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Vol. 02 N.

02 v jul/dez 2004

Maria Angela Paulino Teixeira Lopes**


ma.paulino@globo.com

Processos de referenciação – ações


cognitivas e sociodiscursivas em interação*

RESUMO – Em uma perspectiva sócio-discursiva, fundamen- ABSTRACT - This paper presents, in a socio-discursive
tada em uma concepção de linguagem como atividade perspective based upon the conception of language as an
interativa, este artigo apresenta uma análise dos processos de interactive activity, an analysis of the reference process in
constituição da referenciação em práticas de linguagem soci- language within socially-situated contexts: textual genres.
almente situadas: os gêneros textuais. Tendo em vista o caráter Taking into account the process approach, the methodology
processual desta investigação, o procedimento metodológico – i.e., reading of three written texts, a questionnaire for
– leitura de três textos da mídia impressa, um questionário each text, an audio recording of the discussion sessions on
escrito para cada texto, um registro em áudio das sessões de the texts (verbal protocol) – made possible the required
discussão sobre os textos lidos (‘protocolo verbal’) – permi- coverage for the proposed study, through triangulation.
tiu, pela triangulação das informações, alcançar a abrangência Referenciation is built in a dynamic way, within socio-
necessária ao estudo proposto: a referenciação é construída interactive contexts involving subject-reader strategies,
de forma dinâmica, em contextos sócio-interativos, envol- from traits in the textual genres.
vendo estratégias inferenciais do sujeito-leitor a partir de ope-
rações concretizadas nos gêneros textuais.

Palavras-chave: interacionismo sócio-discursivo, ação de lin- Key words: socio-discursive interaction, action language,
guagem, referenciação, contextualização, gênero textual. referenciation, contextualization, textual genre.

Introdução importante para a construção da polifonia textual, fun-


damental para a compreensão do agenciamento do(s)
A dimensão referencial da linguagem tem sido sentido(s) do texto, preocupei-me em ultrapassar essa
examinada, desde os modelos clássicos, a partir do visão de representação imposta à linguagem para ten-
estabelecimento de uma estreita relação entre as pala- tar compreender os processos envolvidos na
vras e as coisas. Assim, a linguagem cumpriria a fun- referenciação textual. Nesse sentido, a perspectiva
ção de nomear ou designar um mundo composto de teórica adotada para compreender a referenciação1
objetos, de fenômenos, de estado de coisas, inde- passou a fundamentar-se em uma concepção de lin-
pendentemente da interferência do sujeito. guagem como atividade interlocutiva, social e não
Desde os estudos desenvolvidos em minha somente numa relação de denotação entre uma pala-
dissertação de mestrado, em que analisei o vra ou expressão lingüística e uma entidade do mun-
processamento dêitico como uma estratégia discursiva do “objetivo”.

*
Este artigo é a versão escrita da comunicação apresentada no Simpósio “Painel de pesquisas brasileiras e portuguesas no quadro
O
do interacionismo sociodiscursivo: aportes teóricos e metodológicos e novas tendências”, no 14 INPLA/2004 -Linguagem,
Inserção e Cidadania, promovido pelo LAEL/PUC-SP. Trata-se de um recorte de uma pesquisa mais ampla desenvolvida em
minha tese de doutorado: “Processos inferenciais de referenciação na perspectiva sócio-discursiva” (Lopes, 2004).
**
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
1
Neste trabalho, o termo referenciação, por seu caráter mais processual, será usado, preferencialmente, em substituição a
referência. A expressão construção de sentidos será utilizada pelo mesmo motivo.

