Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Resumo
Há um consenso na historiografia sobre o século XVII com relação àquilo que se
denominou de “século da crise”, em que tanto o Estado quanto a Igreja procuraram controlar
as consciências, regulamentar as condutas e homogeneizar as atitudes e sentimentos.
Este trabalho pretende mostrar como, ao mesmo tempo, desenvolveu-se, impulsionado
principalmente pela Companhia de Jesus, um forte movimento intelectual, moral e jurídico,
conhecido com o nome de Probabilismo, que procurou defender e garantir a autonomia da
consciência individual.
A análise será feita a partir da obra do jesuíta alemão Hermann Busenbaum, Medulla
Theologiae moralis, que teve mais de 150 edições em diferentes línguas e lugares e foi uma
das mais elogiadas e, ao mesmo tempo, criticadas na sua época.
PALAVRAS-CHAVE
Jesuítas, Probabilismo, Hermann Busenbaum
Jesuits, Probabilism, Hermann Buseenbaum
Jésuits, Probabilisme, Hermann Busenbaum
Jesuitas, Probabilismo, Hermann Busenbaum
Introdução
Um livro clássico sobre o século XVII é a obra de Maravall (MARAVALL, 1986). O
seu ponto de vista pode ser resumido a partir da enumeração dos capítulos da sua Segunda
Parte: “uma cultura dirigida”, “uma cultura massiva”, “uma cultura urbana” e “uma cultura
conservadora”.
Diante de uma consciência generalizada de crise, diferentes agentes e grupos sociais
procuraram uma resposta para a mesma, enquanto que, de acordo com Maravall, a Monarquia
absoluta usou de todos os instrumentos que possuía “para submeter os diferentes fatores que
pudessem levantar-se contra a ordem vigente” (MARAVALL, 1986, p. 71). Todas as tentativas
que procuraram aumentar ou promover espaços de autonomia ou de liberdade foram
submetidas “ao modelo estamental, na conservação da estrutura tradicional da sociedade (...)
sob uma poderosa e férrea ordem social que as sujeita e reorganiza” (MARAVALL, 1986, p.
91).
Nesse sentido, o século XVII aparece como um século de crise, porém “dirigido”, em
que se procurava, por meio da política, da religião, da economia, da ciência, das letras e das
artes, manipular os comportamentos humanos até tal ponto que pudesse ser previsível
controlar os resultados que seriam obtidos nos mais diversos campos do saber, do viver e do
existir (MARAVALL, 1986, p. 147).
Toda essa política, como têm ressaltado os trabalhos em torno do que veio a ser
conhecido como “disciplinamento da alma, do corpo e da sociedade” (PRODI, 1994) tendia
a criar um pensamento único que apontasse para soluções e resultados também únicos e
singulares, e trouxe como consequência a edição de inumeráveis manuais de todos os tipos:
manual para cortesãos, manual para Príncipes e Reis, manual para mercadores e manual para
confessores e penitentes. Como dizia Paolo Prodi,
numa visão superficial, podem parecer predominantes os aspectos de continuidade com a
grande produção de sumas para confessores e de manuais para penitentes durante a tardia
Idade Média, contudo, se olharmos mais profundamente -sem levar em conta a imponência
quantitativa do fenômeno- nos surpreenderemos com o novo esforço dirigido à construção de
1
um sistema normativo da consciência. (PRODI, 2005, p. 365).
Caro Baroja resumia bem todo esse esforço quando afirmava que “havia manuais e
guias para penitentes escritos anteriormente, contudo pode dizer-se que, ao longo do século
XVI foram escritos os mais famosos e até meados do século XVII os mais criticados” (CARO
BAROJA, 1995, p. 296).
A questão historiográfica que habitualmente tem sido colocada com relação à
proliferação de toda esta literatura casuística e de manuais tem girado em torno à sua
finalidade. Alguns historiadores tendem a defender a hipótese de que se trata de uma prática,
da parte dos detentores do Poder -Igreja e Estado- engessadora e uniformizadora de todos os
aspectos da vida, enquanto que outros tendem a identificá-lo com soluções flexíveis e laxistas.
Este artigo procurará mostrar como o Probabilismo foi uma tentativa, muito bem
elaborada e extremamente consistente, tanto do ponto de vista intelectual quanto do moral
(MARYKS, 2008, p. 48) para transitar entre essas duas possibilidades, sem identificar-se, nem
com uma atitude engessadora nem com uma atitude laxista, permitindo assim, dentro de um
mundo inseguro e incerto e com tendências absolutistas e centralizadoras, que cada pessoa
formasse o seu próprio critério e agisse conforme ao seu livre arbítrio, seguindo a sua própria
consciência
2
moderna e uma ruptura com a tradição ética medieval, porque denotava “um alto grau de
subjetividade, de responsabilidade e de interioridade” (MARYKS, 2008, p. 117).
