada, a filha, a mãe e cinco irmãos
menores de idade. Ele contou que no meio do caminho foi assaltado por dois homens
armados, que levaram todo o dinheiro.
Desesperado, entrou no mercadinho e, ao ver a quantia em cima do balcão,
não pensou duas vezes. “Como ia ficar sem o dinheiro da semana?”, pensou. E agiu
rápido, pegou o dinheiro e correu, quando foi abordado pela polícia. João negou que
tenha usado a banana como arma, mas a dona do mercadinho afirmou o contrário em
depoimento.
Com R$ 50 incertos que recebia, sustentava nove pessoas. Ele também fazia o
supletivo do primeiro grau. “Como vão ficar meus estudos?”, perguntou ao titular da
DRF, Paulo André Cavalcante.
Apesar da história que contou e da própria história de vida, João permanecerá
preso, até que a Justiça resolva o destino dele. “O fato é que ele roubou. Quem vai
decidir é a Justiça”, disse o delegado.
A Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/CE)
entrou, ontem, no caso, e vai pedir relaxamento de prisão. Se a decisão for favorável,
ele será solto. Caso contrário, a Comissão vai pedir liberdade provisória e o pedreiro
terá que responder a processo.
Para o delegado, ele pode ser solto rápido, já que a OAB entrou no caso. “Mas
rápido demora quanto?”, pergunta João ao delegado, chorando e com as mãos
algemadas.
(O Povo, 10 mai. 2002, p. 22.)

a) Ao ler apenas o título da notícia acima, alguém poderia pensar que o fato noticiado
seria diferente do que foi realmente relatado. Imagine uma outra possibilidade de fato
que pudesse ter esse mesmo título.
b) Normalmente uma notícia apresenta depoimentos de pessoas envolvidas direta ou
indiretamente no caso relatado. Qual seria a importância desses depoimentos?
c) Quando se quer mostrar a fala dessas pessoas exatamente como foram proferidas (o
que se chama de discurso direto), usa-se o travessão. Mas há uma outra maneira de se
mostrar o discurso direto sem se utilizar o travessão. Que outra maneira, bastante
utilizada na notícia e nos textos jornalísticos em geral, seria essa?
d) Considera-se que uma boa notícia deve ser imparcial, ou seja, não deve apresentar o
ponto de vista do jornalista a respeito do fato que está narrando ou a respeito dos
123

indivíduos que participam desse fato. Na notícia acima, embora o jornalista não deixe
completamente explícito o seu ponto de vista, a impressão que se tem é a de que ele fez
um texto que procura tomar partido em favor do pedreiro. Transcreva pelo menos duas
passagens do texto que possam justificar essa impressão.

Comentário
A abordagem do texto chama a atenção para dois tipos de polifonia: uma que
regular as vozes de outrem, relacionada aos discursos direto e indireto; e outra que dá
conta das duas “vozes” do enunciador. Ao mesmo tempo em que esse enunciador sabe
que a notícia não deve conter a opinião do seu produtor, ele deixa escapar o seu
posicionamento, nas muitas vezes em que apresenta o referente pedreiro João Paulo
como rapaz humilde, trabalhador, estudioso e injustiçado. Além disso, ele faz a
distinção entre João Paulo e os “sete bandidos, acusados de assalto àmão armada”, e
ainda questiona a versão dos acusadores do pedreiro, ao utilizar a expressão “suposta
‘arma’”. Vemos, portanto, o embate de duas vozes, que transitam entre a parcialidade e
a imparcialidade.
Essa abordagem pode ser enriquecida se o professor levar para os alunos a
discussão sobre a neutralidade do texto jornalístico. Com isso, ele contribui para a
formação do sujeito crítico, capaz de analisar as informações que recebe com cuidado, a
fim de identificar tentativas de manipulação.
124