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Motivada por inúmeras indagações decorren- Neste artigo, apresento somente as reflexões
tes de uma prática docente preocupada com resulta- decorrentes do exame das operações de investi-
dos, com “acertos” e “erros”, nas atividades envol- mento de sentidos dos sujeitos-leitores para cons-
vendo a leitura, busquei, em minha pesquisa desen- truir a referenciação do ensaio de Roberto Pompeu
volvida no doutorado, dar continuidade a estudos de Toledo, publicado na revista VEJA, em 29 de
que considerassem as operações envolvidas na cons- abril de 1998: “Considerações sobre ela, sem dizer
tituição de sentidos. seu nome”4 .
Apoiando-me particularmente nas reflexões Preliminarmente, é necessário assinalar que,
dos trabalhos na linha do interacionismo sócio- diante dos limites impostos pelas condições mate-
discursivo, para os quais a dimensão primeira da riais do texto aqui apresentado, procederei a uma
textualidade é sócio-histórica, dirigi o foco de minhas análise sucinta das operações mais significativas,
investigações para a compreensão global das “ações explicitadas pelo experimento, considerando duas
de linguagem” e dos gêneros que as materializam, dimensões: (i) uma dimensão enunciativa, em que
conjugando uma análise externa dos textos – suas o conhecimento sobre o contexto situacional assu-
relações de interdependência com o mundo social e a me um papel relevante, bem como as representa-
intertextualidade – e uma análise interna da arquitetu- ções sobre os sujeitos, os papéis que ocupam na
ra textual (Bronckart, 1999). interação social e as normas sociais que regem o
Nessa visão, a participação do sujeito, antes ato de linguagem5 e (ii) uma dimensão textual, que
desconsiderada na análise dos processos da ativida- envolve o conhecimento sobre a língua, os meca-
de referencial, passa a ocupar um espaço privilegiado nismos de textualização, o gênero textual e os tipos
de “agente”, capaz não somente de “apropriar-se da textuais que o organizam, incluindo-se o conheci-
língua” para agir por meio dela, como afirmara mento intertextual.
Benveniste (1989), mas de constituir-se como sujeito A abordagem das operações textuais será feita
pela linguagem (Franchi, 1992; Possenti, 1993; nos dois níveis – da produção e da recepção –, tendo
Bronckart, 1999). em vista o quadro das “coordenadas gerais dos mun-
Tendo em vista o caráter processual do objeto dos” proposto por Bronckart (1999), em função dos
de estudo, optei pelo seguinte procedimento ”parâmetros da ação de linguagem” ali instituídos.
metodológico: três textos jornalísticos (um ensaio e Em consonância com a perspectiva do
duas crônicas de autores brasileiros) foram submeti- interacionismo sociodiscursivo (Bronckart, 1999,
dos à leitura de 21 informantes, estudantes-universi- 2000, 2004; Schneuwly, 1994), como já foi dito, esta
tários. A cada sessão de leitura, realizada com grupos análise orienta-se por um referencial teórico coeren-
de sete alunos (G1, G2, G3), seguia-se o preenchimen- te com o exame dos processos constitutivos das
to de um questionário sobre o texto lido2 . Respondi- “ações de linguagem”, submetendo o estudo das
das as questões, efetuava-se a leitura oral das mes- práticas discursivas ao modo de organização das
mas, de modo a socializar, para o grupo, as informa- atividades humanas. Nesse sentido, integram tam-
ções pretendidas naquele momento. Imediatamente, bém este estudo as pesquisas que vêem os gêneros
tinha início o ‘protocolo verbal’, técnica investigativa textuais não somente como produto de convenções
que consiste na verbalização partilhada, coletivamen- de forma e conteúdo, mas como ações sociais e re-
te, dos processos experimentados pelos sujeitos no tóricas (Lopes, 2004b).
momento da leitura. Essas trocas, registradas em áudio, Para proceder a uma abordagem integrada das
eram transcritas para integrarem o corpus3 . operações – enunciativas e lingüísticas – passo a

2
No caso do texto em análise, as questões foram: 1) Quem é ela? 2) Em que pistas do texto você se baseou para responder a
questão 1? 3) Que objetivos levaram o autor a redigir o texto?
3
Os exemplos, em molduras, foram transcritos das sessões de discussão. O uso do negrito visa destacar elementos e seqüências de
modo a facilitar a demonstração do aspecto em exame. As iniciais foram usadas para preservar a identidade dos informantes.
4
Cf. anexo I.
5
Este estudo leva em conta uma noção ampliada de contexto, manifestada em trabalhos que expandem o conceito, considerando-
se não somente o contexto situacional, ligado ao aqui e agora da situação, mas a aspectos relacionados à cultura, à
comunidade discursiva dos locutores e aos papéis por estes desempenhados e, sobretudo, às representações que os sujeitos fazem
de si mesmos e de seus interlocutores, bem como da situação enunciativa (Duranti e Goodwin, 1992; Van Dijk, 1992; Mondada
e Dubois, 1995; Kerbrat-Orecchioni, 1996; Kleiber, 1997a,b; Bronckart, 1999; Marcuschi, 2000; Koch, 2002).