Voltando a Baroja para resumir o que foi dito até aqui, os católicos rigoristas, os
jansenistas, bem como alguns anglicanos e protestantes, enfrentaram-se contra os
probabilistas, a quem acusavam de serem a ruina do Estado, da Igreja e a fonte de corrupção
dos costumes (CONCINA, 1773, p. I), enquanto que muitos outros perceberam que o
Probabilismo “significou abrir os olhos, de um lado, a um mundo de obscuríssimas realidades
psicológicas e, de outro, à enorme variedade de modos de comportamentos dos homens em
umas sociedades determinadas” (CARO BAROJA, 1995, p. 544).
3
que os pontos de vista nas questões morais não são certos, mas opinativos” (MARYKS, 2008,
p. 120).
Estava, portanto, em andamento, se não uma revolução, sim uma profunda reforma na
Teologia Moral católica, cujo epicentro era o Colégio Romano da Companhia de Jesus e, de
Roma, propagou-se imediatamente às províncias (MARYKS, 2008, p. 88).
4
como o paradigma da Teologia moral católica.
De fato, a obra de Busenbaum foi, sem dúvida, um divisor de águas dentro de Teologia
moral católica. Como dizia o Professor de Direito da Universidade de Bolonha, Ângelo
Franzoja, um século depois, e um dos seus maiores críticos,
a obra de Busenbaum, de forma fácil e simples, é lida e divulgada pela sua grande variedade e
multidão de opiniões (...) de tal maneira que, com Busenbaum, último epílogo dos opinadores
versáteis, impugno não apenas o próprio método versátil de opinar, mas também suas opiniões
corruptas. (FRANZOJA, 1760, p. XI).
O que parecia uma das melhores, mais claras e mais sistemáticas obras sobre toda a
matéria moral católica tinha chegado a ser um dos piores tratados de moral. O que defendia e
o que representava a Medulla Theologiae de Busenbaum?
3
Sigo aqui a novena edição do Mosteiro de Westfália: Medulla Theologiae Moralis facili ac perspicua
methodo resolvens casus conscientiae ex variis probatisque authoribus concinnata. Editio nona ab Auctore
recognita e a mendis repurgata. Monasterii Westphaliae, Typis Bernhardi Raesfeldi, 1659.
4
BUSENBAUM, H., op. cit., Praefatio ad lectorem benevolum: “Medio tutissimus iturus, extrema plus aequo,
vel laxa, vel angusta declinare sum conatus”
5
Não parece ser casual o uso da expressão 'tutissimus' para indicar como estava seguro com a sua via média.
Dentro de todo o debate sobre o probabilismo, a via “tutior” – a mais segura - era entendida como aquela que
seguia o que a lei indicava e, em geral, era defendida pelos rigoristas.
6
“Versatiles opinatores mediam viam ineuntes nec veritatem, nec falsitatem profitentur sed probabilitatem,
quae nec veritatis amica est, nec falsitatis inimica, sed utrique promiscue adheret. Hoc porro nihil aliud est
quam daemonem cum Deo copulare”.
7
“Conscientia est dictamen rationis, seu actus intellectus, quod judicamus aliquid hic et nunc agendum,vel
omittendum esse, vel fuisse, tamquam bonum vel malum”.
5
revolucionária – era que, antes de qualquer discussão sobre os atos humanos e as suas
qualificações morais, era a pessoa concreta quem tinha de formular um juízo sobre o que iria
fazer ou o que tinha feito, para ver se era bom ou mau, se devia fazê-lo ou omiti-lo, ou se
devia tê-lo feito ou omitido.
Isso não queria dizer que qualquer juízo fosse acertado, nem significava – como seus
críticos diriam – que cada um poderia pensar como bem entendesse ou quisesse sobre o certo
e o errado, sobre o bom e o mau. Pelo contrário, o que queria dizer era que quem deveria
primeiramente julgar sobre a moralidade dos atos era a pessoa, o próprio agente ou autor da
ação ou omissão. E isso em dois momentos: aqui e agora, na hora da ação, ou depois,
refletindo sobre os atos cometidos.