Considerações finais
Em qualquer discussão sobre o redimensionamento da instituição escolar
(temática que ganha cada vez mais espaço num mundo que se modifica e se reconstrói
de forma espantosamente rápida), ganha destaque, sempre, o papel e a ação do
professor. Todos já conhecemos o discurso: não caberia mais, no quadro atual, o
professor transmissor de conhecimentos, aquele cuja função se limita a repassar os
conteúdos e verificar se os alunos foram suficientemente treinados para mostrar o
domínio desses conteúdos em avaliações. Mais que isso, o professor deve ser o agente
transformador, que, com sua experiência e planejamento, cria as situações de
aprendizagem, nas quais os aprendizes mobilizam conhecimentos com vistas ao
domínio de habilidades.
Esse novo perfil de professor exige do profissional o estudo constante. A sólida
formação teórica (claro que continuamente cotejada com a prática) é a chave que
“liberta”, que possibilita ao docente agir com autonomia. Falando especificamente da
área de língua portuguesa, não se trata de conhecer a teoria para despejá-la nas aulas,
como se, na educação básica, os estudantes precisassem dominar termos técnicos tais
comoanáfora,recategorização, encapsulamento etc. Interessa, contudo, compreender a
natureza funcional dos fenômenos da linguagem, para, a partir daí, munir o aluno de um
conhecimento ativo sobre as formas de dizer e compreender.
Intentamos, com este livro, mostrar uma das múltiplas possibilidades de
abordagem funcional da linguagem. O domínio das estratégias de referenciação – e,
quando falamos de domínio, estamos tratando da capacidade de mobilizar tais
estratégias para a ação de produzir e compreender textos – possibilita ao aluno ter em
suas mãos o poder para interagir e, com isso, ir em busca de conquistas pessoais e
coletivas. Cremos ter apresentado muitas possibilidades de integração entre a teoria e a
prática e, com isso, não apenas demos “receitas de exercícios”, mas, principalmente,
contribuímos para o fortalecimento do olhar crítico, capaz de questionar e mudar o
“jeito” da sala de aula, indo além das possibilidades (muitas vezes limitantes) dos
materiais didáticos disponíveis.
Além da contribuição teórica, pretendemos instigar os professores, para que
acreditem no seu papel transformador e possam fazer da sala de aula o local do
verdadeiro aprendizado, em que a curiosidade e o prazer sejam o mapaque guia a eterna
busca pelos sentidos.
125

Glossário Comentado [n26]: Não organizei os verbetes em ordem


alfabética porque entendi que os termos estão encadeados. Por favor,
verificar se minha observação procede.
Este glossário tem por objetivo destacar alguns conceitos fundamentais para o
estudo do fenômeno da referenciação. Muitos desses conceitos já foram devidamente
apresentados e comentados nos capítulos deste livro. Destacamo-los aqui a fim de que o
leitor possa consultá-los mais rapidamente.

Discurso –
O discurso é um modo de posicionamento ideológico sustentado por
determinado grupo social. Os discursos são constituídos, pois, de processos
socioculturais e não podem estar desvinculados de suas condições de produção. As
condições de produção não se restringem às circunstâncias da comunicação imediata
(enunciador, enunciatário, lugar e tempo em que se passa a enunciação), mas incluem
todo o contexto sócio-histórico, influenciado por posicionamentos ideológicos em
conflito.

Interdiscursividade–
Todo discurso é atravessado pela interdiscursividade, tem a propriedade de
estar em relação multiforme com outros discursos, de entrar no interdiscurso. O
“interdiscurso” é o conjunto das unidades discursivas com as quais um discurso
particular entra em relação implícita ou explícita. Esse interdiscurso pode dizer respeito
a unidades discursivas de dimensões muito variáveis: uma definição de dicionário, uma
estrofe de um poema, um romance, nenhum enunciado pode ser identificado de maneira
pontual, já que pertencer a relações interdiscursivas é constitutivo da linguagem.

