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08/04/2024, 16:01 Ciclo Abraâmico: Comentário de Gênesis 17

Ciclo Abraâmico: Comentário de Gênesis 17


dezembro 30, 2023

Gênesis 17 é o segundo de dois relatos de aliança da divindade com Abrão presentes no ciclo desta
personagem. O primeiro, presente em Gênesis 15, refere-se à divindade com o nome Yahweh, enquanto
que no atual capítulo fala-se em Elohim (quanto às designações Yahweh e El Shadday em 17:1, explicá-
las-emos pouco mais adiante). Enquanto que naquele texto a aliança enfatiza as promessas de
descendência e terra com vistas a legitimar a posse da terra pelos israelitas, os descendentes de Abrão.
Neste, busca-se a legitimação do rito da circuncisão, o qual consolida os laços de pertença à
comunidade - aqueles que não se submetessem a este rito seriam “cortados” da comunidade, ou seja,
deixariam de fazer parte dela, tornar-se-iam, portanto, socialmente proscritos.

O relato tem muitas similaridades com o relato “Elohista” do dilúvio, o qual enfatiza a aliança noaica. Lá,
como aqui, o nome usado para se referir à divindade é Elohim (vide, porém, comentário ao v. 1, abaixo).
A Abrão, como a Noah, é dito para que “ande na presença da divindade”, é estabelecido uma aliança
entre ambos (e seus descendentes) e Elohim, e em cada caso há um sinal para a aliança (no caso de
Noah, o arco; com Abrão, a circuncisão). No relato aqui do capítulo 17, a palavra “aliança” aparece 13
vezes, enquanto que no relato do capítulo 9, ela aparece 7 vezes. Minha teoria é que ambas as tradições
remetem a uma mesma origem (autor/comunidade), e que sua inclusão em um corpo maior foi feita por
um autor sacerdotal, que inseriu pequenas glosas no começo e no fim das narrativas (e eventualmente
no corpo delas) para harmonizá-las em um único texto, segundo seu plano diretor.

O versículo 1 demonstra a mão do redator a conduzir a colagem das narrativas, à semelhança do que
fora feito no capítulo 16 (vv. 3 e 16), aqui também no início do capítulo 17 (v. 1) há o artifício da busca por
indicações cronológicas, com vistas a entretecer os materiais narrativos individuais que o autor tem em
mãos e com os quais trabalha. A segunda parte do primeiro versículo também parece ser um indicativo
de que se trata de uma glosa posterior, não pertencente ao material original, pelo curioso uso dos nomes
da divindade. É dito que é Yahweh quem aparece para Abrão. Todavia, ele se apresenta como El
Shaday. Tudo isso a despeito de o corpo do texto referir-se à divindade como Elohim (vv. 7, 9, 15).
Portanto, o uso dos nomes Yahweh e El Shaday não parecem ser ocasionais, inadvertidos, antes
reforçam uma intencionalidade, a de associar todos os nomes divinos à uma única e mesma divindade -
haja vista que em suas origens poderiam não só terem sido usados em diferentes tradições, por
diferentes grupos de pessoas, como poderia, no seio das comunidades que preservaram tais tradições,
serem entendidos como referências exclusivas à divindade que cultuavam. Tal associação demonstra
uma compreensão muito posterior à das origens das tradições. Pode ser que, à época do redator,
houvesse na tradição oral certa controvérsia ou dúvida do nome da divindade que fizera aliança com
Abrão, eis a solução do autor: Yahweh é El Shaday, “ambos” são Elohim. Trata-se de uma única e
mesma divindade. A associação direta que o versículo faz entre Yahweh e El Shaday seria indicativo que
o redator é o mesmo que “compôs” Êxodo 6:2,3? Ademais, nossa falta de estranhamento a esses
detalhes é tanto pela tradução em si dos designativos da divindade – que no mais das vezes é feito de
forma muito ruim, de modo a solapar a diferenciação entre os termos –, como o é também pela
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domesticação hermenêutica do texto: ouvi-lo sob a ótica da tradição ou da autoridade pastoral de um


líder religioso de certa comunidade sob anos a fio faz com que leiamos as narrativas já contaminados
com certa perspectiva teológica, ou seja, não enxergamos no texto o que efetivamente está escrito (nem
nas linhas, quanto menos nas entrelinhas), mas tão somente o que fomos treinados para enxergar,
"lemos" apenas o que é dogmaticamente "ortodoxo" segundo tal ou qual perspectiva.

Quando a circuncisão é eleita por Elohim como sinal da aliança entre ele e Abraão e a descendência
deste (vv. 9-14), é curioso notar que embora no começo da perícope Elohim se dirija à Abraão, logo em
seguida são usados, várias vezes, os designativos “vós” e “vossos”. O autor do texto não só busca
legitimar, aos olhos da comunidade, o rito da circuncisão com base em uma aliança realizada entre
Elohim e Abraão – de quem a comunidade se vê como descendência e herdeira –, como também se
dirige explicitamente aos seus leitores a fim de exortá-los à prática da circuncisão, alheia à qual não
poderiam tornarem-se membros da comunidade (v. 14). Há alguma medida de retroprojeção na
narrativa? É provável que sim! Por exemplo, na dita associação dos diversos teônimos como se referindo
já em suas origens a uma única e mesma divindade. No mais, relativamente ao rito da circuncisão, é
difícil dizer em que medida este era praticado no seio das comunidades dos períodos do Bronze Médio
(2200-1550) e Tardio (1550-1200), as quais viriam posteriormente a ser identificadas como
abraâmitas. Mas independente disso, é fato que a circuncisão é uma prática antiga, inclusive praticada
por outros povos do Antigo Oriente Próximo que não exclusivamente os israelitas.

Já a associação de Ismael com tribos árabes contemporâneas ao redator do texto, colocando-o como
antepassado de tais tribos, passa ela sim por uma medida de retroprojeção quando o texto referencia 12
príncipes gerados a partir de Ismael (v.20). Talvez a ideia de que os israelitas e as tribos árabes
ismaelitas tivessem um ancestral comum, representado na narrativa pela figura de Abraão - que guarda
sua importância tanto na atual tradição judaica, quanto na muçulmana -, fosse, já àquela altura da
costura do texto pelo narrador, um ponto compartilhado por ambos os “povos”, o texto trata, então, de
explicar essa tradição, o dado dos 12 príncipes que, da perspectiva da narrativa, seriam gerados, parece
ser uma retroprojeção inserida pelo autor (de modo a agrupar todos os grupos árabes que, àquela altura,
se associavam à Ismael e Abraão? Talvez sim…). Lembremo-nos que o fecho das narrativas do ciclo
abraâmico se dá com toledot (gerações/genealogias de) Ismael e Isaac, na do primeiro são citados os 12
príncipes aqui referenciados, o que reforça que o redator(es) final(is), com grande probabilidade,
fosse(m) dos círculos sacerdotais, haja vista ser desse segmento autoral, segundo melhor entendimento
acadêmico, o trabalho redacional relacionado à inclusão das toledot e de dados cronológicos em
Gênesis, além da própria temática relacionada ao rito da circuncisão. Tal temática, aliás, parece fruto das
preocupações, próprias dos meios sacerdotais, com o estabelecimento de novas dinâmicas de
religiosidade em função das privações ocasionadas pela experiência do exílio. A impossibilidade de fazer
os sacrifícios e as solenidades que giravam em torno do Templo, fez com que fosse necessário elaborar
novos traços de identidade religiosa, possíveis de serem praticados em terra exílica. (cf. Pentateuco: as
agruras que lhe forjaram).

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