Se o juízo fosse verdadeiro – ou seja, se julgava como mau o que era mau, e julgava
como bom o que era bom – então a sua consciência era chamada de “reta” 8 (BUSENBAUM,
1659, p. 1). Mas poderia ocorrer que a pessoa se confundisse e “chamasse de bom àquilo que
era mau”9 (BUSENBAUM, 1659, p. 1). Nesses casos, a consciência não seria “reta”, mas
“errônea”, porque julgar dessa forma era um erro10 (BUSENBAUM, 1659, p. 1).
O erro poderia ser devido a duas causas: ou era um erro que poderia ter sido evitado –
denominava-se, então, “vencível” – ou não poderia ter sido evitado – “invencível” 11
(BUSENBAUM, 1659, p. 1). Era outra forma de tratar do tema da responsabilidade, do dolo e
da culpa. No caso de um erro “vencível” havia culpa, no outro caso, não, porque nem sequer
poderia ser entendido como voluntário. O decisivo, então, era que, para Busenbaum, tanto a
consciência “reta” quanto a “errônea invencível” deveriam ser seguidas, porque, na sua
opinião, dada a condição falível da natureza humana 12, o que importava não era acertar ou não
e, sim, ter honestidade e retidão interior, no íntimo da consciência. Por isso, uma pessoa
poderia efetivamente enganar-se e praticar uma ação errada ou má, pensando que era boa, mas
se esse erro não era deliberado, se fosse um engano “invencível”, então a pessoa não deveria
ser condenada por tê-lo seguido13 (BUSENBAUM, 1659, p. 1).
Parece-me que um exemplo dado pelo jesuíta será suficientemente ilustrativo. Trata-se
da mentira. O moralista afirmava que se alguém mentisse para livrar o próximo de um perigo
de vida, pensando que assim estava sendo misericordioso, fazia um ato bom e, se não
mentisse, pecaria contra a misericórdia14 (BUSENBAUM, 1659, p. 2). O que importava,
portanto, não era propriamente o ato objetivo em si – se era ou não pecado ou crime o ato
objetivamente realizado – mas o aspecto subjetivo e íntimo da consciência individual.
Na minha opinião, o que significou um “passo moderno” não foi pensar que seria o
indivíduo quem constituiria a moralidade dos seus atos. Isso não estaria de acordo com a
moral católica e não foi dito pelo jesuíta. Mas o que sim era verdadeiramente moderno foi a
interiorização da objetividade moral dos atos humanos, embora não se falasse na sua obra de
“subjetivo” nem de “objetivo” (falava-se de “interno” e “externo”). Busenbaum fazia
referência, como já destacou Prodi, ao foro interno e externo e estava sentando as bases para
que a pessoa, concreta e individual, pudesse autodeterminar-se.
8
Haec communiter est recta dictans quod verum est.
9
Aliquando tamen non est recta, dictans aliquid aliter, quam sit, v. gr., esse bonum quod est malum.
10
Diciturque Erronea, quia contigit cum errore.
11
Diciturque Erronea, quia contigit cum errore: idque vel vincibiliter, seu culpabiliter, quando scilicet error
vitari potuit, ac debuit: vel invicibiliter, quando error moraliter vitari non potuit, ideoque nec voluntarius est
et consequenter non imputatur ad culpam: et hanc dicitur conscientia recta secumdum quid, sive in ordine ad
nos.
12
et hanc dicitur conscientia recta secumdum quid, sive in ordine ad nos.
13
Non tantum conscientia recta, sed etiam inculpabiliter erronea, dictans aliquid per modum praecepti,
obligat ut eam sequaris, et si contra facis, peccas.
14
Si quis mentiatur ad liberandum proximum ex periculo vitae, putans se ex misericordia ad id teneri, actum
bonum facit, et si non mentiatur, peccat contra misericordia.
6
A inevitabilidade do provável no campo moral e jurídico
O Probabilismo trouxe para o campo moral uma mudança. Com ele passava-se da
certeza medieval, que escolhera moralmente a via mais segura, normalmente a lei, para uma
incerteza moderna, em que se optava pelo provável
Se do ponto de vista da teoria do conhecimento, a maior parte dos autores modernos
optaram preferencialmente pelo método e a certeza, um método e uma certeza cartesianos, a
maioria dos moralistas e juristas ibéricos 15 fizeram uma opção, também moderna, pela
incerteza. Richard Morse, na sua obra sobre a cultura e as ideias nas Américas, explicava que,
nos momentos iniciais da Idade Moderna, estabeleceu-se um debate entre “ciência” e
“consciência”, entre “certeza objetiva” e “subjetiva” (MORSE, 1988, p. 31) e concluía que
desse embate nasceu “a estratégia probabilista que proibia afirmar uma certeza maior do que a
permitida pelo tema, mas, ao fazê-lo, autorizava opiniões prováveis quando a certeza era
impossível” (MORSE, 1988, p. 35).