Polifonia –
Em cada ato de fala, em cada texto, há um eco de muitas vozes, de muitos
dizeres, de outros discursos, afetando aquilo que é dito no momento de uma enunciação.
A interação viva entre dois sujeitos não é uma interação entre eles apenas, mas um
diálogo com suas histórias individuais, com as histórias dos grupos de que fazem parte,
com as histórias que permeiam a mente de cada indivíduo falante e que constituem o
patrimônio linguístico-cultural da coletividade. A essas outras vozes presentes na voz
que enuncia,que são assinaladas por algum tipo de marcação, dá-se o nome de
polifonia.
126

Gênero do discurso–
Os gêneros do discurso são padrões textuais socialmente reconhecidos e
convencionados, de que os sujeitos se utilizam para interagir de forma plena, como por
meio de requerimentos, entrevistas de emprego, palestras, notícias on-line, mensagens nas
redes sociais etc. Os gêneros se diversificam de acordo com a situação de comunicação
e com inúmeros fatores socioculturais, como as necessidades específicas solicitadas por
certas condições associadas à modalidade (oralidade ou escrita), o grau de formalismo, a
exigência de participação simultânea dos interlocutores, entre outros aspectos. Por isso é
que se diz que eles são oriundos das ações dos sujeitos e que são determinados,
portanto, pelas circunstâncias socioculturais a que os grupos humanos estão expostos.

Texto –
No momento atual da Linguística Textual, de forte tendência sociocognitivista,
uma conceituação adequada de texto implica qualquer uso da(s) linguagem(ns) com
vistas à realização de um determinado efeito no(s) interlocutor(es). Os textos são
sempre o resultado de um diálogo (real ou virtual) entre os sujeitos, que, sabedores da
“presença” do outro, formulam seus enunciados considerando que eles não suficientes
em si mesmos – sempre demandam a ação sociocognitiva dos parceiros.

Coerência –
Princípio maior da configuração textual. Diz respeito à unidade de sentido de um
texto. Durante certo tempo, alguns teóricos trabalharam considerando que haveria um
conjunto de fatores responsáveis pela construção da coerência. O entendimento mais
atual da questão diz que nem sempre a obediência a esses fatores é o elemento
fundamental para o reconhecimento da unidade de sentido. Há dinamismo quanto ao
conjunto de elementos que determinam a coerência textual. . Os sentidos de um texto
não são dados apenas pelo significado das palavras, mas se encontram na incessante
interação entre locutor-cotexto-interlocutor e conhecimentos partilhados de várias
naturezas Tudo depende, sempre, das particularidades de cada situação de interação.

Coesão –
127

A coesão diz respeito à articulação entre as ideais de um texto, por isso não pode
ser vista isoladamente da coerência. A articulação se refere à maneira como os fatos e
conceitos apresentados no texto se encadeiam e se organizam, ou seja, como se
relacionam uns com os outros. Portanto, para que um texto seja articulado, é preciso que
suas ideias tenham a ver umas com as outras; é preciso estabelecer tipos específicos de
relação entre elas. Para manter a articulação textual, é necessário, muitas vezes, utilizar
conectivos adequados, mas é possível também não usar conectivo algum, deixando
apenas implícita a relação de sentido que o conector explicitaria.

Intertextualidade –
Intertextualidade é o processo em que um texto remete a outro(s), de maneira
mais explicitamente marcada ou não. A manifestação desse diálogo entre textos forma o
que se chama de intertexto. Sendo sempre identificável por algum tipo de marca, a
intertextualidade pode ser verificada nas seguintes situações:
a) quando se insere parte de um texto em outro:
- ou por menção explícita, incluindo as conversões de um trecho para outro
modo de dizer; o exemplo mais prototípico é o das citações tipograficamente marcadas
e com indicação do autor;
- ou por indicação de pistas que se referem, indiretamente, a outros textos,
mesmo sem mencioná-lo.
b) quando um texto deriva outro tomando por base o texto-fonte:
- ou porque o transforma, operando-lhe modificações de forma e de conteúdo;
- ou porque o imita quanto ao estilo do autor, ou quanto ao gênero do discurso
em que o texto-fonte se enquadra.