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demonstrar os movimentos perceptíveis, nas ações Parâmetros de ação de linguagem e cons-


dos sujeitos-informantes, dos processos inferenciais, trução da referenciação
ativados por conhecimentos pragmáticos que permi-
tiram construir a referenciação. Em resposta à primeira questão do questioná-
rio, dos 21 leitores envolvidos na experiência, três
“Considerações sobre ela, sem dizer seu responderam que ela referia-se à “mídia”, aos “meios
nome” – das condições de ação de lingua- de comunicação” e à “palavra” e 18 informantes dis-
gem às operações textuais e lingüísticas seram ser a “a morte”. Como pistas, indicaram parti-
cularmente passagens contidas no primeiro, segun-
Embora não seja preocupação deste estudo a do, terceiro e sexto parágrafos.
explicitação das categorias envolvidas na determi- Vale destacar que os leitores evidenciam que
nação do gênero textual, cabe comentar a opção pelo conhecem o funcionamento do gênero de texto e os
texto de entrada do corpus. Classificado como ‘en- “objetos-de-discurso” que ali podem estar representa-
saio’ pelo próprio veículo de sua publicação, o texto dos. Perguntados sobre os objetivos do texto, os in-
revela características emergentes das inter-relações formantes recorrem reiteradamente ao verbo mostrar,
entre as condições de produção e as “ações de lin- além de utilizarem outros, como demonstrar, falar (de)
guagem” possíveis pelo gênero. e expor. Esses dados nos levam a pensar na relevância
Segundo Burke (2003), o ensaio, tal como é do conhecimento do gênero para a referenciação. Em
praticado pela mídia brasileira, não se baseia em momento algum eles pensam no texto como uma narra-
“pensamento rigoroso nem em pesquisa extensi- tiva, uma história em que se relatam fatos, aconteci-
va”, mas busca a adesão do interlocutor para as mentos, envolvendo ações de personagens, em deter-
ponderações apresentadas. Também para Arrigucci, minados espaços. As estratégias inferenciais do sujei-
em entrevista a Castello (1999), mais do que erudi- to-leitor são mobilizadas a partir da interpretação dos
ção, ao ensaísta é preciso empatia com o objeto conhecimentos da situação de “ação de linguagem”,
examinado. Em uma ótica interacionista, encaro o concretizados em práticas discursivas socialmente
ensaio como fruto de um processo que se define no determinadas – os gêneros textuais.
próprio trajeto da argumentação. Isso pode expli- Algumas passagens dos depoimentos deixam
car a presença de índices de interatividade: na in- claro o movimento de constituição da referenciação
clusão do locutor ao exposto, pelo uso da primeira pelo processo inferencial e pela ativação de elemen-
pessoa (Estamos nós no aconchego do nosso tos conhecidos por meio da experiência social, a par-
mundinho...), na indagação direcionada ao tir do cotexto informacional. Interessante notar que
interlocutor (Como pudemos nos acreditar tão es- leitores que construíram de maneira diversa a
táveis?), nos exemplos e nas citações que dão sus- referenciação do texto, muitas vezes, seguiram as
tentação à tese e que remetem a conhecimentos mesmas pistas. A sessão de discussão do G2 a res-
partilhados pelos interlocutores. peito do texto parece demonstrar que as atividades
A exemplo de Bronckart (1999, p. 77), penso inferenciais situadas podem ter sido decisivas para
que a caracterização de um texto depende de crité- essa multiplicidade de leituras. Observem-se os per-
rios variados: situações de comunicação, modelos cursos vividos por D, para construir a referenciação
dos gêneros, modelos dos tipos discursivos, re- de ela como ‘palavra/fala’ e, da mesma forma, os con-
gras do sistema da língua, além de decisões parti- tra-argumentos de M, defendendo a leitura de
culares do produtor. O autor sugere que se deve ‘morte’para o texto:
partir da análise das “condições sócio-psicológi-
cas das produções dos textos” para, em seguida, Exemplo 1
examinar “suas propriedades estruturais e funcio- 2.D- (...) eh eh eh deix’eu ver outra coisa
que...((lendo o texto)) também falou assim... eh...
nais internas”. eu acho também por questão de falar/falando que
Os questionários respondidos pelos infor- eu acho que é a fala e não que seja a morte
mantes e os depoimentos parecem demonstrar que o porque aqui ele ele ele faz um comentário sobre::
processo de referenciação foi-se efetivando a partir que às vezes eu já li... eh eh eh coisas sobre ele né?
(finalmente) fala no contexto da história... o que
de uma rede de fatores, de ordem lingüística e tá passando na história? o que tá falando aí... e eu
extralingüística, envolvidos na interação, como ve- acho que a morte não encaixa de jeito nenhum
rificaremos a seguir. ((riso)) quer ver ó? aqui fala do poder ( ) depois