Na esfera do jurídico, tudo isto não era uma questão exclusiva de teologia moral. A
questão ia muito além, porque “os comentadores civilistas e canônicos do XIV e do XV, os
cultos e os pragmáticos do XVI e XVII, os escolásticos de Salamanca, os juristas da Escola
Holandesa do XVII, os teóricos do direito natural, todos se dedicaram à mesma questão”
(PADOA-SCHIOPPA, 2001, p. 144). Seria dentro dessa situação e nessa altura que o âmbito
do crítico-moral se encontrou com o jurídico-processual:
Surge, de fato, neste momento um novo conceito, destinado a afirmar-se na Idade
Moderna e Contemporânea: a ideia de ‘certeza moral’ como fundamento necessário e
suficiente para pronunciar o juízo relativo aos fatos humanos. Ao seu redor, a certeza moral
faz surgir um elevado grau de ‘’probabilidade’ que um determinado fato (ou um conjunto
conexo de fatos) apresenta aos olhos do juiz. (PADOA-SCHIOPPA, 2001, p. 154)
Isto implicava que, dentro dos distintos níveis de certeza que se poderia alcançar,
qualquer pessoa poderia seguir uma opinião que fosse considerada como “razoável”, “apenas
razoável” ou “pouco razoável”, bem como ainda “muito pouco razoável”. Para Busenbaum,
qualquer pessoa tinha direito a seguir uma opinião provável e não poderia ser proibida de
segui-la16 (BUSENBAUM, 1659, p. 6). Mais ainda, poderia ser seguida a opinião provável e
menos segura, inclusive sendo uma opinião alheia, deixando de lado a própria opinião mais
provável e mais segura17 (BUSENBAUM, 1659, p. 6).
Isso significava que, em matéria moral e jurídica, poderia ser seguida qualquer opinião
desde que fosse provável, sendo que, como Busenbaum explicava, seguir uma opinião
provável era seguir uma opinião que estava apoiada em “uma autoridade de peso e em um
motivo que não era momentâneo”18 (BUSENBAUM, 1659, p. 6). Agir assim era agir
conforme os homens prudentes, ilustrados e peritos19.
O que em muitas obras de moral e de justiça era tratado de forma teórica e
especulativa, Busenbaum reduzia-o ao concreto e prático, aqui e agora. Se o critério da moral
e da justiça era o de um “homem prudente”, como se dizia geralmente, o que o jesuíta estava
15
O jurista do século XVII, Castillo Bobadilla, explicava, por exemplo, que uma lei única e geral para todos era
algo impossível e que convinha que, como dizia Aristóteles, a lei fosse tão flexível como a regra da ilha de
Lesbos, que se adaptava a todas as irregularidades do terreno.Cf. Política para corregidores y señores de
vasallos en tiempos de paz y de guerra, Medina del Campo, por Christoval Lasso e Francisco Garcia, 1608,
p. 386.
16
“Ratio est quia alter habet ius sequendi sententiam probabilem et hoc ius suum illi indicare non prohibeor.
Laym. l. I, t. I, c. 5, Bon. p. 9”.
17
“Absque peccato licet sequi opinionem probabilem, etiam alienam, et minus tutam (...) relicta probabiliore et
tutiore propria”.
18
“qui sequitur sententiam gravi authoritate vel non levis momenti rationem nixam (haec enim dicitur
probabilis)”.
19
“non agit temere, sed prudenter, sequendo nimirum virorum prudentium et artis peritorum consilium”.
7
introduzindo era que podia ser entendido como prudente aquela pessoa que seguisse qualquer
opinião provável, quer fosse muito provável, pouco provável ou apenas provável.
Era uma forma de controlar as mentes e os corpos? Era, talvez, uma forma sofisticada
de dominar as consciências? Na obra coletiva organizada por Paolo Prodi (PRODI, 1998), a
historiadora italiana Miriam Turrini aponta para a ideia de que o que se procurou durante a
Primeira Modernidade foi “uma ação disciplinadora realizada através da consciência do
indivíduo” (TURRINI, 1998, p. 293) e, mais especificamente, no campo da atuação pública
dos juízes, verificou-se um aumento progressivo do papel “judicial” do juiz-confessor,
passando a ter uma importância decisiva como elemento disciplinador da consciência do juiz
(TURRINI, 1998, p. 294).