Multimodalidade –
Característica dos textos cujos significados são realizados por meio de mais de
um código semiótico. O texto é multimodal sempre que, para a configuração dos
sentidos, houver o entrecruzamento de linguagens – verbal (oral e/ou escrita), visual,
sonora. Alguns teóricos consideram ser possível falar em multimodalidade, inclusive,
quando há apenas linguagem escrita, nos casos em que a tipologia da fonte das letras é
diferente do usual;por exemplo, se, num romance, o autor, para apresentar uma carta
128

escrita por um personagem, usar uma letra mais próxima da letra cursiva, pode-se
considerar tal estratégia como um recurso multimodal.

Argumentação –
Argumentar é levar o interlocutor a acreditar em algo que se está defendendo.
Exige que a produção textual leve em conta as condições sociais nas quais a
argumentação estará inserida, por isso é um ato sociocognitivo complexo. O ato de
argumentar é essencialmente o de buscar convencer o outro, num processo em que a
validade das ideias defendidas é testada, ao passo que se tenta persuadir o interlocutor a
aceitar a tese proposta. Desse modo, a argumentação é uma estratégia de interação, por
estabelecer um contato intelectual entre um locutor, seu interlocutor e os ecos dos
discursos que circulam no meio social. O ato argumentativo leva o locutor a adaptar-se
a seus possíveis interlocutores. Adaptar-se também se refere a escolhas linguísticas e às
dimensões socioculturais do auditório.

Sociocognição –
Perspectiva de compreensão da teoria sobre a produção, armazenamento e
utilização do conhecimento que investe na inter-relação constitutiva dos processos
mentais com os aspectos socioculturais. No que interessa à referenciação, tem-se, por
um lado, que a elaboração de objetos de discurso é um procedimento discursivo-social,
pois não se dá alheia à situação de comunicação e ao contexto sócio-histórico mais
amplo; por outro lado, a atividade é também cognitiva, visto que a interação linguística
só ocorre porque os sujeitos são capazes de processar intelectivamente os textos que
produzem e compreendem. Trata-se, portanto, de um fenômeno inerentemente
sociocognitivo.

Memória discursiva –
A memória discursiva é um conjunto de representações que os interlocutores
constroem de si mesmos, dos temas, de conhecimentos socioculturais compartilhados,
de suas finalidades argumentativas quando interagem por meio de um texto. Todo texto
constrói um universo de representação que se impõe como uma memória partilhada,
alimentada pelo discurso, por afirmações ditas e implícitas, por percepções advindas do
contexto enunciativo e pelas inferências decorrentes de tudo isso. As sucessivas etapas
129

dessa representação na memória discursiva se devem, em grande medida, à negociação


mediada pelos processos referenciais.

Metadiscurso–
O metadiscurso consiste de várias ocorrências textuais que guiam ou direcionam
os leitores para o modo como eles devem compreender, avaliar e responder ao conteúdo
informacional. Os locutores usam a linguagem para expressar um posicionamento e para
se reportarem a seus interlocutores, de modo a conquistar sua adesão, engajando-os. O
metadiscurso é, assim, um conjunto de estratégias pelas quais os locutores se projetam
no texto assinalando suas intenções comunicativas, posicionando-se tanto em relação ao
seu conteúdo quanto em relação ao seu leitor.

Tópico discursivo –
O tópico discursivo, ou textual, diz respeito a um tema central em torno do qual
giram subtemas dentro de um dado texto. O tópico está presente, portanto, em qualquer
texto, falado ou escrito, e se constitui a partir de enunciados criados pelos sujeitos
envolvidos na situação comunicativa por meio de um conjunto de informações, que vão
se mantendo e progredindo no texto. A identificação dos tópicos é indispensável para a
compreensão dos textos, pois eles condicionam a interpretação de cada bloco
subtemático.

Referente–
Entidades construídas a partir de representações mentais elaboradas pelos
sujeitos (durante as interações pela linguagem), sobre as quais recai a significação
substancial dos textos/discursos. Os referentes não equivalem a objetos do mundo
representados objetivamente, mas aos objetos de discurso que garantem a coerência
textual, os quais são “fabricados” a partir de um trabalho sociocognitivo de negociação
dos interlocutores. Podem ser construídos a partir do acionamento de expressões
referenciais, mas também se manifestam por outros meios, de modo que os fatores
materiais diferentes da linguagem verbal e os aspectos contextuais mais amplos também
têm papel fundamental nesse processo.