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de aniquilar pessoas entendeu? depois de destruir a partir do título “Considerações sobre ela...” convoca
pessoas... a palavra tem esse poder de de de des-
o leitor a participar do desafio da construção conjunta
truir de aniquiLAR... tá falando aqui eh eh eh de
retomar sei lá a vida e tudo... eh... deix’eu ver com da interpretação do texto. Passagens dos depoimentos
o texto aqui o que acho... permitem a verificação desse processo:
Exemplo 3
Exemplo 2 56.D- olha aqui... ele falou assim... “considera-
4.M - eu discordo... igual ela falou essa parte ções sobre ela sem dizer seu nome” quer di-
“a grande ilógica e grande deso/deso/desordenadora zer que ele deixou pra VOCÊ... você
penSAR.... você eh:::: adivinhar quem que é
é também a grande dese/desequilibradora... “estamos ela.... ele deixou...o próprio/a a:: o próprio
nós no aconchego do nosso mundinho acreditando título do texto eu acho que ele deixou pra
na solidez do chão em que pisamos quando ela avan- você eh eh classificar quem que você acha
ça como um tornado e de repente fulminantemente de que é ela... agora aqui teria que levar em conside-
ração o contexto histórico... só acho isso... G2
repente vira tudo de cabeça pra baixo” e aí (começa)
“na tragédia”... traGÉdia já fala que num/não pode O exemplo 3 pode demonstrar como os leitores
ser a palavra nunca né? encaram com naturalidade o fato de, em determinadas
situações e, dependendo do texto, não haver neces-
Em textos como os do corpus, em que a am- sidade de explicitar o referente, tarefa a ser desempe-
bigüidade é propositadamente instituída, é necessá- nhada pelo leitor. O depoimento parece sinalizar para
rio que os leitores lancem mão de outras estratégias o fato de que uma das condições para a referenciação
de constituição da referenciação. A inferenciação, nes- pode ser o reconhecimento das estratégias de dizer,
se caso, passa a ocupar um papel decisivo para lidar, ou seja, o que é possível dizer por meio de determina-
sobretudo, com os componentes lingüísticos, como dos gêneros. Nesse aspecto, constata-se, como afir-
se constata em um comentário presente na resposta à mara Bakhtin (1997), que o sujeito não recebe de for-
questão 2 do questionário: Somente no final do texto ma passiva a “significação (lingüística) de um discur-
é que percebi a quem o autor se referia a “morte”. so”, mas, ao contrário, responde ativamente, concor-
Depois voltei ao texto e fui encaixando (G3-D). dando ou discordando, participando da ação.
É preciso lembrar que o ensaio de Roberto A meu ver, a dinamicidade da construção de
Pompeu de Toledo ocupa um determinado espaço da contextos no processo da referenciação é ainda mais
revista Veja – a seção Ensaio – que, em geral, dá lugar evidente nos gêneros do domínio jornalístico. O des-
a comentários sobre fatos do cotidiano que merecem/ conhecimento de certos fatos é apontado pelos infor-
mereceram destaque no noticiário da semana. Assim, mantes para justificar a impossibilidade de trilhar ou-
esse gênero é determinado diretamente pelas repre- tra trajetória de leitura:
sentações do contexto social imediato, o que leva a
crer que as representações do enunciador/ensaísta a Exemplo 4
respeito de seus enunciatários/leitores também deter- 17.D- é aí que eu falo... aí vem o contexto históri-
co... EU na época eu não lia eu num num num tava
minam a produção de sentidos. A mobilização de re- por dentro... eu não SEI o que aconteceu dia vinte e
presentações a respeito da “situação de ação” não é nove de abril de MIL novecentos e noventa e oito...
tarefa exclusiva do sujeito-leitor, mas constitui igual- 18.S - não... eu não tô falando de contexto...
mente a base da ação do sujeito-autor, no momento de 19.D - o contexto histórico... PRA MIM ENTEN-
DER ISSO AQUI... pra mim entender isso aqui eu
decidir por uma estratégia para sua “ação linguageira”. teria que saber o que tava se passando na poLÍtica
A decisão por uma ou outra interpretação não na VIda na sociedade... o que tava passando durante
se deve, portanto, somente à significação lexical dos a semana porque isso aqui é um texto da Veja e eles
termos, mas a uma contextualização de todos os com- comentam o que aconteceu na semana entendeu?
(eu não sabia... eu num... coisa) e realmente hoje
ponentes, em interação no texto. Por isso mesmo, a você falando isso eu lembro do/desse cara aqui... o
análise de enunciados soltos, tal como apresentava a filho morreu e tudo...
semântica formal, não satisfaz as condições de
referenciação, dada a impossibilidade de se estabele- Exemplo 5
cerem relações construídas na enunciação. 107.C- essas coisas podem ser consideradas
Cabe salientar que certas estratégias utilizadas como palavra...sabe por quê? mas a questão que eu
tô discutindo aqui não é isso... é que o contexto me
no texto buscam ativar processos muito mais comple- leva a pensar nisso... porque isso aqui pode ser uma
xos de inferenciação. A relação catafórica estabelecida outra coisa também... mas aí é que tá o contexto do