Nesse mesmo sentido, e nessa mesma obra coletiva, o professor alemão de História
Moderna, Heinz Schilling, realizando um balanço historiográfico sobre as questões
relacionadas com os estudos sobre disciplinamento da alma e da sociedade na Primeira
Modernidade, afirma “que se chegou a um amplo consenso entre os historiadores de que a
disciplina eclesiástica tem uma dupla característica, sendo um fenômeno teológico-religioso e
um fenômeno histórico-político, ao mesmo tempo” (SCHILLING, 1998, p. 139). E, ao tecer
as suas considerações, comparando o disciplinamento católico e o calvinista, acrescenta que
“o elemento central específico da disciplina católica era a confissão (SCHILLING, 1998, p.
154), concluindo que a diferença fundamental estaria no fato de que, por meio do sacramento
da Penitência, em que se dava um diálogo entre o confessor e o penitente para “a
especificação do pecado” e, ao mesmo tempo, se estimulava a prática da confissão geral,
repetida em determinados intervalos de tempo, conseguia-se “uma biografia do pecado
enquanto tal e assim a evolução da pessoa em direção ao bem ou ao mal” (SCHILLING,
1998, p. 155). Uma das conclusões finais do seu artigo apontava para destacar que “na
confissão, depois do Concílio de Trento, procurava-se prioritariamente a disciplina interna do
sujeito pecador”, tentando chegar assim, por meio da Penitência, a que a pessoa fosse capaz
de auto-disciplina (SCHILLING, 1998, p. 156).
Busenbaum defendia que se alguém, no sacramento da Penitência, explicasse para o
confessor que tinha agido com retidão, seguindo uma opinião provável, se o confessor tivesse
uma opinião contrária ao do penitente, deveria absolvê-lo e aceitar a opinião provável do
penitente, mesmo que ele, o confessor, estivesse convencido de que a opinião do penitente
fosse falsa20 (BUSENBAUM, 1659, p. 6).
Não me parece que Busenbaum tivesse como finalidade controlar as consciências
quando afirmava que, em caso de divergência entre o penitente e o confessor, a opinião que
deveria prevalecer era a do penitente, e não a do confessor. Talvez por isso, os seus críticos,
interessados efetivamente no controle das mentes e dos corpos, acusavam-no de fornecer
desculpas para que os homens pudessem pecar tranquilamente (SAMPSON, 2002, p. 77) ou o
criticavam por ser uma doutrina que infectava toda a doutrina católica e provocava a
corrupção dos costumes, da Igreja e dos Estados (CONCINA, 1773, p. 125), ou, então,
catalogavam-no como um conjunto de argumentos sofísticos e contraditórios (FRANZOJA,
1760, p. 5).
Parece-me que o Probabilismo, principalmente com a obra de Busenbaum, abriu um
caminho novo, desde finais do século XVI e ao longo de todo o século XVII e metade do
XVIII, para tratar sobre os dilemas morais com liberdade e autonomia de consciência.
20
“Poenitentem, qui secundum opinionem probabilem operari vult, potest, imo secundum communem
sententiam debet Confessarius (...)sub mortali, absolvere, licet ipse judicet doctrinam illam esse falsam (...).
Ratio est quia recte dispositi non debet negari absolutio”.
8
imediatas. Como se sabe, o tema da verdade e da mentira, especificamente no campo
processual, provocou muitas reações e fortes debates 21, porque, dependendo da posição dos
juízes (fossem ou não mais ou menos probabilistas), haveria graves divergências à hora de
avaliar as provas, confirmar confissões ou escolher as testemunhas, com fortes incidências na
sentença final.
O teólogo jesuíta defendia que as testemunhas podiam evitar serem citadas, ocultando-
se ou fugindo22 (BUSENBAUM, 1659, p. 349) e, caso prestassem depoimento, não apenas
poderiam, mas deveriam não dizer tudo o que sabiam. Isto se aplicaria não apenas nos casos
de que a testemunha fosse um confessor ou um médico, mas também quando, por exemplo,
alguém tivesse receio de que, com o seu testemunho, poder-se-ia causar um dano grave a si
mesmo ou a outrem, ou, então, quando aquilo que sabia provinha de uma fonte pouco segura.
Busenbaum aconselhava que a testemunha se comportasse como se nada soubesse. Em todos
esses casos, as testemunhas poderiam, de acordo com a sua opinião, não dizer o que sabiam,
tendo em conta todas as circunstâncias que envolviam não só o caso e o réu, mas
principalmente, as próprias testemunhas, os seus familiares e o âmbito das suas relações
próximas23 (BUSENBAUM, 1659, p. 349).