Expressão referencial
130

Sintagma nominal– substantivo (acompanhado ou não de determinantes e


modificadores) ou pronome em função substantiva – o qual, no texto, remete a um
referente. Por exemplo, no enunciado “O meu querido professor de português está
sempre de bom humor”, a expressão destacada – sintagma nominal cujo núcleo é o
substantivo “professor” – remete a um referente – alguém sobre quem o enunciador faz
um comentário. Conforme o texto se desenvolva, esse referente pode ser retomado por
outras expressões referenciais – por exemplo, “ele”, o “professor”, o nome do professor
etc.

Introdução referencial –
O processo de introdução referencial ocorre quando uma entidade for
considerada nova no texto e, portanto, não tiver sido engatilhada por nenhuma outra
entidade, atributo ou evento. A ação de introduzir um referente no texto pode não ter o
propósito apenas de colocar em cena uma entidade que passará por transformações, mas
também de marcar um ponto de vista. Os referentes não precisam necessariamente ser
introduzidos por expressões referenciais no cotexto. Qualquer pista verbal ou não verbal
pode levar o interlocutor a construir referentes novos no texto.

Anáfora –
A anáfora diz respeito à continuidade referencial, ou seja, à retomada de um
referente, quer seja o mesmo referente (num processo correferencial ou direto,
portanto), quer seja um referente diferente ao qual esteja associado de alguma maneira
(num processo não correferencial, ou indireto). Em outras palavras, a anáfora reativa um
referente, ou objeto de discurso, cuja interpretação é dependente de dados já
introduzidos no texto.

Anáfora encapsuladora –
Trata-se de um tipo de referência difusa, na qual uma expressão referencial
anafórica resume um conteúdo textual inteiro e os contextos com os quais esteja
relacionado. É muito comum o uso dos pronomes demonstrativos para encapsular
porções textuais, mas é também frequente o emprego de sintagmas nominais
resumidores, como “o assunto”, “esta pergunta”, “os fatos relatados” etc.
131

Dêitico –
Os dêiticos são expressões referenciais que criam um vínculo entre o enunciado
e a situação enunciativa estabelecida pelos interlocutores no momento da interação. Os
dêiticos são indicadores de ostensão, isto é, indicam os limites do objeto referido no
tempo e no espaço, tomando como base o posicionamento do falante no momento do
ato de linguagem. As expressões dêiticas só podem ser plenamente depreendidas se o
interlocutor souber algumas “coordenadas” do enunciador: quem fala, para quem fala,
de onde fala ou quando fala, como no enunciado “A nota foi divulgada, hoje, no Diário

Oficial da União”.

Recategorização–
A recategorização é um contínuo processo cognitivo-discursivo de
transformação dos referentes ao longo de um texto. As modificações por que passa o
objeto referido se revelam em variados índices cotextuais. A transformação não se dá
pontualmente, mas vai acontecendo à medida que as inúmeras pistas dadas por
expressões referenciais, ou não, ajudam o leitor a compor novos sentidos e novas
referências. Em todo texto, o enunciador constrói a referência com base numa
interpretação do mundo real, recategorizando a informação precedente ao acrescentar
novas predicações, disponíveis, em diferentes medidas, no conhecimento das pessoas, à
medida que transcorre a interação. Por esse aporte de informação nova, o enunciador
conduz o destinatário (que coparticipa dessa construção, sendo, por isso, um
coenunciador) a uma reinterpretação ou refocalização do elemento referido. Pelas
estratégias de recategorização, a imagem do referente que o coenunciador constrói em
sua memória vai evoluindo à medida que se desenvolve o discurso.
132

Sugestões de leitura
KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Desvendando os segredos do texto. 2. ed. São
Paulo: Cortez, 2003.
O livro apresenta uma introdução aos principais conceitos da Linguística
Textual: concepções de linguagem, texto e contexto; sociocognição; gêneros do
discurso; referenciação e tópico discursivo; articuladores do discurso.