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texto que vai te levar a pensar no objetivo do au- mos estar antes tão desprevenidos ?; Como pude-
tor... não é se leva à palavra ou não... eh... se tudo mos nos acreditar tão estáveis?
tá levando à palavra entendeu? É essa que é a ques-
tão... que eu Os segmentos interrogativos também podem
ser vistos como tentativas de tornar o DT mais
De acordo com as ”coordenadas gerais dos interativo, uma forma mais ‘democrática’ de buscar a
mundos” (EXPOR e NARRAR), no modelo apresen- adesão do interlocutor ao que é dito: Não é raro ele-
tado por Bronckart (1999), o texto em análise perten- ger-se um presidente e, antes mesmo da posse, sobre-
ceria ao mundo do EXPOR, por organizar-se em “con- vir seu desaparecimento?
junção” ao mundo ordinário do agente-locutor, como A instauração da temporalidade/espacialidade é
atestam os exemplos fornecidos notadamente nos dois regulada pelos “parâmetros de ação de linguagem”.
primeiros parágrafos do ensaio. Quanto às relações Quando se fala de enunciação, fala-se de um enunciador
estabelecidas entre os agentes, que determinam a “im- que se situa diante de um enunciatário, em um tempo e
plicação” e a “autonomia” aos parâmetros físicos da um espaço para construir a referenciação. No ensaio
ação de linguagem, o texto está “implicado” ao ato de analisado, a operacionalização dos elementos que cons-
produção, evidenciado pelos índices de pessoa e de tituem a instância enunciativa é possível pelo
tempo: É o momento em que nos lembra que não agenciamento de processos dêiticos de espaço e de tem-
relaxou sua vigilância, a nós que tantas vezes [...]; po: o raio que agora desaba; acontece agora; os even-
tos da semana passada; nesta era sem fé. O discurso
Isso aconteceu em 1982 [...] e acontece agora [...],
instaura o seu ‘agora’ em função da data de publicação
Cadê o norteado dos eventos da semana passada?.
do texto na revista. Inscrito num espaço temporal – o
O fato de estar “implicado” em relação ao pla-
ensaio foi publicado em 29 de abril de 1998 –, o
no da enunciação inviabiliza, em princípio, o
enunciador organiza seu discurso a partir de determina-
enquadramento do texto no “Discurso Teórico” (DT),
das representações, entre elas a de que o leitor tenha
do eixo do EXPOR. Bronckart (1999, p. 159-161, 170-
conhecimentos suficientes sobre os fatos ali expostos.
174) vê o DT como um ‘monólogo’ em que prevale-
O processamento dêitico não determina so-
cem procedimentos típicos, tais como: predominân-