Com relação à confissão judicial, considerada como a “rainha das provas”, quando era
feita perante o juiz, por pessoa maior de 25 anos, com plena consciência e sem ser forçado a
isso, nem por medo, nem por erro, entendia-se que, nessas condições, podiam ser dispensados
quaisquer outros meios de prova e o juiz estava habilitado a proferir a sua sentença
(MARTÍN, 1857, p. 222).
Sem embargo, Busenbaum opinava que o réu, se o juiz partisse de uma falsa
presunção, poderia negar os fatos, mesmo sendo mentira. Assim, por exemplo, se o juiz
perguntasse ao réu se tinha saído da casa onde se tinha praticado o crime, se, de fato, o réu
tivesse saído de tal casa, mas “por outra causa e não por causa do crime, o réu poderia negá-
lo” 24 (BUSENBAUM, 1659, p. 351). Como se pode deduzir, pelo exemplo, Busenbaum
deixava à consciência do réu decidir sobre se confessava ou não diante de uma pergunta do
juiz que o implicaria como possível autor do crime. O jesuíta explicava que cabia ao réu
“eludir o juiz, com palavras ambíguas, ou, inclusive, negando com alguma restrição mental e
com bom senso, de maneira que não falasse uma mentira”25 (BUSENBAUM, 1659, p. 350).
Mas era nos casos de crimes com penas capitais, de morte ou muito graves, que a
posição do teólogo se tornava mais revolucionária ainda 26. Busenbaum começava dizendo que
a doutrina comum e a mais verdadeira para esses casos era a de Tomás de Aquino, que previa
que o réu era obrigado, em consciência, a dizer a verdade 27 (BUSENBAUM, 1659, p. 351).
Contudo, continuava dizendo o jesuíta, se não fosse causar um dano grave à República, e o
21
Um artigo interessante é o de Johann P. SOMMERVILLE, The 'new art of lying': equivocation, mental
reservation and casuistry, in LEITES, E. (ed), Conscience and Casuistry in Early Modern Europe, p. 159-
184.
22
“si fugias aut occultes te antequam ad testandum citeris, non peccabis contra iustitiam(...) quia tibi necdum
est praeceptum”.
23
“Si accepisti sub secreto naturali, ut consiliarius, advocatus, medicus, etcoetera (...) Si ex testimonio, tibi vel
tuis, immineat notabilem damnum (...) Si a viris non sat fide accepisti, tunc enim potes te habere ac si nihil
scires.Si factum intellexisti per iniuriam, v.gr. aperiendo litteras, cogendo aliud ad revelationem, etcoetera.
24
“Si Reum juridice interroget Iudex, sed non nisis ex falsa praesumptione delicti, v. gr. an exierit ex tali domo,
stricto sensu, potest Reus (idem est de teste) licet sciat semiplene probatum esse, id negare, si exiit quidem,
non tamen facto delicto, sed ob aliam causam”.
25
“Si non interrogetur legitime, non tenetur fateri suum crimen, sed potest Judicem eludere, vel ambiguis
verbis, vel etiam negando, cum aliqua restrictione et in bono sensu, ut mendacium absit”.
26
O valor probatório da confissão do réu atualmente é bastante discutida e, em geral, dentro de quase todos os
sistemas legais não se obriga, por lei, a que o próprio réu confesse seu crime, tendo o direito de calar ou de
declarar-se inocente.
27
“Etsi communior et verior sententia sit S. Th. 2.2.q.69. si Reus legitime interrogetur a Iudice, teneri in
conscientia aperte dicere veritatem...”
9
réu não tivesse nenhuma esperança nem chance de escapar, então, poderia não dizer a
verdade. E, para fundamentar essa sua opinião, claramente contrária à de Aquino, citava as
opiniões de vários teólogos da sua época28 (BUSEMBAUM, 1659, p. 351).
O que me parece significativo aqui é que a decisão sobre as circunstâncias que
levariam ou não a dizer a verdade estava inteiramente na consciência do réu. Era uma solução
que afetava tanto o foro interno quanto o externo e o argumento em que Busenbaum
fundamentava a sua opinião era que, se o réu dizia a verdade nesses casos de pena capital, era
o mesmo que se lhe fosse dado uma arma para que a usasse contra si mesmo, e, concluía
Busenbaum, não se poderia pedir a nenhum ser humano um ato tão heroico 29 (BUSENBAUM,
1659, p. 352).