CAVALCANTE, MônicaMagalhães; BIASI-RODRIGUES, Bernardete; CIULLA e


SILVA, Alena. (Org.).Referenciação. São Paulo: Contexto, 2003.
Essa obra apresenta uma coletânea de traduções sobre temas caros à
referenciação, entre elas, o artigo “Construção dos objetos de discurso e categorização:
uma abordagem dos processos de referenciação” (de Lorenza Mondada e Danièle
Dubois), considerado o inaugurador da proposta teórica da referenciação.

KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça; MORATO, Edwiges Maria; BENTES, Anna


Christina (Org.). Referenciação e discurso. São Paulo: Contexto, 2005.
A coletânea contém capítulos produzidos por pesquisadores nacionais e
internacionais, abrangendo temas como referenciação e aspectos extralinguísticos,
anáfora indireta, cruzamento entre anáfora e dêixis, abordagem experimental do
processamento da referência.

CAVALCANTE, Mônica Magalhães. Referenciação – sobre coisas ditas e não ditas.


Fortaleza: UFC, 2011.
A obra apresenta um panorama esclarecedor do tratamento teórico da referência,
contemplando perspectivas linguísticas e filosóficas. Além disso, mostra os
desdobramentos pelos quais a proposta da referenciação vem passando, resultado,
principalmente, dos estudos do Grupo Protexto (UFC).
133

Referências

APOTHÉLOZ, Denis; REICHLER-BÉGUELIN, Marie-José.Construction de la


référence et strategies de designation. In:BERRENDONNER, Alain;REICHLER-
BÉGUELIN, M-J (Org.). Du sintagme nominal auxobjects-de-discours. Neuchâtsh:
Université de Neuchâtsh, 1995, p. 227-271.

________. Rôle et fonctionnement de l´anaphore dans la dynamique textuelle. 349


f.Tese (Doutorado) - Université de Neuchátel, Neuchátel, 1995.

_____. e REICHLER-BÉGUELIN, M-J.Interpretations and functions of demonstrative


NPs in indirect anaphora.Journal of Pragmatics, v. 31, n. 3, p. 363-397, mar. 1999.

ANSCOMBRE, J.-C.; DUCROT, O. La argumentación en la lengua. 2. ed. Tradução Marta

Tordesillas. Madrid: Editorial Gredos, 1988. Original de 1983.

AUTHIER-REVUZ, J. Entre a transparência e a opacidade– um estudo enunciativo do


sentido. [apresentação Marlene Teixeira; revisão técnica da tradução Leci Borges
Barbisan e Valdir do Nascimento Flores]. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.

BENVENISTE, Émile. Problemas de Linguística Geral. v. 2. 2. ed. Tradução Maria G.


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(Doutorado em Linguística) –Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2013.
137

Índice de fontes dos exemplos Comentado [n28]: Editorial: vf. se entrará.

Ex. 1. Viciados em game


Época, 9 de outubro de 2006, p. 89.

Ex. 2. Dito popular


Disponível em:http://www.fraseseproverbios.com/frases-de-humor.php. Acesso em: 26
abr. 2010.

Ex. 3. Letra de canção


Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=Q9D_q-pRCus. Acesso em: 26 abr.
2010.

Ex. 4. Amigo do esquadrão antibomba


Disponível em:http://www.fotocomedia.com/tag.php?tag=anti-bomba. Acesso em: 26
abr. 2010.

Ex. 5. Carta do leitor


X-Men Extra, n. 29. Barueri (SP): Panini Comics, 2004, p. 97.

Ex. 6. Verbete “Rebolation”


Disponível
em:http://pt.wikipedia.org/wiki/Rebolation_(can%C3%A7%C3%A3o_de_Parangol%C
3%A9). Acesso em:4 maio 2010.

Ex. 7. Rebolation invade a telinha


Disponível em:http://www.alagoinhasnoticias.com.br/festas-a-eventos/1820-robolation-
invade-a-telinha.html. Acesso em:4 maio 2010.