mente uma localização temporal de base ‘fisicalista’,
cia de frases declarativas, com uso dos verbos no
mas coopera para organizar o raciocínio
tempo presente, além de utilização de organizadores
argumentativo do locutor. O predomínio do tempo
com valor lógico-argumentativo, ao lado de estratégi- presente confirma uma das características dos textos
as metatextuais e intratextuais. do eixo do EXPOR, segundo Bronckart (1999, p. 171).
No ensaio “Considerações sobre ela...”, o que O tempo presente é considerado por Weinrich (1973),
se tem é um ponto de vista sobre a morte, uma percep- em sua análise dos tempos verbais, no idioma fran-
ção de um indivíduo sobre a morte, a partir de suas cês, como o tempo que indica uma atitude de maior
experiências ligadas ao aqui/agora da enunciação, o comprometimento do locutor com o que é enunciado,
que o torna “implicado” ao ato de produção. Também evidenciando uma tomada de posição a respeito do
por pertencer à instância jornalística, de veiculação que é tratado no discurso. Acredito ser esse recurso
semanal, o texto encontra-se estreitamente relaciona- também muito utilizado em língua portuguesa, embo-
do aos acontecimentos que se situam no entorno dos ra as reflexões do locutor possam ser apresentadas
sujeitos (locutor/alocutário), tornando-se difícil sus- nos tempos do pretérito, como atestam outros textos
tentar uma “autonomia” em relação a sua situação de da mídia impressa.
produção. Nesses termos, reitero a importância dos Instaurado no tempo presente, a serviço, como
conhecimentos partilhados, sobretudo em textos do já se disse, da atitude comentadora, o discurso do
mundo do EXPOR, na esfera do jornalismo. enunciador cede espaço para outros discursos. Tal
Os pronomes de primeira pessoa e os adjeti- recurso de dar ‘voz’ a outros enunciadores, ao longo
vos modificadores empregados pelo sujeito-locutor do texto, pelo agenciamento da dêixis temporal, é pro-
reforçam o envolvimento deste com o seu discurso, movida pelos verbos ‘de dizer’, no
evidenciando a “implicação” aí existente: É o momen- pretérito:“Comentando a dupla perda para o presi-
to em que nos lembra que não relaxou sua vigilân- dente Fernando Henrique Cardoso, disse o secretá-
cia, a nós que tantas vezes...; Norteamo-nos nessa rio de Direitos Humanos do governo, José Gregori:
era sem fé, pela sabedoria do mundo.; Estamos nós “É como se tivesse ocorrido um desastre aéreo.” (§1);
no aconchego do nosso mundinho...; Como podía- “Por que não eu?”, dizia o senador Antonio Carlos