Ainda mais “avançada” era a posição do jesuíta com relação à sentença judicial,
porque, embora seguindo toda a tradição jurídica de que os juízes deveriam sentenciar
conforme às leis30 (BUSENBAUM, 1659, p. 337) e com o alegado e provado 31
(BUSENBAUM, 1659, p. 337), de maneira que os juízes inferiores, de primeira instância, não
podiam relaxar nem diminuir a pena, a não ser que se produzisse um grave dano à República
ou fosse necessário julgar pela epiquéia, imediatamente a seguir afirmava que esses mesmos
juízes poderiam julgar de acordo com a opinião menos provável 32 (BUSENBAUM, 1659, p.
338), o qual, na prática, deixava nas suas mãos um amplo poder de flexibilização e de
adaptação na aplicação das penas, na aceitação das testemunhas e dos seus depoimentos e na
deliberação a partir de diferentes interpretações.
Como disse, a crítica de Ângelo Franzoja, desde a Universidade de Bolonha, um
século depois, era implacável. Considerava que autores como Busenbaum e outros
probabilistas eram ambíguos e o único que semeavam era confusão, de forma que, para ele,
todas as opiniões versáteis e prováveis eram venenosas33 (FRANZOJA, 1760, p. 278). Mas
isso foi um século depois da Medulla ter influenciado fortemente em todos os setores,
religiosos, morais, jurídicos e políticos, da Europa do século XVII e começos do XVIII.
O Probabilismo, e principalmente o Probabilismo de Busenbaum, foi uma solução,
elaborada durante um longo período e suficientemente sofisticada, para, sem romper com a
tradição tomista, nem com a doutrina católica, e entroncando com a retórica clássica, dar um
passo adiante e adentrar na Idade Moderna com uma forma de pensar e de agir bem diferente
da época medieval. Tratava-se de que a própria pessoa visse que aquilo que a doutrina católica
dizia que era bom ou mau, era assim mesmo também para ela, e se determinasse a segui-lo, a
partir da sua própria consciência. E se, em consciência tivesse uma opinião diferente à do seu
confessor, deveria seguir a sua própria consciência e não a indicação do confessor. E o lugar
privilegiado para tudo isso era o sacramento da Penitência. Tudo isto distava – e muito – tanto
de um cômodo relativismo, em que cada um poderia fazer o que quisesse, como de um
estreito legalismo, em que a pessoa poderia alienar a sua própria consciência limitando-se a
cumprir cegamente, e sem reflexionar, o que a lei determinasse.
Considerações finais
Numa época de crise e incerteza como foi o século XVII, no qual, de acordo com a
28
“Probabile tamen est etiam, quod ex Sylv docet Sa et Less.non teneri, saltem sub mortali in causis
capitalibus et gravioribus, si sit spes evadendi et nullum gravem damnum Reipublicam temeatur. Tann. d.4,
q.4, d.5 Card de Lugo d.40, n.15, ubi dicit esse sententiam valde probabilem et in praxi tutam”
29
“Ut, qui convinci non potest, teneatur praebere arma contra se, quibus occidatur (...) eum quia non videtur
tam heroicus actus praecipi posse”.
30
“Iudex debet iudicare secundum leges.Unde inferior iudex ordinarie non potest poenam relaxare vel
minuere”.
31
“Quia iudicat ut persona publica, ideoque sequi debet scientiam publicam, ac procedere secundum allegata
et probata”.
32
“Iudex inferior videtur secundum ea posse iudicare licet minus probabilem”.
33
“Haec scilicet sunt putida versatilis probabilitatis commenta”.
10
maioria dos historiadores, tanto a Igreja quanto o Estado procuravam homogeneizar e
controlar o pensamento e as condutas, o Probabilismo foi uma corrente dentro da Teologia
moral católica que fornecia não uma solução para os problemas morais, mas um enorme leque
de argumentos e opiniões para que cada pessoa pudesse, em consciência, decidir livremente
como agir moralmente.
O Probabilismo não era, na origem, nem rigorista nem laxista. Não se tratava de que
cada um agisse como bem entendesse, como mais tarde diriam os seus críticos, mas defendia
que na maior parte das coisas e situações da vida ordinária, o nível de certeza ao qual
qualquer pessoa poderia chegar era ao nível do razoável ou do provável. E, portanto, dado que
na maior parte das vezes não se poderia contar com uma verdade total nem com uma certeza
completa, era necessário que o homem aprendesse a agir dentro do provável, do incerto e do
inseguro.