Ex. 8. Comentário sobre o Rebolation


Disponível em http://okylocyclo.blogspot.com/2010/03/rebolation-conta-com-apoio-do-
pig.html. Acesso em 4 maio 2010.
138

Ex. 9. Britney não ficou tão mal na foto


Época, 19 de abril de 2010, p. 130.

Ex. 10. Cuecas


VERISSIMO, Luis Fernando. Comédias da vida privada: 101 crônicas escolhidas. 15.
ed. Porto Alegre: L&PM, 1995, p. 42-43.

Ex. 11. Piada


Disponível em:http://mais.uol.com.br/view/e8h4xmy8lnu8/ai-a-briga-comecou-
0402993670D0899326?types=A&. Acesso em:5 maio 2010.

Ex. 12. Texto multimodal


Disponível em:http://bardosmoke.blogspot.com/2008/05/armas-em-casa.html. Acesso
em:15 maio 2010.

Ex. 13. Tira em quadrinhos


PAIVA, Miguel. Disponível
em:http://www.radicalmentechic.blogger.com.br/Radical%20Chic%2021.jpg. Acesso
em:7 maio 2010.

Ex. 14. O que o vento não levou


Disponível em: http://www.pensador.info/frase/MTYxMzQ/. Acesso em: 4 abr. 2012.
Ex. 15. Golfo do México
Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/charges/. Acesso em: 27 mar. 2011.

Ex.16. Quebra de expectativa


Disponível em http://hagah72.blogspot.com.br/2010/08/o-novo-socio.html. Acesso em
4 abr. 2012
Ex. 17. Tirinha da Mafalda
Disponível em: http://clubedamafalda.blogspot.com/2007_03_01_archive.html. Acesso
em: 27 mar. 2012.

Ex. 18. Soneto do amigo


139

MORAES, Vinicius de. Disponível em:http://pensador.uol.com.br/frase/NTQ1OTg/.


Acesso em: 4 abr. 2102.

Exs. 19, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 31, 38. Natal na barca
TELLES, Lygia Fagundes. Natal na barca. In:____. Antes do baile verde. 9. ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 135-141.

Ex. 29. Goleiro Thiago


Disponível em:
http://www.fortaleza.net/forum/xmb/viewthread.php?fid=5&tid=4357&action. Acesso
em: 4 abr. 2012.
Figura disponível em: http://www.offside.blog.br/blog/?tag=goleiros. Acesso em: 27
mar. 2011.

Ex. 30.. Uso do celular


Disponível em: http://educacaodialogica.blogspot.com/2008/05/estudo-liga-uso-de-
celular-na-gravidez.html. Acesso em: 4 abr. 2012.

Ex. 32. De janeiro a janeiro


REIS, Nando. Disponível em: http://letras.terra.com.br/nando-reis/1748747/. Acesso
em: 9 mar. 2011.

Ex. 33. Piadas de bêbado


Disponível em: http://www.piadasnet.com/piada147bebados.htm. Acesso em 9 mar.
2011. [correções nossas]

Ex. 34. Flagra: motorista de Belina


BEJARANO, Celso; SOUZAAlessandra de. Disponível
em:http://www.midiamax.com.br/brasil/. Acesso em: 27 mar. 2011.

Ex. 35. Motorista invade calçada


140

Disponível em: http://noticias.uol.com.br/ultimas-


noticias/agencia/2011/03/09/motorista-invade-calcada-e-mata-garota-em-sorocaba-
sp.jhtm. Acesso em: 9 mar. 2011.
.
Ex. 36. Trecho de uma dissertação
ALENCAR, E. N. de. O tópico discursivo nas dissertações de alunos do ensino médio.
Dissertação [Mestrado em Linguística] – Fortaleza: Universidade Federal do Ceará,
2009.

Ex. 37. Trecho de metadiscursividade


FARIA, M. G. S. A metadiscursividade em redações dissertativas de vestibulandos.
Dissertação [Mestrado em Linguística] – Fortaleza: Universidade Federal do Ceará,
2009.