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Magalhães. É a pergunta que todo pai se faz diante neros do mundo do EXPOR, ao lado de segmentos
do filho que vai embora.”(§2); “Creio porque é ab- narrativos. Se analisarmos os segmentos descritivos,
surdo, dizia Tertuliano, formulador do cristianismo no texto, verificaremos que, contrariamente ao grau
nos primeiros anos.”(§3). A entrada de outros de autonomia que costumam apresentar em relação
enunciadores no texto reforça os argumentos e en- ao objeto retratado (Bronckart, 1999, p. 245), em tex-
dossa a tese defendida pelo locutor. Tal recurso é apon- tos da ordem do EXPOR (monografias, textos
tado como pistas pelos leitores e parece ter sido rele- ensaísticos, didáticos etc.), as descrições subordinam-
vante na construção do propósito discursivo do se à visão do produtor, a exemplo do que acontece em
enunciador e, portanto, da referenciação. textos da ordem do NARRAR. Em “Considerações so-
A ativação de outros tempos, particularmente o bre ela...”, é bastante freqüente a recorrência às descri-
pretérito, ocorre também para evocar fatos pertencentes ções definidas: A Grande Ceifadeira não tem lógica
a momentos anteriores à enunciação, ao ‘agora’ do ato nem discrimina.[...] A Grande Ilógica, a Grande
de produção: Pois aconteceu isso não só com Tancredo Desordenadora é também a Grande Desequilibradora.
Neves, em 1985, mas (...)”. Também as referências re- Isso parece frisar que as seqüências descriti-
trospectivas estão arroladas entre as pistas indicadas vas assumem um papel significante na construção da
pelos leitores, na questão 2 do questionário. Saliente-se argumentação do texto. No ensaio analisado, elas
que o uso do pretérito, no texto, particularmente no se- carregam grande parte da força necessária à tarefa
gundo e no quarto parágrafos, ativa as exemplificações retórica pretendida pelo sujeito-produtor, o que se
que sustentam a exposição do autor, mostrando uma confirma também nas pistas fornecidas pelos infor-
fusão entre a exposição e a narração. mantes: Ela, a Inominável, a Indesejada das Gentes,
Além do agenciamento de tempos verbais, as mostra nessas ocasiões um fôlego de corredor de
expressões adverbiais e os advérbios também marcam maratona.; A Grande Ceifadeira não tem lógica nem
a temporalidade do texto, como, por exemplo, o advér- discrimina.; “Ela”, a Inominável. “Ela” que, além
bio agora. Dois leitores, S. do G2 e F. do G1, valeram- de Grande Ilógica e Grande Desordenadora, é tam-
se de passagens do texto que sinalizam as datas dos bém a Grande Perversa.
eventos, como se verifica em: “os desaparecimentos No ensaio, considerando o estatuto conferido
do ministro Sérgio Motta e do deputado Luís Eduar- aos segmentos descritivos, em relação aos segmentos
do Magalhães.Tancredo Neves em 1985...(S., G2); argumentativos e explicativos, creio que aqueles não
“pois aconteceu isso não só com Tancredo Neves em podem ser avaliados como um tipo secundário, como
1985, mas com Rodrigues Alves, em 1918.” (F., G1) sugerem algumas análises propostas por Bronckart
Diante desses dados, pode-se pensar que, em (1999, p. 243-247). Na planificação do texto, as seqüên-
um gênero como o ensaio jornalístico, alguns elemen- cias descritivas não parecem estar subordinadas aos
tos circunstanciais, notadamente os que localizam os tipos chamados de “dominantes”, mas ocupam uma
eventos temporalmente, são mobilizados tendo em função importante de orientação da argumentatividade.
vista o objetivo do produtor de tornar preciso seu As seqüências descritivas parecem buscar a adesão
discurso, isto é, de dar veracidade ao seu texto. Essa do enunciatário às teses que lhe são apresentadas.
estratégia aparece com mais evidência na organização Embora não tenha sido devidamente
do segundo parágrafo. aprofundada, esta análise permite asseverar que a
Tal constatação também pode apontar para a composição textual de certos gêneros, pela
construção de “mundos discursivos específicos” de heterogeneidade de operações de engendramento às
que fala Bronckart (1999, p. 281). A ordem do EXPOR, “coordenadas gerais do mundo”, pode não
na qual pode ser enquadrado o ensaio em estudo, corresponder necessariamente aos sistemas de de-
destaca-se sobretudo pela possibilidade de situar os marcação tais como os segmentos e “tipos
dados e os eventos no eixo de um tempo datado, como discursivos” apresentados pelo aparelho conceitual
já afirmei acima. Nesses termos, o “conteúdo temático” de Bronckart. O próprio autor (1999, p. 254) avalia a
é construído a partir de fatos confirmados no mundo complexidade da organização de certos gêneros que
ordinário. se estruturam a partir da interação entre processos
Em relação aos segmentos que o compõem, o diversos de composição, tendo em vista as condi-
texto apresenta planificação heterogênea, podendo ser ções enunciativas estabelecidas por essas práticas,
identificados segmentos descritivos, explicativos e e chega a admitir esses segmentos como “tipos mis-
argumentativos, mais comumente empregados em gê- tos”, pertencentes a “discursos mistos”.