A retomada dos estudos clássicos e de retórica, impulsionada pela Ratio Studiorum,
fez que muitos jesuítas da segunda geração aceitassem rapidamente a tese probabilista de
Medina. Gabriel Vázquez, considerado como o primeiro jesuíta probabilista, começou a abrir
caminho no terreno moral quando defendeu que, em matéria moral, havia muitas opiniões que
eram prováveis, outras que eram mais prováveis e muitas outras que eram menos prováveis.
A Medulla de Busenbaum, que chegou a contar com mais de 150 edições, significou
uma inovação no campo da disciplina moral católica. Sem romper com a tradição, e
mantendo-se dentro da objetividade própria da Teologia moral, soube centrar a sua análise no
sujeito e na sua interioridade e subjetividade, trazendo um elaborado estudo que permitia a
qualquer pessoa enfrentar por si própria os dilemas morais e deliberar em consciência. Não se
tratou de contestar a Igreja católica, mas se procurou fornecer as bases e os fundamentos para
que os fiéis, leigos, padres e religiosos, interiorizassem a doutrina moral, permitindo-lhes a
sua autodeterminação. As opiniões e argumentos que Busenbaum dava para pessoas em
determinados cargos e estados, como o caso das testemunhas, dos réus ou dos juízes, foram
originais e inovadores, capazes de provocar mudanças e alterações nos processos judiciais, e
de permitir aos juízes atuar com uma ampla margem de arbitrariedade e flexibilidade.
Referências Bibliográficas
11
LEITES, Edmund (ed). Conscience and Casuistry in Early Modern Europe.
Cambridge-Paris: Cambridge University Press-Editions de la Maison des Sciences de l
´Homme, 1988.
MARAVALL, José Antonio. La cultura del Barroco. Análisis de una estructura
histórica. Barcelona: Ariel, 4ª ed, 1986.
MARTÍN CARRAMOLINO, Juan. Elementos de Derecho Canónico con la disciplina
particular de la Iglesia de España después de la publicación del Concordato de 1851, II
Tomos. Madrid: Establecimiento Topográfico de Don Francisco de P. Mellado, 1857.
MARYKS, ROBERT ALEKSANDER. Saint Cicero and the Jesuits. The Influence of
the Liberal Arts on the Adoption of Moral Probabilism. Hampshire-Rome: Ashgate-Institutum
Historicum Societatis Iesu, 2008.
MORSE, R. O Espelho de Próspero. Cultura e Idéias nas Américas.São Paulo:
Companhia das Letras, 1988.
PADOA-SCHIOPPA, Antonio. Sulla coscienza del giudice nel diritto comune, Iuris
Vincula, (Nápoles). Studi in onore di Mario Talamanca, VI: Jovene Editore, 2001.
PRODI, Paolo (ed.). Disciplina dell´anima, disciplina del corpo e disciplina della
società tra medioevo ed et`moderna. Bologna: Il Molino, 1994.
PRODI, Paolo. Uma História da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
RATIO ATQUE INSTITUTIO STUDIORUM SOCIETATIS IESU, Auctoritate Septimae
Congregationis Generalis aucta. Roma: in Collegio Romano eiusdem Societatis, Anno
Domini, 1616.
SAMPSON, Margaret. Laxity and Liberty in seventeenth-century English political
thought. In: LEITE, E. (ed), Conscience and Casuistry in Early Modern Europe. Cambridge-
Paris: Cambridge University Press-Editions de la Maison des Sciences de l´Homme, 2002, p.
77.
SCHILLING, Heinz. Chiese confessionali e disciplinamento sociale. Un bilancio
provisorio della ricerca storica. In: PRODI, Paolo (ed.). Disciplina dell´anima, disciplina del
corpo e disciplina della società tra medioevo ed et`moderna. Bologna: Il Molino, 1994, pp.
15-157.
SOMMERVILLE, Johann P. The 'new art of lying': equivocation, mental reservation
and casuistry. In: LEITES, E. (ed), Conscience and Casuistry in Early Modern Europe.
Cambridge-Paris:Cambridge University Press-Editions de la Maison des Sciences de l
´Homme, 2002.
TURRINI, Miriam. Il giudice della coscienza e la coscienza del giudice. In: PRODI,
Paolo (ed.), Disciplina dell´anima, disciplina del corpo e disciplina della società tra
medioevo ed et`moderna. Bologna: Il Molino, 1994, pp. 279-294.
VIDAL, Marciano. Frente al rigorismo moral, benignidad pastoral. Alfonso de
Ligouri (1696-1787). Madrid: PS Editorial, 1986.
12
13