Ex. 39. A top quer samba


Época, 7 de março de 2011, p. 93.

Ex. 40. Glamour, sim. Shortinho, não!


Época, 7 de março de 2011, p. 93.

Ex. 41. A escravidão


Disponível em:www.expo500anos.com.br. Acesso em: 14 mar. 11.

Ex. 42. Jogos do Inter


Disponível em:
http://www.clicrbs.com.br/blog/jsp/default.jsp?source=DYNAMIC,blog.BlogDataServe
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4&coldir=1&topo=3994.dwt. Acesso em: 4 abr. 2012.

Ex. 43. Repassando


Disponível em: http://coletivofeitoria.blogspot.com/2011/03/repassando-ola-todos.html.
Acesso em 4 abr. 2012.
141

Ex. 44. Fígado sai intacto de acidente aéreo e salva vida de paciente
Disponível em http://noticias.br.msn.com/bem-bizarro/?Page=1. Acesso em: 27 mar.
2011.

Ex. 45. Polônia inaugura maior estátua de Jesus Cristo no mundo (21/11/2010)
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/mundo/833949-polonia-inaugura-maior-
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Exs. 46, 47. Católicos irlandeses encontram um pouco de conforto nas desculpas do
Papa
Disponível em: http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/0,,MUL1538789-5598,00.html.
Acesso em: 4 abr. 2012.

Ex. 48. Anúncio publicitário de cerveja


Época, 7 fev. 2011, p. 17.

Ex. 49. Anúncio publicitário de SBP


Época, 7 fev. 2011, p. 32.

Ex. 50. Bing


Época, 7 fev. 2011, p. 59.

Ex. 51. Pai e filho


HOLDER, Felipe. Igual papai. In: LOUREIRO JÚNIOR, Eduardo (Org.). Acaba não,
mundo e outras do cronicadodia.com.br. Fortaleza: Pátio, 2011, p. 161-163.
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Acesso em: 4 abr. 2012.

Ex. 52. Gerardo Bastos


Imagem disponível em: http://www.gerardobastos.com.br/. Acesso em: 4 abr. 2012.

Ex. 53. Nada é de graça!


O Povo, 27/03/2010, p. 7.
142

Ex. 54. Beijo na boca


MEDEIROS, Martha. Disponível em:http://www.artedavida.net/beijo-na-boca-martha-
medeiros/. Acesso em: 4 abr. 2012.
Imagem disponível em: http://malluzinhaaa.blogspot.com/2011_04_13_archive.html.
Acesso em: 4 abr. 2012.

Ex. 55. Lixo


CATANHÊDE, Eliane. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/elianecantanhede/991231-lixo.shtml. Acesso em:
4 abr. 2012.

Ex. 56. Loiras


Disponível em: http://br.haha-haha.com/joke-51334.shtml. Acesso em: 4 abr. 2012.

Ex. 57. Pais de alunos


Exemplo elaborado por nós, adaptado de produções reais de alunos.

Ex. 58. O português e o gato


Disponível em: http://www.piadasweb.com/Matando-o-gato-da-maria.html. Acesso em:
4 abr. 2012.

Ex. 59. Amores não têm passado


JAGUARIBE, Vinência. Disponível em:
http://www.recantodaletras.com.br/poesiadeamo/. Acesso em08 abr. 2012.

Ex. 60. Capítulo 13


Disponível em: http://www.di.ubi.pt/~jpaulo/biblia/1Corintios.htm. Acesso em: 4 abr.
2012.

Ex. 61. Educação em áreas conflagradas


143

CASTRO, Cláudio de Moura. Veja, 21/01/2009. Disponível


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Ex. 62. Piada de bêbado


Disponível em: http://www.zebisteca.com.br/5923/piadas/religiao/livre-do-alcool
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Ex. 63. No ônibus


Disponível em: http://www.piadasdodia.com.br/mostrapiada.asp?id_piada=1671.
Acesso em: 4 abr. 2012.

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