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No caso do texto analisado, creio que o BRONCKART, J.-P. 1999. Atividade de linguagem, textos e
discursos – por um interacionismo sócio-discursivo. São
agenciamento de determinadas operações – apresen- Paulo, EDUC, 353p.
tação de dados, exemplos e fatos retirados do noticiá- BRONCKART, J.-P. 2004. Les genres de textes et leur
rio ou da história da humanidade – é decisivo para a contribution au dévelopement psychologique. Langages,
153:98-108.
construção da argumentatividade do texto e reflete es- BURKE, P. 2003. Um ensaio sobre ensaios. Disponível em
tratégias próprias do raciocínio indutivo. São dados <http://www.eliteintegral.com.br/
singulares fornecidos pelo enunciador, que passam pelo conteudo.asp?codpg=52>. Consulta realizada em 01/12/
2003.
seu crivo particular, e se encaminham para a conclusão CASTELLO, J. 1999. A prática do ensaio com elegância e
final, respaldada pela citação do poeta português firmeza. Estado de São Paulo, Caderno 2, 5 de junho.
Fernando Pessoa. Em vista disso, permito-me ver esse DURANTI, A. e GOODWING, C. 1992. Rethinking context:
in a introduction. In: A. DURANTI e C. GOODWING
ensaio jornalístico como um misto de DISCURSO e (orgs.), Rethinking context: language as an interactive
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Neste trabalho, procurei demonstrar que a SCOLIA, 6:39-60.
KLEIBER, G. 1997a. Sens, référence et existence: que faire de
referenciação não é um processo que se limita so- l’extra-linguistique? Langages, 127:9-37.
mente à ativação de itens lexicais em um texto. Os KLEIBER, G. 1997b. Quand le contexte va, tout va et...
investimentos no nível da produção do texto podem inversement. In: C. GUIMIER, Co-texte et calcul du sens.
Caen, ELSAP-CNRS; Univ. Caen, p.11-29.
ser observados nos movimentos interpretativos de- KOCH, I.V. 2002. Desvendando os segredos do texto. São
tectados nos dados recolhidos no experimento. Por Paulo, Cortez, 168p.
mais que pudéssemos julgar imprevisíveis os com- LOPES, M.A.P.T. 2004a. Processos inferenciais de
referenciação na perspectiva sócio-discursiva. Belo Ho-
portamentos interpretativos dos leitores, é conveni- rizonte, MG. Tese de doutorado. FALE/UFMG.
ente dizer que as peculiaridades do gênero ensaio LOPES, M.A.P.T. 2004b. Referenciação e gênero textual –
jornalístico, decorrentes de sua organização sintáti- atividades sócio-discursivas em interação. In: I.L. MA-
CHADO e R. de MELLO (org.), Gêneros: reflexões em
ca, semântica e pragmática, em função dos usos so- análise do discurso. Belo Horizonte, Núcleo de Análise
ciais desse gênero – dos conhecimentos da situa- do Discurso/POSLin, FALE/UFMG, p. 205-219.
ção de “ação de linguagem” –, conduziram a ativida- MARCUSCHI, L.A. Anáfora indireta: o barco textual e suas
âncoras. Trabalho apresentado na IV Jornada do CelSul,
de de referenciação. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, novembro de
O exame permite mostrar que a produção de 2000, 39p. (digitado)
sentidos não pode ser vista como o resultado de MONDADA, L. e DUBOIS, D. 1995. Construction des objects
de discours et catégorization: une approche des processus
uma ação de decodificação, em que os objetos estão de référenciation. TRANEL (Travaux neuchâtelois de
dados para serem referidos por um leitor. O proces- linguistique), 23:273-302.
so de referenciação desenvolve-se de forma dinâmi- POSSENTI, S. 1993. Discurso, estilo e subjetividade. São
Paulo, Martins Fontes, 218p.
ca, na interação, segundo contextos diferenciados, SCHNEUWLY, B. 1994. Gêneros e tipos de texto: considera-
e as atividades de constituição de sentidos, em lu- ções psicológicas e ontogenéticas. (Tradução Roxane Rojo)
gar de representar objetos do mundo ‘real’, ‘objeti- In: Y. REUTER (ed.), Les interactions lecture-écriture
(Actes du Colloque Théodile-Crel). Bern, Peter Lang, p.
vo’, atuam sobre “objetos de discurso” (Mondada e 155-173.
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Maria Angela Paulino Teixeira

Processos de referenciação – ações cognitivas e sociodiscursivas em interação 39


Calidoscópio

Anexo 1

40 Maria Angela Paulino Teixeira Lopes

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